Entre chapadões, morros e rios

E lá vamos nós conhecer a nascente do rio São Francisco. Melhor seria dizer “as nascentes” – mas isso é coisa que depois explicarei. Minha compulsão pela Geografia, entretanto, me obriga a começar pelo caminho de tal ciência, da qual fui aluno aplicado no Colégio. Estamos no Planalto Central e este é o nosso ponto de partida. Mas preciso dar contexto a tal afirmativa, já que a maior parte do território do Brasil é formada justamente por acidentes geográficos com tal nome, ou seja, planaltos.

Para sermos rigorosos, o lugar onde se situa Brasília, e que abrange, além do DF, estados diversos como GO, MG, MS, MT e TO é também conhecido como Planalto Brasileiro (e não apenas “Central”). Além de ser “plano e alto”, ele configura um extenso escudo que cobre a maior parte das porções Leste, Sul e Centro-Oeste, totalizando quase 50% da superfície do país, abrigando considerável maioria da população. Seus limites, na verdade, vão do Ceará até a divisa de MG com SP, onde, aliás, ficam suas partes mais altas. Suas altitudes variam de pouco mais de 300 metros até montes com cerca de 1,5 mil metros acima do nível do mar, ou mais.

Para efeito mais didático, digamos assim, vamos trafegar por três tipos de relevo no tal Planalto: chapadões, serras e mares-de-morros (poético, não? – mas o nome técnico é este mesmo!). No meio disso uma boa série de rios, de dimensões diversas. Nosso Planalto, portanto, está longe de ser um deserto ou mesmo uma paisagem monótona, como veremos a seguir e constataremos ao longo da presente jornada.

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O que vem a ser um chapadão? Importa saber, pois Brasília está bem dentro de um deles. Isso talvez represente o que há de mais típico no Planalto, ou seja, uma área extensa e não totalmente achatada, pois coisa assim não existe por aqui, havendo sempre recortes e desgastes produzidos pelas movimentações geológicas, ação dos rios e das intempéries. A planura total, assim, é mais características das planícies, como no litoral, no Pantanal ou na Região Amazônica, mas não nos planaltos. Assim, o que existe por aqui é uma área apenas relativamente plana, embora extensa e bastante trabalhada pela natureza, geralmente de altitude mais elevada em relação ao restante do terreno (em Brasília ultrapassando os mil metros em relação ao nível do mar), formando como se fossem enormes mesas (chapadas), separadas por vales cavados pelos rios: eis uma boa definição de chapadão.

Veremos muitos desses chapadões em nosso caminho, a começar por este onde estamos, que conflui com outros, que recebem nomes diversos dependendo do lugar, como Contagem, Veadeiros, Rio Preto, Cristalina, Urucuia e outros. 

Em Brasília estamos na borda do Chapadão da Contagem, que recebe este nome por ter sido sede de um antigo posto de “contagem” de gado e bens, para efeito de fiscalização, na era colonial. Quando se olha para o Norte da cidade ele se divisa como uma elevação suave e contínua do terreno, na direção de onde ficam Colorado, Sobradinho, Lago Oeste e outras localidades – e onde moram Julia Camarotti, Pedro e Bellinha.

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Vamos falar de rios. Os tais chapadões são ricos neste quesito. Brasília é banhada diretamente pelo rio São Bartolomeu, formado por numerosos afluentes, de alguns dos quais se origina o Lago Paranoá. Para onde corre esta água toda? Vou explicar: para Buenos Aires! Acreditam? Já já eu chego lá…

O São Bartolomeu faz parte da bacia do rio Paranaíba (não confundir com aquele de nome quase igual, o Parnaíba, que fica no estado do Piauí). Este nosso ParAnaíba tem suas nascentes espalhadas por uma vasta região, que abrange não só o DF, mas a metade Sul do estado de Goiás e boa parte do Noroeste de Minas Gerais. Um rio de respeito, sem dúvida. Ele corre no sentido Leste-Oeste e em parte do seu percurso serve como fronteira entre MG e GO, por onde passaremos logo mais.

