Sobre o autor

Flavio Goulart
Rio Novo (talvez nem tão novo assim…) Região do Jalapão – Tocantins – Brasil

Eu, Flavio A. de Andrade Goulart, formei em medicina pela UFMG em 1971. Dividi minha carreira profissional entre a clínica, a administração de saúde e a docência universitária. Cliniquei por alguns anos, no interior de Goiás e em Uberlândia, tendo exercido, também, a docência universitária, na Universidade Federal de Minas Gerais, na Universidade Federal de Uberlândia e na Universidade de Brasília.

Uma parte de minha trajetória se deu na gestão pública da saúde, tendo sido Secretário Municipal de Saúde em Uberlândia por duas vezes (1983-1988 e 2003-2004), tendo também assumido cargos de direção no Ministério da Saúde, na década de 90. Nos últimos anos venho atuando como consultor autônomo em órgãos públicos e organismos internacionais, tais como OPAS e Banco Mundial. Do ponto de vista acadêmico, fiz mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz, concluídos em 1992 e 2002, respectivamente.

Gosto de escrever e não me faço de rogado ao expor minhas ideias. Porém, como dizia Drummond, considero que  minhas “letras mais doutas são as escritas no sangue”, por ser pai de Daniela, Fernanda, Maurício, Flavinho e Sophia, além de ser avô de Francisco, Martim e Gonçalo.

Meu lema, na forma de um kai-kai:

NÃO SER MELHOR NEM PIOR

QUE TODA GENTE.

MAS SER APENAS,

DIFERENTE.

 ***

MINHA TRAJETÓRIA

Tudo se finge primeiro; germina autêntico é depois.

(J. Guimarães Rosa: “Sobre a escova e a dúvida”)

(Vejam a seguir o primeiro capítulo de minha tese de douramento na FIOCRUZ (2002), no qual eu me apresento aos leitores, ou apenas àquela Egrégia Banca, não sei bem…)

 

Fugindo ao cânone e aos protocolos dedico este primeiro capítulo a mim mesmo… Melhor esclareço: concedo-me a oportunidade de tentar demonstrar aos meus leitores o como e o porquê desta tese, não do ponto de vista acadêmico ou científico, pois para tanto me sobrará espaço nos capítulos que se seguirão. Aqui, o que interessa à minha pessoa, mas sinceramente espero que, também, aos outros, é recuperar um pouco da trajetória profissional que me levou a fazer, com mais de 50 anos nas costas, um doutorado e uma tese, além de encontrar um tema, o de saúde da família.

Parto do pressuposto de que é preciso gostar do objeto com que se trabalha. Ou, para ser talvez menos exato mas certamente mais próximo do que realmente acontece: é preciso amar este objeto, ter com ele uma relação fundada – por que não dizê-lo? – no desejo, seja para compreendê-lo, seja para mudá-lo, explicá-lo, transmiti-lo aos outros, enfim. Falarei portanto, do meu desejo, de como ele surgiu e se transformou ao longo de minha vida profissional.

E o que vou falar, como convém, será na primeira pessoa do singular. Darei voz primeiro, portanto, a uma pessoa, singular: a minha. A pessoa acadêmica, científica, protocolar falará depois, talvez até demasiadamente…

Um começo para tudo? Cerca de 1980, eu deixava meu plantão bi-semanal no Pronto Socorro do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, com uma certa sensação de alívio. Era meu último plantão naquela unidade e, esperava sinceramente, que fosse o último plantão de minha vida! Eu havia solicitado meu afastamento algumas semanas antes, pois não só me sentia fatigado com tal atividade, como, além do mais, havia decidido fazer uma virada em minha vida profissional, concorrendo a uma vaga no Curso de Especialização em Planejamento de Saúde na Escola Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro.

