A primeira delas é personagem da minha infância. Convivi com ela pelo menos até os dez anos de idade. Era uma daquelas pobres garotas nascidas na roça, negra ainda por cima, que alguma pessoa da cidade, supostamente bondosa, ou caridosa, pegava “para criar”. Tal foi o caso dela, sobre o qual minha mãe, que via em tal atitude algo muito honroso para si, não se furtava a dizer algumas vezes: “sei que me dá muito trabalho criar uma menina que nem é da família, mas é o que posso fazer por gente tão pobre”. E por falar em trabalho, vale a pena lembrar a quem isso afetava de verdade. Ela acordava antes de nós todos, para preparar o Toddy matinal, passar margarina nas fatias de pão, fiscalizar a nossa escovação de dentes, nos aprontar para a escola ou nos deixar prontos para começar o dia com roupas trocadas, fraldas retiradas, boca limpa. Não era pouca coisa, éramos quatro na ocasião, com disposições e manias diferentes, que às vezes faziam com que tais operações matutinas adquirissem uma morosidade enorme, a desafiar a paciência de qualquer um. Mas não a dela, que o máximo que fazia contra nós era ameaçar contar tais novidades para nossa mãe, sem concretizar, todavia, tal disposição a maioria das vezes.
No máximo, fazia um gesto imitando uma pinça, entre o polegar e o indicador, para dizer que algum de nós estaria merecendo um dos tais “fininhos”, que era o nome eufemístico que em casa se dava à aplicação de um bom beliscão. Nunca concretizou tal ameaça, apenas repetindo o que via minha mãe fazer, só que no caso desta a ameaça às vezes se transformava em realidade. Para falar a verdade, seu gesto mais agressivo com a gente era o de nos acordar, nas manhãs frias de nossa cidade, nos tocando no pescoço, no peito ou na barriga, com as mãos geladas pelo contato com a água da pia ou do tanque, por efeito de suas tarefas diárias que já tinham se iniciado naquele momento.
Tenho certeza que nos queria bem, apesar de tudo. Na verdade, tudo que me lembro era da predominância de sua defesa, quase sempre silenciosa, daquilo que fazíamos de incorreto na ausência dos pais. Neste quesito, penso que ela nos protegia mais do que nossa própria mãe, que não raramente nos entregava à punição mais violenta por parte de nosso pai, diante de nossas teimosias de garotos.
Morou em nossa casa por uns dez anos. Só lhe vimos a família, ou melhor, a mãe e algum irmão, por umas duas ou três vezes, por ocasião de alguma visita que talvez tivesse o caráter mais de reivindicação material a meus pais do que propriamente de afeto em relação a ela. Em tais ocasiões não era raro ouvir em casa algo como: “pois é, a gente tem despesas com a criação e ainda tem que dar dinheiro para esta gente”.
Para mim mãe – certamente refletindo um pensamento comum naquele tempo – sua missão no caso era bem outra, qual seja a de “criar” aquele ser, supostamente como uma espécie de filha adventícia, quem sabe em condições igualitárias com os demais membros da família, não como uma “criada”, em sentido mais vulgar.
Mas, por via das dúvidas, cabia a tal “cria’ (criança? criada?) se envolver diretamente com a lida da casa, seja preparando os filhos verdadeiros para começar o dia, seja lavando banheiros, arrumando a cozinha após as refeições, passando roupas, varrendo o chão, coisas que definitivamente não faziam parte das tarefas dos demais membros da tropa familiar. Era a rotina dela, que já chegava da escola, quando a frequentou, com tarefas diversas a executar.
Era uma pessoa alegre. Gostava de cantar e dançar, envolvendo em tais funções o grupo infantil. Me lembro de seus requebros, portando uma vassoura como se fosse uma guitarra, tentando reproduzir em língua estranha um hit da época: Oh Carol, de Neil Sedaka. Para um dos meus irmãos mais novos dedicava um tratamento especial, ouvido não sei onde e nem como, cantarolado com trejeitos carinhosos: Jôni is zi bói for mi!