O Paranaíba tem um rio irmão, o Grande, com nascentes espalhadas pelo Sul de Minas e Norte e Leste de SP, indo se encontrar com ele depois de também formar uma outra divisa, no caso, entre MG e SP. Deste encontro é que surge um dos maiores rios do Brasil, o Paraná, que acaba por chegar ao Oceano Atlântico como Rio da Prata, aquele mesmo que banha a capital da Argentina. A trajetória em forma de forquilha, de procura e encontro entre o Grande e o Paranaíba, é que dá nome a toda uma região: Triângulo Mineiro

Curiosidade que só interessa aos amantes da Geografia, como eu. O Paranaíba nasce no Oeste de MG, na chamada Serra da Mata da Corda. Porém, tecnicamente, a nascente oficial de um rio fica no ponto mais distante de sua foz. E no caso este ponto não fica em Minas, mas sim aqui no DF. Por isso é que se diferencia a nascente histórica da nascente oficial – e a nossa é a oficial, sem dúvida, o Lago Paranoá representa bem este sítio oficial. Situação semelhante ocorre em relação ao São Francisco – chegaremos lá.

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Pois bem, trafegaremos nesta viagem por cima e ao longo de chapadões que separam dois dos ramos desse Paranaíba, no caso o Corumbá (que acolhe o São Bartolomeu) e o São Marcos – mas nenhum dos dois será avistado da estrada. O grande rio coletor, o Paranaíba, só fará presença depois de rodarmos mais de 300 km, separando GO de MG, bem lá na frente.

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Já com poucos km rodados, ainda no território do DF, vamos topar com uma das situações significativas desta viagem, que se mostrará viva e presente ao longo de todo este primeiro dia: a fronteira agrícola do Planalto Central. Mais uma vez é coisa para curiosos, mas mesmo os mais desligados talvez se impressionem com a quantidade de pivôs centrais (querem um tempinho para consultar o Google?) que se verá pelo caminho. E debaixo de tais mecanismos, extensas plantações de soja e outros grãos, café, algodão e coisas mais. Tudo para exportação.

A tal fronteira é coisa relativamente nova. Mesmo nos anos seguintes à inauguração de Brasília, ela não existia – aqui era tudo cerrado bruto mesmo. Mas com o tempo, graças a políticas governamentais de expansão e financiamento agrícola, com forte presença de gaúchos e paranaenses, ela foi surgindo e ocupando cada vez mais espaço. Em algumas das cidades pelas quais passaremos, como Cristalina ou Iraí de Minas, não só aqui como do outro lado da divisa, é possível que se vejam pessoas de bombachas pelas ruas, ou tomando chimarrão em rodinhas nas esquinas.

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A parada (obrigatória) para lanche na rodovia BR-050, denominada Sonho Verde, de proprietárias paranaenses, é uma marca da imigração sulista e mostra muito bem um padrão cultural diferente daquele que geralmente se encontra nos estabelecimentos goianos e mesmo mineiros, ou seja, o capricho em matéria de higiene, receptividade e qualidade geral das comidas (e dos banheiros). Mas em todo caso, espero não ser desmentido quanto a este último quesito. Entretanto, não nos animemos muito: as onipresentes bandeiras do Brasil, seja no tal Sonho Verde ou nas porteiras das fazendas, mostram que a opção ideológica aqui é bastante questionável – para não dizer outra coisa. 

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Ao atravessarmos o rio Paranaíba entraremos em território mineiro. Entretanto e na verdade, por aqui é quase impossível separar o que é mineiro do que é goiano. É tudo a mesma bagunça. Mas vamos ao que interessa: entramos agora no que foi chamado, um dia, de Sertão da Farinha Podre. É isso mesmo que você leu… Há divergências sobre a origem de tal nome. Uns dizem que em algum lugar daqui os bandeirantes guardavam farinha de mandioca/macaxeira embalada em barricas para aproveitarem em outra ocasião. Quando voltavam, contudo, aquilo tinha apodrecido. Parece lógico, mas há outra versão, qual seja a do preparo da farinha puba, qual seja aquela cuja massa bruta de mandioca era previamente pubada, ou seja, fermentada, antes do preparo da farinha propriamente dita – e que isso era um costume comum por aqui. Aliás, ainda é comum, dada a existência do chamado polvilho azedo, que se usa para fazer certas quitandas caseiras (biscoitos e assemelhados), nome, ingrediente e produtos também característicos desta região. 

