Durante um pedaço de minha vida achei que eu não gostava de viajar. Hoje vejo que me enganei, ou, pelo menos, passei a ver que as viagens podem ser boas ou más, dependendo de alguns fatores. Começando pela negativa, devo dizer que aquela história de viajar por viajar, visitando uma sequência alucinada de países, cidades, monumentos, museus, vales, montanhas etc, tirar um monte de fotos e depois mostrá-las alegremente para os amigos, decididamente nunca foi a minha praia. Aliás, na minha preferência, melhor que nem haja praia em eventuais viagens…
As pessoas a que me refiro na descrição acima me lembram aqueles caçadores (ou quem sabe, jagunços) que fazem uma marca na carabina a cada presa que abatem. Conheci recentemente uma dessas figuras, que fez um périplo por uma dúzia de parques selvagens na África e não foi capaz de me dizer em quais países exatamente esteve, da língua se falava em cada um deles, de como se dava a vida dos nativos ali, de qual era a religião dominante etc. Mas contabilizava com total precisão números de parques, girafas, leões e rinocerontes que foram avistados, além de documentar isso escrupulosamente em centenas de fotos (as quais, felizmente, não fui convidado a apreciar). Com isso, posso dizer com certeza: eis aí um tipo de viagem que não gostaria de fazer ou acompanhar alguém.
Para não ficar apenas nos aspectos negativos, é bem verdade consegui, mais tarde, definir o tipo de viagem que gosto de fazer. E posso falar disso com bastante certeza, porque tive a oportunidade de fazer algumas de tal naipe. O primeiro aspecto que caracteriza minha preferência é ter uma boa companhia. E depois disso, andar com calma e poder parar em recantos interessantes; saber como a gente local vive; conversar com as pessoas; observar a natureza; experimentar a comida que ali se come e a cachaça que se produz; tomar uma cerveja na porta de alguma venda – coisas assim. E nunca – nunquinha! – ser obrigado a atender à convocação de algum guia turístico sobre a premência da hora de embarcar para observar (e fotografar…), este ou aquele monumento enquanto ainda é dia. Cruzes! Afasta! Tô fora!
E foi munido desses princípios que, creio, aprendi a viajar. Ou, pelo menos, parei de rejeitar liminarmente o convite ou a simples menção a viagens. E tomei gosto por registrá-las também, não em sequências infindáveis de fotos, mas principalmente na elaboração de pequenos textos, que sempre me trazem de volta o que vi, de maneira ainda mais fiel do que as fotografias são capazes de operar.
Desde então tenho feito viagens que realmente me fizeram muito bem. Trago aqui alguns relatos delas, que tenho dado à luz em meu blog ou mesmo em folhetos que envio à família e alguns amigos. As duas primeiras são especiais, além de recentes, mas uma não tem nada ver, diretamente, com a outra. Mas, na verdade, existe um nexo, pois elas representam a descoberta de um jeito gostoso, e também produtivo, de viajar e foi assim que descobri em mim um viajante apaixonado e ativo, não alguém que apenas se deixa levar. Em boas viagens como estas tudo começa antes, com o planejamento de rotas, de maneira independente de agências de turismo, obedecendo diretamente ao gosto do viajante e não a esquemas pré-estabelecidos ou a roteiros “top”. E se começa antes, ainda traz a vantagem de terminar depois, não com sessões de fotos que acabam massacrando paciências, mas com lembranças que são convocadas de volta, com intensidade, através da escrita.
Mas não é só. Devem ser viagens feitas com calma e profundidade. Nisso incluo também a etapa preparatória, com alguma pesquisa em livros de história, geografia ou mesmo romances. Em Portugal, a Viagem de Saramago me foi de grande valia e para o Norte de Minas, nada como Guimarães Rosa. E tais atos perpassam toda a viagem, pois se pode levar o material bibliográfico ou mesmo fazer consultas na internet a respeito do que se está vendo, mas com a certeza que tudo ali é fruto de interesse real de nossa parte, não de algo que vem de fora, na base da ”sovela”, como diria minha mãe. Assim, a viagem ganha duração e profundidade. Fazemos uma viagem dentro e em volta da outra, numa espécie hiper-viagem permanente.
E insisto: uma boa companhia é o requisito mais essencial de uma boa viagem. E neste aspecto, este giro por Portugal e França me foi cem por cento preenchido em tal quesito. Eis que tive a meu lado a doce presença, além do mais, inteligente, cuidadosa, bem humorada, curiosa, solidária, prestativa, generosa e acima de tudo amorosa desta mulher maravilhosa e que quero ter em minha companhia pelo resto de meus dias. Ela é a minha Keta. Mas isso é pouco para descrevê-la. Voltarei ao tema mais tarde.
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UM POUCO DE HISTÓRIA
Corria o ano de 1132 e Afonso Henriques mal tinha se dado conta que fundara um país. Tinha tudo pra dar errado aquele reino, mas milagrosamente escapou da mortalidade infantil, adolesceu e virou adulto, chegando, hoje, aos nove séculos de existência. Invejável aventura, sem dúvida, ao manter não só um território duramente conquistado e expandido, como uma mesma língua e cultura própria. É para os fortes uma coisa assim, realmente. Para mostrar a que vieram os lusos, em meados dos mil e duzentos expulsaram o último mouro; na Espanha isso só aconteceu dois séculos depois. Os espanhóis bem que tentaram, mas não conseguiram botar os pés em tais domínios, sendo, já em 1385 derrotados em Aljubarrota, tendo voltado no final dos anos mil e quinhentos, graças a tecnicalidades dinásticas e genealógicas e com a ajuda de uma nobreza lusa traiçoeira, mas durariam pouco no poder. Veio então o desfazimento de tal aliança forçada com a tal restauração, da qual os portugueses ainda hoje muito se orgulham e que dá vazão à nomeação de logradouros e erguimento de monumentos em todo o país, como, por exemplo, o nome de uma estação do métro em Lisboa. Dos lusos, disse um magistrado romano, ainda nos tempos cesáreos: são uma gente que não se governa e nem se deixa governar… Acertou mais na segunda parte do aforismo, pelo visto.
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O DOMÍNIO DA SANTA MADRE
Ah o Portugal católico… Ele nos entra pelos olhos e também pelos ouvidos (às vezes também pelo nariz, com o odor de incenso). Com efeito, torres são avistadas de toda parte, onde quer que se ande. Constatamos que Portugal ainda não entrou na moda das igrejas sem torres, padrão Catedral de Brasília & assemelhadas que temos por aqui. Façamos exceção para a faraônica igreja nova na esplanada de Fátima, mas esta pode ser considerada como exceção que confirma a regra. Lá, pelo que vimos, se há igreja, há torre: e estamos conversados. E se há torres, há sinos. E se há sinos, há os sons correspondentes. E assim os sinos dobram, em variados momentos do dia e da noite, não só para avisar os paroquianos das horas, mas também para lhes trazer notícias, informações sobre os ofícios religiosos e outras especialidades. A morte de paroquianos ainda hoje, pelo menos nas Aldeias, como me informou Eduardo Guerra, é comunicada por um dobre característico, que bota todo mundo curioso para saber quem partiu desta vez. E uma imagem, ou melhor, sonoridade, que vamos carregar como lembrança prazerosa desta terra é a sinfonia repetida de sinos que tínhamos à nossa disposição muitas vezes ao dia em Braga e também em Lisboa. Só não encontrei os sineiros… Acho que eles já foram aposentados. Com efeito, observando melhor o processo, um dia, em São Vicente, logo ao lado do “nosso” apartamento nas Fontainhas, vi que na verdade que o responsável pela execução musical é um mecanismo formado por um conjunto de martelinhos mecânicos, controlados eletronicamente. Isso me decepcionou um pouco, pois esperava ver um sineiro em carne e osso, com ou sem batina, mas de toda forma, continuou sendo um prazer ouvir aquilo. É impossível não reiterar uma forte impressão que Portugal nos causou: para quê e por quê este frenesi de igrejas e mosteiros, tantas torres, sinos, abadias, basílicas, catedrais, ermidas, abóbadas, torres, torreões, sacristias, adros, palácios episcopais, sés, santuários, espaços votivos, claustros, arcadas, capelas, estátuas, naves, transeptos, pias, retábulos, confessionários, paços, púlpitos etc etc etc. Uma coisa é certa, enquanto eles se dedicavam a tais ofícios os povos mais ao norte conquistavam o mundo através do comércio e da roda da fortuna. Como disse Pessoa, seu país faltou cumprir-se, e isso durou séculos.
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A “COMUNIDADE CÍVICA”
Portugal, nossa pátria-mãe é hoje um espelho onde podemos mirar nossa vergonha. Será que tem alguém que ainda pensa que os portugueses são burros? Vamos lembra de algumas lições que aprendemos aqui. Em primeiro lugar, Portugal é um país unitário, com pouco mais de 10 milhões de habitantes e o Brasil é uma federação de 200 milhões, com grande nível de autonomia entre os entes (União, Estados e Municípios)- portanto qualquer comparação é arriscada, mas mesmo assim dá para dizer alguma coisa. A impressão quando se anda pelas cidades portuguesas, por exemplo, nos sistemas escolar e de saúde, é que existem relações mais harmônicas e cooperativas, que nem de longe se comparam à competição e ao predatismo vigentes na “jabuticabal” federação de Além Mar. Uma razão para isso pode ser o fato de que o poder em Portugal se ramifica e se exerce também abaixo da autoridade dos Presidentes de Câmaras (que correspondem aos Prefeitos do Brasil), graças à existência das Freguesias, praticamente correspondentes ao nosso bairro, onde também se discutem e se executam medidas relativas aos problemas locais, aproximando os cidadãos de fato e de direito do processo de gestão em saúde. Além disso, o tipo de processo eleitoral em Portugal está sintonizado com tal ramificação de poder, de forma mais orgânica à democracia, graças aos instrumentos de voto distrital, formação de listas, liberdade de candidaturas e outros (mas é bom lembrar que quanto a isso há controvérsias). Com certeza, além disso, as diferenças culturais também são importantes, além das demográficas. Enfim, mesmo sendo um país que saiu de uma longa ditadura, apenas uma década antes do Brasil, Portugal já tinha tradição milenar de poder local através de autênticas comunidades cívicas. Consequência imediata disso é que em Portugal as coisas funcionam melhor, de direito e de fato. Mesmo com tantas subdivisões e aparentes fragmentações dos mecanismos de poder, parece não ocorrerem disputas de jurisdição do tipo que se vê no Brasil, por exemplo, quando um prefeito deixa de coletar o lixo ou tapar os buracos do outro lado da rua, porque aquilo lá pertence a outro município. E tudo isso depois de 50 anos de ditadura. Mas como foi dito acima, o melhor é não comparar.
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FALTA CUMPRIR-SE ESTE PAÍS?
<Deus quer, o homem sonha, a obra nasce,
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!>>
Foi com estes versos na cabeça que me dei conta que ainda faltava cumprir-se, se não a Portugal, a mim próprio. Afinal, como poderia um brasileiro não conhecer nosso país ancestral? Foi pensando assim que me mandei para lá, pela primeira vez em 2012 e mais uma, em 2015. E com vontade de voltar sempre. “Que o mar [nos] unisse, já não separasse”, como no fado Saudades do Brasil em Portugal, de ninguém menos que Vinicius de Moraes.
Chegar de avião em Lisboa, ainda na madrugada, augura coisas boas logo na chegada. A cidade vista do alto não mostra o típico panorama de arranha-céus espelhados, nem de favelas e periferias abandonadas, como sói acontecer nas grandes cidades do Brasil. Água por toda parte, seja o mar salgado ou o doce rio-mar. Uma grande ponte se avista, quase se perdendo no horizonte, entre o aquém e o além (Tejo). Muito apropriadamente chamada Vasco da Gama. O caminho agora, não aponta as Índias, mas mostra o rumo da modernidade e da integração na União Europeia – embora não haja tanta unanimidade (lá pelo menos) sobre as vantagens disso.
No chão, a dupla fila de chegantes à Europa unida também mostra surpresas, tanto já incorporados, como estrangeiros, nós entre eles. Entre os já integrados não é raro ver pessoas negras vestindo trajes típicos d’África, desde homens de batas compridas até mulheres de turbante e belos vestidos florais. Aqui, o passado colonial, sem ser esquecido, mostra uma face mais humana. A sisudez dos bigodudos do outro lado dos guichês da Imigração não deixa de anunciar o que será impressão constante nos dias de estada em Portugal: um modo, se não acolhedor, pelo menos educado, de tratar o brasileiro e o estrangeiro em geral. Claro que há exceções, mas onde não se as vê?
Na ida de 2015, naquele taxi, belo e refulgente Mercedes station-wagon, confirma-se a tal receptividade. Mas ao mesmo tempo é hora de aprender algo sobre a lógica portuguesa de pensamento. Explico. Ao vermos um out-door anunciando uma tourada, o motorista fez questão de nos dizer, com certo orgulho até, que em Portugal não se matam os toiros ao fim das sessões deste bárbaro “esporte” (digamos assim…). Logo adiante, vimos a Praça de Toiros do Campo Pequeno. Insisti, então: “mas não se matam mesmo ou tourinhos? O homem pareceu ofendido ao me cortar, meio ríspido, “mas eu já não lhe disse, meu senhor, que aqui não se mata!”. Conclusão: se algo já foi anunciado, não cabem reiterações, ao contrário do Brasil onde a regra é esticar o assunto. Mas na verdade o ofendido não tinha total razão, pois fiquei sabendo, depois, que se não matam dentro da arena, geralmente sacrificam o animal em seguida, de tão estropiado que o coitado fica.
Mais uma do jeito português de ser. Em um restaurante, anos atrás, dessa vez com mais graça e leveza, eu procurava pela iguaria tipicamente portuguesa que é a sardinha na brasa. E não a encontrava no cardápio do pequeno restaurante do Rossio. Garçom, onde está a sardinha? E ele, de pronto: “na cozinha, ora pois!”. Mas logo deu uma boa risada e completou a piada: “não é assim que os brasileiros acham que os portugueses pensam”? Havia, sim, a sardinha, que veio acompanhada com batatas (ingrediente constante, na culinária portuguesa) e mais um fresco e amável vinho verde, ligeiramente frisante. O estômago se ajoelhou e recebeu tal sacramento com devoção!
E voltando ao trajeto de chegada, se vai por avenidas amplas, bem sinalizadas, edifícios bem cuidados, belas praças e pracinhas, pedestres e motoristas educados, além do que mais impressiona aos brasileiros em geral: zero lixo! E não deixa de ser relevante, também, ver muitos edifícios e monumentos dedicados à cultura lusa, com homenageados os mais variados: Saramago, Camões, Pombal, António Vieira, Sá de Miranda, Eça, Garrett, Infante Dom Henrique e mais uma infinidade de Pedros e Joões dinásticos. Salazar, não…
Um ônibus de dois andares, destinado ao turismo sight-seing, me traz um nome novo, que não me sossega até que descubra seu significado: Olisipo, que vem a ser o nome romano da cidade, que deu em Lisabona e depois Lisboa. Os mais eruditos ou pedantes poderão chamar os lisboetas de olisiponenses. Mas afinal, os naturais de Salvador, na Bahia, não são às vezes designados como soteropolitanos? Esteja liberado o pedantismo, então, mas desde que seja com uso controlado.
A Baixa lisboeta… Em frente, ali na esquina e mais além, a vista e os demais sentidos vão se fartar com as lojas de iguarias portuguesas: azeite, sardinhas, vinhos, aguardentes, bacalhau. Aprendo que sardinha, aqui, é gênero apenas; não espécie. Se você quer comprar derivados do simpático peixinho tem que especificar. Patê? Pedaços? Filé? Defumado? De qual procedência? Fabricante? Faixa de preço? E as latinhas parecem verdadeiros porta-joias; dá vontade até de colecionar. O preço? Contém o sal que caberia em dúzias de latas daquelas sardinhas.
Uma volta nos arredores nos leva a Alfama, à Mouraria, à Praça do Comércio, ao Arco da rua Augusta. Mas com devido cuidado para que um eléctrico amarelo não nos atropelasse. A Casa dos Bicos, onde fica o Museu Saramago, quase nos paralisa, de puro êxtase. E aquela oliveira anciã, diretamente transplantada da Azinheira natal do escritor – já é um exagero! Quem pode, pode…
Na rua da Alfândega, logo adiante de Saramago e sua oliveira, uma paineira – sim, uma paineira – árvore que julgava endêmica do Brasil que já presenciei colorindo colore o ambiente com sua florada quase carmim.
Aqui em Lisboa, mais uma vez, a gente vê como o Brasil está distante, além mar, além séculos… A qualquer hora do dia, atravessando uma zona de moradias coletivas adensadas, cabe indagar o que é feito daquele famoso tráfego que atazana os paulistanos, os brasilienses, os cariocas e tantos mais por aqui? Simplesmente, o que vemos é que fluxo e contrafluxo de veículos se equivalem. Será feriado nacional? Não! Isso é apenas rotina na Grande Lisboa, pelo visto agora e confirmado na volta, dias depois, só que ao crepúsculo. É que os carros, quando possuídos pelas famílias, estão nas garagens dos prédios, de onde só sairão, talvez, nos finais de semana ou nas noites de lazer. Aqui tem metrô, ou simplesmente métro como eles dizem, para todo mundo, sem greves, sem tucanagem, sem restrições. E ele chega até ao Aeroporto!
Conhecer Portugal é com Saramago:
“O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.”
Falta cumprir-se este país? Não creio. O que falta é seu filho mais velho tomar juízo…
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IMPRESSÕES GERAIS
A primeira impressão, que vai se confirmar ao longo de toda a viagem, é a confirmação da injustiça que se comete historicamente no Brasil, de se considerar Portugal um país pobre e atrasado – e o que pior, habitado por gente pouco inteligente. Temos que pensar duas vezes antes de falar mal de Portugal – e guardar silêncio! Este aqui, acima de tudo, é um país simpático e acolhedor, com a história e a tradição nos espreitando em cada esquina e de cada gelosia. Andar por essas freguesias é receber uma aula permanente sobre a civilização do Ocidente, com muitos de seus percalços, mas com todos os seus acertos. Nunca se deve esquecer que este país gerou um Camões, um Saramago, um Fernando Pessoa, um Eça de Queiroz, um Antonio Vieira (nisso, pelo menos o Brasil é sócio).
Deriva daí um impraticável lugar comum, mas que vale pelo apelo simbólico: todo brasileiro, pelo menos uma vez na vida, deveria vir aqui…
Outro lugar comum seria dizer que em Portugal o turismo é levado a sério. Certamente o é, mas este país tem muito mais a oferecer do que excursões em sightseing. Os muitos compridões louros e ruivos bem o sabem. E tenho certeza que não vêm aqui apenas porque os custos são menores do que no resto da Europa. Também no turismo as lições que Portugal pode oferecer ao Brasil são inumeráveis. Um dia, quem sabe, nosso país não faltará “cumprir-se” em tal quesito.
Mesmo na era salazarista e antes dela, Portugal já possuía uma tradição de arquitetura e urbanismo. Lisboa é cheia de construções impressionantes, que se afastam totalmente do padrão “espelhado” de arranhas céus made in USA e reproduzido aleatoriamente all around. Nessa primeira parte da jornada a manumentalidade moderna não se mostra – e talvez nem esteja presente de fato. Mas em compensação, algumas finesses de gestão urbana impressionam muito. Por exemplo, o capricho na revitalização de vias e calçadas nos centros históricos. Aqui se faz tudo com pedras: desenhos diversos e mandalas, com alternância de cores, texturas, formatos etc. Curioso perceber que entre rua e calçada não há mais o popular “meio fio”; elas aqui perfazem praticamente um mesmo plano, sem desnível. Sinal que os motoristas são respeitosos e os mais velhos, com dificuldades de escalar degraus, são respeitados. E as águas de chuva correm sempre para um discreto sulco central, qua não interfere com o trânsito nem de pedestres, nem de veículos.
