Hospital da Criança de Brasília: uma instituição em três dimensões

HCB IMAGEMVamos combinar de início: aqui fala um fã, um apaixonado pela iniciativa. Tanto que me transformei em voluntário, com muita honra! Mas é difícil não se apaixonar… Talvez alguns promotores xiitas não se sensibilizem, mas pessoas normais, com certeza. Aliás, qualquer pessoa que venha ao Hospital da Criança José de Alencar de Brasília (HCB) ao chegar percebe que está em um lugar “diferente”. Isso não acontece apenas com quem vem para trabalhar ou se tratar, mas afeta a todos que por algum motivo aqui fazem presença: visitantes, fornecedores, prestadores de serviços, curiosos. Todos!

Mas, na realidade, em que realmente este lugar é diferente de outros? Seria pela limpeza de suas enfermarias e corredores? Pelas dimensões do prédio? Pelas cores vivas com que são pintadas suas paredes? Pelas sessões de música que encantam os pacientes e demais pessoas presentes? Pelos palhacinhos que espalham alegria pelos corredores que de outra forma poderiam ser tristes e sombrios? Pelos uniformes coloridos dos que trabalham aqui? Pela falta de um “cheiro de hospital”, tão peculiar a outros lugares onde pessoas doentes são obrigadas a permanecer? Pelo sorriso que está sempre a mostrar o rosto de quem aqui trabalha?

Por vários motivos, realmente. Muitos motivos! Quanto mais os procurarmos, mais vamos encontrá-los. Poderíamos ficar falando deles por páginas e páginas sem conta. Mas vamos nos concentrar em algumas coisas essenciais, embora nem sempre perceptíveis à primeira vista.

Em primeiro lugar, porque é uma instituição que se move por uma missão e por um conjunto de valores. Isso poderia apenas estar escrito em algum lugar, um quadro na parede, por exemplo, e ser logo esquecido. Mas aqui, o que está escrito – e é repetido em documentos, posters, páginas da web – não apenas faz “parte da paisagem”, mas é um sentimento que impregna a todos os que aqui circulam, seja como servidores, voluntários e outros. E certamente alcança, especialmente, os que vêm aqui buscar alivio para seu sofrimento, sejam pacientes ou suas famílias. É só perguntar a eles (se bem que são coisas que costumam saltar aos olhos).

Em segundo lugar, porque representa uma maneira diferente – e nova – de se fazer a gestão da saúde no Brasil. Aqui, com efeito, um organismo nascido da vontade das pessoas da comunidade, pessoas especiais que se mobilizaram por uma causa que não seria só delas, vem trazer ao Poder Público uma oferta de estrutura e ações, para constituir um caso sem precedentes no DF de instituição totalmente voltada ao interesse público, que atende 100% de forma gratuita e que com tudo isso não aufere lucros nem busca vantagens de qualquer natureza, a não ser a de atender – bem! – crianças portadoras de câncer, além de muitas outras condições.

Mas tem mais: aqui é SUS, como se vê nos posters e avisos afixados nas paredes, em cada documento emitido, na divulgação dos serviços oferecidos, nos uniformes e crachás dos funcionários. E não há nenhum favor em “ser SUS”, pois trata-se apenas de cumprir o que a lei manda, o que, afinal de contas, nada mais é do que uma das regras básicas praticada neste hospital. Aqui é SUS, aqui é público, aqui é gratuito; não existem favorecimentos e as regras são claras para se ser atendido; mas ainda assim aqui é “diferente”. Nas linhas seguintes tentaremos entender porque é isso acontece.

Um hospital orientado por valores e humanização; uma instituição gerida através de uma parceria público privada transparente e comprometida com resultados; um serviço que produz saúde como direito de todos e objeto de relevância pública: são estas as três dimensões de que se fala no título. É possível demonstrar como, na verdade, suas lógicas se encaixam harmonicamente. Afinal, trabalhar com valores, trazer inovações gerenciais e ser público não poderiam ser coisas distantes ou díspares. É bem o contrário!

 

  • Missão, Valores, Humanização, Compromisso

O HCB afirma com clareza que tem uma missão e isso está em toda parte. Seus termos são os seguinte: “assistir a população de 29 dias a 18 anos referenciada para atenção especializada de média e alta complexidade, com integralidade e resolutividade humanizada, promovendo ensino e pesquisa e inovações no modelo de gestão, em parceria com o Governo do Distrito Federal”.