Se me perguntarem, prefiro esta segunda opção de nomenclatura, acho mais plausível. Não creio que alguém guardasse farinha em recipientes enterrados no chão, para aproveitar sabe-se lá quanto tempo depois.     

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Atenção curiosos! Esta região da Farinha Podre tem história peculiar. Ficou praticamente deserta por três séculos após o descobrimento do Brasil. Ou melhor, servia apenas de passagem aos bandeirantes paulistas, na sua ávida busca de ouro nas terras de além-rios. Os motivos de tal solidão seriam, em primeiro lugar, a presença de índios resistentes aos invasores que por aqui viviam, os Caiapós e outras tribos. Por outro lado, havia também a malária e outras doenças dos trópicos. Mas isso virou apenas história depois dos primeiros anos do século 19, quando as minas da região central do estado se esgotaram e os antigos mineradores tiveram que procurar outros meios de subsistência, geralmente a pecuária e a agricultura, para as quais essas terras eram bastante prestantes. Tal migração interna é que povoou esta região, que passou depois a ser chamada Triângulo Mineiro e não mais Farinha Podre, nome este sem dúvida um tanto depreciativo.

Duas características derivam desses fatos históricos: não há cidades muito antigas por aqui, quase todas surgidas no século 19 e a ocupação do território é rarefeita ainda hoje, fazendo com que a distância entre as cidades seja grande, quando comparada a outras regiões do estado. Entre Uberaba e Uberlândia, por exemplo, são 100 km de um trajeto que até hoje não abriga outras cidades.

Mas a verdade é que o isolamento foi duradouro. Ainda nos anos 70 do século 20 não havia ligação rodoviária asfaltada entre a capital do estado, Belo Horizonte, e esta região, embora houvesse ferrovia, aliás conhecida como Rede Mineira de Viação (RMV), por alcunha Ruim Mas Vai. Para ir de Uberlândia ou Uberaba a BH, muitas vezes, o caminho mais viável passava por São Paulo, vejam, só…  

E o isolamento do Triângulo ainda teve outras repercussões, por exemplo, a fama de ter se transformado em coiteiro de criminosos, além de refúgio para doentes de lepra, perseguidos em toda parte diante da internação compulsória que dominou o cenário do controle da doença por séculos.

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Cruzada a fronteira goiano-mineira vamos passar (rapidamente) por um lugar chamado Estrela do Sul. Nem tanto ao sul e muito menos estrela, que fique claro. Mas já foi um lugar de alguma importância, podem acreditar. O nome primitivo, desde o tempo dos caçadores de ouro bandeirantes, era Bagagem e, aliás, ainda é a designação do ribeirão que passa pela cidade. Sua fama – e seu nome atual – derivam de ter sido encontrado ali um diamante que ganhou fama internacional, com seus quase 130 quilates. Ainda no período da opulência local viveu por ali algum tempo a famosa Dona Beja, não mais de Araxá, mas agora da Bagagem. Ali, reza a lenda, ela agora exilada do seu Araxá, exerceu seu domínio, agora construído através da lavra de diamantes, não mais de suas graças corporais. E ali na Bagagem, Beja, aliás, Ana Jacinta, morreu esquecida, empobrecida e envelhecida. Mas isso foi em meados do século 19, de lá para cá muita água passou pela ponte do Bagagem e a cidade só fez encolher e empobrecer.

Uma meia dúzia de casarões antigos ainda insiste em se manter de pé (se é que ainda se mantêm…), sabe Deus como. Por este e por outros motivos nossa passagem por lá deverá ser fugaz.

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A nova atração é o café do cerrado. Há anos só havia por aqui plantações de eucalipto, e antes disso o cerrado virgem, mas tudo mudou. Passado o rio Bagagem, começam a aparecer os caprichosos jardins dos cafezais, com suas linhas paralelas ou concêntricas a se perderem no horizonte. A curiosidade aqui é que até algumas décadas atrás, mais exatamente nos anos 70, só havia um ou outro cafeeiro, assim mesmo nos quintais de velhas fazendas, abrigado pela sombra de mangueiras e outras árvores. De repente tudo mudou, com alguns indivíduos ousados, embasados do que havia de melhor na ciência agrária. E antes mesmo que a primeira chuva caísse sobre as plantações recém constituídas, choveu dinheiro, com o financiamento generoso do Banco do Brasil, a perder de vista e com seguro frente a colheitas tardias ou perdidas.