Mas de fato, com quase 10 anos de formado, eu estava muito cansado das noites mal dormidas e da tensão das emergências, atividades que mantivera ao longo dos últimos 12 ou 13 anos, contando o tempo de estudante. O plantão de Pronto-Socorro, para mim, era algo simplesmente massacrante, pois eu passava dois dias da semana preparando-me para o mesmo, e mais dois dias para livrar-me do desgaste que ele me provocava. E eram nada menos do que duas sessões de corpo presente por semana… Mas não era só isso. Meu mal estar era não apenas íntimo; eu também questionava com ardor as incongruências de um modelo de assistência que empurrava as pessoas para as emergências, setores onde pululavam os casos mais primários de atendimento, que ali aportavam por absoluta falta de opções de outra natureza. Um fato ilustrativo deste estado de coisas: na minha cidade, Uberlândia, havia uma linha de ônibus intitulada “Medicina”, que tinha como destino o Hospital de Clínicas da UFU, e que circulava 24 horas por dia, sendo a mais movimentada da cidade, ocupada que era com o tráfego de pacientes para o complexo hospitalar e ambulatorial da universidade, particularmente para o seu Pronto-Socorro.

Eu passara toda a década inicial de minha vida profissional perscrutando o horizonte para ver se vislumbrava mudanças… Um amigo, que assumira a recém criada Diretoria Regional de Saúde da SES-MG, já me havia alertado, assim meio à maneira de Dante no Inferno: “abandone suas esperanças, a saúde pública continua ruim como sempre foi no Brasil”. Mas será que não tinha jeito mesmo? – eu me inquiria. E olhando para trás, via que a década de 70 fora realmente desastrosa, não só na saúde, como em outros campos: regime militar, epidemia de meningite, ditadura do INPS-INAMPS, persistência da dicotomia preventivo-curativa, ministros repetidamente se sucedendo em Brasília, propostas apenas paliativas de mudança, etc. Havia, é certo, no horizonte algumas discussões iniciando-se, os primeiro movimentos, traduzidos pelos municípios que organizavam, ainda que precariamente, seus serviços de saúde. Mas eu vivia em Uberlândia, onde essas notícias mal chegavam…

É bem verdade que, um dia, entre 1976 e 1977, um amigo, José Teubner Ferreira (Zecão), eterno militante de causas progressistas e, ás vezes, perdidas, pediu-me um dinheiro “emprestado” –pouca coisa na verdade. Era sua maneira de envolver os amigos em uma nova causa: a assinatura de uma publicação, que um grupo de gente de esquerda estava fundando, para discutir a questão da saúde no Brasil. Assim me aproximei do CEBES, da Saúde em Debate, e também de muitas pessoas que tinham preocupações semelhantes ás minhas e que vinham, bem ou mal, encontrando caminhos para ampliar e debater suas idéias, mesmo face ao ambiente de ditaduras (dos militares, do INAMPS, da medicina corporativa, da falta de perspectivas, etc.) em que nos encontrávamos. Foi por este caminho que eu me decidi, três anos depois, a abandonar os plantões, meu consultório, minha roupa branca, minha disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias na Escola de Medicina de Uberlândia, indo desembarcar no Rio de Janeiro, com família – três filhos pequenos! – e muita disposição em iniciar um novo ciclo de minha vida profissional.

Oito meses no Rio e eu já estava de volta a Uberlândia, com mil idéias na cabeça, mas nenhum instrumento para realizá-las à mão… Mas curiosamente, justo naquele ano de 1980, algumas coisas começaram a acontecer e eu me vi enfiado de ponta cabeça nelas, primeiro no Rio, depois em Uberlândia.

No Rio, eu encontrara, para minha alegria, um ambiente de discussões acalorado, muitas vezes polarizado, com a participação das academias (da ENSP, inclusive, com destaque), do Sindicato dos Médicos, de setores das secretarias de saúde (os de Niterói, por exemplo, muito ativos). E não faltavam temas: a eterna crise da saúde; a redemocratização do país e da saúde; a recém lançada campanha de vacinação maciça anti-pólio (que alguns enxergavam por um surrado viés conspiratório); a epidemia de dengue nos dois lados da Guanabara; a reforma do sistema de saúde; o movimento de moradores pela saúde, e tantos outros. Não raras vezes participei de discussões, quase face a face, com Gentile de Melo, Sérgio Arouca, Hésio Cordeiro, Jayme Landman, Ernani Braga, Mario Magalhães da Silveira e outros, que eu só conhecia das páginas dos jornais e da Saúde em Debate. Para mim, era simplesmente a glória!