Ao mesmo tempo, procura declarar sua visão de futuro, projetada já para o final da presente década: “ser reconhecido nacional e internacionalmente como um centro de excelência em atenção pediátrica especializada e referência em ensino e pesquisa. Focado na integralidade da assistência, tendo ainda responsabilidade de educar para a saúde, valorizando o papel da família e envolvendo a comunidade, o Governo do Distrito Federal (GDF) e demais parceiros, em especial a Associação Brasileira de Assistência às Famílias de Crianças Portadoras de Câncer e Hemopatias (Abrace).

E tudo isso ganha dimensão especial com a definição dos valores pelos quais a instituição se move: Ética; Comprometimento; Competência; Solidariedade; Trabalho em equipe; Humildade. E o resultado principal disso tudo só poderia representar um dos pilares da prática no Hospital da Criança: o atendimento humanizado.

Com efeito, o HCB se declara ter nascido para ser diferente e proporcionar aos seus usuários um atendimento de qualidade e humanizado, com sua estrutura física quebrando o paradigma tradicional do ambiente hospitalar, criando uma atmosfera lúdica e agradável, com corpo técnico formado por especialistas reconhecidos, buscando sempre a excelência técnica. Mas ele quer mais: transformar-se em hospital de excelência nacional, eficaz e eficiente, dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), tendo como objeto principal a assistência integral a crianças e adolescentes portadores de doenças de média a alta complexidade.

Tudo isso está em sintonia com um modelo gerencial inovador, baseado nos princípios e dispositivos da Política Nacional de Humanização (PNH), procurando valorizar os diversos sujeitos implicados no processo de produção de saúde, sejam eles pacientes, seus familiares, trabalhadores dos diversos níveis e profissões, além dos gestores da instituição. O quadro de referências de tais práticas inclui as diretrizes da transversalidade, o protagonismo de cada um dos envolvidos e a indissociabilidade entre a atenção e a gestão, aspectos derivados dos dispositivos do PNH, juntamente com: a gestão descentralizada e participativa; os cuidados com a ambiência; a utilização de contratos de gestão; a ampliação do acesso; as práticas de visita aberta e de participação das famílias; o foco no monitoramento e na avaliação.

Assim, busca-se, acima de tudo, o cuidado integral e resolutivo da assistência organizada em Unidades de Produção formadas por equipes multiprofissionais e de referência e para a organização dos processos do trabalho, com programas e ações educacionais e de saúde para colaboradores, sempre respeitando os princípios mestres do SUS: integralidade, universalidade e equidade.

  • Produtos e resultados

Inaugurado em 23 de novembro de 2011, o HCB vem acumulando dados expressivos de produtividade e, o que é mais importante, de qualidade no que faz. Assim, desde sua fundação, realizou mais de 3,75 milhões de atendimentos, com mais de 2,4 milhões e 247 mil exames laboratoriais e de 573 mil consultas (até novembro de 2019). Foram registradas, ainda, mais de 132 mil diárias, sendo 73,5 mil internações e 58, 8 mil em hospital-dia; 50 mil sessões de quimioterapia; 25 mil transfusões; 10 mil cirurgias ambulatoriais; 19 mil ecocardiogramas;  50 mil raios X; 26 mil tomografias; 36 mil exames de ultrassom, e por aí vai.

Os usuários gostaram disso tudo? Sim! Houve pesquisas demonstrando seu alto índice de satisfação, com 96,4% de ótimo e bom na visão dos familiares e 97,6% na avaliação dos pacientes).

Divulgar estas informações faz parte da missão institucional do HCB, sem dúvida. Estes dados são publicados mensalmente em cartazes dentro do Hospital e na internet, da mesma forma que o relatório mensal previsto no Contrato de Gestão com a Secretaria de Saúde do Distrito Federal, incluindo informações sobre o valor que o mesmo recebe do Governo do Distrito Federal.

  • Ensino e Pesquisa no HCB

Aspecto peculiar no HCB é a preocupação com o ensino e a pesquisa, existindo, para tanto, uma diretoria específica (Direp), voltada justamente para fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação na área de saúde da criança e do adolescente, em alinhamento com a missão institucional do HCB/Icipe e de acordo com os compromissos assumidos no Contrato de Gestão Icipe/SES-DF.