Assim até eu! – diria algum observador à distância. Mas se é verdade que alguns o disseram, outros tantos vieram conferir. E assim toda essa região que começa no Bagagem e se estende até Patrocínio, Araguari, Coromandel, Ibiá, Araxá e outras cidades se converteu, após alguns anos, nessa sucessão de jardins geométricos que agora percorremos, com gente que veio dos quatro cantos do país para plantar e ganhar dinheiro com a cadeia de produção cafeeira.

Riqueza que veio para o bem e para o mal. Se por um lado circula dinheiro, por outro há a migração forçada de boias-frias envolvidos com a colheita. E também a presença de agentes de alguns negócios até então inéditos por aqui: o tráfico de drogas, por exemplo, além de outros crimes.

Um amigo patrocinense, anos atrás, me falava das supostas maravilhas daquela cultura do café, arrematando seu louvor com a constatação: veja, aqui não tem favela! Em tom de brincadeira contestei: é claro, as favelas daqui são exportadas para Uberlândia… O que eu queria dizer, de maneira assim meio sarcástica, era que aquele polo de atração de migrantes de toda parte, principalmente do Norte e Nordeste pobres de MG, simplesmente não estava preparado para absorver tal mão de obra nos períodos de entressafra do café, os quais, aliás, duravam nada menos do que dez meses no ano. E a cidade onde eu morava então, a dita Uberlândia, na condição de polarizadora de toda a região, é que arcava com as consequências negativas daquela migração desordenada provocada pela cultura cafeeira, não só “mono” como compulsiva.

Assim é até hoje.

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No rumo de Araxá (ou “do” Araxá) como eles dizem por lá vamos conhecer um rio sobre o qual vale a pena gastar algumas linhas: o rio Araguari, também conhecido por aqui como rio das Velhas. Mas atenção: não confundir com outro rio de mesmo nome, afluente do São Francisco, que nasce nos arredores de Ouro Preto e encontra seu destino junto à cidade de Pirapora, mais ao Norte.

Este Araguari é, na verdade, um rio modesto. Nunca foi caminho para algum lugar importante ou desejado por sua riqueza. Ao contrário, tendo seu curso muito corrido, digamos assim, sempre foi pouco navegável. Nenhuma cidade de importância histórica se desenvolveu no seu trajeto. A mais importante de tais povoações, que lhe empresta o nome, aliás, é Araguari, que se desenvolveu como cidade apenas no século 19, não exatamente por causa do rio, que aliás nem lhe banha de forma muito próxima, mas por motivo de outro caminho, este mais artificial: a ferrovia paulista que um dia foi conhecida como Mogiana, que ali se entroncava com a já citada RMV.

Por que falo aqui do rio das Velhas, ou Araguari. O que há de chamativo nele é que em anos recentes, últimas três décadas, por aí, este rio encontrou sua verdadeira vocação, a de gerar energia. Neste ponto que vamos atravessá-lo, Nova Ponte, está uma de suas diversas usinas hidrelétricas, e é por cima de tal barragem que vamos transpô-lo. Abaixo daqui existem mais umas três ou quatro. Isso deu à região, além do progresso de gerar energia para o sistema geral do país, um tremendo potencial turístico, já que o Araguari corre em leito pedregoso, o que faz com que as águas de tais lagos sejam permanentemente verdes e, além do mais, rodeadas de matas e recortes caprichosos, que em alguns trechos formam cânions muito pictóricos. É claro que mais do que nós, pobres mortais, aos quais é dado apenas apreciar de longe tal beleza, as pessoas ricas da região já compraram as terras ribeirinhas e nelas instalaram suas mansões hollywoodianas.

O Araguari é rio matador, também. Fui plantonista de Pronto Socorro no Hospital de Clínicas de Uberlândia e em diversas ocasiões fui obrigado a atender pessoas em estado de choque, por terem perdido parentes ou amigos afogados em algumas de suas corredeiras. Não era por acaso que isso se dava geralmente nos finais de semana, coincidindo com churrascos e bebedeiras beira-rio.