De volta a Uberlândia, dentro do panorama agitado a que me referi acima, acabei convidado para tomar parte de um grupo reunido pelo Bispo Diocesano, Dom Estevão Avelar (um dominicano que havia enfrentado os militares no Pará, adepto da Teologia da Libertação), para organizar a programação da Campanha da Fraternidade de 1981, cujo tema era a Saúde. Na mesma ocasião, uma Pró-Reitora de Extensão recentemente empossada na UFU, Profª Claudia Lucia Carneiro de Mattos, me chamava para fazer parte de um grupo cuja tarefa era organizar um serviço ambulatorial universitário na periferia da cidade, inédito naquele tempo e naquele lugar. Foi assim que me envolvi com o projeto da Unidade Didática Avançada do Jardim Brasília, voltada para a atenção primária da saúde, dentro da filosofia de Alma Ata – cujos ecos chegavam com toda força a Uberlândia. Isto abriu para mim um fértil período de militância. A ansiedade com os plantões estava agora superada, melhor dizendo, fora transferida, pois os desafios agora eram outros, não menos desgastantes, por vezes.

Militando na Campanha da Fraternidade e no projeto do Jardim Brasília, acabei ficando visível, inclusive em um ambiente que eu não freqüentava, que era o da política partidária. Fui convidado, dessa forma, para assumir a Secretaria Municipal de Saúde de Uberlândia, em 1983, pelo candidato vencedor das eleições realizadas no ano anterior, Zaire Rezende. Ele era um médico ginecologista, poucos meses antes das eleições apenas um ilustre desconhecido, mas que em campanha memorável deslocara as oligarquias que ocupavam o poder local havia décadas, seja aquelas da legenda e sublegendas oficiais (Arena-PDS), como as do MDB-PMDB, partido ao qual era filiado. A partir daí, meus horizontes começavam, de fato, a se ampliar e através do Prefeito e de seu partido pude tomar contato com algumas experiências de municípios que começavam a remar contra a corrente na saúde, como Lajes, Londrina e Piracicaba. Fui também apresentado, por uma colega assistente social do Jardim Brasília, Lílian de Sá, ao programa de saúde desenvolvido na Unidade de São José do Murialdo, na cidade de Porto Alegre.

Fui, assim, tragado por uma confluência de movimentos, às vezes verdadeiras avalanches, que subverteram e arejaram a saúde no Brasil, na década de 80. Minha faina se dividia, então, entre: a gestão da saúde em Uberlândia (aliás, melhor dizendo, um verdadeiro gênesis); a mobilização municipalista pela saúde, que resultou nos Conselhos de Secretários Municipais de Saúde, estaduais e nacional (COSEMS e CONASEMS); o proselitismo pela convocação e depois pela divulgação da VIII Conferência Nacional de Saúde, na qual fui delegado; a participação, como representante da Associação Brasileira de Municípios, na Comissão Nacional de Reforma Sanitária; a militância na Plenária de Saúde; o lobbismo (do bem…) frente aos Constituintes de 1986 para aprovação das propostas da Plenária; a mobilização pela Lei Orgânica da Saúde, e assim por diante.

Em tudo estive um pouco, sendo às vezes mal compreendido pelo meu Prefeito, pelos meus pares secretários e mesmo pelos técnicos da SMS – e também por minha família – que gostariam de me ver mais assíduo em Uberlândia. Paguei este preço, mas acho foi menos caro para mim do que para os outros. As críticas arrefeceram um pouco quando a OPAS, através de Eugênio Vilaça Mendes, achou por bem incluir nossa experiência de saúde de Uberlândia no livro Atalhos nos Caminhos da Saúde, coordenado por Célia Almeida (OPAS, 1989).

Meus contatos, dentro do que veio a se chamar mais tarde movimento municipalista de saúde, foram extremamente proveitosos e finalmente comecei a perceber que talvez minhas indagações dos anos anteriores começavam, aqui e ali, a ter respostas, principalmente por parte dos municípios. Mas faltava, eu pressentia, uma política de saúde voltada para a atenção primária e mesmo uma discussão mais aprofundada e menos marcada pela ideologia conspiratória a respeito do papel da atenção primária e de sua re-colocação como questão central na discussão referente ao modelo assistencial. Era como uma construção a ser iniciada, com os materiais – tijolos, areia, cimento – espalhados em volta, mas sem pedreiros que os organizassem e alicerces onde fossem assentados.