Falta cumprir-se Portugal… Por quê? A tarefa é para historiadores, mas não custa nada arriscar um palpite. Visitar Tomar, Alcobaça e Batalha talvez nos ofereça uma explicação, que pode ser resumida como: o que faziam os povos do Norte da Europa enquanto ibéricos torravam fortunas na construção de mosteiros e igrejas? Weber trouxe a explicação, pelo menos a partir do século XVI, com os protestantes liderando o advento do capitalismo mercantil, enquanto portugueses e espanhóis se empenhavam na Santa Inquisição e na velha promiscuidade entre Igreja e Estado. E deu no que deu…
Dilema para o qual não me arrisco a qualquer explicação é a atual tendência a refugar o espírito unionista europeu vigente em Portugal e Espanha, com a denúncia veemente da “austeridade”, que ali e agora tem outra conotação. Seria possível um bom caminho do meio, entre o Portugal de Salazar e do Império e a modernidade econômica e de proteção social que a União Europeia um dia prometeu às nações que a ela aderiram? Nesta era de xenofobia e brexit fica difícil fazer grandes prognósticos. Fica o sonho…
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ENTRE A CRUZ E A ESPADA
Penso que a expressão que dá título a esta crônica, Entre a Cruz e a Espada representa uma boa síntese da história e da paisagem humana em Portugal, embora a Espada já esteja aposentada ali e a Cruz não mais domine o país, como o fez, secularmente.
O país, aliás, já foi gestado em permanente disputa territorial, entre celtas que expulsaram suevos, romanos que dominaram celtas, árabes que quiseram ter seu pedaço e espanhóis ameaçadores, para finalmente dar lugar a portucalenses decididos a ter seu próprio torrão. No meio disso, sempre pujante, a Igreja de Roma, trazida pela cristianização do Império Romano, no terceiro século DC e desde então associada ao poder dos reis do país finalmente unificado em 1132. Com ela veio a Inquisição, de triste memória.
A espada e a cruz tiveram enorme papel também nas expansões do Império consolidadas pelas grandes navegações da virada do século 15 para o 16, como bem sabemos os brasileiros, além dos africanos, indianos e outros povos. Ou mesmo outros, como aqueles que receberam de parte dos espanhóis o mesmo tratamento. Crê (na Cruz) ou morre (pela Espada) – era o mote implícito de tal época, que durou pelo menos três séculos.
Mas de toda forma, se a Espada acabou em ferrugem e impotência, o domínio da Cruz deixou marcas profundas no país, ainda hoje visíveis.
Começo por falar de Óbidos, um testemunho extraordinário desses quase mil anos de história, lugar em que Cruz e Espada também se entrelaçaram.
Após tomarmos o autocarro na estação de Campo Grande, em Lisboa (sim, a gente salta do metro e já pega o busão interurbano, embora seja possível ir de trem também), passada a “mancha urbana” de Lisboa, mancha limpa, humanizada e bem urbanizada, por sinal, chega-se primeiramente a um ambiente rural. Ainda não se veem vinícolas, outras plantações, ou mesmo de fazendas de gado. O que domina a paisagem são os enormes “ventiladores” das usinas eólicas, geralmente no alto das colinas. Aqui e ali, capões de eucalipto, mas bem mais modestos do que as imensas e monótonas florestas da mesma espécie que existem no Brasil. Essas usinas, para os mais puristas, talvez maculem a paisagem, mas como tais moinhos são ainda relativa novidade para nós, brasileiros, acho até que acrescentam valor ao cenário, sendo tão enxutos no design e suaves em seu movimento. Um Dom Quixote, ressuscitado aqui, ficaria certamente abismado com a dimensão de tais gigantes. A proximidade com o litoral faz com que sua matéria prima, o vento, não falte. Finalmente a ideia de um “armazém de vento” parece fazer sentido, conforme pontificava dona Dilma.
O que se vê no entorno da autopista é dominado pela contemporaneidade. Nem se pode imaginar que chegaremos, em breve, ao epicentro de uma zona de fortificações, igrejas, mosteiros e aldeias históricas, muitos com mais de mil anos de idade. Presentes até agora como obra humana, além das usinas eólicas, são casas e conjuntos habitacionais, em tanto esparsos, convencionalmente modernos, tudo bem decente. Pequenas propriedades, bem cercadas, mostram geralmente pomares com hortas e fruteiras variadas, entre elas videiras, figueiras e outras frutas de clima temperado. Eis que quase tudo aqui é minifúndio.
As placas já avisam sobre a chegada a Óbidos, depois de passarmos pela aldeia de Bombarral, até ajeitadinha, por sinal, embora pareça incrível que uma fortaleza medieval possa se fazer presente dentro de um cenário tão convencional. A presença da velha cidade logo se anuncia no alto de uma colina, que mostra a linha recortada por seteiras de uma muralha. Mais uma curva e a vemos por inteiro, do lado esquerdo, recortada contra um céu de chumbo no dia em que lá estivemos. Agora, bem à nossa frente, a muralha mostra-se por inteiro. Muito Mouro ou Espanhol passando por aqui deve ter pensado duas vezes e relutado antes de enfrentar as alabardas e as balestras lusas…
Chegar ao pé da muralha de Óbidos é coisa que não tem preço, mesmo quando não se vai pela primeira vez. É preciso adentrar à vila, saboreando a ocasião, passo a passo. E é forçoso não economizar adjetivos para falar de Óbidos. Ela é simplesmente esplêndida! Rodeando a muralha por fora, estamos em uma pequena rua de casas modestas, mas muito agradáveis à vista. Residências a partir das quais o que se vê, do outro lado da rua, é tão somente a grande muralha de pedra, nada mais. Passado o pórtico, um recesso com um grande painel de azulejos se apresenta, bem português. E vamos adiante percorrer as vielas de Óbidos, a Anciã, com suas duas ou três ruas longitudinais e diversos becos transversais. E casas bem sólidas, sem deixarem a modéstia de lado, quase sempre com pintura imaculadamente branca e barrados, cantoneiras, portas e janelas em azul ou amarelo. Poucas igrejas, duas ou três, não mais. Para as rezas em favor d’El Rey e contra os mouros e castelhanos já seria o bastante.
As ruazinhas estão movimentadas, mesmo apesar da chuva que começa a cair. As cabeças louras e ruivas, o porte avantajado das pessoas, já mostram que os que habitam mais ao Norte da Europa adoram isso aqui. Bares, cafés, pequenos restaurantes, em profusão. Ouve-se pouco o português por aqui.
Não é possível falar de Óbidos sem incluir suas floradas, das quais usufruí presencialmente há alguns anos, pois era primavera. Agora o que vemos são os brotos das glicínias prestes a romper. E essas constituem um capítulo à parte, mas apenas em momento certo: lilases, explodindo virtuosamente em diferentes tons, escalando as fachadas brancas, com um perfume suave e ubíquo. Mas ficamos nos devendo isso, para outra oportunidade.
Antes que me perca por completo na louvação a Óbidos, vamos buscar alguma informação na web sobre a cidade. Seu nome deriva do termo latino opidum, com significado aproximado de cidadela ou cidade fortificada. À época dos romanos ali havia um lugar denominado Eburobricio. É antiguinha a cidade, pertencendo aos Mouros até 1148, sendo depois elevada a cidade do recém criado reino de Portugal, cerca de 1195.
E um último comentário: incrível como em uma cidade que recebe tantos turistas, serem raros os estabelecimentos comerciais que aceitam pagamentos com cartões de débito ou crédito internacionais. Nada é perfeito. Com isso, não pudemos dar uma força em Euros para incrementar a economia local, Mas andar por aquelas ruelas e becos, mesmo debaixo de uma chuvinha insistente, foi uma linda experiência, que reforçou o nosso prazer e as nossas certezas em estarmos juntos.
Mas foi a cidade de Braga que nos abrigou a maior parte do tempo, falemos dela. Ela é ainda mais antiga do que Óbidos, remontando sua fundação a décadas anteriores ao nascimento de Cristo, sendo denominada de Bracara Augusta, para homenagear o imperador romano da época, Augusto.
Para os padrões portugueses é uma cidade grande, com 250 mil habitantes, a terceira do país, aliás, depois de Lisboa e Porto. Mas o que chama mais atenção é o seu espalhamento, com uma mancha urbana que se estende por muitos km ao redor. Quando se vai ao Porto, por exemplo, situado 60 km ao Sul, tem-se a sensação de se estar numa única rua, com casas para todo lado, principalmente se a viagem é de trem. No rumo de Barcelos, onde também estivemos, idem, da mesma forma que na estrada para Guimarães.
Embora longe de apresentar uma história pacífica, Braga é fundamentalmente uma cidade da Cruz. É sede de bispado desde o quinto século, com domínio cristão permanente, salvo rápidos assédios dos mouros. A contemplação de Braga de qualquer de seus pontos mostra sua marca registrada: torres de igrejas por todo lado. E a sensação é também auditiva, pois tem sempre um sino tocando na cidade, inclusive bem nas vizinhanças de onde nos hospedamos, apartamento de nossos amigos Eduardo Guerra e Célia, de onde se avista a torre da igreja de São Vicente, considerada obra prima do barroco português.
Aliás, o Barroco é uma marca da cidade, visível não só nas igrejas como em muitos edifícios públicos e particulares. Nós mineiros (e também os pernambucanos, como Keta) que de certa forma convivemos com o barroco em nossas cidades históricas, como Ouro Preto e Olinda, por exemplo, não chegamos a estranhar muito tal ambiente. Mas eu, Flavio, curioso e intrometido que sou, vejo algumas diferenças entre o “nosso” barroco e o deles. Que me deem luzes os arquitetos da família, se estiver errado. E para mim a grande diferença é: o nosso é mais colorido… Com efeito, em Portugal predominam as construções que utilizam de forma mais intensiva a pedra, principalmente na forma de cantoneiras, alicerces e beirais de janelas. Embora as paredes sejam quase sempre brancas, o aspecto é mais sóbrio, sem deixar de ser atraente. Já no Brasil a pedra é substituída pela madeira, que para ser conservada recebe pintura, geralmente colorida. Em Diamantina, por exemplo, terra de garimpeiros perdulários, isso é marcante. Salvo melhor juízo, claro.
Andar pelas ruas de Braga é uma delícia e fizemos isso muitas vezes. Chegamos a ponto de chegar a identificar ruas e praças pelo nome, criando com elas uma familiaridade que até parecia ser a de moradores antigos. Não há grandes ladeiras e as ruas e calçadas são bem lisas, quase sempre calçadas nas tradicionais pedras cúbicas pretas e bancas, de diversos tamanho. O clima é agradável nesta época do ano, talvez um pouco frio para as epidermes mais sensíveis, mas bater perna por aquelas ruas é sempre agradável. E a lista de monumentos que visitamos acabou sendo das mais completas, aí incluídos, como mais chamativos, o Solar dos Biscainhos, o Palácio do Raio, as Arcadas, o Paço Episcopal, a Santa Casa de Misericórdia, a Porta, a Torre de Menagem, além das igrejas da Sé, dos Congregados, de Santa Cruz, de São Tiago, do Pópulo, de Nossa Senhora da Torre, de São Vicente, de São Paulo, de Guadalupe, da Ordem Terceira, além de muitas outras. Em algumas delas fizemos questão de realizar um dos nossos Rituais de União, sobre os quais comentarei em outra crônica desta série.
No capítulo das igrejas, não há como escapar de citar, ainda, aquelas de Bom Jesus do Monte e de Nossa Senhora do Sameiro. Aliás, são bem mais do que igrejas ou santuários, antes imensas catedrais-monumentos da fé católica, frente aos quais não deixa de nos perpassar um sentimento de certo desconforto, diante de seu exagero e o que é pior, do caráter verdadeiramente de competição que se estabeleceu entre as duas obras. Ambos os santuários foram erguidos no topo da serra que rodeia a cidade, a poucos km um do ouro, podendo ser vistos de toda parte e igualmente permitindo, a partir deles, uma visão abrangente de toda a região. Bom Jesus é mais antigo e sua marca principal é dada pelos elementos barrocos, presentes não só em sua igreja, mas também na estatuária, nas capelas e outros prédios anexos, bem como nas famosas escadarias. Sameiro já é obra do século XX, dentro de uma arquitetura mais eclética onde abundam elementos decorativos diversos, alguns de gosto meio duvidoso e inclusive obeliscos de concreto e uma escadaria demasiadamente ampla, mais parecendo um estádio de futebol, que lembram as obras da arquitetura monumental fascista da primeira metade do século passado. Mais uma vez, salvo melhor juízo, eis que não sou arquiteto…
Visitar tais lugares é um programa obrigatório, mesmo quando suscitam algum desconforto ético ou estético nos mais críticos, como eu, pois constituem marcas relevantes não só de uma época, como de uma cultura. Como já disse antes, ao falar de Fátima, fazer julgamentos sobre o que a fé, das pessoas e de sua capacidade de realizar empreendimentos condizentes a isso, não é fácil e nem conveniente. A fé vale por si mesma.
E vamos ao que interessa: independente de considerações arquitetônicas ou sociológicas, fizemos tanto em Sameiro como no Monte do Bom Jesus agradáveis passeios, como o casal em perfeita sintonia que sem dúvida somos. Em verdadeira Lua de Mel, se quiserem. Mãos dadas, afagos e cuidados mil, como deve ser. O ambiente era dos mais convidativos, com a bela mata, lago e parque em Bom Jesus e a grande área com linda vista em Sameiro. Demos por visto, não sabemos se seria o caso de voltar lá, mas valeu a pena.
Os cenários erguidos pela força da Cruz de Cristo se mostraram em muitos dos lugares pelos quais andamos, se não todos.
Em Vila do Conde, o Mosteiro de Santa Clara, sobranceiro à foz do rio Ave, é de tirar o fôlego, pelo edifício, em si, e também pela paisagem que dali se descortina. Isso sem falar do enorme aqueduto que por km a fio trouxe um dia a água para as freiras clarissas que ali viviam. Está sendo reformado para abrigar um hotel de muitas estrelas, certamente a preços igualmente astronômicos. Mas nos deu a vontade de um dia (ou pelo menos uma noite) estarmos ali. Quem sabe?
Em Guimarães o maior encanto é certamente a cidade, que parece saída de um conto de fadas, ou de um romance de Camilo Castelo Branco. O signo da Cruz, ali, se mostra na solene catedral, na qual muitas missas, batizados e casamentos foram feitos, muitas almas foram salvas, muitos acordos sacramentados, ao longo de dez séculos.
Amarante não deixa por menos, com a inventiva Igreja dedicada a São Gonçalo e sua cúpula revestida de telhas de barro. Ali se fazem promessas para casamentos e uniões felizes. Deixamos o nosso voto por lá, também. E daquela curva graciosa formada pelo rio Tâmega que impolutamente atravessa a cidade, de sua imponente ponte arqueada, e seu casario à beira rio, não podemos nos esquecer.
Em Barcelos, entre tantos templos, destaque para a Igreja do Bom Jesus da Cruz, que é mais moderna, talvez da virada do século XIX para o XX, mas apresenta uma magnífica luz filtrada pela cúpula, que a atravessa como um raio, formando uma verdadeira ponte com o céu.
Os símbolos da fé em Lisboa são incontáveis. Visitamos três deles, um tanto de passagem. A milenar Catedral da Sé, a majestosa Basílica da Estrela, onde tantos reis e rainhas forma coroados e o esplendoroso Mosteiro dos Jerônimos. Não já adjetivos que cheguem para falar deles,
Para finalizar, o que foi feito daquela Espada que por muitos séculos fez companhia a esta Cruz aqui tão decantada. Certamente foi parar em algum museu, dos muitos que existem em Portugal. O fato é que viemos a um país pacífico, mesmo que este termo possa ser de alguma forma polêmico, em relação, por exemplo, a Segunda Guerra mundial (na Primeira eles se envolveram, ao lado dos Aliados). Talvez os ciclos belicosos do país tenham se encerrado, pra valer, com as campanhas militares na África. Ou com o desfecho da ditadura salazarista, na verdade um golpe militar, mas com vidas poupadas. E o que se vê lá hoje nem de longe lembra um Estado armado. As próprias instalações militares não têm sentinelas à porta. A polícia nas estradas, se é que existe, nem é vista. Nas ruas é raro ver uma viatura militar e guardas armados, bem ao contrário aqui do Brasil. Mas reina a Paz.
Com certeza, é tudo muito diferente. Nós brasileiros temos muita coisa a aprender em Portugal e creio que a lição principal é: olhar para o passado é sempre recomendável, não para retomá-lo ou revivê-lo, mas sim para evitar cometer os erros que já tenham sido cometidos e aproveitar o que se experimentou e deu certo.
A impressão que se confirma ao longo de toda a viagem é a de que precisamos rever e nos penitenciar da verdadeira injustiça que se cometeu no Brasil, de ter considerado Portugal um país pobre e atrasado – e o que pior, habitado por gente pouco inteligente. Temos que pensar duas vezes antes de falar mal de Portugal – e guardar silêncio! Este é um país simpático e acolhedor, com a história e a tradição nos espreitando em cada esquina e de cada gelosia. Andar por essas freguesias é receber uma aula permanente sobre a civilização do Ocidente, com muitos de seus percalços, mas com todos os seus acertos. Nunca se deve esquecer que este país gerou um Salazar, mas também Camões, Saramago, Fernando Pessoa, Boaventura Santos, Eça de Queiroz, António Vieira (deste último aí, pelo menos, o Brasil é sócio).
E ponto final.
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CONHECENDO UM PAÍS PROFUNDO
Há muitas maneiras de viajar. A mais vulgar é pegar uma excursão e se submeter a roteiros intensivos, sob a voz de comando de um(a) guia burocrático, e fazer de cada dia uma via crucis igualmente intensiva e burocrática, na qual a visita a monumentos, museus, montanhas, vales, ruas, chaminés, ou seja lá o que for, torna-se compulsória e compulsiva, além de computada à maneira industrial, com desfechos que muitas vezes juntam num balaio só cansaço, sentimentos de realização e frustração – a incidir sobre guiadores e guiados.
Deste tipo de viagens, quero distância.
Mas é verdade que fui obrigado a fazer outras viagens muito parecidas, e igualmente desagradáveis: aquelas de trabalho. Não que o trabalho seja algo sempre desagradável. Pode ser e pode não ser, mas creio que em matéria de viagens devemos separar as coisas, ficando uns dias a mais (por nossa conta, é claro) nos destinos que realmente valham a pena, sem aquela loucura de sair correndo de reuniões para visitar monumentos, museus ou jantar num restaurante típico. Aliás, há uma série de cidades em meu currículo de viajante que prefiro dizer que não conheço, embora tenha estado lá, como é o caso de Teresina ou Juazeiro do Norte, por exemplo. Para não falar daquelas nas quais algum voo apenas fez escala.
Viagens de trabalho carregam outro pormenor nem sempre agradável, que é o de você se submeter, por questões de educação, etiqueta ou hierarquia, aos convites que os anfitriões fazem no que consideram “bons lugares” para se conhecer, que quase sempre incluem restaurantes onerosos e nem sempre adequados em termos de custo x benefícios.
Mas penso que o segredo de uma boa viagem deve incluir pelo menos três ingredientes fundamentais: boa companhia, autonomia em relação ao tempo e possibilidade (e interesse) em se buscar o que denomino de “país profundo”. Ah, estar com algum dinheirinho também ajuda…
Mas é sobre o quesito – “país profundo” – é que vou me deter nestas linhas.
O que chamo de país profundo, sem maior teorização, é aquele onde as pessoas, seus habitantes, realmente passam sua vida. Ele inclui ruas, praças, parques, estádios, aldeias, bares, padarias, salões de cabelereiro, mercados, muito mais do que monumentos. monastérios e monas-lisas. Esta é uma expressão cultural, acima de tudo!
O segredo para conhecer o tal país profundo é estar livre para bater perna. Por exemplo, circular pelas ruas próximas ao local de hospedagem gradualmente ampliando tal círculo, sempre a pé. Pode-se pegar, também, um ônibus ou metrô, descendo em algum lugar do caminho e por ali bater mais perna. Um mercado ou uma feira livre costumam ser excelentes locais em que a profundidade e a abrangência cultural de cada cidade ou país se revelam. O segredo é entrar de cabeça nisso.