Curiosidade geográfica, para não perder este (bom) costume: o rio Araguari nasce “de costas” para o de São Franciso, bem lá onde vamos chegar. Ambos têm seu berço na cadeia de montanhas que por ali recebe o nome de Canastra, só que um corre para o Oeste (o Araguari) e o outro, depois de fazer um percurso rumo ao sol nascente, se desvia para o Norte (o São Francisco). Ainda dentro do domínio geográfico: a represa de Nova Ponte se situa exatamente em uma confluência de águas, de um lado o rio que leva o interessante nome de Quebra Anzol, de outro o Araguari propriamente dito, nome oficial daí em diante. E assim tais águas seguem seu curso ao poente, até encontrarem o já citado rio Paranaíba, que as receberão próximo à cidade que leva o nome deste afluente.

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Mesmo quem não tem o costume de assistir novelas já deve ter ouvido falar da famosa Dona Beja de Araxá. Tal senhora, na verdade Ana Jacinta de São José, nasceu em 1800 e reza a lenda que teria sido na terra ancestral de minha família paterna, Pains, um pequeno povoado no município de Formiga. Sua beleza, ao que tudo indica, era de fechar o comércio e, além disso, afetar setores muito além das lojas e boticas, como as instâncias do poder colonial. Foi assim que um certo Joaquim Inácio, funcionário da Coroa (Ouvidor Geral) a raptou e a levou para morar com ele na remota vila de Paracatu do Principe. Nem por isso foi tratada pela sociedade de sua época como vítima do machismo, mas, ao contrário, como mulher perversa e devoradora de homens. Abandonada pelo Ouvidor ela não deixou por menos: tornou-se dona de um bordel em Araxá. Mais tarde, já cinquentona, foi parar naquela Bagagem, ou Estrela do Sul já citada aqui, onde fez fortuna com ouro e diamantes e lá morreu em 1873.

A verdade sobre Ana Jacinta é que não é possível saber ao certo onde termina sua vida real e começam as lendas a seu respeito. Sua figura foi contada e certamente ampliada pelos anos a fora, graças à literatura, pois existe mais de um romance com foco nela, ou à famosa novela da TV Manchete dos anos 80.

Ainda no campo da lenda, mas com grandes chances de ser história verdadeira, está a sua famosa intervenção “de alcova”, junto ao Ouvidor Real, Joaquim Inácio, para que a região da Farinha Podre, hoje Triângulo Mineiro, fosse incorporada a Minas Gerais, pois até então ela pertencia a Goiás. Contudo, hoje em dia, na prática a diferença é apenas de natureza geopolítica, pois há muitas semelhanças entre os modos de ser triangulino e goiano, ou seja, o amor pela música sertaneja; o “r” arrastado”; o arroz com pequi; o palmito de “guerova”; a interjeição costumeira a Nossa Senhora da Abadia, além de péssimas escolhas em relação a seus políticos de estimação… Coisas assim.  

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No Araxá estaremos ao final do primeiro dia de jornada. Há e não há muita coisa a dizer sobre esta cidade. Passar uma noite aqui e tentar um banho de perolas nas banheiras deste Grande Hotel do Barreiro talvez seja o que realmente importa nesta cidade. Além disso, lembrar que aqui viveu (e talvez tenha reinado) por um tempo essa Dona Beja tão linda e rodeada de lendas, sobre a qual a verdade completa certamente não é que a está nas novelas de TV.

Se houver tempo, a degustação de um doce de leite, de laranja, de figo ou de mamão em fatias, típicos da terra, nos recompensará de sobra. E seguiremos em frente.

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Antes de prosseguir, contudo, algumas palavras que não poderão faltar no relatório produzido por este curioso profissional. Eu chamarei uma parte de nosso de trajeto de Província Mineral, onde imperam os afloramentos de minerais ricos em fósforo, de alta importância na agricultura e na indústria. Além de Tapira, nossa próxima parada, nela se incluem também Catalão, por onde já passamos e Patos de Minas que fica um pouco mais além.

O curioso foi ao Google e traz mais informações para vocês. O fósforo, símbolo químico P, é um elemento do grupo dos metalóides na Tabela Periódica, com número atômico 15. Ele se distribui de forma abundante na crosta terrestre sob a forma de ortofosfato. Na agricultura tem grande relevância na geração de energia nos vegetais, sendo crucial na fotossíntese, com repercussões na reprodução e no processo de crescimento e sustentação corporal. Neste último aspecto é fundamental para vegetais e animais. Assim, na agricultura, sob as formas de fertilizantes (adubos), que ele desempenha a sua principal utilização.