Havia debates, é claro, e estes eram intensos, mas muito ideologizados e travados dentro de circuitos relativamente estanques: de um lado, os acadêmicos, olhando tudo de maneira muito crítica e repleta de suspeição; de outro, os municipalistas, que sabiam o que era realmente o povo (e principalmente seu “péssimo” costume de pressionar as autoridades literalmente, batendo-lhes à porta…), e que bem ou mal encontravam seus caminhos. E eu, ao mesmo tempo acadêmico (ma non troppo), e gestor municipal de saúde, estando entre a espada e a cruz, creio que fiz opção pela primeira: preferi a luta e não a ascese. Nem preciso dizer que isso não foi muito bem recebido no meu ambiente universitário, que me julgou rendido a um novo e estranho Senhor. Mais uma tarifa a pagar…

No final dessa movimentada década, findado o nosso mandato em Uberlândia, resolvi voltar a uma vida mais acadêmica. De novo recorri à ENSP, onde nunca deixei de me sentir em casa, agora para um Mestrado. Meus grandes planos de dissertação, que incluíam identificar e qualificar, através de um vasta pesquisa de terreno, as percepções de alguns segmentos da sociedade sobre o recém criado SUS e as políticas de saúde em geral, acabaram sendo canalizados, por culpa minha, para um vasto e tedioso calhamaço sobre os fundamentos teóricos das “representações sociais”. Defendi a dissertação em 1992, até com certo mérito (assim me asseguraram os membros da Banca…), mas nunca me conformei com o fato de que eu, um médico, gestor público de saúde, pessoa altamente envolvida com o empirismo na minha própria vida, tivesse ido cair em um campo tão teórico e sociológico e, de qualquer forma, alheio ao que eu realmente desejava ou à minha competência. Mas devo dizer que, apesar do meu relativo desgosto com a dissertação de mestrado, este me foi um período de grande aprendizado, particularmente, pela convivência amiga com minha orientadora, Profª Maria Cecília de Souza Minayo, a quem devo minha entrada – quem sabe um tanto canhestra – no campo da investigação qualitativa em saúde.

Esta passagem pela Academia, novamente como aluno, entretanto foi breve. Logo depois do mestrado fui trabalhar em Brasília, primeiro na Fundação Nacional de Saúde, depois na Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde, em um tempo que entre esta e o INAMPS não havia a menor diferença. O Governo era o de Collor e as consequências para a saúde todo mundo sabe… Juro, em todo caso, que nada sei de bicicletas e de guardas-chuva! Também não ajudei a redigir a NOB 91 nem a proposta da UCA!

A partir da 1993, as coisas melhoraram um pouco em Brasília, com a queda de Collor. Havia uma nova equipe no Ministério da Saúde, tendo como titular Jamil Hadad, com Carlos Mosconi na SAS, além de Gilson Carvalho, José Hermógenes, Jorge Bermudez e outros companheiros. Passei a fazer parte dela. Nos meses seguintes, com a confluência, no Ministério, de um grupo de ex-secretários municipais e técnicos sintonizados com a idéia-mãe do SUS, elaboramos a Norma Operacional Básica (NOB 93), que substituiu as normas da era Collor e que creio ter produzido avanços importantes no sistema, ao preconizar a negociação bi e tripartite, a graduação das condições de gestão municipais e estaduais, as transferências diretas fundo a fundo entre as esferas de governo, etc.

Mas nem tudo eram flores nessa época, pois nos víamos, permanentemente, constrangidos a dedicar boa parte de nossas energias ao enfrentamento dos adversários internos e externos da saúde. Os internos, representados pelas fortes burocracias da área financeira, de convênios e de auditoria, detestavam ouvir falar de transferência automática de recursos, repasses fundo a fundo e coisas assemelhadas, e faziam tudo o que podiam para boicotá-las com desfaçatez. Externamente, as autoridades das áreas da Fazenda, Planejamento, Previdência e outras, logo ali em frente, na Esplanada dos Ministérios, bombardeavam a Saúde de toda maneira. O que mais se ouvia era: “não adianta passar dinheiro para essa gente; eles não sabem gastar”, ou então “a saída é introduzir tíquete regulador”.