Ela falava, às vezes, de seu lugar de origem, mas só quando solicitávamos maiores informações sobre isso. O assunto era alvo de grande curiosidade de nossa parte, não tanto da dela, ao que parecia. Sua família vivia no interior, não longe da terra natal de minha família, em uma Fazenda Florença, que logo se transformou em um lugar mítico para nós. Ali existiam as pessoas e os animais comuns em qualquer lugar rural, mas não deixava de ser estranho nunca serem mencionados os donos ou os patrões naquele lugar. Eles estavam quase ocultos em suas narrativas, povoadas que eram apenas por seus irmãos e demais familiares, talvez uma ou outra família em iguais condições de pobreza e marginalização. O ponto alto eram as festas religiosas, das quais tinha boas lembranças, que nos transmitia com entusiasmo. Tudo indicava que era apenas este o mundo que conhecera antes de ter vindo conviver conosco, de ser “criada” ao nosso lado. Mas sem dúvida isso nos enriquecia, ao trazer para perto da gente uma realidade tão estranha e diferente.
Em certo momento de nossa convivência começou a demonstrar marcas de rebeldia. Já não aceitava passivamente as ordens que recebia de minha mãe, nem aquelas que nós, seus coetâneos, pensávamos estar no direito de emitir. Era a adolescência chegando talvez, mas havia ali também, certamente, os sintomas de uma consciência que não queria mais aceitar aquela situação de ser apenas uma “criada” da família, tendo por trás disso um discurso de igualdade que na prática não se demonstrava.
De alguma forma entrou em contato com a família distante, não sabemos como. O certo é que em um domingo à tarde, quando estávamos na tradicional visita à casa de minha avó, a mãe e uma outra pessoa da família apareceram e depois de uma conversa rápida com minha mãe e minha avó, a levaram embora, para sempre.
Só me lembro de sua expressão quando minha mãe e minha avó lhe perguntaram o que mais poderia querer daquela família que até então a tinha “criado”, com tanta atenção e carinho. Ela já demonstrando uma postura nova, até então ignorada, para escândalo das duas inquisidoras, em alto e bom som, de forma proverbial, deixou claro: liberdade!
***
Depois dela, mas tendo ainda origem no grupo familiar da Fazenda Florença esteve conosco uma segunda criatura. Era pequena, meio corcunda, banguela, de idade indefinível, possivelmente chegando ou pouco passando dos quarenta anos. Era a timidez em pessoa, jamais encarava de frente seus interlocutores. Da mesma forma que suas manifestações afetivas, seus bens pessoais e seu vocabulário eram dos mais escassos.
Para tudo tinha um único comentário – que engraçado! – com entonação exclamativa discreta, de forma independente se o assunto fosse alegre ou triste. Quando minha família perdeu duas pessoas tragicamente em um mesmo acidente, foi apenas tal expressão que se conseguiu arrancar dela.
Mas justiça seja feita, com toda certeza não era má pessoa. Seu jeito de ser certamente tinha raízes em um contexto social de muita pobreza e privação, bem como de um ambiente familiar de pouquíssimo afeto, embora sobre este último conhecêssemos muito pouco ou quase nada.
Um dia chegou para trabalhar em nossa casa, indicada por uma tia, em momento de superação de uma fase difícil, quando nossa mãe se vira hospitalizada por alguns meses e o ambiente doméstico fora poluído pela presença de uma empregada jovem, porém de má catadura, a qual, esta sim, demonstrara o tempo todo nos odiar, ao mesmo tempo em que se fazia de eficiente e zelosa dos interesses domésticos junto a meu pai, que se não lhe dava asas, pelo menos a deixava muito à vontade para exercer seus malefícios. Esta foi uma tal de Dalva, que nós maldosamente, em referência a suas origens rurais toscas e seus modos caricaturais de caipira, denominávamos simplesmente Darva.
Qualquer uma que viesse para substituir tal figura nos seria melhor e foi assim que aquela mulher esquisita, preta, corcunda, desdentada, de escassas palavras, tímida de frente e mais ainda de perfil, pelo menos nos trouxe a sensação, logo confirmada, de não termos mais uma megera pela frente, ou pelo menos uma inimiga. Assim, tivemos com ela convivência distante, sem deixar de ser pacífica, sem que de alguma forma soubéssemos pela boca dela de qualquer informação sobre seu passado e seu ambiente familiar, bem como sobre o que ela pudesse pensar sobre nós e do mundo em geral.