Ferramenta especial nestes périplos de aprofundamento é a conversa, esta habilidade tão humana – embora não seja compartilhada igualmente por todos os membros da nossa espécie. A língua, sem dúvida, pode ser uma barreira: estar na Ucrânia ou na China, por exemplo, não é o mesmo que estar na Bolívia, ou em Portugal. Mas devo dizer que tenho a maior admiração – e até mesmo inveja – de certas pessoas que visitam países estranhos, de línguas ignotas, e que de mesmo assim conseguem se comunicar, seja por gestos, sinais, olhares ou intuição. Gostaria muito de ser alguém com tal habilidade.
Esta viagem a Portugal e França me permitiu alguma interação com suas respectivas profundezas. Tomo como exemplo marcante a visita que fizemos à aldeia de Touguinhó, onde nasceu o pai da Keta. Vou falar com maior amplitude das aldeias portugueses em outra parte, de forma que em relação a este local vou direto ao essencial: a natureza profunda do lugar me chegou intensamente quando abordamos, na porta de sua própria casa, uma senhorinha local, para pedir informações. Aquele aventalzinho de saloia e o lenço indefectível na cabeça, a proximidade a uma Casa Portuguesa, já anunciaram que um bom alvo pra nossa procura estava ali. E dez minutos de conversa foram o bastante para vislumbrarmos um pouco mais do ambiente interno da residência, sua expressão camponesa, familiar a nós brasileiros, que logo evoluiu de desconfiança a receptividade. Além do contato com palavras que designavam coisas de maneira muito própria, algumas desconhecidas outras remotas para nós, enquanto ovelhas baliam em torno. Eita: quadro completo!
Este tipo de contato serve, também, para mostrar não apenas diferenças, mas também similaridades em relação a nós, brasileiros. Ir a um shopping center, por exemplo (que em Portugal se chama Centro Comercial mesmo) ou a um supermercado, na verdade mostra comportamentos que, independe de serem “profundos” são, acima de tudo, semelhantes. Mas de toda forma é sempre uma curiosidade “cultural”, para mim pelo menos, observar a variedade de produtos que por lá se consome com outro nome ou numa variedade até então desconhecida por nós, a chamada couve de Bruxelas, as enormes favas e vagens, os nabos de meio metro, os cogumelos comestíveis (a preços bem mais módicos do que aqui) por exemplo.
Nestes ambientes de consumo, tanto em Portugal como na França, pude ver outra marca cultural destes países: p gosto pelo vinho, mesmo que algumas vezes em embalagem tetrapack, por parte de pessoas visivelmente mais humildes, operários da construção civil por exemplo. Nada contra a cachaça e a cerveja, mas um vinho, mesmo de qualidade modesta, à refeição, sem dúvida, cai muito bem!
Outra marca cultural nestes países é a presença de pessoas idosas nas ruas. Falo de gente agasalhada e aparentemente bem protegida, seja pelas famílias ou pelo Estado. Mas o fato é que eles circulam por toda parte, em circuitos de lazer também, como vi por toda parte, tanto em Portugal como na França. Autonomia é a marca desta turma, poucas vezes são vistos com algum cuidador profissional; ao contrário, seguem impávidos com suas bengalas e andadores de última geração, e até mesmo de cadeiras de roda motorizadas. Neste aspecto, o setor de transporte público é muito acolhedor para os velhinhos: os ônibus “se ajoelham” para receber os passageiros e possuem o interior amplo e confortável, com assentos reservados aos idosos e deficientes, inclusive acesso para cadeira de rodas. Não tudo são flores, todavia: tanto em Portugal como na França vi mendigos nas ruas – e eles geralmente eram idosos.
Na França os tais velhinhos me proporcionaram uma lição. Em Marseille demos de cara com um fenômeno local, uma ventania furiosa e contínua, além de gelada. Tratava-se do Mistral, um vento típico do sul da França e de outras partes do Mediterrâneo, que desce do Polo Norte, é canalizada e se amplifica nos vales franceses, segundo nos disseram. Uma tarde eu remava contra a maré (era a sensação exata que eu tinha, pois a ventania parecia correr a mais de 100 km por hora…), tendo mesmo grande dificuldade em andar em certos trechos das ruas. Cheguei a pensar comigo que o melhor teria sido não sair de casa. Mas quando vi mais de uma velhinha ou velhinho, frágeis criaturas com suas bengalinhas, às vezes até mesmo carregando sacolas de supermercado, andando lépidos à minha frente, pensei melhor e cheguei a conclusão que eu deveria tomar vergonha e encarar aquilo com mais coragem.
Um bom lugar para fazer incursões ao lado profundo dos países são os restaurantes. Não estou falando daqueles lugares premiados pelo Guia Michelin, mas sim daqueles onde se almoça e janta em dias comuns. Aqui a regra de ouro é: coma com os habitantes locais. Em outras palavras, restaurantes com cardápio bi ou trilingue, com caçadores de clientes à porta (geralmente rapazes indianos ou bengalis), menu em QR code, mesmo que anunciem “comidas típicas”: fuja deles! Eu particularmente gosto daqueles frequentados pelos caras com roupas suja de tinta, com uniformes de empresas, os trabalhadores do comércio, os pequenos executivos, os casais de velhinhos. Por módicos oito Euros em tais lugares a gente almoça bem. Pode ser que não se aplique tanto ao f Brasil, mas em Portugal, com certeza! Na França também, mas lá a quantidade de Euros a desembolsar é maior, o dobro pelo menos. Mas o fato é que nunca me arrependi deste tipo de escolha.
Na França existem sempre, em toda parte, os tipos morenos, os árabes, geralmente da Argélia, as mulheres de cabeça coberta. São vítimas de forte preconceito por lá. Franceses brancos cristãos não estão para brincadeira com estrangeiros em geral – isso minha prima Mani me alertou e confirmou. Da França profunda também faz parte esta turma de magrebinos, que se contam aos milhões por aqui. E costumeiramente são vistos com desconfiança pelos franceses nativos. Mas afinal, depois de tantos anos de colonialismo e exploração, o que esses franceses querem? Fazer com que voltem para o Magreb ou Indochina? Não é possível e nem seria humano. Uma nova sociedade. ainda não nascida infelizmente, só poderá ser chamada de justa se chegar a incluí-los.
Mas mesmo com tal declaração de equilíbrio – ou do que esperava ser tal coisa – Henriqueta me cobra e me chama atenção por estar sendo injusto com os franceses. Realmente não dá para generalizar. Ela pode ter razão, mas vamos combinar: assim como há franceses preconceituosos e racistas também existe tal tipo de gente do outro lado. É certo que convivemos com segmentos “do bem” em nossa estadia em Marseille, gente que trabalha no campo da Terapia Comunitária, visando emancipar pessoas e torná-las mais conscientes a respeito; de suas vidas. Entretanto, o desequilíbrio e a desigualdade universal entre os seres humanos, que tem longa história, se acentua ultimamente no mundo e certamente anda favorecendo comportamentos de natureza excludente e preconceituosa. Uns mataram, vilipendiaram e exploraram, nas guerras coloniais na Argélia, em outras partes da África, na Indochina. Outros ainda hoje explodem inocentes em redações de jornais, festejos de rua, mesquitas e discotecas. Nenhum deles está com a razão. Assim como não se deve justificar os atos de uns por terem sido vítimas históricas do colonialismo, a outros não se deve perdoar os comportamentos xenofóbicos. Melhor seria se a humanidade fosse outra ou, pelo menos, que de fato possa evoluir algum dia em direção a uma racionalidade e espiritualidade mais refinadas. Para que isso aconteça, penso eu, não só franceses e brasileiros, mas também muitos outros que se engajam em projetos como o da Terapia Comunitária estão dando sua contribuição.
Mas enfim, para encerrar, lembro Guimarães Rosa falando sobre viagens, em sentido mais amplo, mas certamente cabível aqui: “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” E a proposta é justamente esta: procurar a profundeza das coisas da vida para além das chegadas e das partidas, mas sim na profundeza das travessias.
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UMA ALDEIA PORTUGUESA, COM CERTEZA
Sempre achei bonita esta palavra “Aldeia”, associando-a muito mais à Europa do que ao Brasil, embora seja ela aqui mais usada para designar comunidades indígenas. Em Portugal pude perceber que assim se designa não pequenas vilas em geral, mas um certo tipo delas, aquelas realmente isoladas e tradicionais, que parecem evocar aos portugueses os valores ancestrais. Com efeito vi por lá gente, como um motorista de taxi, a me dizer que apreciava passar férias em alguma Aldeia, seguramente como alusão positiva e até mesmo nobre a tais lugares.
Não vou falar aqui de aldeias portuguesas em geral, pois me falece competência e conhecimento para tanto, mas apenas de algumas que conheci. Em especial apenas de uma delas, notável por sinal. E já aviso: não fala aqui algum sociólogo, antropólogo, historiador ou urbanista, mas apenas um curioso. Combinado?
O dicionário é um bom começo para quem ainda não sabe bem por onde começar a conversa. Vamos lá, então. Houaiss nos diz que a palavra, de origem árabe (Al-Dahya) constitui um regionalismo, justamente com origem em Portugal, significando literalmente “povoação de pequenas proporções, menor do que a vila; povoação rural, povoado”. Até aí nada de novo, portanto.
Mas em Portugal… Em viagens anteriores conheci pelo menos três das ditas Aldeias que correspondiam, de fato, ao conceito nobre a que dão a ela os portugueses. São elas: Lindoso e Soajo, nas serras de Peneda-Gerês, no Minho e Marvão, na Serra de São Mamede, no Alentejo. O que elas têm em comum, além da proximidade com a Espanha (que não seria nada mais do que uma coincidência), é o fato de serem lugares relativamente isolados, de pequena população e um padrão urbanístico e construtivo muito peculiar, onde predominam as casas e muros feitos de pedra e as ruas estreitas e sinuosas, com população muitas vezes apenas residual. Tudo muito bem conservado. E o mais importante: são lugares charmosos, bucólicos, nos quais dá na gente a vontade de ali passar uns bons dias – de férias ou apenas por curiosidade. Já estão tais Aldeias descobertas pelos turistas, claro, mas parecem resistir com um pé (ou os dois) no passado, com exceção de Marvão, onde uma parte das casas foi transformada numa sofisticada (e cara) pousada de cinco estrelas e o restante delas virou loja de artesanato e arte.
Uma breve consideração sobre as zonas rurais de Portugal: nada que lembre a paisagem brasileira correspondente, pois ali é tudo em ponto pequeno. Nossos quatro mil ou mais km de ponta a ponta e lado a lado não passam de 700 x 150 em Portugal. Nas regiões mais densas do país, como o Minho, ao Norte, ou mesmo na região entre Lisboa e Coimbra, tais aldeias, se existiram, foram praticamente tragadas pela urbanização, ou quase isso, porque o que se observa em toda parte é um contínuo de ruas e estradas asfaltadas em que as casas e outras construções estão presentes de forma intensiva e praticamente contínua. Ao Sul, no Alentejo, nem tanto, pois há extensões semidesertas mais vastas e lá com certeza o padrão descrito acima deve ser mais frequente.
Já estou me dispersando, a Aldeia da vez é outra: Touguinhó, no concelho de Vila do Conde, Norte de Portugal. Atenção não é toquinho nem tanguinha e muito menos touquinha, é Tou-gui-nhó, assim, oxitonamente. A razão de este nome tão estranho fui encontar na Wikipedia: ele vem de um mandatário romano chamado Toguino, o que já coloca mil anos de história, ou mais, neste lugar.
Nela nasceu Alexandre, o pai de Henriqueta e é por isso que resolvemos visitá-la. A viagem de ida já começou com peripécias, não por falta de sinalização das estradas, mas por excesso da mesma. Com efeito, há pelos menos três vias principais de acesso rodoviário às cidades portuguesas: as pequenas vicinais, as chamadas nacionais e as grandes autoestradas do padrão União Europeia. Às vezes, numa pequena extensão se veem placas divergentes a indicar o rumo, eis que apontam para vias de aceso diferentes. Mas com calma e bom humor acabamos por chegar lá, não sem antes fazer um périplo que incluiu Vila Nova de Famalicão e Trofa… Juntando com Touguinhó, está pronta a piada: que nomes estranhos os portugueses dão às suas localidades – isso mereceria uma crônica!
Pois bem, depois de muitas idas e vindas nos surpreendeu o fato de que em certo trecho da autoestrada havia uma placa indicando exatamente Touguinhó. Para sinalizar apenas uma Aldeia, que nem fazia parte dos mapas, achávamos que fosse um exagero uma placa como aquela, ainda mais em autoestrada. E por ali fomos, em estrada ladeada por boas residências em padrão bem urbano. Mais à frente um grande hospital e uma rotatória com indicações diversas de lugares. Para nós, a pequena Touguinhó de Alexandre já tinha se acabado, ou fora engolida pela urbanização intensiva. Mas felizmente estávamos enganados. Eis que vimos uma entrada estreita à beira da rodovia, entre duas casas, sem maior sinalização. Por ela entramos e logo o panorama era outro: ruas estreitas, curvilíneas, muros de pedra, casas idem, quintais com videiras e oliveiras, algumas ovelhas pastando, inclusive nas ruas. Pronto, a Touguinhó de Alexandre ainda respirava! Cabia agora desvendá-la.
Parecia que estava tudo ali ainda, realmente. Pelas lembranças de Henriqueta em conversas com o pai, havia um riacho no qual moinhos giravam suas rodas – ou seriam pás ao vento? Na parte mais baixa do território parecia, de fato, correr uma água, embora agora aparentemente domada pela engenharia moderna. Além das ovelhas, a marca rural, perceptível inclusive pelo odor, era trazida por um galpão nos limites do casario, onde algumas vaquinhas, muito bem nutridas por sinal, comiam plácida e confinadamente sua ração. Pouca gente na rua, aliás, ninguém àquela altura do dia. Circulando por ali, resolvemos parar para indagar de uma moradora, á porta de sua casa de pedra, se ela conhecia os possíveis parentes de Keta. Depois de alguma relutância, talvez motivada por temor ou timidez frente a estranhos, ela nos deu algumas informações a respeito. Mas logo relaxou e pudemos curtir o contato com aquele “Portugal profundo”, que nos encantava, como já narrei em outra das presentes crônicas.
Mas o melhor ainda estava por vir. Na procura de uma possível prima de Alexandre, que acabamos por não encontrar, demos com o centro da Aldeia: a praça com a Igreja dedicada a Santo Antônio (ou António, como eles escrevem por lá). Linda igrejinha barroca, toda em pedra e paredes caiadas, com torre, sino e tudo. Um delicadíssimo altar e azulejos nas laterais. À porta, dois possíveis paroquianos erguiam um painel alusivo a uma festa religiosa próxima. Ao lado da pequena avenida que chegava até a igreja, duas fileiras de casas antigas e muito bem cuidadas, com santos de azulejo e roseiras nos jardins, de acordo como figurino. Um cemitério vetusto. Aquele Portugal profundo e inesquecível estava bem ali à nossa frente e ficamos emocionados por estarmos imersos naquela atmosfera.
Para dizer tudo em uma só palavra: emoção! Foi o que nos tomou o corpo e o espírito ao longo daquela hora de contato com o lugar. Pudera! Estar naquela igreja onde a avó, que tinha o mesmo nome de minha companheira participava de suas novenas, antes de migrar para o Brasil, onde Alexandre recebera sua primeira comunhão, naquelas ruas onde aquele menino deve ter pastoreado ovelhas e colhido frutas em pomares, lugar onde tantos sonhos foram sonhados e nem todos puderam ser cumpridos, em troca de uma estranha viagem a um país desconhecido. Muita história havia ali. Não seria, de fato, um lugar qualquer, para ser visto em nuvens brancas. Acho que nós conseguimos captar um pouco desse significado, feito de grandezas e tristezas.
E foi assim que aquela nossa pequena e habitual cerimônia de união na igreja teve uma emoção e uma coloração especial neste dia. Penso que Alexandre, que nunca mais estivera ali depois que partira para o Brasil, aos nove anos de idade, teve sua memória bem honrada. E assim carregamos dali a sensação e o bem estar que o culto aos antepassados pode trazer, principalmente se a alma não é pequena.
Voltaremos, com certeza.
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ESTRADAS
As estradas portuguesas… Situação frequente nelas – e também nas cidades – é a é a gente encontrar placas divergentes, às vezes até uma ao lado da outra, mas apontando em direções diferentes… para o mesmo lugar. Muita calma nesta hora! A questão é a seguinte: primeiro porque existem lugares demais neste país, um pequeno pedaço de terra onde há dois ou três milênios os habitantes humanos foram organizando, desorganizando e retalhando o território. E existe uma tal profusão de localidades, que algumas delas não são chamadas nem de vilas, ou de cidades ou mesmo de freguesias: são simplesmente um “lugar”, sucedido por algum nome de família, de pessoa ou mesmo daquela louca e criativa semântica que às vezes dá luz a nomes como Famalicão, Esposende ou Freixo de Espada à Cinta. O segundo motivo das placas divergentes é porque realmente existem vários caminhos para se chegar a algum lugar, desde as pequenas e bucólicas estradas vicinais (nossas prediletas) até as autobahns, estilo União Europeia, tendo de entremeio as rodovias nacionais, mais singelas do que essas e mais amplas do que aquelas. As tais placas, assim, podem apenas estar apontando duas opções para se chegar ao mesmo lugar, que naquele ponto se acessa em direções contrárias. Mas não espere que junto a isso venha a indicação de qual é a via apontada.
E ainda por falar em estradas, fazer xixi em viagem é um verdadeiro dilema em Portugal. Nas estradas pequenas geralmente não há pontos de parada, tipo postos de gasolina ou mesmo cafés e lanchonetes, embora existam casas por todo lado. Assim, a não ser que você resolva bater em alguma porta e pedir para usar o banheiro, nada feito. Nas estradas grandes, do tal padrão europeu moderno, os postos de gasolina aparecem a cada 70 ou mais km, de maneira que pode ser que se você acabou de passar por um deles, inadvertidamente, embora algo já lhe incomode no vão das penas, o outro vai demorar a aparecer. Se sua opção é procurar uma simples moitinha, como a gente costuma fazer aqui no Brasil, nem pensar, desista. Ali as estradas, mesmo pequenas, são cercadas de fora a fora, não havendo como saltar sobre a barreira de aço ali colocada. A não ser que você seja um atleta olímpico. Quem é como este que escreve, que tem a bexiga pequena, deve se preparar para tais injunções fisiológicas.
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DE VOLTA A PONTE DE LIMA
Aqui uma carroça; mais adiante ovelhas; um ou outro cavaleiro; crianças jogando bola na beira da estrada; colegiais na volta das aulas e as eternas senhoras de xale e aventalzinho. Paisagem minimalista, casas simples, portuguesas, com certeza, com suas videiras, macieiras e outras frutíferas. Hortas, também – afinal a couve é ingrediente imprescindível do caldo verde português. Uma igreja ou outra, comércio discreto e organizado, sem aquelas placas enormes que emolduram os botecos e armazéns por aqui; portas de reparos de autos também. De vez em quando, cruzar por baixo a autopista de alta velocidade nos devolve a certeza de estarmos no melhor caminho.