Assim, desde 2011, o HCB passou a ser campo de estágio de residência médica e multiprofissional, de estágio curricular de cursos de graduação da saúde e de internato médico de mais de uma instituição do DF. Em 2018, a Comissão Nacional de Residência Médica aprovou o funcionamento de 10 programas de residência médica em áreas de atuação/especialidades pediátricas vinculados à Comissão de Residência Médica (Coreme) do HCB.

A pesquisa científica foi institucionalizada no HCB, com projetos apreciados por um Comitê de Ética em Pesquisa e grupos de pesquisa cadastrados no CNPq. Existe também um Programa de Iniciação Científica, com a participação de alunos de graduação de instituições de ensino superior do DF. Ainda na perspectiva de contribuir para a formação de pediatras e profissionais de saúde e com o avanço científico em geral, o HCB mantém colaboração com instituições de ensino e pesquisa, tanto no DF, como em âmbito nacional e internacional, com inúmeras colaborações formalizadas.

Tudo isso tem sido materializado através da promoção de eventos técnicos e científicos diversos, que chegaram a várias dezenas em 2019.

  • Canal do Paciente

Também como parte de sua missão institucional, o HCB, procura divulgar de maneira absolutamente ampliada e transparente suas responsabilidades como parte integrante da rede de saúde do DF, relativas á prestação de assistência especializada em pediatria, especialmente nas doenças de maior complexidade.

As consultas no HCB são totalmente gerenciadas pela Secretaria da Saúde do DF, através de sua Central de Regulação, ou seja, não cabe ao Hospital agendar diretamente primeiras consultas de pacientes, para o que se torna necessário, antes de mais nada, que o paciente seja atendido em uma das Unidades de Saúde da Rede da SES-DF, seja em Hospitais ou Centros de Saúde e que a respectiva solicitação seja processada através da Central de Regulação.

O agendamento de consultas deve considerar a prioridade do atendimento, de acordo com o que for estabelecido pelo médico da Unidade de Saúde que solicitou o atendimento especializado. Para informações sobre o andamento da solicitação, não só a unidade que encaminhou o paciente tem condições de prestar esclarecimentos, como existe também um telefone com esta finalidade.

Deve ficar bem claro, portanto, que sendo o HCB uma unidade de referência, onde não há serviço de emergência (Pronto Socorro), todos os atendimentos são realizados, obrigatoriamente, com hora marcada.

Mas o HCB não faz parte de um sistema fechado, no qual é impossível ao público conhecer a lógica das movimentações e encaminhamentos. Ao contrário, o mesmo faz parte de um sistema em rede transparente e aberto, no qual representa uma unidade de referência, um ponto dessa rede, com atribuições muito bem definidas e de conhecimento amplo.

Não custa lembrar: embora seja resultado de uma parceria entre o público e o privado, sob a forma de contrato de gestão com uma Organização Social, o Hospital da Criança de Brasília é 100% SUS e tem natureza pública, embora não seja estatal.

  • Parcerias público-privadas: por quê?

O HCB é administrado por meio de parceria entre a Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES/DF) e o Instituto do Câncer Infantil e Pediatria Especializada (Icipe). O instrumento que viabilia tal parceria é o Contrato de Gestão (CG). O primeiro CG (nº 001/2011) foi celebrado em 28/06/2011 e estipula metas de produtividade e de qualidade a serem observadas na gestão do Hospital. Em fevereiro de 2014 foi assinado novo Contrato de Gestão (n.º 001/2014), atualmente em vigência e válido por cinco anos contados a partir de 01/03/2014.

Modelos desta natureza têm pelo menos duas décadas de experiência no Brasil e tendem a se firmar no cenário, embora nem todos tenham desempenho igual. Entre outras possibilidades, em termos de autonomia e flexibilidade, os modelos consensualmente considerados como mais adequados são o Serviço Social Autônomo (SSA) e a Organização Social (OS), pertencendo o HCB a este último. Ambos operam mediante regras do setor privado, embora quando se relaciom com o Poder Público devam observar princípios pertinentes a este último. O modelo SSA conta com poucos exemplos até o momento no Brasil e requer uma lei para sua criação. Já o de OS, não carece disso, por ser iniciativa de entes particulares, demandando apenas a existência de lei específica da respectiva esfera administrativa.

Mas de toda forma, modelos dessa natureza, ou seja, formados por entidades privadas não integrantes do aparelho do estado, apresentam-se consensualmente como as melhores alternativas para a execução de política pública de assistência à saúde e de ampliação do alcance das ações do sistema público, apesar dos riscos de oscilação no seu financiamento. No Brasil eles hoje estão presentes em 23 dos estados, no DF e em mais de 200 municípios.

