Por serras, morros, rios, vales – e História: uma festa em Sabinópolis

A Cordilheira. Talvez seja exagero chamá-la assim. Suas alturas máximas pouco passam de dois mil metros e sua extensão – assim mesmo descontinuada em alguns trechos – não chega a mil km. Além disso, não serve de divisa a países, nem mesmo a estados, já que percorre, no sentido Norte-Sul, apenas uma parte da área central de Minas Gerais e da Bahia, não chegando a cortar seus territórios de ponta a ponta. Sem dúvida, entretanto, a Serra do Espinhaço, tem presença marcante na vida de muita gente, mesmo que muitos de seus habitantes nem se deem conta que ela existe. De toda forma, é considerada pelos geógrafos como a única real cordilheira do Brasil. Recorrendo à prestimosa Wikipedia, vejo que ela se situa no chamado Planalto Atlântico, formada há mais de um bilhão de anos a partir de terrenos da era proterozóica, o que a faz rica em jazidas de minerais diversas, entre eles o ouro e o ferro, que contribuem para dar a estas montanhas um estatuto de importância econômica – ao mesmo tempo de devastação da natureza. Em Minas, o tal do Quadrilátero Ferrífero, situado ao longo de sua sombra é prova disso. Mesmo quem não se liga em geografia conhece ou já ouviu falar de algum de seus núcleos populacionais históricos: Ouro Preto, Mariana, Sabará, Serro, Diamantina, Grão Mogol e já na Bahia, Rio de Contas, Brumado, Mucugê e Lençóis. De entremeio, relíquias coloniais como Santuário do Caraça. Isso para não falar da cidade de Itabira, onde nasceu uma vasta parentada minha – e eu mesmo.

Na verdade, este termo Espinhaço é apenas um de seus nomes, este com origem científica baseada na geologia, por se referir a uma imensa dobradura da crosta terrestre, que se estende no território mineiro e baiano como uma espinha dorsal. Quem assim a batizou foi o geólogo alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege, já no século XIX. Em lugares diversos ela possui denominações específicas, como Gandarela, Curral, Moeda, Piedade, Caraça, Gongo Soco, Itacolomí, Cabeça de Boi, Cipó, Breu, Tabuleiro, Itambé, Ivituruí, Botumirim, além de muitos outros apelidos, dependendo do lugar.

Para os geo-curiosos, como eu, outra menção importante é que esta cordilheira é responsável pela divisão entre a bacia do rio São Francisco com outras redes de drenagem que correm diretamente para o oceano Atlântico, com destaque especial para os rios Doce e Jequitinhonha. Ela é também considerada Reserva Mundial da Biosfera, por ser uma das regiões mais ricas do planeta em termos de biodiversidade. É um belo título honorífico, sem dúvida, mas os efeitos práticos de tal galardão ainda estão por se revelar.

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Porém, nosso destino final, Sabinópolis não fica exatamente na Cordilheira, mas por ela temos que trafegar para chegar lá. E as opções para tanto são diversificadas, podendo ser grosseiramente classificadas como “pela Cumieira” e pelo “Mato Dentro” (ou seja, pelo Vale do Rio Doce). Viajamos, desta vez, de forma entremeada, entre uma paisagem e outra.

Já há alguns anos ficou fácil fazer tais viagens, ao contrário de décadas passadas, quando elas se davam através de verdadeiras epopeias, em verdadeiras estradas solúveis em água. Para se ir a Itabira, por exemplo, apenas um terço do caminho até o nosso atual destino final, tendo como única opção do roteiro do “Mato Dentro”, o mínimo que se viajava eram seis a oito horas, mesmo assim quando as barreiras e a lama o permitissem.

Assim fomos pela Cumieira, para depois alcançar o Vale no Mato Dentro. A estrada costumeira, aquela utilizada pelos ônibus e pela maioria das pessoas sensatas vai pelos altos do Espinhaço, depois de se atravessar o rio das Velhas e o Rio Cipó, são-franciscanos ambos, a Nordeste de BH, entremeando, após isso, o planalto que faz a divisão de águas entre Chico e Doce. A partir de Conceição do Mato Dentro navega-se apenas na vertente oriental da Cordilheira, ou seja, na bacia do rio Doce, deixando o São Francisco para trás.

Mas como os viajantes atuais não eram sensatos e nem estavam com pressa, resolvemos radicalizar um pouco. Ao invés de viajar pelo cômodo planalto, resolvemos atravessar a crista da montanha, na direção leste de BH, que tem como municípios limítrofes Taquaraçu e Nova União do lado Oeste e Itabira, a Leste. E por ali tomamos o trajeto do que se hoje denomina Estrada Real, embora tal designação necessite de algum esclarecimento.