Ponte de Lima… Imaginemos, primeiro, como disse Caetano Veloso, um sonho feliz de cidade. Ruas estreitas, calçadas quase artísticas, fachadas nobres em geral, embora mesmo quando simplórias, nunca deixem de estar enfeitadas com jardineiras e vasos, sempre na cor vermelha, com seus gerânios e avencas. Afastamos um pouco e logo alcançamos um gracioso caminho cercado de muros de pedra, que vai dar a uma Igreja barroca e, mais adiante, em outra freguesia. É o verdadeiro Caminho de Santiago, com tudo que ele dá direito. As fachadas brancas, as janelas com molduras de pedra e folhas de madeira pintadas de azul ou amarelo. Telhados onde o tempo pôs e continua pondo sua pátina. Voltando ao pé da colina, o Rio; mas este não será um curso d’água qualquer, como veremos a seguir. Do outro lado do rio, outra vila, menor, mas igualmente acolhedora, atendendo pelo gracioso nome de Arcozelo. Ao longo da margem de cá a alameda de choupos, podados todos à mesma altura, simetricamente, se mostrando como candelabros encimados por folhagem verde. No caminho, antigas mansões e prédios públicos e religiosos. O perfume das glicínias em toda parte, que aspirei em outra estada aqui, no momento nos faz falta. Nos jardins de uma pequena ermida o horto de plantas medicinais e especiarias: eis a gentil vila de Ponte de Lima…
Aqui tem história também, claro. Reza a lenda que o rio que ao mesmo tempo nos cerca e abre caminhos, dito Rio Lima, foi durante algum tempo o limite do alcance do Império Romano, já há mais de dois mil anos. E não é que um dia os centuriões que chegavam, por ainda desconhecerem a região e menos ainda o que estava além dela, julgaram que o rio era o limite aonde poderiam chegar. Seria ele o mitológico Lethes, pelo qual quem passa deixa para trás toda lembrança, toda memória. E se recusavam a prosseguir. É então que o ousado comandante se atira com seu cavalo às águas calmas do Lima, o atravessa e da outra margem, passa a convocar seus soldados, um a um, pelos nomes. Demonstrou, assim, que sua memória estava inteiramente preservada e não se diluíra nas águas límpidas daquele flumen. E assim os romanos avançaram e o Império deu novos passos em direção ao Norte. Monumentos nas duas margens, o centurião a cavalo, em atitude de quem comanda, e seus comandados do outro lado, homenageiam o fato.
Pra variar estamos em lugar antigo. Como município a Ponte existe desde cerca do ano mil e cem, por obra e graça de uma certa Dona Teresa de Leão. Está na região do Minho, eis que a fronteira com a Galícia jaz poucos quilômetros mais ao norte. Não é a cidade mais importante da freguesia: Viana do Castelo está logo ali do lado, junto à foz do Lima no Oceano, mas nada posso dizer sobre ela – não estive lá, pelo menos nesta ocasião. Aliás, Ponte de Lima nem chega a ser cidade, é apenas uma Vila, mas, quem sabe, isso não chega a ser um problema, talvez seja mesmo a solução, ou um dos fatores que contribuem para o encanto especial deste lugar. Cinco mil habitantes, nada mais, a sensação que temos é a de poder vê-los todos nas ruas, em um simples passeio. Os nomes de lugares em seus arredores, por si só, fazem pura poesia: Paredes do Coura, Ponte da Barca, Peneda Gerés, Arcos de Valdevez, Vila Chã, Soajo, Entre-Ambos-os-Rios, Labrujo, Britelo, Vila Verde, Cerveira, Arcozelo, Caminha, Lindoso…
Da muralha medieval, milenar, ainda restam duas torres, além de uns pedaços esparsos, aqui e ali. Aqui, a muralha, longe de repelir, atrai…
A ponte por si só já traz uma história completa. Foi durante muitos séculos a passagem segura para se chegar ao Minho e à Espanha. Houve uma primeira ponte construída pelos romanos, da qual ainda resta um pilar na margem direita do rio. A atual, contudo, é produto da arquitetura medieval, havendo, segundo os alfarrábios, poucos exemplos que se rivalizam com ela em beleza e equilíbrio. Ela é passagem obrigatória dos peregrinos que se dirigem a Santiago de Compostela, conforme era no passado remoto e continua sendo até os dias atuais. Vejo também nos livros que as ruas da Ponte de Lima apresentam magníficas fachadas góticas, maneiristas, barrocas, neoclássicas e oitocentistas.
Mas as belezas naturais merecem também um parágrafo. Até a chegada, de quem vem do Sul (de Braga, como foi o nosso caso) a região é marcada por colinas suaves, sem grandes acidentes de relevo. Mas além do rio já se pode ver que a paisagem muda, com algumas serrinhas se dirigindo para o Norte e para o Leste. Aprendemos que nesta última direção fica o maciço de Peneda Gerês, que se estende até a Espanha. E logo logo dá vontade de mudar de rumo e ir por ali, já que Ponte de Lima era programa para um dia apenas.
Em Ponte de Lima pudemos apreciar um inesquecível bacalhau à moda, em tons imperiais de espessura e sabor, no restaurante Sabores do Lima. Para acompanhar, outro ingrediente especial: uma boa taça de vinho verde, que é uma especialidade da região. Keta apenas deu uma bicadinha, mas sempre me promete que ainda vai aprender e me fazer companhia também tal mister.
Um derradeiro comentário sobre a culinária local. Meu amigo Cristiano Barbosa já havia me dito que eu não poderia deixar de experimentar uma iguaria local ou regional conhecida como arroz de sarabulho. Mas experimentar isso é outra história. Eu já o fiz, mas não me atreveria a convidar Keta para um banquete tão funesto. Se querem saber, vejam os ingredientes do prato: miúdos e sangue de porco, com o arroz cozido em tal caldo. Enfim, o tal sarabulho vem à mesa como uma verdadeira bacia de vísceras suínas diversas, com aquele arroz, dito malandrinho, ou seja, com o vermelho do sangue de porco bem vivo, numa papa quase líquida. Coisa realmente para os fortes. Mas eu sobrevivi, dei por conhecido o prato e creio que na presente encarnação estarei dispensado de comer de novo tal iguaria
Para quem quiser se aventurar, uma receita original garimpada na internet é a da Basílica de Santa Luzia, em Viana do Castelo. Vamos a ela:
Cozem-se as carnes em água abundante com a salsa, o casco de cebola, o louro e o sal. À parte, prepara-se um refogado pouco puxado com a cebola picada, o azeite, salsa e louro. Rega-se com um pouco da água em que as carnes cozeram e deixa-se ferver. Quando a calda estiver bem apurada e temperada, introduz-se o arroz. A calda deve ter cerca de três vezes o volume do arroz. Reserva-se a restante para acrescentar se for necessário. A meio da cozedura do arroz, junta-se o sangue e as carnes, que entretanto se desfiaram (com excepção das da colada). Mexe-se muito bem e deixa-se acabar de cozer. Serve-se o arroz assim que estiver pronto, enfeitado com as carnes da colada cortadas em bocados e algumas carnes desfiadas que se reservaram para o efeito.
Ponte de Lima merece ainda uma flanada além ponte, com uma caminhada curta, mas inspiradora, na Arcozelo fronteiriça. Ali, chama atenção o belo e completo Museu Português do Brinquedo e um lindo Jardim Botânico, além da linda igrejinha colonial bem na cabeceira da ponte, de onde talvez tenham se inspirado os construtores de nossa Igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará. Ali, Keta e eu fizemos mais uma de nossas celebrações, muito marcante, por sinal.
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DA FINEZA LUSITANA
Os portugueses seriam gente educada? Dizia minha avó Dodora, que era filha de um deles, que são uma gente que não conhece meio termo: ou são muito educados ou são grosseiríssimos. Ela devia saber de o quê estava falando, mas em defesa dos lusos eu diria que às vezes não é bem grosseria o que externalizam, mas sim um modo de ser e perceber a vida, um tanto peculiar. Por exemplo, coisa que aprendi nas minhas passagens por Portugal: nunca pergunte a alguém duas vezes a mesma coisa. Creio que fazemos muito isso aqui no Brasil para dar reforço aos nossos argumentos e de alguma forma enfatizar o raciocínio. Tipo: “mas essas pessoas continuam acreditando em Bolsonaro mesmo depois de tudo o que ele tem feito de errado?” Parece que entre os portugueses algo assim soará como um insulto, por parecer desacreditar algo que já foi afirmado antes. A duras penas aprendi isso ao indagar de um motorista de taxi lisboeta, que acabara de me informar que nas toiradas portuguesas não se mata a pobre vítima, e tendo insistido na pergunta (“mas não matam mesmo?”) recebi em troca uma descompostura humilhante. Outra coisa: não se dirija a alguém que ainda está em conversa ou negociação com outra pessoa, para fazer uma daquelas perguntinhas bem brasílicas, com introdução do tipo “dá licença, sem querer interromper, mas interrompendo”. Interrupção aqui é coisa séria, que pode gerar, na melhor das hipóteses, o interruptor ser simplesmente ignorado e na pior delas, levar uma descompostura escorchante, daquelas referidas acima.
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CURIOSIDADES
E por falar em interrupções, uma situação que sempre me deixou curioso em Portugal – depois percebendo que na França também é assim – da presença sempre externa dos interruptores nos banheiros. Para nós brasileiros, pelo menos, às vezes é incômodo, pois entramos no dito cômodo, às vezes naquele proverbial aperto, já com as calças na mão, literalmente, temos que sair fora de novo para acender a luz, que finalmente nos indicará o caminho até o objeto-alvo naquele momento tão crucial. E eu espremia os miolos para encontrar uma resposta para tal dilema, quando decidi consultar um dos meus permanentes consultores para tudo e coisa nenhuma, Eduardo Guerra, emérito curioso, do qual digo, em seu louvor, que quando não sabe, inventa. Mas a resposta que ele me deu me pareceu muito satisfatória, refletindo, talvez, algum grau de invencionismo, mas de toda forma com muito bom senso associado. A questão é a seguinte: como os banheiros também podem abrigar – e com certeza isso era muito comum no passado – aquecedores a gás de petróleo, a pequena faísca gerada pelos interruptores elétricos poderia provocar uma explosão devastadora. Simples assim! Os aquecedores a gás hoje, pelo que vejo, são externos, mas a tradição ainda manda que seja assim.
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PALAVRAS, PALAVRAS…
Para ir a algum lugar você pode escolher entre uma viatura, o autocarro, o comboio ou o métro. Isso é apenas um pequeno exemplo de palavras que eles usam com sentido ou significado diferente do que temos aqui no Brasil. Aquela Torre de Menagem que desponta por sobre as construções, em Braga, também presente com a mesma denominação em outras cidades antigas portuguesas é um bom exemplo de palavra que nos desperta a vontade incoercível de buscar seu significado nos dicionários. E o que vem a ser tal coisa? Achamos que tinha a ver com alguma coisa ligada a lugar de observação e defesa contra mouros e espanhóis circundantes, mas não era bem isso, pelo menos nos dicionários, sendo um termo jurídico que configura a prisão sob palavra, ou seja, quando o acusado de alguma infração não é encarcerado, mas se vê obrigado a permanecer no lugar em que exerce suas atividades. Uma espécie de tornozeleira eletrônica antes da invenção da mesma, pelo visto. Mas e daí? Realmente não esclareceu muita coisa. Poderia ser um local para prender gente, mas o conceito diz que não há encarceramento. Fomos buscar no francês, já que nos saltou à memória aquela expressão famosa (e maldosa): ménage a trois. Seria possível, pensamos, com a mente pouco afeita à seriedade naquele momento, um lugar destinado a safadezas praticadas às escondidas? Ou de punição de tais infratores? Mais uma vez, nada disso. Mènage, en français, significa mais ou menos a mesma coisa que realizar tarefas domésticas (de diversas modalidades, pelo visto). Assim, femme de ménage não seria bem uma mulher adúltera ou promíscua, mas apenas uma faxineira. E voltamos para casa, ou seja, para o Brasil, sem saber para que servia, afinal, aquela torre misteriosa.
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EXAGEROS
Não canso de admirar os feitos portugueses, mesmo que os ache às vezes equivocados ou exagerados. Dois exemplos extremos: a construção dos palácios reais de Mafra e de Sintra, nos séculos XVIII e XIX, respectivamente. Falo deles porque os conhecemos de perto, mas o exemplo poderia ser dado com dezenas de outras construções pelo país a fora. O primeiro deles, por uma promessa feita por D, João V (avô do nosso João VI), o soberano da época, a um frade capuchinho, para que viesse a ter um herdeiro. Dizem as más línguas que o referido religioso, confessor da rainha, já sabia da gravidez da mesma, mas mesmo assim induziu o rei a construir um mosteiro, por promessa, inicialmente para uma dúzia de frades e depois para centenas deles, por decisão do próprio monarca, acabando em quatro mil metros quadrados de palácio, basílica, biblioteca, cavalariças e tudo mais que a realeza julga ter direito. Tanta ampliação, feita ao longo do percurso da obra e fugindo a todos os projetos originais, tem uma explicação simples: a entrada do ouro recém descoberto nas Minas Gerais brasileiras. Quem conta muito bem tal história é Saramago, em seu Memorial do Convento. Já em Sintra, um príncipe consorte que nem português era, resolveu enfrentar as leis da austeridade econômica, do bom gosto e da própria arquitetura, para erguer uma espécie de Taj Mahal português. Não custa dizer que nenhum dos dois palácios sediou o governo e nem mesmo foi residência monárquica. O de Sintra foi deixado como presente para uma amante do rei, mas depois retomado pelo Estado. Pendulares e perdulários, estes portugueses. Enquanto ingleses e holandeses, por exemplo, se aventuravam pelos mares para fazer comércio (e dinheiro) esses aqui construíam igrejas, palácios e mosteiros. A União Europeia, sorte deles, os salvou.
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DITOSA PÁTRIA
Depois de mais de oito séculos de Monarquia, no século vinte a República desembarcou em Portugal, mas a bem dizer, não fez maior sucesso nessas terras, apenas abrindo caminho para um regime ditatorial que durou 50 anos, sem rei, mas com a figura absolutista e obscurantista de António de Oliveira Salazar. Seu lema para o país: “orgulhosamente sós”, como se isso fosse vantagem para uma nação, ainda mais na Europa. Naquela época, segundo uma anedota datada, a sigla internacional “SOS” significava somente “Salve Oliveira Salazar” em Portugal. Mas o século vinte acabaria terminando com uma mudança radical no país. Tiveram os portugueses a sorte, mas sem dúvida combinada a muita sabedoria política, de terem derrotado a tacanha ditadura salazarista de cinco décadas, para finalmente construírem um vigoroso Estado moderno, não mais potência marítima global, mas também não apenas aquele “jardim d’Europa a beira mar plantado”, refutando a noção de gente “orgulhosamente só”, para a qual o tempo não passava – e às vezes andava para trás. Mas o melhor ainda estava por vir: a entrada de Portugal na União Europeia. Para a Revolução dos Cravos – na verdade um golpe militar (para o bem) – que encerrou a ditadura salazarista, Chico Buarque compôs aquela linda canção: foi bonita a festa, pá; fiquei contente. Na época, nós brasileiros ficamos alegres – e esperançosos de que por aqui houvesse algo igual, sem militares, claro. Mas pouco tempo depois, o vate brasileiro coloca na canção uma nova letra: já murcharam tua festa, pá… Ele se referia à derrota dos comunistas e dos militares de esquerda nas primeiras eleições gerais depois do golpe. Chico não gostou de tais mudanças, mas na verdade apenas aconteceu o que é comum e até desejável nas democracias que fazem jus a tal nome: a fila andou e o poder mudou de mãos, fazendo rodízio entre centro, centro-direita e centro-esquerda – e vem sendo assim desde então. Melhor para eles… Como disse Camões, ditosa pátria que tais filhos tem.
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CACHOPAS E SALOIAS
Desde a infância associei duas palavras a Portugal: saloia e cachopa. A primeira por ser a conhecida marca de um azeite de oliva (que na época se chamava de azeite doce), ostentando na lata uma figura de mulher sorridente, com um lenço vermelho na cabeça. A segunda por fazer parte da letra de um samba de Noel (Com que roupa), no qual um certo Adamastor volta para Portugal, pra se casar com uma cachopa. Naturalmente eram duas palavras associadas a mulheres portuguesas. Assim, desde quando ali estive pela primeira vez procurei ficar atento aos vultos femininos para ver identificava algumas de tais, digamos, musas. Mas antes tive que ir ao dicionário, no qual li que saloio é sinônimo de aldeão, camponês, indivíduo rústico, natural dos arredores de Lisboa. Deve ser o que aqui chamamos de caipira ou até mesmo paraíba, inclusive com conotações pejorativas. Já cachopa é o mesmo que menina, rapariga, moça da província, sendo um regionalismo do Norte de Portugal.
Acho que vimos umas típicas saloias por lá – e até interagimos com elas. Lembro-me especialmente de Dona Ana, moradora do rés do chão do apartamento no qual nos hospedamos em Braga, à qual já dediquei umas palavras aqui. Outra delas foi a senhorinha para a qual pedimos informações em Touguinhó, também já mencionada aqui, tímida a princípio, mas depois solícita com as nossas demandas por parentes de Keta. Em outra ida a Portugal, em 2015, tive oportunidade de levar um bom papo com Dona Clarinha (ou Cl’rinha, como ela se apresentava em bom linguajar saloio). Eram mulheres do povo, com uma pronúncia que às vezes até nos assustava, de tão incompreensível. Marca registrada delas era o aventalzinho xadrez e o lenço na cabeça (exceção feita a Dona Ana, que por algum motivo já não usava tais adereços). Mulheres de corpos sólidos, provavelmente modelados por múltiplas maternidades, de trajes escuros e sóbrios, cuidando de suas vidinhas de pequeno alcance. Mas sem dúvida inspiradoras de enorme simpatia de nossa parte, por representarem aquele Portugal profundo que tanto procurávamos. As saloias, ou figuras muito próximas a elas, denominadas As Bravas, foram muito bem representadas, também, em uma exposição do fotógrafo Paulo Pimenta que vimos no Museu Gulbenkian, em Lisboa. Os folders do evento diziam o seguinte: “Nas montanhas do Marão (re)encontramos as nossas ancestrais, mulheres que lutam e resistem. Sussurram memórias silenciadas e cantam para espantar a solidão dos dias. Guardiãs de pés descalços e de lembranças de tempos duros, de histórias e cantigas do passado, mas com o futuro no olhar. [,,,[ Esta exposição é uma celebração destas Bravas, figuras mitológicas vivas, arquétipos da natureza na sua forma mais bela e mais crua.”
E as tais cachopas? Não sei não, mas acho que também, como as saloias, já são espécies em extinção. As tais moças de província talvez já tenham todas migrado para as cidades grandes, onde fazem faculdade, trabalham no comércio, têm profissões liberais e, quem sabe, até migraram para a França ou outros países da União Europeia.
Mas acho que estive como uma delas na recepção de um hotel no Porto, há anos atrás. De pele muito clara e olhos azuis, eu lhe perguntei se era de ascendência estrangeira. Ela gentilmente me explicou viera dos arredores dali mesmo, mas que em Portugal havia uma mistura muito grande de genes europeus diversos, entre os quais se incluíam celtas, suevos, visigodos e outros mais. Isto posto me deu a maior lição sobre a movimentada história lusitana, desde seus primórdios.
Pois é, as cachopas, não são mais meras moças de província. Elas estudaram, têm senso de pertencimento ao país, são cultas, se fizeram na vida, mesmo sendo simples recepcionistas de hotel.
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TOLERANTES, MA NON TROPPO
Li certa vez que em termos de aceitação de imigrantes os portugueses se dividem. Parece que conferem a si mesmos, em uma escala de honra e confiança, o galardão da confiabilidade. Em segundo lugar viriam os europeus “do Norte”, ou seja, gente que vem ao país não em busca de empregos, mas sim de sol e boas oportunidades de investimento. Muitos inclusive passam a residir permanentemente em Portugal, como é o caso de Madonna. No último degrau da escala é estariam os africanos, cuja imigração, boicotada na era salazarista, foi liberada com a Revolução de 1974, embora esteja hoje está em declínio. Contra eles, parece não haver conflitos acirrados, como na França, por exemplo, mas sem dúvida existe preconceito e discriminação, mesmo em se tratando de lusófonos. Na escala do trabalho, os africanos e principalmente as mulheres, ocupam alguns dos postos mais inferiores, como a limpeza de banheiros públicos. Surpreendeu-me a informação que próximo aos africanos estariam os europeus do Centro e do Leste, de chegada mais recente, coincidindo com a queda da “Cortina de Ferro”, aqui considerados perigosos e mafiosos, talvez por associação com os ciganos, que são historicamente discriminados não só em Portugal, mas em toda a Europa. E nós, brasileiros? Já fomos muito bem-vindos, mas o preconceito que hoje nos atinge é o de sermos preguiçosos, pouco confiáveis e associados a negócios escusos, como drogas e prostituição. Registra-se, também, que a migração brasílica foi, até os anos 90, de pessoas de classe média e de bom nível educacional, mas depois disso, as sucessivas crises brasileiras, trouxeram para cá pessoas de qualificação e nível educacional escassos. Qual seria então a razão real de tal preconceito? Penso que isso em parte se explique pelo confronto entre o modo discreto com que esta sociedade construiu suas relações interpessoais e o jeito mais barulhento (para dizer o mínimo), embora comunicativo, aquele verdadeiro oba-oba de fundo tribal, peculiar a brasileiros e creio que também a africanos. Sobre a presença brasileira há algo mais a dizer. Estão (estamos) presentes também nos pequenos estabelecimentos que ostentam o pavilhão verde e amarelo, com nomes típicos (“Carioca” ou “Guanabara”, por exemplo), onde supostamente se vendem produtos brasileiros, com especial destaque para o guaraná Antártica, os bombons Garoto e as paçoquinhas. E tem também o que lá é chamado de “IURD”, para nós a inescapável Igreja-Negócio do senhor Edir Macedo, que pelo menos tem o pudor de não se denominar ali como “Igreja”, mas sim “Centro de Apoio Espiritual’ ou algo assim. E além delas, as várias churrascarias com denominações gaúchas, como “Fogo de Chão”, “Farroupilha” etc. É o Brasil presente em Portugal, acho que estamos vingados em relação ao colonialismo deles… Mas para encerrar devo dizer que não sentimos nenhuma hostilidade em Portugal. Ou melhor, apenas uma discreta impaciência quando eu, que ando ruim dos ouvidos, não entendia alguma coisa que me era informada ou perguntada. Mas isso parece ser um atributo cultural lá.