O caso do HCB, ou seja, modelo de OS, corresponde ao que se denomina de “terceiro setor”, não fazendo parte do modelo tradicional de administração pública dita “direta”. Em tal modelo, as ações são regidas por contratos de gestão, nos quais se definem metas assistenciais, com foco em resultados e valor. Isso os coloca fora do arcabouço legal rotineiro, como as leis 8.666 (contratos e licitações), 8.112 (Estatuto do Funcionário Público) e LC 101 (Lei de Responsabilidade Fiscal – até certo ponto, pelo menos). Assim, são permitidas regras distintas do modelo direto de administração pública, que é muito engessado e sujeito a normas rígidas, por exemplo na gestão de recursos humanos ou na realização obrigatória de licitações, substituídas por processos mais simples de concorrências públicas. Seus empregados não são servidores públicos típicos, mas sim contratados pela CLT, não possuindo estabilidade e com remuneração baseada em contratos de trabalho firmados de modo consensual entre empregados e empregadores, com política salarial seguindo os padrões do mercado.

Estudos têm demonstrado que tal modelo, especialmente o de OS, que tem maior difusão no Brasil, prima pelos padrões de eficiência, de autonomia e de menor custo, quando comparados à administração direta. É claro que há também críticas sobre o uso desses modelos. Deve-se considerar, acima de tudo, que eles não são solução para todos os casos, possuindo aplicações específicas. Além disso, não podem se arvorar a substituir o poder do Estado; ao contrário, não se pode abrir mão do controle e da regulação competente por parte do Estado. Afinal, não podem, em nenhuma hipótese, serem responsáveis pela formulação de políticas de saúde, apenas pela sua execução.

Sobre a crítica, frequente em alguns setores, de representarem “privatização” na saúde, isso pode ser contestado por não gerarem lucro e o poder regulatório sobre eles ser totalmente estatal. Além disso, no caso da saúde (e especialmente no caso particular do HCB) , seu atendimento é 100% SUS e os equipamentos e construções utilizados pertencem ou passam a pertencer ao Estado.

Sem dúvida, trata-se de um modelo que ainda pode ser aperfeiçoado, devendo-se admitir que nem todas as OS presentes no cenário possuem desempenho compatível com o que foi exposto aqui. Mas representa uma possibilidade de avanço, ao expandir o atendimento do SUS, alcançando áreas de tecnologia e mesmo espaços geográficos não cobertos pelo mesmo, com maior eficiência e flexibilidade.

 

  • O SUS: direito versus privilégio

No Brasil, a Constituição de 1988 introduziu profundas mudanças na maneira como se organizava, até então, a prestação de serviços de saúde no país. O país adotoudesde então, um modelo de estrutura de serviços convergente a uma tendência universal, em vigor desde os anos 50, com origem no Reino Unido. Tal tendência, entretanto, passou por momentos de expansão, ajuste e às vezes ameaças e retrações.

Desde sua origem tais modelos assumiram algumas diretrizes políticas fundamentais, como: transformar a saúde em direito universal; atribuir papel preponderante ao Estado, seja no financiamento, na regulação ou na prestação de serviços, além de descentralização, organização regionalizada hierarquizada e unificação de instâncias de gestão. O modelo daí advindo é às vezes referido como beveridgeano, numa alusão a quem o propôs e sistematizou, o economista William Beveridge, nos anos imediatamente após a II Guerra Mundial, na Inglaterra. A transformação daí resultante se constituiu como os Serviços Nacionais de Saúde (NHS – National Health Services) britânico, que influenciou a criação de outros sistemas semelhantes em vários países da Europa e do mundo, sendo o SUS um deles, embora mais tardio. Sistema beveridgeanos de saúde são considerados parte essencial do que se denomina Estado de Bem Estar Social, situação prevalente em muitos países do mundo, tendo como exemplos mais claros, além do Reino Unido, os países nórdicos e de boa parte da Europa, além do Canadá. Em sintonia com isso estão os princípios de cidadania social, conforme estabelecido por Marshall, na qual, além dos direitos fundamentais de votar e ser votado; ir e vir; reunir-se e outros, estão os de acesso à educação, à saúde, à moradia, ao bem estar social, enfim.