Era um panorama meio avesso, sem dúvida, mas havia também o sentimento de que algo se movia. Eu comecei a perceber isso quando fui representar a SAS em algumas reuniões no Gabinete do Ministro (que já era Henrique Santilo), em que se discutia mudanças na tabela do SIA-SUS que pudessem contemplar práticas diferenciadas em saúde, dentro do escopo de programas que estavam sendo criados na ocasião, o PISUS (Programa de Interiorização do SUS) e o PSF (Programa de Saúde da Família).

O enfoque era o do combate à pobreza, pois ainda repercutia fortemente o movimento inspirado por Betinho e Itamar Franco havia aderido ao mesmo de coração, quem sabe para atenuar, perante a sociedade, a má impressão causada pelo fato inegável de ele ter sido o vice de Collor.

Confesso que, na ocasião, tive vontade de que, Halim Girade, um técnico da UNICEF que assessorava Santilo, ou Anna Peliano, do IPEA, que lidava com a questão da pobreza no governo federal, me convidassem para trabalhar com eles, pois eu achava meio sem nexo ter que discutir tabelas de procedimentos, sem entrar, de fato, no mérito das questões da assistência. E o mérito e a raiz, para mim, estavam na discussão mais ampla do modelo assistencial, desde a sua base. Mas de qualquer forma, creio que se não ajudei nas questões da tabela SIA-SUS, também não atrapalhei o movimento que então se iniciava no Ministério da Saúde. Mas eu percebia, como Galileu, que a tabela de procedimentos não era o centro de tudo, e que algo se movia em torno; e mais: que esse movimento era poderoso, centrípeto. Os anos seguintes não me fizeram mudar de opinião.

Em 1995, voltei à Academia, desta vez para ser docente da UnB – Universidade de Brasília, ironicamente quando a proposta do PSF, pela qual eu nutria simpatias, começava a ter sua dimensão ampliada no Ministério da Saúde. Mas minha vida funcional estava um pouco complicada, afastado que estava de sua via principal desde que saíra para fazer mestrado no Rio, seis anos antes. Além disso, minha base, de fato, era a carreira acadêmica. Foi assim que retornei à universidade, sem maior entusiasmo, mas também sem traumas.

Não encontrei, na UnB, circuitos permeáveis para minhas preocupações a respeito da renovação das práticas de saúde. A área de saúde da universidade, embora tivesse uma tradição de ação comunitária estabelecida na década de 70, com um projeto desenvolvido em Sobradinho e Planaltina, havia se concentrado basicamente na assistência via Hospital Universitário, aliás localizado em uma área central de Brasília, a L2 Norte.

Havia também, na UnB, um projeto de extensão financiado pela Fundação Kellog (o chamado PRO-UNI), mas que já encontrava em declínio, vitimado pela tradicional crise de sustentabilidade que costuma acometer as propostas que, por dependerem de muitos apoiadores, acabam por não contar com nenhum. Além do mais, todos os lócus do projeto já se encontravam ocupados por gente que ali estava desde seu início, todos muito ciosos e auto-suficientes em suas tarefas. Creio que minha participação no PROUNI era realmente dispensável, naquele momento.

Um pouco depois, cerca de 1997, ainda através da UnB, me aproximei de uma experiência de Saúde da Família, o Programa Saúde em Casa (PSC), que estava sendo implantada pela SES de Brasília, como parte do programa de Governo de Cristovam Buarque. Passei a levar alunos, tanto do primeiro como do sexto ano, para acompanhar equipes do programa, o que creio ter sido muito bom para a formação deles. Eu e os outros docentes envolvidos nos prontificamos a colaborar com o PSC e, para tanto, fizemos algumas interlocuções com a SES e preparamos alguns documentos, contendo análises e sugestões. Devo dizer, contudo, que uma certa auto-suficiência de nossos colegas no governo aliada, talvez, a uma certa dificuldade em receber críticas, acabaram nos afastando do programa. Tive, além disso, oportunidade de conviver com membros das equipes do PSC e depois do PSF, como alunos dos Cursos de Especialização da UnB, desde 1999. Considero esses contatos altamente proveitosos, pois através deles me tem sido possível acompanhar as idas e vindas do programa, aliás “extinto” em um primeiro momento da atual administração, em 1999, e depois retomado com novo rótulo, de PSF propriamente dito, embora sem grandes mudanças de fato.