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MÁQUINAS DE CIDADANIA (PORTUGAL)
Em Braga acompanhei Keta na regularização de sua documentação portuguesa. Na verdade, fizemos isso em duas etapas. Na primeira tratava-se de obter a caderneta de utente, que é o nome documento de habilitação ao Sistema Nacional de Saúde. Na segunda, para pegar uma segunda via do cartão de identidade, já que o dela havia sido furtado em Paris. Para isso recorremos a lugares limpos, receptivos e acessíveis. Chamou a nossa atenção especialmente a Loja do Cidadão, que de comércio e de loja não tem nada, correspondendo mais ao que chamamos Na Hora (ou termos similares) aqui no Brasil. Fomos recebidos com cortesia, agilidade e tudo se deu em questão de minutos, com orientações bem claras ao final. Como estaríamos em Lisboa na época da entrega da identidade, foi oferecida a possibilidade de pegar o documento lá, sem problemas. E também em Lisboa as coisas rolaram, em menos de meia hora uma pequena fila se desfez e Keta saiu da tal repartição com sua estimada carteirinha na mão. Assistimos assim, verdadeiramente gratificados, uma verdadeira máquina de cidadania em movimento. Neste quesito, penso que no Brasil também temos evoluído muito, com o tal sistema Na Hora. Talvez menos filas, melhores informações e ambientes mais limpos trariam uma nota ainda melhor para estes serviços, mas a verdade é que em tal questão podemos até nos orgulhar da nossa performance. Aqui no DF, pelo menos.
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MÁQUINAS DE CIDADANIA (PARIS)
Mas em Paris… De repente precisamos frequentar um ambiente de serviço público em Paris, sim, na Cidade Luz, monumento à civilização, pátria dos direitos humanos, onde pensávamos encontrar coisas ainda mais aperfeiçoadas. Puro engano… Aconteceu que precisávamos registrar a ocorrência relativo ao furto dos cartões e para tanto procuramos (e até achamos facilmente) uma delegacia de bairro. À entrada dois policiais, um homem e uma mulher, a nos olharem como se fôssemos réus ou suspeitos de algum crime, não cidadãos no usufruto de direitos. Numa conversa rápida, mas totalmente destituída de empatia e de olhos nos olhos, foi permitida a nossa entrada. Ali dentro, a policial do lado de dentro do balcão, não fardada, ao contrário de seus colegas da porta, já de saída informou que a espera mínima era de quatro horas. Sim, quatro horas! Não para pegar o tal documento, isso demoraria alguns dias, mas para prestar os esclarecimentos necessários. Seria possível dar uma volta e retornar quatro horas depois? Não, impossível, tinha que ficar ali dentro mesmo. Keta me liberou e eu fui dar uma circulada. Quando voltei, 3,5 horas depois, nada estava resolvido e ainda esperamos no mínimo mais uma hora inteira para que Keta fosse chamada. Lá dentro, perguntas exaustivas, protocolares, mas que poderiam ser perfeitamente respondidas em algum formulário on-line. Depois de meia hora de interrogatório minha mulher foi liberada, mas a esta altura mais da metade do dia já estava perdido. Mas o melhor (?) da história ainda não contei. A agente do interrogatório do lado de dentro não tinha a mínima noção de como preencher o formulário, aliás, mostrava grande incompatibilidade com o próprio instrumento de trabalho, ou seja, um computador. Para socorrê-la, apelou algumas vezes para um auxiliar disponível naquele momento: um garoto de no máximo 14 anos, aparentemente filho de algum funcionário da repartição e que nos intervalos do auxílio à moça do computador dava uma mãozinha, também, no balcão onde o público externo era atendido. Pode?
Quem quiser falar mal de serviços burocráticos e avessos à noção de cidadania, por favor deixe de fora Portugal e Brasil. Mas que se lembre da terra de Emmanuel Macron. Parece que uma nova revolução iluminista precisa acontecer por lá.
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CORRA!
Cada um vê o país estrangeiro com os seus próprios olhos, sua cabeça, sua cultura. Vale para o encantamento ou a rejeição. O que é excelente para mim poderia ser uma porcaria para você. E vice versa. Em Portugal, como são muitas as coisas boas, bonitas e até sublimes que se vê por lá, e sobre isso há mesmo certa unanimidade, não custa nada acrescentar aqui alguns atos para os quais, sendo generoso com os portugueses, vou usar uma simples palavra: evite. Em primeiro lugar, aqueles restaurantes em que um cidadão, geralmente um moreno de algum país hindustânico, fica à porta de convidando, ou melhor, quase laçando, para que entre. E o que é pior, geralmente anunciam aquilo como “comida portuguesa”, mas não caia nessa, pois é tudo feito com generosas doses de puro curry – além de caro. Outra não-pedida: não ande nos onomatopaicos tuc-tuc! Para quem não sabe, são aqueles veículos de três rodas, resultantes do cruzamento entre motocicletas e carroças, barulhentos, perigosos e onerosos. São uma moda importada da Índia, mas juro que não tenho nada contra os morenos. Fuja deles. E outra: sabem aquelas lojas coloridas que vendem apenas e tão somente sardinhas portuguesas? Aliás costumam se anunciar como “o mundo maravilhoso da sardinha portuguesa”. Se gosta de luzes e cores vivas, entre, mas saiba que estará visitando apenas uma suspeita Disneylândia de enlatados. Mas não compre nada! Você pagará até 15 Euros por uma mísera latinha. Se sua vontade de comer sardinha é imperiosa, vá ao primeiro supermercado, onde você encontrará o mesmo produto, disponível em latas menos vistosas, por módicos dois Euros, ou até menos. Entrou em alguma loja ou farmácia e está demorando a ser atendido? Talvez o problema seja você não ter pegado a senha. Sim, tem senha para tudo! E sem essa de fila preferencial, esqueça, velho aqui tem que entrar na fila junto com os jovens (isso talvez nos faça sentir mais jovens, não sei…). E tem mais, ninguém lhe avisará que o problema da demora pode ser a falta de senha e se você tentar chegar ao balcão destituído dela, vai ser com certeza olhado com suspeição e até maltratado. Não facilite. Ah, sim: e jamais pergunte a um português a mesma coisa duas vezes, mesmo que for apenas para confirmar. Isso é considerado uma ofensa por lá, da mesma forma que é considerado insulto imperdoável interromper um balconista que já está atendendo alguém, mesmo que seja para uma simples perguntinha e que aparentemente o atendimento esteja suspenso por um momento. E se precisar ir ao banheiro use as expressões locais, ou não será entendido. Sugestões: lavatório, casa de banho, sanita. Em Guimarães vi o tal cômodo ser designado como balneário, mas penso que era apenas um exagero do dono do estabelecimento. Tem mais um lugar do qual, a meu ver, o melhor é sair correndo – em sentido contrário! São as lojas da empresa nórdica chamada IKEA, presentes em toda a Europa. Tudo muito charmoso, prático e funcional, com preços até aceitáveis. O problema é a disposição labiríntica de seus corredores, dentro de um espaço enorme. Ali você entra por uma porta, é impulsionado a um labirinto de fazer inveja ao de Creta e não encontra saídas se resolver desistir ou dar por encerrada a visita. Peça a Deus para não enlouquecer. Nem Teseu lograria escapar de um lugar assim. Muitos gostam e até elogiam o tal labirinto, mas nós tivemos a sensação claustrofobia e de horror verdadeiro ali dentro. Corra!
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POLÍCIA, PRA QUE POLÍCIA?
Este lema anarquista parece fazer sentido em Portugal. Com efeito, poucas vezes vimos os tais homens da lei por lá. Muito menos em ações truculentas, perseguições, tiroteios, “baculejos”. Em Braga às vezes os víamos na Praça de República, protocolares, dentro de suas viaturas ali estacionadas, luzes piscando, com seus walk-talkies e uniformes negros bem ajustados. Mas pareciam estar ali com finalidade apenas ostensiva, embora sem deixar de ser discreta. Em Lisboa, certa vez, os vimos passar com sirenes abertas – e nada mais. Não é que seja totalmente exemplar, do ponto de vista humano, a polícia portuguesa. Existe uma GNR, Guarda Nacional Republicana, de feitio militar a qual, conforme li pela imprensa, comete umas barbaridades vez ou outra. Há também uma polícia civil, dita judiciaria. Soube dela quando assisti um documentário sobre o misterioso desaparecimento da menina inglesa Madeleine, alguns anos atrás e parece que tal instituição andou cometendo besteiras grossas ao cuidar de tal caso. Mas o que motiva os presentes comentários é o seguinte: aquela sociedade parece viver em paz, com sua polícia tendo, aparentemente pelo menos, uma rotina de trabalho tranquila. Poderíamos buscar estatísticas sobre isso, mas vamos falar aqui apenas de impressões. Afinal, Portugal é tido e havido como um país seguro e tranquilo, quando comparado aos demais países europeus. E vamos ao que interessa: por que será que é assim? Não deve ser pela presença constante e ostensiva da polícia nas ruas, naturalmente. Comparando com a França, onde o terrorismo islâmico anda mostrando suas garras, talvez alguma resposta se evidencie. Os portugueses certamente não foram mais brandos do que os franceses no trato com colonizados na África, mas os franceses andaram sem metendo em um mundo diferente. Enquanto os portugueses lidaram com culturas religiosas animistas, os franceses caíram no mundo islâmico. Isso não seria um fator diferencial? O terrorismo e o espírito aguerrido do Islã são bem conhecidos, afinal. Não que não tenham faltado barbaridades nas duas situações, mas enquanto a herança portuguesa acabou sendo suavizada, por algum motivo. Já do lado francês o bicho está pegando até hoje, que o digam os pobres jornalistas do Charlie Hebdo ou os frequentadores do Bataclã de Paris… A impressão que dá é que aqueles magrebinos vêm para a França, usufruem marginalmente das benesses de consumo e da cultura ocidental, são rejeitados pela sociedade francesa e acabam dominados pela força da crença islâmica no paraíso para os mártires. Angolanos, moçambicanos e outros africanos, ao contrário, talvez queiram se inserir, sem maior contraditório, no mundo europeu – e bem ou mal a antiga metrópole abre as portas para eles. É apenas uma hipótese… Mas de toda forma, é curioso constatar que a relativa paz social que reina em Portugal não seria diretamente um resultado da atuação incisiva e agressiva da polícia. Neste quesito, também, temos muito a aprender ali.
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COERÇÃO E CONSENSO
Entre outras coisas mais importantes, a viagem presente a Portugal me facultou uma divagação sobre banheiros públicos – ou casas de banho, como eles chamam tal cômodo. A questão é a seguinte: com tantas pessoas de nacionalidades e culturas tão diversas, como é que tais instalações costumam mostrar, em toda parte, um padrão até aceitável e digno? Duas hipóteses, uma primeira, “conservadora” e uma outra “progressista”. A primeira dá isso como fruto da coerção e do constrangimento da vigilância, pois essas pessoas sabem que se, literalmente, mijarem fora do penico, levam uma multa ou até podem ser presas. A segunda: essas pessoas, ao verem os banheiros limpos e asseados, mesmo que muitos tenham passado por ali antes deles, se sentem, como que convidados – e não constrangidos – a fazer o mesmo, sabendo, por outro lado, que “aqui é assim que as coisas funcionam”. Acho que a primeira afirmativa é mais facilmente refutável, embora tenha não deixe de ter validade relativa em certos casos. Sobre o peso da vigilância coercitiva, como disse acima, por aqui é raro ver policiais nas ruas, ou bem mais raro do que no Brasil, sem embargo de que na ex-colônia a presença deles muitas vezes constitua o problema, não a solução. Então, não é porque se sinta reprimida, certamente, que a multidão multicolorida deixa de fazer a coisa certa no lugar certo e aceitável. Deve ser por outra razão, aquela que Durkheim já apontava como motor da sociedade dos homens: a combinação harmoniosa – ou nem tanto, às vezes – de coerção e consenso. A moral da história é a seguinte: viva o consenso social! Penso que não só no asseio nos banheiros, mas também em coisas ainda mais nobres, como a noção de cidadania, o respeito ao diferente, o apego à democracia, a proteção ao bem público, a conservação da natureza, são possíveis situações nas quais o consenso social falaria muito mais alto, e de forma mais efetiva, do que as multas, as cacetadas, as câmeras, os tiros da polícia ou mesmo as aulas bem intencionadas nas escolas… Estimo que no Brasil a gente ainda possa chegar lá.
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WHAT’S NEW?
Mito a desfazer: em Portugal a língua pátria seria mais respeitada do que no Brasil? Pelo que vimos por lá, não é bem assim. Por exemplo, aqueles anúncios de sale, rent, ice cream, outlet, snack-bar, fastfood e outros? Parece que são abundantes aqui tanto ou mais do que no Brasil. Curiosa e inversamente, o lanche matinal do Mc Donald que no Brasil certamente seria um breakfast, aqui é chamado mesmo de pequeno almoço. Delivery, não, pois vimos que eles acrescentaram por conta própria um sinônimo para tal expressão: take-away… Self service: não vimos tal nome por lá, certamente não por rejeição ao uso da língua estrangeira, mas por questões talvez culturais mesmo, pois talvez os portugueses não se animem muito com aquela profusão exagerada e misturada de comidas em uma única refeição.
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DE SENECTUDE
Há muitos velhos em Portugal e a gente os vê por toda parte. Pesquisando, ficamos sabendo que Portugal já é o quinto país com mais gente idosa no mundo, um verdadeiro boom, que simplesmente se multiplicou por três no último meio século. Por sorte (e por virtude política também) a esperança de vida também cresceu, ultrapassando hoje os 80 anos (desde 2017,aliás). Isso já preocupa os governantes, com proposição de leis que nas quais se incluem até mesmo a decretação de uma “indignidade sucessória”, barrando herdeiros que porventura tenham praticado violência ou maus tratos contra os mais velhos e ainda criminalizando aqueles espertinhos mal-intencionados que perpetram negócios em nome de idosos sem seu pleno conhecimento. E assim os velhinhos estão com tudo, embora não tenham, como no Brasil, regalias nas filas, a não ser que apresentem deficiências. Nos transportes públicos pagam tarifas menores, sem gratuidade total. Mas parecem viver felizes. O problema aqui, não é ser velho; é ser pobre! Eu e Keta ficamos curiosos para entender melhor esta sociedade que parece evoluída, mas que ainda tem mendigos pelas ruas, nem todos velhos, diga-se de passagem. Mas voltando aos velhinhos, o que mais nos impressionou foi a atitude deles, que simplesmente enchem as ruas e praças; e ali conversam, bebem uma cervejinha e dançam ao som de algum grupo regional, com aqueles pulinhos para o lado e tudo. Não são gente de ir apenas a shopping ou ficar em casa: vão é pra rua mesmo. E já é costume que as próprias autoridades criem alternativas para facilitar a vida dos idosos, como ouvimos dizer de um micro-ônibus (autocarro) chamado Azulinho que em Lisboa os transporta gratuitamente pelas ruas mais íngremes, dando acesso a certos pontos estratégicos, como posto de saúde, supermercados, bancos, correios. A tal benfeitoria atende também àqueles que só querem ver a paisagem, passar o tempo e bater um papo com amigos. Em Cascais, há três anos, vi algo assim, um serviço de autocarros chamado Buscas. Esses velhinhos e velhinhas nos encantaram, talvez pelo fato de já estarmos praticamente dentro do status deles. São garbosos na aparência, com seus tênis, roupas bem ajustadas, capotes e parkas dignos e de muito bom gosto. E a cereja do bolo: gostam de andar, os casais, de mãos dadas e vi os homens muito cuidadosos ao descerem do transporte e oferecendo o braço a suas companheiras. Consta que seja uma sociedade patriarcal, na qual o machismo seria dominante, mas pelo que vejo, aqui há ternura nas relações entre homem e mulher idosos.
Igualzim nóis, ou seja, Keta e eu…
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MILICOS
Pequena observação sobre as instalações militares portuguesas (e francesas). Não que este tipo de local me atraia de verdade, minha curiosidade sobre eles é apenas sociológica, digamos. Vimos vários desses quartéis tanto em Portugal como na França. Em Paris ficamos hospedados quase ao lado de uma École D’Armée. Em Braga, bem próximo das Fontainhas havia um grande regimento de infantaria – ou algo assim. O que havia de comum ente eles? A ausência de militarização muito evidente. Com efeito não havia nem mesmo sentinelas, ou calçadas bloqueadas e gente fardada à vista. Não vi também soldadinhos pintando meios-fios ou troncos de árvores, muito menos fazendo corridinhas pela rua, aos berros cadenciados, em pleno dia de expediente. Completamente diferente do que se vê por aqui. E olha que na França, pelo menos, o terrorismo é uma ameaça real. E tanto lá como em Portugal as forças armadas têm uma função clara e específica, que é fazer parte da OTAN. Já aqui, há controvérsias sobre sua verdadeira finalidade… Conclusão: não consigo saber realmente a razão de os militares brasileiros criarem tanto simbolismo e reservas em torno de suas funções. Não estamos em guerra e tal questão nos é absolutamente remota. O único terrorismo que conhecemos é o das milícias e das demais formas de crime organizado, mas nisso nossos milicos não se metem. Talvez a resposta a tal questão seja, por parte deles: já que não temos funções úteis e evidentes para nossa sociedade, a solução é fingir que fazemos algo realmente significativo. E tome calçadas bloqueadas, gente armada, uniformes, vigilância, desfiles enfumaçados, pinturas de meios-fios, declarações bombásticas, cultos simbólicos, ameaças à estabilidade política, além de reverências a um pedaço de pano colorido.