O referido modelo beveridgeano se contrapõe ao chamado modelo bismarckiano, uma referência a Otto von Bismarck, chanceler alemão que no final do século XIX comandou unificação da Alemanha, a partir de principados e cidades-estado que vinham da tradição medieval, dando a este país a configuração aproximada que ele tem hoje. Em tal vertente alemã, a saúde não era um direito de todos, pois usufruir de benefícios em tal modelo, exigia adesão dos cidadãos mediante compromisso de pagamentos (“ter mérito”), sendo também baseado em um sistema de “seguro”, no qual patrões, empregados e o Estado se cotizavam para financiar a saúde, dentro de um arcabouço de pré-pagamento. Este foi, também, o sistema que vigorou no Brasil com os chamados Institutos de Previdência, criados no Estado Novo e depois no próprio Inamps, sendo superado pela orientação beveridgeana que lhe deu a constituição de 1988.

O SUS, criado na Constituição de 1988 assim, supera um modelo dicotômico vigente nas várias décadas anteriores, que tinha, de um lado os Institutos de Previdência (depois Inamps), responsáveis pela parcela da população que tinha emprego “com carteira assinada” ou seja, de matriz bismarckiana. De outro, aquele do qual dependiam os demais cidadãos, maioria aliás da população, com formas mistas de assistência à saúde, como os serviços públicos municipais, estaduais e federais, as filantropias e a iniciativa privada. Já no final dos anos 50 surgiria a nova modalidade hoje conhecida como “planos de saúde” (ou saúde suplementar), uma variação do modelo bismarckiano, porém sem a participação direta do Estado em seu financiamento.

Formalmente, nos termos constitucionais, o SUS tem como princípios: (1) de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas; (2) que fica garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde; (3) que é conferida a “relevância pública” às ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público atuar na regulamentação, fiscalização e controle das ações respectivas, com sua execução feita diretamente pelo Estado ou através de terceiros; (4) que as ações e serviços públicos devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada; (5) que sejam unificadas as várias instâncias de gestão, organizando-se o sistema de acordo com as diretrizes de (a) descentralização; (b) direção única em cada esfera de governo; (c) integralidade; (d) prioridade na prevenção, sem prejuízo da assistência; (e) participação da comunidade; (f) financiamento solidário com recursos dos três entes federativos.

Mas afinal, no Brasil a saúde melhorou com o SUS? Como se pode comparar o antes e o depois da nova organização da saúde no país?

Não cabem dúvidas: melhorou, sim – e muito! A primeira e mais impactante mudança é aquilo que era “mérito” (de quem podia pagar) ter se transformado em “direito” (de todos). A expansão de serviços foi extraordinária, porque além dos antigos hospitais do Inamps e do Ministério da Saúde, presentes apenas nas capitais, foram incorporados ao sistema milhares de novas unidades, hospitalares, ambulatoriais e complementares, no âmbitos dos estados, dos municípios e do Distrito Federal. E o número dessas vem crescendo de forma exponencial nas três últimas décadas, da mesma forma que o emprego no setor saúde.  As ações de vigilância à saúde passaram a fazer parte deste novo sistema, integrando, pela primeira vez na história, de forma completa, os aspectos preventivos e curativos sob um mesmo comando. Os municípios brasileiros, anteriormente apenas entes marginais na prestação de serviços, se transformaram no principal reservatório de unidades prestadoras públicas, de diversas complexidades e níveis de atenção. Os indicadores de saúde responderam, naturalmente, de forma substantiva, com marcantes melhorias nos índices de cobertura vacinal; na mortalidade infantil e materna; na redução da mortalidade de muitas condições; no aperfeiçoamento diagnóstico (com redução extrema das causas não esclarecidas de óbito, por exemplo), além da expressiva expansão da cobertura ambulatorial e hospitalar a vastas extensões do território nacional. O Brasil se transformou em exemplo internacional em algumas ações de saúde, como, por exemplo, na prevenção e tratamento da AIDS, no controle de doenças transmissíveis como o sarampo e a poliomielite, além da bem sucedida política de medicamentos genéricos.

É claro que se tratam de avanços frente aos quais ainda persistem certos dilemas. Uma frase síntese de tal situação seria: o SUS não é um problema sem solução, mas sim uma solução com problemas. Problemas que podem ser resolvidos, diga-se de passagem!