Penso que já é chegada a hora de, finalmente, eu dizer a que vim, ou seja, de como encontrei meu objeto de estudo nesta tese. Talvez já tenho sido suficientemente explícito nas páginas anteriores, nas quais espero não ter fatigado meus leitores. Pois bem, resumindo: encontrei meu tema e minhas questões ­– ou eles me encontraram, não sei bem – através das preocupações e dos insights que me acompanhavam desde o tempo que eu era apenas um médico clínico. Aproximei-me dele, também, por sentir que o estado da arte referente à questão da saúde da família se tornara mais convidativo e que as questões ideológicas que o rodeavam, antes dominantes e, certamente, prejudiciais ao seu melhor entendimento tinham, finalmente, encontrado sua dosagem e sua dimensão adequadas, ou resumindo: as teorias conspiratórias não mais imperavam. Não deixou de influir, também, na calibragem de meu desejo, o fato de que eu me sentia ainda devedor (talvez apenas a mim mesmo) de um trabalho que fosse acadêmico, mas que, ao mesmo tempo, não perdesse de vista o empirismo e a aplicabilidade na realidade. Ou seja, minha dissertação de mestrado ainda se encontrava, de certa forma, atravessada em minha garganta. Eu precisava de algo de fôlego, e que me fizesse justiça!

Teve influência, também, a percepção que em mim se acumulava a respeito da trajetória do PSF em todo o país, que eu via e acompanhava em minhas visitas ao programa do DF e de muitas outras localidades. Creio que poderia resumir essas transformações, qualificando-as como autênticos saltos de qualidade; como passagens do sonhado ao concreto; do normativo-duro à dialética do possível; da teorização ao empirismo; do movimento para a realidade para o movimento a partir da realidade; da construção tecnico-política á construção social.

Foi com esta bagagem de suposições, mas, também, com alguma apreensão empírica e concreta da realidade, que me dispus a fazer o doutorado e, como decorrência, esta tese. Assim justifico minha legitimidade, minha afinidade e minha familiaridade (sem trocadilho) com o objeto da saúde da família. Dotado de tais pretensões vim, pela terceira vez em minha vida, desembarcar no Rio de Janeiro, cidade que, devo admitir, me causa sentimentos contraditórios, pois sempre saio e retorno a ela, o que ocorreu por três vezes nos últimos 20 anos.

Minha tese ­– já é hora de falarmos dela – se distribui ao longo dos onze capítulos que se seguirão, sobre cuja lógica e estrutura discorrerei brevemente, antes de encaminhar o paciente leitor à leitura dos mesmos.

O primeiro capítulo é este que logo terminarão de ler. O capítulo que se segue, o de número dois, trata da metodologia de que lancei mão para abordar meu tema. Apresento algumas informações sobre o processo de análise de políticas e de instituições, bem como sobre a metodologia de estudos de caso. Devo muito dos conhecimentos aqui compilados às disciplinas que cursei na Escola Nacional de Saúde Pública, das quais aproveitei, inclusive, trechos de trabalhos formais apresentados para avaliação das mesmas. Faço referência especial ao que aprendi com Maria Eliana Labra (Análise de Políticas), Jenni Vaitsman (Cultura Organizacional) e Eduardo Stotz (Metodologia de Pesquisa).

O capítulo três trata da trajetória das idéias centrais de saúde da família e de atenção primária da saúde. Abordo também a inserção desse ideário nas reformas de saúde e nas propostas dos organismos internacionais, contemporaneamente. Procuro “amarrar” todo este conteúdo com o que se passa efetivamente no Brasil, particularmente no contexto da última década. Por pouco transformava este capítulo, ele apenas – como já havia feito em minha dissertação de mestrado – em toda minha tese… Felizmente me contive, à custas de amputação, não de todo indolor, de parcela semelhante em dimensão ao que lá restou. Que os leitores me reconheçam este esforço, é tudo o que espero. Da mesma forma que no item anterior, devo encarecer o aprendizado que me proporcionaram as disciplinas ministradas por José Mendes Ribeiro e Nilson do Rosário Costa (Reforma do Estado e Políticas Públicas), na ENSP, e também por Ivanete Boschetti Ferreira, da UnB (Teorias de Políticas Sociais e Cidadania). Sem a força desses mestres, e do mundo que me abriram, não me teria sido possível sequer penetrar no tema.