Não era totalmente sozinha no mundo, mas não sabíamos exatamente a quem visitava costumeiramente nos finais de semana. O que nos era dado oferecido era ela se aprontando nos sábados, após ter arrumado meticulosamente a cozinha do almoço, enfiando sempre um mesmo vestido branco, folgado e comprido demais para seu corpo mirrado, rescendendo a sabonete barato, sair de nossa casa de forma discreta, para não dizer sub-reptícia, como se estivesse fugindo de alguém ou de alguma coisa, para somente retornar no domingo à noite, se recolhendo de igual modo no recesso de seu pequeno quarto sem janelas.
Detalhe curioso, até certo ponto hilário. Em suas saídas, além da roupa e do perfume, usava um outro adereço peculiar: uma vistosa dentadura, que lhe alterava profundamente as feições e até mesmo o fio de voz de que dispunha, coisa que definitivamente não fazia nos dias normais da semana. Quando encarada de frente em tais momentos chegava mesmo a sorrir, sempre meio descompassada com o momento.
Nessa época os três filhos homens mais velhos já entrávamos na adolescência e nossa mãe, certamente marcada por algum trauma familiar, se pôs a vigiar nossos modos de agir e nossas palavras, cuidando especialmente de que não andássemos pela casa em trajes que ela considerasse inapropriados ou até mesmo sem vestir uma camisa. Dispensável preocupação, pois tal criatura, de marcante sensaboria, tinha a capacidade interativa ou mesmo erótica de uma porta, ou de um poste onde se prendesse uma luminária inoperante. Nem ela nem nós correríamos qualquer risco.
Um dia, assim como chegou, partiu. Após o banho, o vestido branco e a colocação da dentadura, em um sábado qualquer, também seu dia de pagamento, juntou suas coisas que não formaram mais do que uma pequena trouxa e avisou a minha mãe que não voltaria mais. E assim o fez.
***
Um par de filhos gêmeos e mais uma menina, apenas dois anos mais velha. Casal engajado, ambos, no mercado de trabalho, era preciso ganhar a vida. Depois de várias tentativas infelizes, aquela mulher de rosto sofrido e tendo no rosto moreno algumas rugas precoces parecia reunir condições para ser uma babá de confiança. A maneira com que tomou nos braços, ao mesmo tempo, os dois gêmeos e balançando-os com ritmo fez sossegar uma choradeira que parecia não terminar nunca era sem dúvida um bom prenúncio.
Suas referências não eram nem boas nem más, mas simplesmente inexistentes. Trabalhara em algumas casas de família, mas numa época em que poucas pessoas tinham telefone, principalmente entre um público de classe média bem mais-ou-menos, com a agravante de ela não ter anotado nem o nome nem o endereço de tais patroas e patrões antecedentes. Assim, buscar este tipo de informação era tarefa ociosa, quase impossível mesmo.
O jeito era ir pela cara, pelo jeitão da pessoa – e foi assim que ela entrou na vida do casal e de sua trinca de infantes.
Não era bonita e nem arrumada e para falar a verdade parecia ter pouco cuidado consigo mesma. A pouca disposição, talvez mais do que a carência material, faziam com que suas roupas sempre parecessem mal arranjadas, quando não provenientes de um manequim maior, para não falar de uma pele mal cuidada, marcado pelo cloasma adquirido em uma gravidez pretérita, dos cabelos mal cortados, opacos, como se somente conhecessem em sua limpeza algum tipo de sabão ordinário.
Mas embora não fosse impecável em nada que fazia, conquistou logo os adultos e as crianças com alguma coisa presente em seu jeito de ser. Quem sabe a voz calma, o regaço aconchegante em caso de choro ou dor, o cumprimento regular, sem reclamações, das tarefas domésticas, a forma exímia com que preparava alguns quitutes. Isso fazia com que seus eventuais atrasos e mesmo a suspeita de que se apoderasse de alguma moeda ou dinheiro maior que sobrasse pelos cantos da casa ou no bolso das roupas que iam para a máquina de lavar, fosse algo que se tolerava nela, sem maior esforço por parte dos patrões, com alguma ressalva por parte da mulher, que era mais rigorosa em tal quesito do que o marido.
Não demorou para que ela desse provas de seu valor e de sua dedicação. Pouco tempo depois da chegada dela, o casal partir para uma formação técnica em outra cidade, distante e ela, mesmo sendo mãe de um filho pequeno, se dispôs a seguir com eles, levando o bebê consigo, coisa que fez através de uma longa jornada de ônibus, rumo ao total desconhecido para ela. Ganhou um aumento de salário para isso, mas de pouca monta face ao trabalho que lhe foi acrescido e à dedicação à pequena família, que continuou intensa como antes.