Um desses dilemas é aquele traduzido pela expressão “único”, ou seja, “comando único em cada esfera de governo”. Somos uma federação que confere profundo grau de autonomia a seus entes, União, estados e municípios. Mas ao mesmo tempo, somos um conjunto de entes absolutamente desiguais, no qual coexistem, com o mesmo estatuto, cidades tão grandes como São Paulo, que possui mais do que a população de Paraguai e Uruguai somada e pequenos municípios ribeirinhos nos grotões do país, às vezes com dois mil habitantes, ou menos. São situações diferentes, com recursos diferentes, cultura diferente e dimensões radicalmente díspares. Assim, a tal “unicidade” prescrita na Constituição, evidentemente, tem dificuldades em se materializar de forma consistente. O que uma metrópole como São Paulo ou Brasília executa sem maiores problemas, em uma pequena aldeia no interior do Brasil pode representar um problema complexo e quase sem solução (ou vice versa, em alguns casos).

Além do mais, existe certa contradição entre ser “único” e ser “autônomo” – e as duas coisas estão declaradas no arcabouço legal da Federação brasileira. E isso faz do SUS um sistema que precisa ser construído de forma negociada entre os entes federativos, às vezes (não poucas) com conflitos e retrocessos. Mas ele precisa ser entendido dessa forma, como uma verdadeira “construção”, cuja conclusão ou não tem como ser prevista ou simplesmente pode ser apenas fictícia, uma obra que, mesmo quando pareça concluída, a realidade se impõe e exige que se recomece e e se façam reformas. Mas ainda assim o sucesso trazido pelo SUS é inquestionável, como mostrado acima.

Mas o grande dilema ainda não totalmente resolvido é o do financiamento. A Constituição determina que ele seja solidário entre as três esferas de governo. Mas aqui, mais uma vez, se impõe a desigualdade: as tais três esferas são essencialmente desiguais entre si, particularmente no quesito “recursos” disponíveis. Muitas soluções foram tentadas no período pós constitucional. O Ministério da Saúde se transformou em verdadeira “máquina de produzir portarias”, boa parte delas tratando de partição e distribuição de recursos, já que boa parte do dinheiro disponível depende do dinheiro arrecadado pelo Governo Federal através dos impostos. Só para se ter uma ideia da dimensão e da complexidade das soluções para os problemas financeiros da saúde no Brasil, uma Emenda Constitucional do ano 2001 definiu parcelas de alocação para estados e municípios, mas deixou a União desobrigada. Mais recentemente, em 2016, outra Emenda Constitucional congelou a alocação de recursos em diversas áreas, entre elas a da saúde, por dez anos. Como se percebe, há no horizonte nuvens ameaçadoras, que restringem ainda mais o historicamente precário financiamento da saúde no Brasil.

Soluções heterodoxas, na contra-mão dos princípios de bem estar e cidadania social, também não faltam, como, por exemplo, a proposta de criação de “planos de saúde populares”, num reavivamento do bismarckianismo (desta vez sem Estado), da restrição pura e simples de serviços ou do estabelecimento de cobrança direta ao usuário.

Mas vamos ser otimistas: o SUS se trata de uma solução que ainda apresenta problemas. A resposta a eles envolve não só “bons governos”, mas também cidadãos conscientes e unidos politicamente em torno de suas necessidades e respectivas reivindicações.

Assim, aqueles que trabalham na saúde precissm assumir que o SUS de fato veio para ficar, embora precise de aperfeiçoamentos constantes. Assim mostram as experiências internacionais relativas a sistemas de feição beveridgeana, como nos casos do Reino Unido, do Canadá, da Itália e outros. É preciso também não incidir em ilusões: o contrário do SUS é a barbárie sanitária, não um paraíso ditado pela racionalidade de alguns economistas. O Chile, que já teve o melhor sistema de saúde da América Latina, simplesmente o viu destruído, assim como outras políticas de bem estar, com o advento de tais políticas de “austeridade” e restrição de direitos, tão ao gosto dos economistas neo-liberais.