Nosso roteiro incluiu uma passagem pelo Mosteiro de Macaúbas, situado no lado ocidental da Cordilheira, no município de Santa Luzia, uma bela construção setecentista hoje recuperada através de uma parceria público-privada. Ao percorrermos o trajeto entre o mesmo e os limites do município de Itabira refizemos o caminho de nossa bisavó materna Julieta Chassim Drummond, que estudou nas Macaúbas em sua mocidade, em meados do século XIX, quando ali havia além de clausura de freiras, uma escola em regime de internato para meninas, que possivelmente vinham de todo o Mato Dentro e do vale são-franciscano. Gastamos nisso pouco mais de duas horas, contando as paradas, quando no tempo da bisavó isso devia durar dois dias ou mais, em lombo de mulas.

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A questão de tal Estrada Real é a seguinte: havia, com certeza, em tal trajeto uma rede de caminhos que legavam os centros do Poder, como Ouro Preto e o próprio Rio de Janeiro à Provincia dos Diamantes, além de outros territórios de interesse minerador, já no Século XVIII. A designação “rede” certamente é mais apropriada, pois eram permanentemente refeitos, não só para atenuar as distâncias, como para evitar ou superar obstáculos naturais (que aliás não faltavam por ali), além de outro fator, que tornava esta rede de caminhos ainda mais intrincada, pois se por ali, com efeito, de um lado era exercido o poder fiscal da Coroa Portuguesa, de outro se imiscuíam os interesses clandestinos de contrabandistas de diamantes, assaltantes e outros divergentes da lei.

O fato é que, por tais caminhos, conforme o dito de Heráclito de Éfeso, era quase impossível um homem passar duas vezes, no mínimo porque em uma segunda (ou terceira) tentativa, a estrada já era outra e o personagem poderia estar preso ou morto por meliantes. Tempos difíceis aqueles.  

Mas o fato atual é que o Governo de Minas desenvolveu a iniciativa chamada Estrada Real, fez distribuir marcos de concreto ao longo de um determinado caminho, aquele utilizado para o atual tráfego de automóveis, ônibus e caminhões. E vamos por ele, fingindo acreditar que de fato estamos no tal trajeto oficial tradicional.

Estrada Real: um belo projeto de desenvolvimento turístico, econômico e social, mas que, como dizia Fernando Pessoa, falta cumprir-se. A sensação de se passar por ali é muitas vezes de abandono e só nos damos conta de estar nela ao se ver, aqui e ali, os marcos de concreto que ainda restam de pé.

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E assim vamos por Itabira (passando por seus dois distritos rurais de Ipoema e Senhora do Carmo), Itambé do Mato Dentro e Morro do Pilar, até alcançarmos o já citado planalto, já próximo a Conceição (mais o uma vez) do Mato Dentro. O grande atrativo aqui é a visão constante do paredão da Cordilheira, ao fundo, do lado esquerdo da estrada. Paisagem um tanto desolada e empoeirada, dominada por fazendolas de criação de gado, com seus currais desmazelados e seus “retiros” absolutamente precários. Raramente se vê uma casa de “sede” respeitável, o que denuncia um aspecto da “modernidade”, ou seja, fazendeiros que moram nas cidades e não em suas fazendas.

Aqui, ao que parece, a mineração não prosperou e o que veio depois, como é o caso da pecuária, foi pelo mesmo caminho. Possível exceção para o turismo, que parece ganhar corpo em Ipoema e Itambé. Em todo caso, um breve destaque para Morro do Pilar, cidade feia e esquisita, mas que tem em sua história a primeira fundição de ferro do Brasil, por obra de um certo Intendente Câmara, embora tal fato seja ignorado nas informações turísticas disponíveis. Li um breve registro, não sei mais onde, sobre um artesanato feito em Morro do Pilar com as palhas da palmeira Indaiá, parente próxima do conhecido Babaçu, que é muito a abundante na região, porém não de maneira contínua, se alternando com sua rival Macaúba, que é dominante em ambas as vertentes do Espinhaço. Mas não vi por lá nenhum exemplar de tal manufatura.

E vamos em frente!

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Conceição do Mato Dentro. O que se pode dizer daqui? Nenhum acontecimento histórico marcante; a própria mineração de ouro e diamantes, de forte presença na região, aqui não parece ter deixado maiores marcas. Talvez se tenha que destacar a produção humana, melhor dizendo, a vinda ao mundo do interessante personagem Zé Aparecido de Oliveira, que percorreu caminhos extensos na política mineira e nacional, indo de secretário particular de Jânio Quadros, a figura influente na Nova República tancredo-sarneyziana e até mesmo governador do Distrito Federal. Mas visto de perto este Zé até merece certa honraria. Em sua gestão, no DF, ideias inovadoras e até politicamente progressistas, coma uma reforma psiquiátrica foram implementadas, além da transformação das antigas residências de generais – as granjas – em cenários de utilidade pública. Sendo assim, ficam justificadas essas linhas dedicadas a ela e à sua cidade.