No capítulo quatro inicio, finalmente, minha jornada pelas experiências de saúde da família, falando, em primeiro lugar, daquela representada pelo PSF nacional. Aqui cabe, entretanto, um esclarecimento especial. Coloco-me, neste texto, não apenas como o pesquisador ou o observador externo. É bem verdade que tentei sê-lo, mas logo percebi que minha vinculação ao objeto era profunda demais para querer apenas observá-lo com distanciamento crítico. Com efeito, como esclareci nas páginas acima, estive presente no âmago dos acontecimentos da área da saúde no Governo Federal, no início e meados da década de 90. Eu juntaria, sem maiores problemas conceituais ou ideológicos, a NOB 93, o processo de descentralização da gestão, além do PSF, como os eventos que fazem parte da “arrancada” do SUS para seu estágio atual. Assim, devo esclarecer em relação ao capítulo quatro: meu texto não reflete apenas o que vê um observador na platéia, mas registra também a visão a até as práticas de um ator do processo que descrevo. E mais, que me filio a um modo de análise do SUS que faz parte, como quer meu amigo José Mendes Ribeiro, do main-stream e não de correntes paralelas ou alternativas de pensamento a respeito do assunto – com todo respeito por estas outras. Apesar de ter coletado mais de setenta referências bibliográficas para este capítulo, reputo como de especial relevância as entrevistas que me concederam atores importantes dos processos nele descritos e analisados, a quem gostaria de referir-me nominalmente, pelo muito que me ensinaram: Heloiza Machado de Souza, Halim Girade, Carlos Grossman, Arindelita Arruda, Nelson Rodrigues dos Santos e Davi Capistrano, além de Fátima Sousa, que não foi entrevistada, mas emprestou a este texto as contribuições de seu livro “A Cor-agem do PSF”. Neste capítulo permito-me, também, algumas notas de roda-pé, para tornar o texto mais fluido, pois, freqüentemente, me vi a braços com o problema do excesso de informações.

Nos capítulos que se seguem, do de número cinco até o dez, percorro seis experiências de saúde da família que foram consideradas bem-sucedidas (ver os critérios para tanto no capítulo dois). A referência teórica para este capítulo – a análise de políticas – como apresentada anteriormente, compõe-se das categorias atores, contextos, processos e conteúdos. Utilizei, como padrão de descrição e análise, um mesmo conjunto de tópicos, afim de facilitar a comparação das experiências, realizada no capítulo seguinte. O roteiro utilizado nesses capítulos se compõe de: (a) informações gerais sobre o município; (b) a formação política e o caso da saúde; (c) perfil da assistência no SUS; (d) a implementação do PSF: antecedentes, atores, processos; (e) avaliação e perspectivas da experiência: fatores facilitadores, fatores dificultadores, lições e aspectos distintivos e a voz dos atores; (f) síntese interpretativa, abrangendo atores, contextos, processos e conteúdos. Em relação às experiências do Grupo Hospitalar Conceição e do Centro de Saúde Escola de Murialdo, que correspondem ao capítulo dez, o roteiro utilizado é aproximadamente o mesmo, embora mais resumido, procurando dar ênfase a aspectos comparativos entre as duas. Para mais detalhes referentes à condução metodológica das visitas, existem outros esclarecimentos no capítulo dois e também nos anexos desta tese, por exemplo, lista dos entrevistados, roteiros utilizados nas entrevistas e grupos focais e condições das visitas e lista de documentos consultados. Estes capítulos devem seu conteúdo, naturalmente, ás informações obtidas localmente, particularmente às entrevistas com os atores e, também, a alguma análise documental, mas aqui naturalmente não se deve esperar uma lista de referências bibliográficas muito extensa. Em Curitiba e no GHC, por exemplo, havia destas em quantidade, mas em outros casos não foi possível acessar mais do que dois ou três documentos para consulta.