É preciso também se animar com alguns novos caminhos que estão sendo abertos, sendo um deles as Parcerias Público Privadas, como esta da qual faz parte do Hospital da Criança de Brasília. É claro que elas sozinhas não resolverão os problemas do SUS, mas se mostram como roteiros para se trabalhar a gestão mediante princípios inquestionáveis de eficiência e racionalidade. Mas é preciso estar atento: embora os tais “planos de saúde populares”, por exemplo, também constituírem formas de participação privada na política de saúde, sua natureza restritiva e fundada na lucratividade empresarial não oferece boas perspectivas para ser uma solução de real impacto sobre a saúde da população

Concluindo, na discussão sobre o SUS, a questão que realmente não quer se calar é: como aumentar a confiança e a credibilidade do sistema perante a população? É preciso descobrir estratégias e principalmente reunir vontade política para fazer isso acontecer. Este deveria ser um autêntico “desafio moral” não só para os políticos e dirigentes, mas também para os trabalhadores de saúde do SUS de modo geral. Provocando: quem sabe, o dia em que os trabalhadores de saúde do setor público trouxerem seus pais, mães, esposa(o)s filho(a)s e outros parentes para consultar e se tratar nos locais onde eles próprios trabalham, e não nos planos de saúde e clínicas privadas, isso já não seria um começo de mudança?

***

Retomando a questão colocada acima, o que temos no HCB é um hospital orientado por valores e humanização, gerido através de uma parceria público privada comprometida com resultados, produzindo saúde como direito, não como favor ou mérito.

Há em tudo isso algumas linhas mestras. Por exemplo, a de se ter a saúde como um direito, realmente, a ser prestado com atributos de valor e humanização, além de eficiência e responsabilidade em relação a bens que são, acima de tudo, coletivos.

Não se tratam de novidades, por certo. A reforma dos sistemas de saúde em relação ao direito de todos / dever do Estado remonta aos anos 50; a nova dinâmica das organizações, em busca da eficiência e do foco no cliente vem um pouco depois; a atenuação dos limites e barreiras entre a coisa pública e a estatal restrita é um pouco mais contemporânea, mas mesmo assim bem conhecida e testada em todo o mundo. Em todos estes aspectos a saúde tem sido um campo de experimentação e de produção de modelos que permanentemente se aperfeiçoam e se espalham por toda parte.

Dentro de tais cenários, o que se tem como foco é atender mais pessoas, com maior qualidade, com menor gasto, evitando situações de piora e, acima de tudo, tendo presente noções como direito, humanização, valor, solidariedade, humildade, personalização do cuidado.

Em tudo isso pode-se dizer que há um denominador comum, que chamaremos aqui de saúde baseada em valor. Trata-se de um modelo de prestação de cuidados de saúde em que os prestadores devem ter como base de sua ação os resultados auferidos em termos da saúde dos pacientes, sendo recompensados pela real ajuda aos pacientes na melhoria de suas condições de saúde, na redução dos efeitos e da incidência de doenças e, enfim, na promoção da qualidade de suas vidas, tornadas mais saudáveis.

Isso difere substancialmente de abordagens tradicionais, nos quais o foco se dá aos serviços ou procedimentos oferecidos, com base nas quantidades que os prestadores conseguem entregar. A noção de “valor”, no caso, é derivada da mensuração de resultados de saúde versus os custos que os mesmos acarretam ao sistema de saúde. Tal abordagem resulta em benefícios não só para os sistemas de saúde em sua totalidade, mas também para pacientes, prestadores, financiadores e para a sociedade como um todo.

Do ponto de vista dos pacientes, isso significa mais do que gastar menos dinheiro para conseguir a melhor saúde. Nos sistemas dito beveridgeanos este custo (financeiro) nem é sentido diretamente pelos pacientes, mas estes conhecem muito bem o peso de se administrar uma doença crônica ou aguda, algo dispendioso ou demorado, além de limitante para suas vidas. Nos modelos de cuidados baseados em valor, o que se almeja em primeiro lugar é dar suporte aos pacientes para a se recuperarem de doenças e lesões mais rapidamente, além de evitarem novas intercorrências. O resultado de se ter menos consultas, exames e procedimentos médicos, com menor gasto com medicamentos, é assim muito desejável para quem paga, no caso presente, o SUS (ou qualquer outro pagador). Para os pacientes a importância do valor assim atribuído à sua saúde é o fato de que ela, no longo prazo, melhorará.

Como se vê, estamos falando de lógicas que se encaixam harmonicamente, não são coisas – e nem podem ser – diversas ou díspares. O Hospital da Criança de Brasília certamente engloba em seu conjunto de práticas estas dimensões lógicas que se confluem para fazer dele não uma solução que se estenda a toda e qualquer situação, mas um modelo de serviço de saúde que pode infuenciar seu entorno, dentro e fora dos limites do DF, não só em termos de gestão mas também de prática de um serviço realmente com foco em valor.  

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