Na grande cidade foram morar em um apartamento quase subterrâneo, no qual não era incomum encontrar ratos no corredor. Na rua defronte, via de acesso a uma enorme favela, o tráfego pesado de ônibus fumacentos. Resistiram bravamente ali, todos, enquanto durou o estágio do casal, a família agora acrescida de um bebê, além das três crianças regulamentares, com pouco mais de cinco anos de idade.
Foram nada menos do que oito meses naquela cidade estranha, longe de tudo que era familiar a cada um deles, principalmente à babá, também cozinheira e arrumadeira, que nunca havia saltado fora de sua aldeia natal. Vendo fotos dos acontecimentos de então, anos depois, era possível ver em todos um ar satisfeito, apesar de tudo, mas nela persistia um olhar tristonho, quem sabe saudoso de coisas deixadas para trás, tão longe.
Não faltavam demonstrações de proteção às crianças da família, como se ela própria não tivesse um ser ainda mais indefeso a ser cuidado. O resfriado ocasional de um dos gêmeos, a irritabilidade permanente da mais velha com ciúme dos irmãos, a criança vizinha de porta que parecia querer assediar sexualmente o menino gêmeo: tudo era motivo para ela se mobilizar, acorrer com um carinho, um medicamento, uma intervenção enérgica junto ao vizinho inconveniente.
Já de volta à casa original, recebeu um dia na porta um indivíduo que dizia trazer um recado do patrão, para que lhe enviasse sua caixa de ferramentas, necessária para que ele consertasse o carro, enguiçado a alguma distância dali. Não por maldade, mas por ingenuidade e, principalmente, vontade de colaborar deixou o estranho ir até um armário na varanda, para que pegasse ali o que fosse necessário. Era tudo falso, o patrão estava no trabalho e anão mandara buscar nada. O episódio rendeu apenas algumas risadas, com a recomendação que ela tivesse mais maldade em próxima oportunidade.
De fato, aquela era uma criatura na qual a maldade não existia, se fosse o caso, tinha que ser treinada para tanto. Com todos os defeitos que pudesse ter, a dedicação às crianças da família e a própria boa vontade em servir e ser útil a todos, a faziam respeitada pelo casal e, principalmente, querida pelas crianças. Seus dotes culinários marcaram a infância deles, que muito anos depois ainda se lembravam, com saudades, do suflê, das batatas fritas, dos bolos de carne que ela sabia fazer.
Por mais de duas décadas esteve com aquela família e assim viu as crianças crescerem, se tornarem adultas e mudarem de cidade para cursar a universidade.
Nas muitas voltas que o mundo dá não teve, nem de longe, a mesma sorte com seus próprios filhos. O bebê que se mudara com ela para a cidade grande esbarrou na rede de marginalidade que já se instalava na cidade natal, envolveu-se com drogas, foi preso e acabou em uma penitenciária. Um outro filho, mais centrado, saiu para trabalhar fora e acabou morto, aos 18 anos, de AIDS.
Ficou naquela casa e com aquela família até a aposentadoria, já padecendo de moléstia cardíaca incapacitante. O mínimo que se poderia dar a uma pessoa assim foi, finalmente, concedido pela patroa, que comprou uma casa onde ela pôde passar com relativo conforto seus derradeiros anos de vida.
Não teve tempo de ser feliz, talvez nem totalmente infeliz, um dia simplesmente partiu desta vida, sem ter ao menos junto a si o filho presidiário.
***
Maria da Consolação, Maria Francisca, Maria José: testemunhas discretas e vítimas passivas, quase invisíveis, de um mundo injusto e desigual. Deixaram para as pessoas que usufruíram de seu trabalho uma imagem fugaz, aos poucos embaçada pelo tempo. Entretanto, na própria invisibilidade, talvez, é que deva ser procurado o seu real valor. Não mudaram o mundo, não obtiveram fazer os filhos pessoas notáveis, não amealharam bens, não escreveram livros, nem mesmo puderam testemunhar as lições de sobrevivência que a vida lhes forneceu, sem as quais talvez tivessem sido tragadas no grande buraco negro da marginalidade e da penúria social. Viveram apenas. A grande lição de suas vidas é esta, pequena, mas profunda e impactante. Uma coisa assim deve ser apreendida e absorvida com o devido apuro.