Se juntamos as reservas de Minas Gerais (aqui e em Patos de Minas), com as de Goiás (Catalão e adjacências) teremos mais de 80% do potencial nacional. Só o município de Tapira detém a terça parte disso.

Da referida Provincia Mineral sai, portanto, grande parte do fosfato do qual depende tanto a agricultura do país e, por extensão, o saldo positivo em nossa balança comercial. Não encontrei nada sobre a parte ruim de tudo isso, ou seja, de como as escavações para liberar o fosfato prejudicam a natureza. Certamente o fazem. Vamos verificar isso diretamente em nossa passagem por aqui.

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Finalmente a Serra da Canastra. Mas que serra é esta, que já está tão próxima e não é vista?

Não há nenhum mistério nisso, é que estamos chegando “por cima”. A serra é vista como tal apenas por quem a aborda pelo seu outro lado, no qual ela se destaca como uma barreira, percebida a quilômetros de distância. Mas ela na verdade é a beirada de uma grande mesa, a Chapada da Zagaia, e é por este terreno de planalto, ou seja, pelo tampo da mesa, que estamos trafegando.

Esta chapada ter importância histórica: por aqui viajaram os muitos migrantes que, para fugir da pobreza gerada pelo exaurimento das minas, procuraram as terras do Sertão da Farinha Podre para tentar vida nova. Em fase movimentada de tal diáspora, no início do século 19, há mesmo o relato de um viajante europeu que dava conta de um verdadeiro “engarrafamento” de gente, animais, carroças, carros de boi subindo as ladeiras desta e de outras serras da mesma cadeia, em busca do caminho do sertão. Afinal, para deixar a condição de miséria a que haviam sido relegados os anteriormente ricos territórios das Minas, valia qualquer sacrifício, fosse ele a distância a ser percorrida, o encontro com os temidos Caiapós ou a malária, para não falar do verdadeiro deserto em matéria de benfeitorias, onde tudo tinha que ser feito ou começado de novo.

Meu avô José Goulart Neto, nascido no final do século 19 em Pains, cidade do vale são-franciscano ao pé da chapada, contava que passou por aqui, a cavalo, diversas vezes, ajudando a levar e trazer boiadas criadas na imensidão das terras do Triângulo, como um negócio de família. Creio que foi por tal caminho que os Goulart, nomes de família comuns em Sacramento, Uberaba e mesmo em Franca, no norte de São Paulo, têm algum parentesco com a gente.

Esta Chapada da Zagaia encerra a sucessão de terras de tal feitio que encontramos em nossos caminhos até agora. Daqui para frente, vamos deparar com outra das fisionomias do grande Planalto Brasileiro: o Mar de Morros. Ele ocupa vastas áreas daqui em direção Leste e sua característica principal, como o próprio nome diz, é o de colinas suaves e arredondas, como se fossem meias laranjas ou cuias, a perder de vista. Não há muitas formações rochosas, platôs extensos ou desníveis abruptos. A vegetação continua sendo a do cerrado, porém entremeada com trechos de mata mais robusta, já em transição com a floresta atlântica.

Outra característica desta última chapada é o fato de ela ser um berçário de rios, que correm em direções divergentes. Com efeito, daqui saem não só o São Francisco, correndo no rumo leste e depois norte, como também o Araguari, do qual já falamos, no rumo do oeste e além deles uma série de afluentes do rio Grande, transformado, não muito longe daqui, no grande lago de Furnas.

Quando estivermos prestes a descer desta verdadeira “mesa” em que estamos, Serra da Canastra abaixo, vamos atravessar um gracioso riachinho, de água cristalina, correndo em leito de pedras amarelas e rosadas – é o famoso São Francisco, finalmente. Pouco abaixo deste ponto ele vai se jogar pela beira da Chapada, ou melhor, da Serra da Canastra, na não menos famosa cachoeira da Casca D’Anta.