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DA MORTE E SUAS ALEGORIAS
Eu Flavio, confesso: gosto de visitar cemitérios. Nada mórbido em tal gesto, mas apenas aquela curiosidade sociológica à qual já me referi antes. Acho interessante ver como as sociedades reverenciam seus mortos e saber das alegorias que cercam a morte. Aliás, li há muitos anos atrás um livro de Philippe Ariès, um sociólogo francês, chamado exatamente de A Morte, no qual ele se dedica, com profundidade, a este tipo de reflexão. Pude então perceber que a percepção e as condutas práticas frente à morte têm profundas raízes culturais e históricas. Assim os cemitérios que antigamente ficavam nas partes mais nobres das cidades, próximo ou mesmo dentro de igrejas, com o passar do tempo foram como que sendo expulsos para as periferias, como sinal de que a sociedade se preparou e reagiu para viver seus anos de vida ganhos com o progresso científico, rejeitando assim o culto da morte. Da mesma forma, as sociedades anglo-saxônicas, formadas de forma emparelhada com o capitalismo moderno, com Igreja e Estado devidamente separados, em sua objetividade proverbial, criaram aqueles famosas cemitérios de lápides brancas que não distinguem ricos e pobres, mas nivelam todos eles perante a indesejada das gentes, como disse Manoel Bandeira. Já nos países da Inquisição, como Portugal, Espanha, França, Itália, com a Igreja dominado amplamente o cenário e até mesmo submetendo o Estado a seus desígnios, a celebração da morte era exuberante, com os ricos construindo mausoléus, quem sabe para que Deus prestasse mais atenção neles na vida eterna. Pois bem, havia em Braga um cemitério bem próximo às nossas Fontainhas – e lá estive por duas ou três vezes. Na verdade, o que vi lá não difere do relato que fiz acima a respeito das diferenças sociais que marcam a arquitetura tumular, que inclui desde simples quitinetes ao rés do chão até palácios em mármore e granito. Com as devidas imagens de anjos, de santos, das frases bíblicas e da louvação das finadas pessoas ali presentes – ou jazentes. Coisa não muito diferente do que se vê por aqui, principalmente em nossos cemitérios mais antigos. Porém o que me chamou a atenção, de verdade, foi um recanto militar no referido ambiente, onde pude constatar a presença de inúmeros túmulos de gente jovem, falecida com menos de 30 anos, nas décadas anteriores a 1970. Foi o preço que a aventura colonial africana cobrou dos portugueses e é realmente admirável como eles saíram disso e processaram o trauma com sabedoria, sem fingir que tal passado não existiu ou que pudesse ser perdoado em nome de alguma “anistia” unilateral. Nós não tivemos guerra colonial no Brasil, mas sabemos o que isso significa, principalmente quanto ao preço que nos custa o fingimento e a adulteração em relação ao passado. E antes que me esqueça: neste programa de visitar cemitérios, Keta não me acompanhou. Não faz o gênero dela, verdadeira reverenciadora da vida que é.
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MILAGRES EM FÁTIMA
A treze de maio, na Cova da Iria, no céu aparece, a Virgem Maria…
Quem vem de família católica, como eu (Henriqueta não), certamente já ouviu esta cantiga muitas vezes. Ela se refere à suposta aparição (os mais céticos, inclusive dentro da Igreja Católica de hoje, propõem termo mais adequado: visão) de Nossa Senhora, num perdido lugar do centro de Portugal, pertencente ao concelho de Ourém, num recanto chamado Cova da Iria, no vilarejo de Fátima, a aproximadamente 140 km de Lisboa.
Curiosamente, este grande e catártico movimento do catolicismo, que transformou Portugal em meca de peregrinações internacionais, ocorreu num lugar cujo nome – Fátima – provem de influência moura e, portanto, muçulmana na região.
O chamado Milagre de Fátima marcou minha infância, não tanto pelas visões de anjos e da Virgem, em si, mas pelos terríveis segredos que a Santa teria confiado às crianças, entre os quais (alguém me colocou isso na cabeça) estava uma previsão do fim do mundo. E isso era o que mais me assustava naquela época, com a Guerra Fria já em curso a toda hora arriscando transformar isso em realidade.
E fomos lá. Confesso que por conta própria eu não iria. Meu catolicismo já perdeu o lustro há muitos anos, sou cético com relação a milagres e acontecimentos sobrenaturais e naquele lugar eu não levaria mais do que certa curiosidade, digamos, antropológica, nada que se aproximasse de fé, ascese, misticismo – essas coisas. Com todo respeito.
Mas Henriqueta, que é uma pessoa muito mais espiritualizada do que eu (embora ela às vezes e generosamente me conceda tal estatuto), desejava conhecer o lugar, sentir de perto aquele conjunto de atributos da fé, ascese e misticismo, que a mim não tocavam muito. Até então, pelo menos.
A história, por demais conhecida, tem início em 1916, quando três pastorinhos pobres e analfabetos, Lucia e seus primos Francisco e Jacinta, da família Marto, com dez, nove e sete anos respectivamente, tiveram uma série de visões quando pastoreavam as ovelhas da família. Primeiro viram um anjo, por algumas vezes; em outras ocasiões posteriores a própria Mãe de Jesus Cristo. As descrições, mais tarde relatadas por escrito por Lucia, que se alfabetizou, são um primor de imaginação, falando em branco de neve, luz resplandecente, corpos transparentes, movimentos do sol, imagens no céu e coisas assim. Tudo isso visto apenas pelas crianças, não por outras pessoas. A aparição principal ocorreu em 13 de maio de 1917 e na ocasião foi prometido um milagre para outubro, para o qual uma multidão calculada em 50 mil pessoas esteve presente. Em maio só os três pastorinhos sabiam da história – seis meses depois uma multidão ávida os acompanhava.
Há muitas controvérsias sobre isso, mesmo dentro da Igreja Católica, desde a época e inclusive atualmente. Farsa, má fé, exploração e manipulação são algumas das palavras com que os detratores do fenômeno usam para qualificá-lo.
Sabendo disso apenas por alto, fomos lá. Eu, confesso, com o pé atrás e munido apenas de minha curiosidade laica e antropológica. Henriqueta bem calçada por sua generosidade e curiosidade espiritual e também, por que não dizer, sua invencível crença na humanidade.
E foi assim que pegamos um autocarro (que é como os portugueses denominam os ônibus) em Lisboa e fomos lá. Viagem superconfortável, de menos de duas horas, por autoestrada magistral, padrão União Europeia, sem escalas. Paisagens pouco chamativas no princípio, quando se vai pelo vale do Tejo, rio que inclusive é avistado em alguns trechos. Mais adiante, a planície sem surpresas é ultrapassada em suaves planos inclinados até que se chega a uma “serra” (para o padrão português), dita do Aire, onde a paisagem fica mais interessante, com trechos em aclives longos, rodeados por formações rochosas sedimentares, placas de pedra empilhadas que parecem até obra de algum gigante caprichoso.
A chegada a Fátima já me surpreendeu, porque eu esperava algo como “uma enorme igreja no meio do mato”. Mas nada disso: é uma cidade moderna, com ruas largas e movimentadas, boas construções, pistas de corrida e caminhada, academias de ar livre, parques, prédios de apartamentos aos montes, uma estação rodoviária ajeitadíssima e movimentada, além de um comércio pujante, principalmente de artigos religiosos, como não poderia deixar de ser.
Mas por mais que esperássemos grandiosidade dos monumentos religiosos existentes, o que vimos ali superou qualquer expectativa. Há uma esplanada imensa, onde caberiam três ou quatro campos de futebol, e em cada extremidade da mesma duas igrejas ciclópicas, uma, a antiga, em padrão mais clássico, talvez neoclássico e outra moderníssima e descomunal, dentro de um padrão que poderia talvez receber a assinatura de um Niemeyer (embora não tenha nada a ver com a Catedral de Brasília), circundada por altas paredes, que lhe dão aspecto de ginásio de esportes, mas sem dúvida de linhas harmoniosas. De entremeio, na grande esplanada, estátuas de papas, de anjos, de santos. Não há lugar para assentar, a não ser o chão. A igreja antiga se prolonga pelas laterais por corredores entre arcadas, abertos para o grande pátio, com paredes recheadas de pinturas religiosas. Em uma lateral há um espaço coberto onde são rezadas as missas no dia a dia. Dentro desta área, uma capelinha modesta, de alvenaria, que marca o lugar onde a visão principal, no treze de maio, aconteceu.
Em Fátima se respira espiritualidade e devoção, extremadas, em estilo católico pré- modernização da Igreja, como bem acontecia em séculos passados, seja em Portugal como por toda Europa. Coisas semelhantes, aliás, se veem na França (Lourdes), na Itália, na Polônia, nos Balcãs, no Brasil (Aparecida) e em outras partes, mas duvido que tenham a pujança monumental que se vê ali. Em Fátima, ao que parece, toda a gente respira e vive disso, não só da venda de artigos variados ligados ao culto mariano (há de tudo, desde panos de prato até imagens em tamanho quase real; de rosários em formatos diversos até objetos de cozinha e roupas). Mas o destaque vai para o turismo, que põe suas marcas por todo lado, seja pelos autocarros luxuosos, vindos de toda parte, inclusive de outros países, pelo comércio e pela miríade de pousadas e hotéis. Entre tantas cidades portuguesas que visitamos, ordenadas, limpas, luminosas, modernas, Fátima mesmo assim se destaca. Aliás, li em algum lugar que a saga dos pastorinhos criou, entre outras tantas coisas, a própria cidade, que não passava da insignificância à época dos fenômenos.
Com efeito, tudo é culto ali. Não bastasse a grande esplanada e o ambiente marcado pela devoção na região central, ainda há o passeio obrigatório a Aljustrel (ah, os nomes de lugares em Portugal!) onde viveram Lucia, Jacinta e Francisco. São apenas 2,5 km, mas há estátuas, capelinhas e alusões religiosas em toda parte, inclusive um bonito monumento em provável estilo art-deco (belo, de verdade!), que mostra as três crianças em atitude de veneração, olhos postos no céu. A Aldeia de Aljustrel, quase engolida pela mancha urbana de Fátima, é um presépio ao ar livre, no qual as modestas residências onde viveram as famílias dos primos Marto, bem conservadinhas, inclusive em seu mobiliário tosco, atraem enorme atenção. O resto da Aldeia são lojas de imagens e lembranças para turistas, em profusão, além de pousadas e lanchonetes.
Pois é, a visita a um lugar como este não pode passar impune, mesmo para céticos, como eu. É tudo muito estranho, mas ao mesmo tempo muito real e muito provocativo. Sem querer misturar religião com política, é preciso reconhecer que tal mistura esteve presente na história local desde sua etapa inicial e durante todo o tempo. Em 1917 a República estava recém proclamada em Portugal e uma de suas primeiras medidas foi a separação entre Igreja e Estado, associação umbilical que neste país tem tradição milenar. O mundo veio abaixo, então. A República andava mal das pernas e a Igreja reagiu à altura, conseguindo até mesmo uma declaração condenatória aos republicanos por parte do Papa Pio X. A Santa Madre portuguesa lutava, acima de tudo, por resgatar seu poder e sua credibilidade popular no país. Daí… De fato, é impossível imaginar Fátima sem encarar tal tipo de influência.
Dez anos depois veio Salazar, um carola de marca maior, em um golpe de Estado e a polêmica contrária a Fátima se desfez dentro da própria Igreja Católica, passando o fenômeno das visões dos pastorinhos a constituir, ele próprio, uma espécie de patrimônio, ao mesmo tempo do Estado e da Religião. E de lá para cá o culto e a força daquilo só tem crescido.
No autocarro, na volta, tivemos oportunidade de relaxar, analisar e explicitar nossas percepções do dia de maneira mais profunda. Não tivemos exatamente a mesma impressão, mas isso faz parte de nosso acordo de casal, sem problemas. Keta, em seu drive espiritual se mostrava reflexiva, recompensada pelos acontecimentos do dia. Já eu, tinha uma inquietude que não conseguia definir, a princípio. Uma certa faina de encontrar explicações para algo daquela magnitude. Percebi que para mim talvez o mais simples fosse me apoiar nas fartas teorias de contestação, das quais àquela altura eu já tinha tomado conhecimento, via wikipedia, enquanto aguardava o autocarro na estação rodoviária de Fátima. Mas isso não me satisfazia, porque o que tinha visto era algo maior do que aqueles supostos milagres, mais concreto do que aqueles monumentos, para além da manipulação de padres e políticos em cima de três pobres roceirinhos analfabetos e suas famílias.
Enfim pude perceber que o verdadeiro milagre de Fátima era e continua sendo a fé das pessoas. Não sei se ela removeria montanhas, mas certamente é capaz de realizações materiais e simbólicas grandiosas. A fé, com certeza, para o bem e para o mal, é intensamente capaz de criar realidades. Tenho dúvidas se a humanidade seria melhor sem ela.
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SUJEITO DE POUCA FÉ, EU?
Eu e Keta concordamos em (quase) tudo. Um dos pontos de nossas discordâncias, sendo estas sempre respeitosas, é relativo ao conceito de Fé. Coloquemos com maiúsculas, pois é coisa por demais séria. Em Portugal tivemos oportunidade de esticar esta cordinha (no bom sentido, claro) algumas vezes, já que lá o ambiente tão marcado pela religiosidade convida a isso. A questão central tem sido a seguinte: eu me considero uma pessoa de pouca fé, pelo menos no sentido místico ou mesmo religioso de tal termo. Já Keta tem tal atributo inquestionavelmente presente e pulsante. A nossa visita a Fátima, naturalmente, expôs entre nós com mais intensidade tal questão. Eu com minha suposta neutralidade diante do fenômeno religioso, me colocando ali como um simples curioso. Keta visivelmente sintonizada com a mística de tal ambiente, tocada mesmo pelo clima de espiritualidade reinante. Eu fui procurar argumentos em sites da internet, ainda ali mesmo, in loco, tendo como foco, naturalmente, explicações mais materialistas e críticas sobre os fenômenos vivenciados pelas três crianças e o que se sucedeu depois disso. Keta não precisaria de internet para fazer sua avaliação sobre aquilo, ela simplesmente deixou os fatos, ou melhor, os desdobramentos deles, lhe tocar o coração e a mente. E tudo estaria bem assim, ninguém tem a obrigação de concordar totalmente com o semelhante, mesmo que este lhe seja uma pessoa intensamente querida, como é o nosso caso. E assim que vimos e vivenciamos nossas eventuais discordâncias, sem tensionamentos e sem tentativas de convencimento. Mas em Fátima, mais uma vez, Keta reiterou uma observação a respeito de minha suposta negação com relação à ter fé. Ela simplesmente apontou diversas facetas de minhas atitudes cotidianas que segundo ela só podem se originar em uma pessoa realmente portadora de Fé. Confesso que fiquei lisonjeado, pois nunca havia considerado isso. Por outro lado, fiquei preocupado, pois isso representaria uma negação de coisas nas quais eu realmente acreditava – com muita Fé, diga-se de passagem…
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AINDA A POLÍTICA
Durante nossa permanência em Portugal houve eleições gerais. Eu já havia tido oportunidade de presenciar isso antes, no Canadá, trinta anos atrás. E assim, tanto em um caso como no outro, me vi e me vejo forçado a fazer comparações com o Brasil. O que mais me impressionou foi o caráter discreto (para dizer em uma só palavra) que as eleições mostram nesses dois países. Tudo tranquilo, limpo, sem gritarias, sem comícios, sem arranca-rabos, sem atentados contra a vida e a honra alheia, sem maiores tensões. Aliás, já no Canadá, descobri que a palavra comício, que ne medicina significa também crise convulsiva, tem tudo a ver com a maneira com que os políticos representam seus papéis. Em Portugal o máximo que se vê são outdoors nas ruas, louvando as figuras e as qualidades dos homens e das mulheres que fazem política. Sempre com ligação direta entre tais pessoas e os partidos que representam. Sim, em Portugal pertencer a um determinado partido faz diferença! Há até mesmo por lá um partido de nome curioso, PAN, que significa: Pessoas, Animais e Natureza, vê se pode! Pelo que li depois, essas eleições de 2022 levaram a uma mudança histórica, qual seja a consolidação do domínio do Partido Socialista de lá (PSP) e de sua grande liderança, um senhor moreno, simpático e sorridente, de óculos de aros finos, que nem tem cara de português, mas sim de indiano. Sim, ele é de família proveniente da antiga possessão portuguesa de Goa, na Índia. Seu modo de operação é marcado pelo fazer político tal qual o conceberam os gregos, ou seja, muito diálogo, compromisso e busca do bem comum. Tudo o que precisamos (e não temos) no atual momento brasileiro, particularmente do lado que está no poder. Mas não vou falar de (bi)polarização, acho que a questão aqui é bem outra. Quem polariza de fato é esta extrema direita chucra e delinquente, que não aceita o jogo democrático. Voltamos de Portugal com mais esta imagem perturbadora que o espelho de lá nos revela, a nos mostrar o quanto ainda precisamos avançar no Brasil, inclusive na política.
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O ENTRUDO
Um belo dia de março, ou melhor, durante alguns dias deste mês, passamos a ver na rua filas de crianças pequenas, conduzidas por suas professoras das escolas e jardins de infância, todas fantasiadas, inclusive as mestras. Em algumas ocasiões crianças maiores e até adolescentes também. Uma cena interessante e que nos deixou curiosos, por não sabermos bem de que se tratava. E as fantasias eram as mais variadas, desde fadinhas e duendes, até homens-aranha e outros super-heróis, passando por personagens mais abstratos, alguns até de extração medieval ou algo parecido. Meu amigo Eduardo Guerra, já afeito aos costumes da terra, me esclareceu via whatsapp: é carnaval! E não é que era mesmo! Vale registrar as diferenças. Em Portugal tal coisa toca mais as crianças e parece ser um desdobramento das atividades escolares. Sem batucada, sem sexualização, sem maior liberação do corpo. Ah, às vezes ali a festa ainda é denominada de entrudo, nome que já foi utilizado aqui no Brasil, mas se perdeu nas brumas do tempo.
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URBES
Viajar em Portugal nos traz uma informação que diferencia o país fortemente do Brasil, qual seja a relativa ausência de grandes espaços vazios entre as aglomerações urbanas. Assim, é possível andar dezenas de km praticamente como se estivéssemos em uma única rua, com casas, prédios de apartamentos, comércio distribuídos por toda parte. É bem o que vimos nos nossos deslocamentos de carro pela região ao Norte do rio Douro, onde ficam Baga, Barcelos, Vila do Conde e outros lugares que visitamos. Ficamos com uma dúvida: aquelas pessoas ali morariam por trabalharem localmente ou aquilo é são apenas lugares-dormitório, para gente que se dirige diariamente a centros maiores, como no Brasil? Com efeito, a estrutura fundiária minimalista de Portugal não parece ser favorável a que tais pessoas morem e trabalhem no mesmo local, pois as propriedades não gerariam empregos para tantas pessoas. E o que seria uma cidade, realmente, por lá? É difícil saber, de fato, por quantas cidades reais teríamos passado, já que foram tantos os concelhos, freguesias e até os simples “lugares” pelos quais andamos, sem que soubéssemos efetivamente onde começam, onde terminam. Mas mesmo assim me atrevo a fazer uma descrição dos arranjos que me pareceram comuns tais zonas habitadas. Elas são dominadas por conjuntos de apartamentos nas periferias urbanas, como vimos de forma exuberante no trajeto entre Lisboa e Sintra. Vê-se que ali é domínios de classes médias ou até menos do que isso, mas com estética e qualidade de acabamento seguramente bem melhores do que aqueles da série “Minha casa, minha vida” aqui no Brasil. E sem exceção, esses aglomerados contam com infraestrutura urbana completa, como asfalto nas ruas, urbanização, coleta separada de lixo, parques infantis e outras facilidades, entre as quais se destaca o transporte público, por metrô ou comboio muitas vezes. Assim acontece também do outro lado do Tejo, na cidade de Almada, onde, creio, dado a dominância hegemônica dos prédios de apartamentos, a densidade populacional deve ser das mais altas em Portugal. Assim, a cena habitual em Portugal é a de se chegar nas cidades através de ume verdadeiro cinturão de prédios, nem sempre muito altos, num padrão que lembra os edifícios residenciais de Brasília, mas com disposição bem mais adensada. Depois de vencida esta barreira é que se vai dar no centro histórico – quando ele existe – no qual muitas vezes os carros não entram, ou têm apenas algumas ruas reservadas para si. E tais ruas são sempre limpas, seja nos locais históricos ou em outros, como resultado de uma cultura cidadã diferenciada, mas também por se dispor aqui de tecnologias que ainda não são vistas no Brasil. Entre estas, já vi aspiradores portáteis de lixo, pequenos veículos elétricos de varrição, além de caminhões capazes de lidar com os containers sem o apoio de auxiliares, apenas sob comando do motorista, de dentro de sua cabine. Espantoso! A coleta de lixo é rigorosamente separada, em compartimentos subterrâneos que se comunicam com a calçada por uma espécie de chaminé tampada, em aço inoxidável, e cujo conteúdo, em enormes sacos, é por assim dizer “pescado” pelos caminhões de limpeza, sem maior esforço. Uma pergunta que não se cala, sem deixar de ver nela um certo preconceito, é a seguinte: se até um Portugal, um país europeu menos rico, é assim, faça-se ideia de como deve ser na Dinamarca ou na Alemanha? Um dia chegaremos lá…
E por falar em cidades, as calçadas ditas “portuguesas” fazem jus a tal nome! Elas são, em todo o país, praticamente sem exceções, invariavelmente revestidas por aquelas pedrinhas cúbicas, pretas, brancas e avermelhadas, conhecidas no Brasil como “calçadas portuguesas”. Nos centros históricos isso acontece com as calçadas e as próprias ruas, destinadas agora ao uso “pedonal”, não há desnível entre rua e calçada, mas apenas uma declividade suave que entrega as águas da chuva a um sulco situado no meio da via, geralmente coberto por tampos de pedra. Não é raro se ver um tratamento artístico das pedrinhas cuboides, sob a forma de grafismos diversos, lembrando que o próprio desenho das calçadas de Copacabana, tão conhecidas por nós e mesmo fora do Brasil. Aliás, aquele zig-zag curvilíneo tem seu correspondente em Lisboa no Largo do Rossio e também junto à Torre de Belém – e é seria impossível dizer se o que veio primeiro teria sido é o ovo ou a galinha.