Nos capítulos onze e doze meu trabalho converge, finalmente, para a etapa das conclusões finais. No de número onze, As experiências em perspectiva comparada, o nome já diz tudo. Procurei traçar uma série de linhas transversais comparando vários aspectos que as visitas me despertaram. Assim destaquei ao longo do mesmo: (a) as características geopolíticas de cada localidade ; (b) o perfil da assistência à saúde; (c) os contextos políticos; (d) a formação dos conteúdos; (e) os atores sociais e suas articulações (a seção mais alentada); (f) a participação social; (g) os processos de implementação e de organização (com ênfase na questão das inovações e da política de recursos humanos); (h) a cultura organizacional; (i) os fatores facilitadores e os obstáculos. Aqui, utilizei uma referência que me foi muito importante, que me inspirou não só em termos de conteúdo, como de método: refiro-me à obra de Judith Tendler, denominada “Bom Governo nos Trópicos”, através da qual pude desenvolver algumas categorias-chave em minha análise, como bom governo, dinâmicas entre sociedade e Estado e processos de trabalho. Foi de enorme valor para mim, também, a apreensão da maneira “transversal” como a autora fez a síntese das diversas experiências que observou no Ceará. Devo a indicação desta leitura e também a de Robert Putnan, além de outros autores a quem me referenciei neste texto, a José Mendes Ribeiro e Nilson do Rosário Costa, dois mestres de primeira linha em toda minha jornada, com quem divido os eventuais acertos deste texto.

Finalmente À guisa de conclusão… Neste último capítulo introduzi o subtítulo: círculos virtuosos e boas práticas em saúde da família, para destacar aspectos que me pareceram bastante marcantes nas observações que fiz. É um texto que procura, acima de tudo, a concisão, considerando as centenas de páginas percorridas até chegar ao mesmo. Nele enfatizo e procuro a resposta para a questão que foi enunciada no próprio título desta tese – cada caso é um caso? Assim, procuro destacar os aspectos que as experiências apresentam em comum, apesar de suas muitas diferenças e, também, o que foi possível aprender com elas – o que chamei de boas práticas. Aqui a frase de Guimarães Rosa que inicia este capítulo – tudo se finge primeiro; germina autêntico é depois – abriu-se finalmente para mim em todo o seu significado. Espero que os frutos sejam apreciados também pelos meus leitores.

Uma última palavra, ainda na primeira pessoa, antes de passarmos ao cânones. Devo reconhecer neste capítulo a influência de um texto que me impressiona muito. Refiro-me ao livro A Medicina e o Pobre, de Eymard Mourão de Vasconcelos (VASCONCELOS, 1987), através do qual, independente do grau de sintonia que possa ter com os conceitos que o autor defende, fui como que capturado pela forma corajosa e espontânea com que ele apresenta suas idéias – sempre na primeira pessoa. Eu quisera possuir tanta ousadia e competência… De qualquer forma, credito ao generoso Eymar uma boa ajuda nesta tese, não só pela imitação (não oficialmente autorizada) conscientemente praticada por mim neste primeiro capítulo, como também pelas contribuições que auferi de outros textos seus, citados nas referências bibliográficas desta tese.

Agora, leitor, entrego a você esta minha tese de doutorado, que começa de verdade no próximo capítulo. É a sua vez de julgar se meu trabalho, de fato, tem coerência com o que justifiquei e anunciei nas linhas que acabou de ler.

***

ENTREVISTA

Em 2015 fui entrevistado por um aluno de mestrado do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA chamado André Jacobina. O título de sua dissertação era ESPAÇO SOCIAL DE REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA/ RELAÇÕES ENTRE O CAMPO POLÍTICO E O SUBESPAÇO MILITANTE. Achei muito interessante o tipo de questões que me foram feitas, principalmente sobre a formação do tal “espaço militante”. Reproduzo a mesma aqui, para a minha memória e de quem mais se interessar. Ainda não vi o resultado final do trabalho (já estamos em 2016), mas espero poder vê-lo a qualquer hora.

Acessar: ENTREVISTA UFBA 2014

 

 

 

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