Mas a questão da verdadeira nascente é polêmica. Historicamente ela se situa aqui, bem na beirada da estrada que estamos atravessando, mas recentemente, medidas mais exatas mostraram que o ponto mais distante da foz, que seria a nascente oficial, fica em local diferente, embora nesta mesma chapada, no vizinho município de Medeiros.

Toda esta área percorrida nos últimos 60 km ou mais já pertence ao Parque Nacional da Serra da Canastra, já ia me esquecendo de dizer.

Ao pé da serra vamos encontrar a cidade de São Roque, antiga Guia Lopes, onde nasceu minha avó Ermelinda, depois virá a Vargem Bonita, onde meu avô José Goulart teve fazenda e mais adiante este Piumhi, de esquisito nome, por onde passaremos também.

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A cidade de São Roque tem como principais atrativos – extensivos a toda a região – a abundância de cachoeiras, entre as quais reina soberana a Casca D’Anta, formada pelo ainda jovem rio São Francisco, além do o mais afamado de todos: a fabricação do queijo canastra. Pelo que consta há dois tipos de placas indicativas dominantes no cenário, aquelas que apontam cachoeiras e as que indicam queijaria. Tudo indica que precisamos nos dividir entre uma coisa e outra, desde que as estradas não sejam muito ruins e que haja lugar em nossos estômagos e porta malas para tanto queijo.

Seu nome antigo, até os anos 60, era Guia Lopes, dado em homenagem a seu filho mais ilustre: José Francisco Lopes, aí nascido em 1811. Sua fama, entretanto, se fez em outro local, no atual estado de Mato Grosso do Sul. Reza a lenda que a família Lopes, em sua nova moradia, em área isolada e desprotegida, no início dos conflitos com os paraguaios, teve alguns de seus membros sequestrados pelas tropas inimigas. Assim, tomado por um sentimento de vingança, José Francisco teria se alistado voluntariamente entre os brasileiros para guiar as tropas que chegavam do Rio de Janeiro e iniciavam uma ofensiva por terra ao território paraguaio. Após tamanha caminhada, chegaram à região exaustos e fragilizados e assim o bravo mineiro cedeu até o gado de que dispunha para alimentá-los. Entretanto, a ofensiva em que Lopes desejava resgatar sua família, revelou-se um fracasso e resultou em fuga desastrosa, que só não resultou em morticínio total porque o já intitulado Guia Lopes mostrou os caminhos aos soldados brasileiros e despistou o inimigo em um terreno difícil – a chamada Retirada da Laguna. JF faleceu em 1868, sendo um dos milhares de vitimados pela cólera, que grassava intensamente na regiao.

Minha avó paterna, Ermelinda, tinha o sobrenome Lopes e nasceu neste mesmo São Roque, ex-Guia Lopes. Isso me autoriza a me proclamar descendente do heróico José Francisco. Não posso provar tal coisa, mas também não há provas contrárias a tanto. E tenho dito

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Na próxima parada do nosso roteiro, Piumhy (não cabe corrigir, é assim mesmo a grafia), tentarei encontrar um antigo colega de turma, José Garcia Pereira,  que exerce a medicina por lá. Se o encontrar, tudo bem, pedirei tempo apenas para um dedo de prosa, um café e um abraço. Tenho parentes por aqui, as placas comerciais com o sobrenome Goulart o atestarão, mas com nenhum deles tenho a intimidade que justifique o mesmo que concedo ao colega Zé Garcia.

Atenção: curiosidade geográfica! Piumhy fica no vale do São Francisco, mas o rio que banha o município tem nascentes em comum com outro, que corre em sentido oposto, ou seja, para Sudoeste, como afluente do rio Grande, que não fica muito  longe daqui. Mas enfim, qual a questão que justifica esta menção? Ela diz respeito à barragem de Furnas, que cerca o rio Grande a algumas dezenas de km de Piumhy. Já nos levantamentos topográficos da época de sua construção, anos 60, se percebeu que se dependesse do tal afluente são-franciscano, que divide a nascença com o ribeirão riograndense, a barragem jamais se encheria, pois suas águas seriam simplesmente desviadas no rumo do São Francisco. Assim, foi necessário projetar e construir ali no município de Piumhy uma segunda barragem, para impedir que as águas que deveriam correr para o Sudoeste corressem para o Norte. Assim foi feito e vamos passar por ela em algum momento.    

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