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E VIVA SÃO GONÇALO!
E fomos visitar Amarante, uma graça de cidade às margens de um bucólico e histórico rio Tâmega, onde o pessoal se orgulha de terem sido barradas as tropas de Napoleão, o que entretanto não impediu D. João VI de fugir para o Brasil… E isso lhes custou caro, pois não só a ponte, como boa parte da antiga vila, foram depredadas e saqueadas pelos selvagens gauleses. A cidade tem como padroeiro alguém muito conhecido e imitado, como toponímico, no Brasil: São Gonçalo. Aqui ele é padroeiro dos casamentos e cumpre aos enamorados vir fazer seus votos nesta cidade. De nossa parte, não deixamos de aproveitar o ensejo. A cidade não é grande, tem o rio Tâmega como atração charmosa, com uma parte moderna e outra antiga. Isso depois de a gente se perder pela parte nova, que fica pendurada à margem do rio, em zona montanhosa e um bocado feiosa. Mas o resto compensa. Mas Amarante oferece mais. Há uma rua estreita e sinuosa que acompanha o Tâmega, uma igreja na entrada, outra na saída. Quando a ruazinha corta o rio, um primeiro impacto é oferecido pela a delicada e elegante ponte de pedra, em arco, que o atravessa. Este rio Tâmega, por si só, é personagem. Limpo como só aqui se vê. Margens rodeadas por relva aparentemente natural, com chorões, oliveiras, carvalhos e choupos aqui e ali. Patinhos em fila, nas margens e na água. É pequeno para navegação, salvo de uma ou outra canoa, romântica apenas. Lixo? Nenhum! Ao chegar à ponte de pedra já citada, avista-se a cidadela medieval (ou seria barroca? Ou as duas coisas?), dominada pela Igreja de São Gonçalo e outras construções religiosas, um grande mosteiro, por exemplo. Quem acha que já viu tudo na região “cis” vai se admirar mais ainda na parte “trans”. Ao redor e nos fundos do templo e do mosteiro se abre uma teia de ruelas curvilíneas, com passagens de travessas pouco maiores do que um corpo. Casarões graves, gelosias que escondem segredos, portas que já não se abrem. E tudo em tom cinza, de pedra. Mas quando chegar a primavera as glicínias, que ora já se anunciam, farão toda diferença. Enfim, vimos Amarante / seguimos adiante. A ocasião pedia muito mais do que um esboço de hai-kai, mas, vá lá… A noite já chegava e era preciso voltar pra casa, em Braga.
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ONDE NASCEU PORTUGAL
Estar no Norte de Portugal e não ir a Guimarães é como ir a Paris e não ver a Torre Eiffel. Desculpem se a tentativa de mudar o tradicional ditado que fala de Roma e do Papa foi desastrada – só tentei inovar. Aqui nasceu Portugal, dizem os guias turísticos, embora este país pareça ter nascido em tantos lugares. Talvez nem tenha nascido em nenhum deles, mas sim de muitos ao mesmo tempo, ou talvez antes, muito antes, muito além das histórias registradas e contadas. A cidade não é grande, pelo menos em suas dimensões físicas, pouco passando dos cinquenta mil habitantes. Sua grandeza vem da história, Patrimônio Cultural da Humanidade e Capital Europeia da Cultura que é. Era ela a Vimaranes asturiana e galega do século IX, ainda no tempo do antigo Condado Portucalense. Mas tal cidade antecede e prepara de fato a fundação do país. Já em 1118 aqui transcorreram alguns dos principais acontecimentos que levariam à independência e ao nascimento da nova Nação, donde o orgulho local, registrado em pedra: Aqui nasceu Portugal. O varejo da história também é contado e recontado com minúcias. Após a reconquista do território das mãos galegas, ainda no remoto século nove, pelo fidalgo Vimana Peres (que está na origem do nome da cidade), vem a excelentíssima senhora Condessa Mumadona Dias, cem anos depois, mandar erigir um mosteiro (tinha que ter um mosteiro, claro, afinal estamos em Portugal) e também uma fortificação (idem). Guimarães é, acima de tudo, uma cidade agradável. Não é preciso falar de seu cinturão moderno, semelhante a outros que vimos por aqui, mas o centro histórico é espetacular, com suas ruelas curvas e confluentes, prédios de diversas eras, igrejas para todos os santos e gostos – aparentemente tudo igual a outras paragens deste país. Mas é tudo muito lindo e limpo. O que se vê nas ruas chama atenção, se não pelas livrarias, museus e igrejas, também pelos simpáticos restaurantes e cafés que abundam nas vielas estreitas. Podemos dizer que nesta visita a Guimarães tivemos a companhia próxima (embora situada no Brasil naquele momento) de nossa querida Maria Iris, não por acaso de Guimarães. Um dia queremos estar ali de novo, na especial companhia dela, que iria adorar esta cidade. Quando estive em Guimarães, de outra feita, anotei o que li em um poster da Tasca Nicolino, um dos tais restaurantes acolhedores, com um envolvente proprietário (ou gerente…) à porta: quem deita tacão em bota / vende vinho ou bacalhau / meter o nariz não pode / na função de Nicolau, versinho nos diz bem do clima da cidade: Quem seria este Nicolau? Imagino que na nossa versão tropical isso poderia ser dito como: cada macaco no seu galho; ou na versão espanhola: pastelero a sus pasteles… Que cada um cuide do que realmente sabe fazer – e o faça bem feito!
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GENTE QUE CONOSCO ESTEVE
A viagem aqui comentada foi programada como uma viagem a dois, Keta e Flavio, vivendo prazerosamente uma retomada amorosa, após 12 anos de afastamento. Assim, tudo o que queríamos – e tivemos – foi a oportunidade de estarmos juntos 24 horas por dia, sete dias por semana, fosse qual fosse o lugar, em Braga, em Lisboa, em Marseille; no apartamento de Eduardo e Célia, na casa de Patrícia ou em quartos de hotéis. E isso pôde ser realizado de forma completa, com todas as benesses e nenhum atrapalho.
Sem dúvida parece estranho, em tais circunstâncias, falar de gente que esteve conosco, mas é preciso primeiro lembrar que foram realmente poucas pessoas, que mesmo assim nos ocuparam apenas uma parcela do tempo disponível e que, por extensão, alguns que apenas estiveram junto a nós pelas lembranças que nos provocaram. Entendido isso, vamos em frente.
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Eduardo Guerra é meu amigo desde o início dos anos 60. Com pequena diferença de Mauro Márcio de Oliveira é o amigo mais antigo que tenho. Célia eu conheci bem depois, mas o bastante para incluí-la aqui com todas as honras.
Este casal foi lembrado por nós por quase todo o tempo em Braga, por termos nos hospedado em seu apartamento no Largo das Fontainhas. Pensando bem, ficar hospedado na casa de alguém é sempre um ato de intimidade, na ausência dos anfitriões, então, tal aspecto se redobra. Com efeito, a gente é atravessado por uma curiosidade juvenil, ao poder ver como são arrumadas as gavetas que tivemos que abrir, os armários onde guardamos algumas roupas nossas, a dispensa que nos foi colocada à disposição. Mas mais do que isso, poder sentir em tal gesto a confiança e a amizade que tais pessoas nos emprestam, em outra palavra, a generosidade disso.
Sobre Eduardo, lembro, na minha infância, que minha avó Dodora frequentemente fazia menção a um verdadeiro surto de nascimentos ocorridos, na família ou entre gente amiga, no ano em que eu nasci, 1948. Fizeram parte disso dois primos queridos: Francisco Marcos Castilho Santos e Euridice Goulart Naves, por parte de mãe e de pai, respectivamente, além de um terceiro, Eduardo, sobrinho de minha tia Marita. Este vivia em Acesita, no atual Vale do Aço, onde seu pai, Pedro Guerra era médico e era dos mais citados, dada a proximidade familiar, sendo sobrinho “torto” também de meu tio Virgílio, de quem eu era muito próximo.
Nas férias de 1961 ou 62, que fui passar em Acesita, pude finalmente conhecer a tal figura coetânea. E fomos de imediato com a cara um do outro. Ele era o único filho homem do casal Pedro e Jenny, tendo duas irmãs mais velhas. Careca era o nome familiar pelo qual era conhecido desde a infância, devido a sua testa longa, e a justificativa para tal apelido, dado pelo seu próprio pai, só fez aumentar com a idade.
Dos primeiros pileques e dos primeiros namoricos é difícil esquecer… E naquelas férias, e também nas que vieram na sequência, ali em Acesita, este foi um exercício contumaz nosso. Nos namoricos, talvez não fôssemos tão solidários, pois as garotas disponíveis eram todas suas primas – e ele talvez preferisse algo menos consanguíneo.
Apesar de ele ter feito o ginásio e o curso colegial em Belo Horizonte, na mesma época do que eu, mas em colégios separados, neste período raramente nos encontramos. Aliás, nos perdemos de vista durante muitos anos. Quando vim morar em Brasília, em 1991, pude reencontrá-lo, agora anestesista e liderança médica no DF.
Em rápidas palavras, Eduardo Pinheiro Guerra é um tipo bonachão de quem é uma delícia ser amigo. Tem histórias e piadas para todas as situações, seja de forma presencial ou pela internet. Entre outras coisas, me impressiona muito sua capacidade empreendedora e voltada para coisas coletivas, o que associa com uma vida pessoal plena do afeto da família e dos amigos. Além de presidente do Conselho Regional de Medicina, foi também diretor de um setor do Ministério da Saúde e Sub Secretário de Saúde do DF. Como se não bastasse, formou-se também em Direito e, depois de aposentado, ainda arranjou tempo para um cargo de assessoria no Ministério Público, além da presidência da Associação dos Produtores do Lago Oeste, onde tem sítio e casa. Mas acima de tudo, Careca tem sido sempre um amigo fiel e presente. Tenho com ele muito mais proximidade do que tenho com meus primos Guerra Andrade, tão chegados a ele quanto a mim.
Célia é o nome da mulher por trás de tal sujeito. À primeira vista – mas só em tal circunstância – pode parecer um tanto sisuda, mas que logo se abranda diante de uma boa conversa, numa boa mesa, numa viagem de descoberta, como fizermos juntos em outra ocasião que estive com eles em Braga. Amizade que pegou por contágio, de forma irreversível. Compartilha com Eduardo a bonomia perante os amigos e outros prazeres da vida, mas fica mais distante dele naquela história de “piadas para todas as situações”, pois é mais discreta e contida, embora não perca também a oportunidade quando alguma coisa anedótica apareça pronta no horizonte.
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Através deste par de amigos tivemos oportunidade de nos aproximar de Helvécio e Luzia, atualmente residentes em Lisboa. Eu já o conhecia, do Ministério da Saúde, nos anos 90, tendo depois perdido o contato. Mas na ocasião, tive uma sintonia tão grande com ele, dada a interação próxima que tínhamos por razões funcionais, que um dia deixei escapar que tinha dele muito boas lembranças, desde os tempos da Faculdade de Medicina da UFMG. Ele apenas me olhou espantado, para arrematar em seguida: mas eu nunca estudei lá, me formei em Brasília… Mas o fez com delicadeza e eu próprio me dei conta rapidamente que o que me levara a fazer tal declaração menos refletida fora o fato, positivo sem dúvida, de que ele era uma daquelas pessoas que a gente parece ter conhecido desde sempre.
Luzia sua companheira há muitos anos é outra pessoa notável: alegre, comunicativa e receptiva – uma associação de gente bem à altura um do outro. Ambos são médicos, aposentados da SES-DF, com passagens profissionais inclusive fora do Brasil e resolveram, por assim dizer, comemorar sua aposentadoria mudando de vida e de país. Em Lisboa nos receberam com plenas honrarias, chegando ao cúmulo da gentileza de nos acompanhar até mesmo na fila da Loja do Cidadão onde Keta fora buscar sua nova carteira de portuguesa. E além disso nos ofereceram uma deliciosa recepção em seu gostoso apartamento junto à Estação do Oriente, com magnífica vista para o rio Tejo e a Ponte Vasco da Gama, com o acréscimo de terem ainda levado a gente para um belo passeio por Cascais e Cabo da Roca.
Em Lisboa e Braga, como se vê, tivemos bons padrinhos, não morremos pagãos.
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Patrícia, melhor dizendo Patriciá, a Dama de Marseille, já era amiga de Keta há alguns anos – e agora é minha amiga também. Ela é da turma da Terapia Comunitária, uma gente cheia de disposição e amor ao próximo, com ramificações no Brasil, na França e em outros países do mundo. Pessoas que enriquecem afetivamente aqueles que deles se aproximam. De Patriciá o que posso dizer com poucas palavras é que ela possui e nos transfere uma energia transbordante. Pequena na estatura, mas exuberante nos gestos e na voz, ela parece de fato uma usina em atividade permanente, que nunca esgota suas reservas de combustível. Foi um prazer estar em seu pequeno e charmoso apartamento em Marseille, que em outros tempos teria sido pouco mais que rés de chaussé sem maior personalidade, mas que agora recebe e multiplica os influxos que a dona lhe transmite. Além da recepção em sua casa, com direito a nos nutrir com excelentes comidas receitas francesas e mediterrâneas, ainda tivemos – particularmente eu tive – a oportunidade imperdível de ter sido apresentado a linda cidade de Marseille através de seu olhar, de suas dicas. Que Nôtre Dame de la Garde, aos pés de cujo santuário ela habita, lhe proteja e lhe guarde a simpatia e o espírito solidário que fazem parte de seu feitio, tão marcante.
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Maria Iris Guimarães não viajou conosco, mas se o tivesse feito não só seria muito bem acolhida, como somaria à nossa jornada a força de sua simpatia e de sua alegria de vier. Por que incluí-la aqui? A resposta é simples, ela esteve conosco a cada dia, em longas conversas com Keta, que fazia questão de lhe contar alguma proeza do dia ou simplesmente ligar para saber notícias (ou vice versa), E assim Iris se tornou coparticipante de tudo que fizemos em Portugal ou na França.
Eu já gostava de Maria Iris desde outros tempos e bem escreveria linhas e mais linhas para homenageá-la aqui, mas deixo para sua amiga Keta tal prerrogativa, ou pelo menos para iniciar a merecida louvação…
Como eu, Henriqueta, definiria esta amizade? Se fosse uma receita de bolo os principais ingredientes seriam: cuidado mútuo, clareza na comunicação, sem constrangimento em falar o que pensa, opiniões e visão justa, não só entre nós, mas também com pessoas, situações e contextos. Falando claro: mesmo que uma de nós duas venha se queixar de alguém, a outra procura analisar reconhecendo os vários lados da questão. Postura difícil, com certeza, mas para nós o ingrediente fundamental de tal equação é dado pela amizade e estímulo ao crescimento do outro. Tenho profunda gratidão aos 18 anos da presença dessa irmã espiritual em minha vida.
Mas eu, Flavio, quero acrescentar minha parte também. Para resumir em uma frase: tudo o que eu queria na vida é ter amigos assim. Os que tenho ainda são poucos. Mas considero uma dádiva, uma das grandes oferendas que esta relação com Keta tem me trazido, ter agora, ao meu alcance e com ampla retribuição afetiva, uma pessoa como esta Maria Iris. E para falar dela não posso deixar de incluir aqui a figura também especial de Luis Gonzaga, o Lula, seu companheiro. Para dizer sucintamente, mas de maneira completa, são pessoas essencialmente boas. E assim quero definir um misto de simpatia pessoal, solidariedade, gentileza, leveza, generosidade, sintonia política e social – tudo o que constrói uma boa amizade.
Não tivemos Iris e Luis em nosso giro europeu, mas já estamos programando e contando com eles em um amplo périplo pelas Minas e pelos Gerais, a ser realizado muito em breve.
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Daniela, minha filha, foi titular absoluta do Departamento-de-Apoio-em-todas-as circunstâncias de nossa viagem, Com efeito, o que seria de nós não fossem seus préstimos em fazer contatos bancários diversos quando tivemos, eu e Keta, nossos cartões roubados em Marseille e Paris. Pensamos até em desistir de continuar a viagem, mas com a ajuda de Daniela desistimos de desistir. Ela é minha filha mais velha e me veio por encomenda certeira, em 1974. Guardo a especial lembrança da emoção que senti no momento e depois, já distante por um tempo, já em Uberlândia, onde iniciava nova vida profissional junto com a mãe dela, quando embevecido contemplava a todo momento a única imagem disponível eu levei comigo: um simples slide dela, com poucas horas de vida, rostinho ainda marcado pelo fórceps a que lhe sujeitaram na Maternidade.
Adolescente e jovem rebelde, mal humorada e crítica, como ninguém, porém sensível e capaz de se derreter por algo tocante – ou por nada demais. Aliás, aos 47 anos não perdeu a qualidade de ser crítica – e chorona. Encontrou o amor de sua vida na pessoa de Etéocles, o filho de Édipo. Mas isso não se deu na Grécia, tratando-se apenas de encontro guiado pelo Rio São Francisco, unindo sertões e veredas de Minas Gerais á Mata de Pernambuco. De tal confluência veio o Chico, que alegra nossa existência hoje. E por tais caminhos a (ex) mal-humorada criatura se tornou carnavalesca, desfilando anualmente no bloco da Sala da Justiça de Olinda, vestida de Princesa Lea, de Olivia Palito e de sei lá o quê mais.
Quem acha que as pessoas não mudam, precisa conhecer Daniela.
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No apartamento de Eduardo e Célia, na Praça das Fontainhas, em Braga, aos pés da Igreja barroca de São Vicente, passamos quase dois meses, buscando conhecer, mesmo ali em local tão urbano, aquele Portugal profundo do qual já falei. E ele nos veio, insuspeitadamente, através da pessoa de uma senhorinha que encontrávamos na varandinha do apartamento rés do chão (R/C), como se escreve por lá, em nosso prédio. Ali estava sempre, nas primeiras horas da manhã e nunca além disso, Dona Ana, com quem logo simpatizei, dada sua semelhança com minha avó paterna, Ermelinda. Mas foi Keta, com sua proverbial facilidade para se aproximar de pessoas, que a ela se chegou. Primeiro com um bom dia, como é regulamentar, depois com conversas mais substanciosas. Eu não pude participar de forma completa, pois Dona Ana tinha a propriedade de falar de forma quase inaudível, para mim pelo menos. Mas Keta, associando um bom ouvido com forte empatia pelas pessoas em geral, com ela se comunicava perfeitamente. E logo vimos que era uma pessoa solitária, morando ali apenas na companhia de um filho, aparentemente sem mais ninguém por perto. O apartamento, muito modesto, parece que destinado antes ao porteiro do prédio, tinha as janelas fechadas, o tempo todo. A tal varandinha parecia não ter sido varrida ao longo do atual século. Dois vasos de plantas ali presentes, estavam em estado lamentável. Em uma mesinha, ao lado da cadeira onde Dona Ana se sentava, duas revistas já desfolhadas e manchadas pelas intempéries. Enfim, um quadro de pobreza e abandono, que imaginávamos ser impossível naquele prédio de classe média.
Um dia, Keta resolveu presenteá-la com um buquê de tulipas, que se vendem nos supermercados e são muito vistosas, uma marca da aproximação da primavera no hemisfério norte. Como Dona Ana já havia se retirado de seu posto de observação, eis que já ia alta a manhã, tivemos que entregar o presente pela porta da frente. Tocada a campainha, depois de alguns minutos de espera, nos apareceu o filho, uma figura estranha, talvez alcoólico ou algo assim, desconfiadíssimo com a nossa presença, como se naquela porta jamais tivesse aparecido alguém, ainda mais para entregar um ramo de flores. Com muito custo Keta se fez entender a respeito da intenção da visita, melhor dizendo, da entrega das tulipas. O ermitão aos poucos foi mostrando marcas de boa vontade e simpatia, mas não chamou a mãe, que permaneceu imersa na escuridão do apartamento. Deixamos as flores com ele mesmo, que num arroubo de gratidão nos disse que se precisássemos, podíamos contar com ele, “mesmo para as coisas mais difíceis”, acrescentou. Quais seriam tais coisas “difíceis” e qual seria o limite daquela possível ajuda? Ficamos sem saber. Como também continuamos a ignorar o real modo de vida daquelas pessoas.
O ser humano é, de fato, muito misterioso…
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Os motoristas de taxi se dividem em duas categorias: aqueles que não deixam lembranças, de nenhuma espécie, nem boas nem más, sendo simplesmente esquecidos depois de uma corrida e aqueles que marcam o contato que tivemos com eles, para o bem ou para o mal. No caso presente, uma lembrança boa, até certo ponto, pelo menos.
Em Fátima, já na parte final da tarde e tendo visto a esplanada central e principal da cidade religiosa, cabia ainda uma visita a Aljustrel, a aldeia vizinha onde os famosos pastorinhos viveram e tiveram visões. Não esperávamos encontrar coisa apreciável ali, mas a visita se fazia necessária, para darmos por completado o roteiro.
E assim chamamos um taxi, que logo compareceu sob a forma de um Mercedes reluzente, dos anos 90, mas inteiro como quê. O carro, contudo, não era a parte principal: seu motorista se destacou mais do que a própria viatura.
Era um tipo, para dizer o mínimo, diferente do português médio. Alto e moreno tinha como marca principal a cabeleira definitivamente afro. Cinquenta anos, talvez. Muito comunicativo foi logo nos dando informações sobre o lugar, colocando certa ênfase crítica diante do fato de que ali todo mundo vivia da religião, como se não fosse coisa lá muito digna. Mas longe dele qualquer heresia. No caminho para a aldeia, três km no máximo do centro de Fátima, fez questão de nos informar e dar detalhes sobre cada parte do trajeto, por exemplo, dos pontos da via crucis à margem da estrada, do monumento na Cova da Iria, que marca uma das aparições da Virgem, das casas das famílias dos pastores, dos locais onde a visão se repetiu etc. A certa altura quis até nos apresentar uma senhorinha, que era “sobrinha de Lucia”, a mais velha das crianças, aquela que sobreviveu reclusa por muitos anos a seus dois primos também videntes. Declinamos, já que a tal sobrinha era uma anciã que mal se aguentava sentada numa cadeira e assim achamos que era melhor poupá-la de uma interação com dois meros curiosos, ou de pelo menos um que estava ali realmente por nada mais do que isso: este que escreve.
O nome da figura era João Paulo, nada mais apropriado para um motorista de taxi em um lugar como aquele. Revelou-nos que havia morado na França, próximo a Paris, por 20 anos. Imaginamos que o Mercedes talvez fosse fruto de economias resultantes de algum trabalho duro por lá, o que de resto seria uma história bem frequente em Portugal, particularmente na geração daquele homem. Surpreendeu-nos com suas observações sobre a geração eólica de energia (Fátima, como o restante da região está semeada daquelas turbinas), defendendo as vantagens da modalidade fotovoltaica em detrimento da eólica, recheando seus argumentos com dados de kw gerados por unidade de tempo e coisas assim. No quesito religioso não era menos informado e fez questão de nos mostrar até as mesmas pedras do muro que aparecem em fotos dos pastorinhos 100 anos atrás. Se ofereceu como fotógrafo, impedindo gentilmente os nossos habituais selfies e se revelou criativo nas poses que nos solicitava, colocando-se, ele próprio, em posições peculiares, ora agachando-se, ora subindo em árvores, saltitando à nossa frente como um adolescente que já não era. Demos toda atenção a ele e pagamos sem reclamar os quase trinta Euros que nos cobrou pelo passeio.
Só evitamos aprofundar a conversa quando ele fez considerações sobre a atual situação política do Brasil (da qual parecia estar até bem informado), mostrando certa inclinação em defender o atual presidente. Para nós já era o bastante, preferimos levar dali só as boas lembranças desse João Paulo, primeiro e único.
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Para encerrar uma historinha bem banal. Keta reservou acomodação em Lisboa, para dias finais, através do aplicativo Air-Bnb. Através da web ele interagiu, em inglês, com um certo Abu, que por algum motivo imaginei que fosse algum ricaço estrangeiro dono de patrimônio, que veio fazer render seus Euros em Portugal. Logo o apelidei, entre nós, de Senhor Abu, um nome que sintonizava com a imagem que fazia dele.
Mas em nossa chegada ao cômodo alugado, o Sr. Abu apareceu, em carne e osso, e não passava de um cara de no máximo 30 anos, formalmente cortês, tipo jovem manager e totalmente jejuno no idioma local. Nos tratou com profissionalismo, mas ao mesmo tempo mostrando uma pressa de executivo que não dava espaço a indagações de qualquer natureza. Mas conseguimos saber que ele era, na verdade, oriundo de Bangladesh, um Bengalí, portanto. E nada mais.
Moral da história: estivemos com tais bengalís em várias situações em Portugal, seja em uma pequena loja de importados em Braga, em restaurantes da Baixa de Lisboa, ou em uma tenda de souvenirs na Alfama. Nem todos bem sucedidos como o Senhor Abu, de certo. Aliás, boa parte deles deve passar por maus momentos em um país estranho, sem conhecer a língua, trabalhando sabe-se lá em quais condições. Eles são o retrato perfeito do novo mundo globalizado em que vivemos. Portugal parece ser uma meca para eles.
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CELEBRAÇÕES
Já disse que minha espiritualidade é objeto de dúvida, pelo menos de minha parte. Mas respeito a espiritualidade dos outros e no caso de Keta admiro especialmente o seu modo de encarar e praticar tal atributo, sem radicalismo, mas de uma maneira profunda e realmente repleta de vivência. Neste quesito, aliás, me vi levado a uma prática que alguém que nos observasse de fora me julgaria um ser espiritualizado tanto quanto minha companheira. Mas não posso negar que pelo menos tento ser alguém assim. A história é a seguinte: na primeira igreja que entramos em Braga (onde não faltam templos), a chamada Congregados, logo no dia seguinte à nossa chegada, tendo sido dezenas no final, Keta me convidou de modo implícito a fazermos juntos uma reflexão, bem acomodados num dos bancos da nave principal. Pediu para eu pensar uma palavra, uma coisa boa que dissesse respeito ao que já vivíamos juntos havia tantos meses. Creio que neste momento a palavra que me veio à cabeça foi sintonia. E ali ficamos por um bom tempo, de mãos dadas e em silêncio, a refletir sobre o significado de tal termo, particularmente em nossas vidas, desde que havíamos nos unido. Foi um momento marcante para mim, assim pego de surpresa, mas logo aderindo de corpo e alma à proposta. E foi assim que repetimos isso bem uma dúzia de vezes, em igrejas diferentes, em Braga, Ponte de Lima, Touguinhó, Lisboa, Guimarães, Marseille, Barcelos, e outros lugares, com temas que variavam a cada celebração dessas: União, Transcendência, Respeito, Comunhão, Compromisso, Mistério, Devoção, Sacralidade, Amor, Pureza, Confiança, “Transgeracionalidadae” e assim por diante. Na pequena igreja de São Tiago, dita da Cividade, em Braga tivemos por companhia um grupo de três pessoas, jovens, que ali faziam também um ritual de reverência ao Sagrado. Uma delas ao violão, apenas dedilhado suave e harmonicamente, os demais em atitude genuflexa perante o altar. Uma cena realmente bonita e cativante, em alta sintonia com a nossa celebração, transcorrida de forma ainda mais transcendental diante de tais companheiros. O ponto alto dessas celebrações foi em Touguinhó, na Igreja de Santo António, onde o pai de Keta foi batizado. Ali entramos carregados de amor mútuo e pela humanidade e conseguimos sair ainda mais elevados em nossos corações e mentes. Esta viagem, sem dúvida, teria valido a pena só por estes momentos passados em ascese recíproca, diante dos mistérios do Sagrado. Para consagrar a União de das pessoas acredito que isso valeria muito mais do que muita cerimônia pública, com padre, padrinhos, convidados, champagne etc e tal!
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LINHA DO TEMPO
18 de janeiro. Começa a Viagem. Encontro e celebrações. Qual o problema de uma longa espera num aeroporto frio se ao final vai se ter apenas e tão somente o que se deseja? E finalmente alguém chega e a magia se restabelece. E tudo acontece como se da última vez até agora tivessem passado apenas alguns minutos. Tempo acelerado como num filme. Aeroporto, metrô, estação do Oriente. A rosa dos ventos aponta qualquer direção – e todas elas são promissoras. O trem, pendular, é o balanço agora entre o bom e o melhor. Lisboa fica para trás e vamos engolindo distâncias. Primeiro o Tejo, depois o Mar, logo ali, mas não são estes os portos que buscamos. No final da viagem, um ninho. Braga é uma sinfonia barroca. Ao som dos sinos coisas belas marcam o reencontro. Primeira celebração na Igreja dos Congregados, a palavra da vez é: União. O que poderia ser mais antigo e essencial do que a Sé de Braga senão uma mulher e um homem se querendo? Epifania na pequena Igreja de São Tiago da Cividade. Novas palavras, novos votos, novas certezas. E de repente, na Taverna do Segredo, via whatsapp, a lista da família se enriquece e corações pulsam mensagens. Termas romanas, como isso aqui viu coisas! Com o testemunho das pedras esculpidas no sub solo de uma simples lanchonete, que coisa, hein? Aqui as pedras contam histórias. Na praça que mostra o acúmulo de três eras, medieval, barroca e contemporânea, se celebra a verdadeira modernidade, que é a do respeito a quem é cidadão. Sábado no Santuário de Bom Jesus do Monte, um primeiro contato com a Fé que se não remove montanhas, é capaz de erguer obras tão descomunais. Apenas um prenúncio do que virá. Domingo em Ponte de Lima é o reencontro com um lugar onde algo me diz que minha essência já andou por aqui. E salve o bom bacalhau dos Sabores do Lima. E não poderia faltar nova celebração na Igrejinha de Santo António, ponte em frente, onde gloriosa e amorosamente fui levado ao Altar. E segue a sinfonia barroca, Igreja de Santa Cruz, Senhora da Torre, rua do Anjo, Misericórdia, Palácio do Raio, Senhora Branca, São Vicente, Asilo de São José, Pópulo. Museu de Arqueologia de Braga: isso aqui começou bem antes do que parece, romanos são até modernos aqui. E bimbalham os sinos. Barcelos: este lugar é bem mais que sua feira e seu Galo. Museu da Cerâmica, Castelo dos Condes, Sé e Teatro Gil Vicente são apenas alguns exemplares de tudo que estra cidade contém. E não podemos deixar nossa celebração passar, desta vez na Igreja de Bom Jesus da Cruz, com seu raio de luz peculiar. Para fechar o ciclo, que a França nos espera, Santuário do Sameiro, em Braga. Retórica do exagero, agora em formato neoclássico, não mais barroco – variar é preciso. Já se passaram 12 dias desde a nossa chegada é hora de seguir em frente.
30 de janeiro: na virada do mês, rumo a Marseille, via Porto. Nesta cidade sempre é preciso voltar. Poucas horas de hotel e apenas a oportunidade de apreciar as maravilhas em azulejo: estação de São Bento, por onde se chega de Braga e Igreja de Sta. Catarina, com suas fachadas fronteira e lateral totalmente cobertas por eles. Logo embarcaremos, mas antes é preciso se submeter ao terrível ritual low-cost (& low-comforrt) da companhia Ryanair: aqui a gente é personagem de um 1984 ou de uma canção de Zé Ramalho. Boas vindas em Marseille, nos deseja Patricia, porém acompanhada do furioso Mistral. Não dava para ter vindo sozinha? Mas pelo menos travamos conhecimento com tal personagem mediterrâneo, soprado desde o Polo e amplificado pelo vale do Rhône. Marseille conjuga modernidade e antiguidade milenar, que conheceu domínios de fenícios, gregos, romanos e africanos. Gostei especialmente da natureza, encostas selvagens de pedreiras brancas e um mar azul mineral de doer os olhos. Terapia comunitária, só gente boa: Patricia e Jean Marc bem o comprovam. Além de minha mulher é claro. Boa maneira de começar uma estadia em Marseille é um bom e tardio café da manhã com pão francês – sim, mas do legítimo, nacional! Nem tudo é perfeito: além do Mistral, greve de lixeiros. Lixo pelas ruas formando montanhas mal cheirosas. Em matéria de lixo não recolhido a humanidade se iguala, acima e abaixo do Equador. Aqui se sabe o Corão e as mulheres se cobrem, como quer Allah. O trânsito é loucura, com buzinaço permanente e carros que só respeitam o sinal verde para pedestres se não estiver ninguém de fato atravessando a rua. Encontro com Mani, personagem de minha infância, prima tão querida. Seu marido, Bernard, francês até os ossos, não lhe fica atrás. Gente tão boa, que nos recebe com honras e carinho em seu apartamento marselhês. Aos pés de Notre Dame de la Garde passamos os dias em Marseille. Andar por lá é bom, mas só quando o Mistral relaxa. Tive meu chapéu arrancado e só com muito custo o retirei da copa de uma árvore. Clinique St. Barnabé e uma turma de Terapia Comunitária, boas lembranças. Andar no entorno da clínica é conhecer melhor a paisagem agreste de Marseille. Nem tudo é perfeito: além do Mistral impiedoso, roubaram meu celular. Mas valeram os passeios pela velha cidade, com Mani ou sozinho; com Keta, agora en train de travailler, menos. Ela trabalhando e eu batendo pernas pela cidade. E de repente me arisco em passeios solo: ilhas: Chateau D’If e Port Friouli. Belo é o mar, mas as paisagens das ilhas são um tanto desoladas. Mercado dos magrebinos visto apenas de relance: fiquei me devendo. Em Marseille a patisserie francesa foi bem apreciada, pena que sou diabético. E vamos a Paris!
12 de fevereiro: rumo à Cidade Luz. O trem bala, TGV é inesquecível. Loucura aquele desembarque na Gare de Lyon, mais de mil pessoas saltando do TGV a um só tempo. E todas elas mergulhando nas escadarias do metrô, idem. Viver aqui é para os fortes. Mais dissabores: cartões de Keta roubados, mas o pior ainda viria nas quatro horas passadas na Gendarmerie da esquina. Não era isso aqui um país civilizado? Será que fomos enganados? A Torre Eiffel vista de nossa janela do hotel na rue Gambrone: não tem preço, principalmente se a descobrimos, de repente, no meio da noite. Grande susto com os preços em Paris, principalmente de comidas. Comprar em supermercado e levar para o quarto alivia, mas não muito. Mas não perdemos tempo: Montmartre, Rive Seine, La Tour, Quartier Latin, Notre Dame. Louvre, D’Orsay, Tuileries, L’Arc du Triomph: tudo que se tem direito. Encantadora igreja de St. Jean Baptiste em Montmartre, uma descoberta, ninguém falou dela para nós. Entrar na fila do Louvre? Melhor ver a Mona Lisa na internet. Impressionante Catedral Ortodoxa russo bizantina financiada pelo Kremlin: um novo mundo se anuncia, mas não se sabe se será melhor que o atual, já tão ruim. Museu da Resistência: aí sim, a gente sente orgulho dos feitos humanos, ao mesmo tempo que se horroriza por tudo ter acontecido há tão pouco tempo. Uma serpente ainda a chocar ovos, talvez.
16 de fevereiro: de Paris ao Porto e depois Braga. Tudo vale a pena se a alma não é pequena. Aqui estamos de volta ao ninho, para ouvir de novo os nossos sinos e retomar os circuitos a pé pela cidade. Agora Bom Jesus do Monte de pé ao chão. E vamos girando: Vila do Conde, Famalicão, Trofa e Touguinhó. Ter ido a Touguinhó foi emoção pura, aquela Igreja de Santo António não se descreve com palavras. As grandes aventuras e erratas pelas estradas portuguesas. A Loja do Cidadão, em Braga, é uma lição de respeito ao dito cujo. Guimarães e Amarante, vilas imperdíveis, de se voltar muitas vezes. Para não falar de Citânia de Briteiros e dos montanhosos arredores de Braga. Bom programa é se perder em Braga, por exemplo, na caminhada que fiz ao logo do rio Este, tendo ali perdido e Norte e a orientação, completamente. E Ikea nunca mais! Chamem Teseu para tal labirinto.
1º de março, na velha Lisboa. Tanta coisa para ver e rever. Pela Liberdade subindo descendo muitas vezes. No dia Internacional da Mulher os posters com mulheres notáveis de todos os tempos e todas as partes do mundo. Clarice Lispector estava lá, para orgulho de nossa autoestima, ultimamente tão combalida. Nada como um bacalhau no Rossio, para fazer a sintonia fina com a cidade (mas sinceramente já comi melhores). Ainda no capítulo gastrô: o sandes de Leitão no mercado de Saldanha não chega aos pés de outro que já comi, há três anos, no mesmo local. Acontece… O documento português de Keta finalmente recuperado na Loja do Cidadão em Lisboa, nas agradáveis companhias de Luzia e Helvécio. Gente danada de boa! E toca a passear: Fundação Gulbenkian, Mãe da Água das Amoreiras, Oceanário, Convento do Carmo, Chiado, Jerônimos, Museu do Oriente, Sé, Alfama, Baixa de Lisboa, Terreiro do Paço, Praça do Comércio, Casa de Saramago, Mercado da Ribeira, Basílica da Estrela. Mais haveria se não fora para tantas belezas tão curto o tempo… E mais Cascais e Cabo da Roca com os prezadíssimos e já amigos desde sempre Luzia e Helvécio. E para encerrar, Fátima, Óbidos, Mafra. Valeu a pena? Claro! Até porque nos vimos aprovados no teste da convivência, sempre serena e amorosa. Agora é tocar pra frente, rumo ao Futuro!
EM BOA COMPANHIA
Como disse no começo e para terminar insisto: uma boa companhia é o requisito mais essencial de uma boa viagem. E fechado este circuito por Portugal e França, reitero que tal aspecto me foi (e creio que para ela também) preenchido integralmente. Não posso deixar estas linhas sem registrar mais impressões sobre a pessoa que esteve todo o tempo a meu lado nesta viagem. Doce presença, além do mais, inteligente, cuidadosa, bem humorada, curiosa, solidária, prestativa, generosa e tantos adjetivos mais. Para resumir numa palavra só, generosidade creio que seja sua qualidade mais notável e contagiante. Da outra vez que nos relacionamos – e talvez na visão de outras pessoas ainda seja assim – eu admito que cometi o erro de ver esta mulher como uma pessoa quase santificada, tantas qualidades eu via nela. Mas hoje a vejo diferente: ela é apenas uma mulher, just like a woman, aliás, a minha Mulher. E recorro a meu Poeta Bob Dylan uma definição para alguém assim: she takes just like a woman, yes,she does. She makes love just like a woman, yes, she does. And she aches just like a woman. But she breaks just like a little girl.
Henriqueta Camaroti, minha Keta, minha mulher tão firme e ao mesmo tempo menininha em busca ávida de carinho – do meu carinho! Não canso de me creditar mérito pela persistência em ter superado o passado e ter ido busca-la de novo. Eu quero fazer tudo para merecer esta pessoa amorosa e essencial, mulher completa que quero ter comigo pelo resto de minha vida. Isso ainda é pouco para descrevê-la em toda sua essência, mas é bem isso que dou conta de enunciar e é o que ela realmente representa para mim.
E vamos já começar a programar muitas outras viagens, com certeza! O Futuro nos espera!
*** FIM ***