Conceição é hoje um fervilhante formigueiro humano. Nada de leite, queijo, arroz e feijão. O progresso aqui tem duas faces: turismo e minério. A travessia da cidade, que se dá obrigatoriamente por uma única via, já bem o demonstra com seu rush intensivo: perde-se meia hora ou mais para trafegar uns poucos km, particularmente nos horários de pico.

A serra que se vê ao Norte e Oeste, contida na Cordilheira do Espinhaço circunjacente, aqui denominada Serra do Sapo, constitui hoje um gigantesco veio de exploração do minério de ferro, por mãos britânicas e canadenses. Dali o ferro vai ao mar, no Espírito Santo, embebido em grossa calda aquosa, através de um mineroduto. Da estrada se vê, em plena noite, a iluminação dos caminhos e das crateras, os bull-dozers se movendo com fúria, a montanha totalmente subvertida em seu desenho original. Coisa titânica! A movimentação dos operários de volta pra casa em dezenas de ônibus fretados ad-hoc justifica, assim, a intensidade do rush percebido nestas paragens.

Os mais sensíveis se horripilam, com certeza. Mas, fazer o quê? Vamos acreditar que seria possível extrair o ferro e curar a ferida depois, bem direitinho. Ou não?

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Agora o caminho ao Serro, secularmente esquecido, mas agora ressuscitado, asfaltado e movimentado, graças à mineração. Mesmo que alguém não goste, a turma de lá certamente aprecia uma coisa assim.

E vamos deixando de lado lugarejos certamente interessantes, como Itapanhoacanga e a Vila Deputado fulano de Tal, nascida como Mato Grosso, sede de uma tradicional romaria.

O Serro, também dito Ivituruí pelos índios, depois Serro-Frio e Vila do Príncipe pelos brancos, já foi, mas quase não é mais – não se cumpriu –de acordo com o dito de Fernando Pessoa. O que salva a cidade é a produção do queijo que ali tem “D. O. C.”, além do turismo, embora mal administrado.

Mas há uma fofoca regional, de origem notória, a respeito daquele produto: que o melhor queijo do Serro é produzido, de fato, em Sabinópolis.

Que se registre, de passagem, para gaudio do público geófilo, que neste mesmo Serro nasce o rio Jequitinhonha, que vai direto ao mar, além do Santo Antônio, que corre para o rio Doce. Por pouco, em algum alto de serra, poderia haver algum afluente do São Francisco também.

Falar em Serro “puxa” lembrar de mineração e esta palavra remete a escravidão. Aqui se assenta, com efeito, uma das raízes – a negra – da bela festa que iremos assistir nos dias seguintes, em Sabinópolis, que está logo ali.

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Finalmente Sabinópolis. Feia ou bonita? Certamente, por qualquer parâmetro de avaliação, mais feia do que bonita. Cercada de morros, repete o tema em tantas outras – quase todas – as cidades de Minas. Os mais ricos procuram as baixadas para morar, em segurança contra deslizamentos, embora se arriscando às enchentes dos rios; os pobres se viram como podem, encarapitados nos morros circunjacentes. Para estes, muitas vezes, não há ruas ou elas são impraticáveis para veículos, fazendo com que as moradias se insiram dentro de um emaranhado de vielas.

O resultado de tal ocupação vernácula é um amontoado de casas toscas, geralmente sem pintura, arborização e outros adereços, dispostas arbitrariamente nas encostas, mostrando aqui e ali áreas vazias geradas por desabamentos. É assim em Sabinópolis, Caratinga, Manhuaçu, Teófilo Ottoni, Rio Casca e mais um monte de cidades que conheço, particularmente nas regiões montanhosas do estado.

Nas ruas principais, situadas nas baixadas, a impressão que se tem da cidade é até razoável, mas é preciso cuidar para não elevar o olhar para o alto dos morros…

Mas o aspecto meio tosco de Sabinópolis não é nada perto do que se verá adiante, em Guanhães. Esta cidade sim, tem um patrimônio urbano hiperbolicamente desfigurado.

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De onde se origina a atual Sabinópolis? Vou deixar a pesquisa wiki-internética de lado para fazer minhas próprias conjecturas, dando, assim, talvez, alguma romanceada na narrativa. Ou nem tanto, pois há aspectos bastante previsíveis em tal história. É claro que ali pela vasta Cordilheira, bem como pelo Mato Dentro a fora, andaram bandeirantes e outros aventureiros em busca do ouro, talvez desde o século XVII. Afinal, o Serro fica dali a poucas léguas – cerca de seis ou sete – e lá foram encontrados não só os diamantes como também o cobiçado metal, embora posteriormente tenham se esgotado tais recursos. Mas este certamente não foi o destino de Sabinópolis, onde tais achados nunca primaram pela abundância.

Entretanto, além da frustração em relação ao achamento de riquezas minerais, havia no território pré-Sabinópolis dois tipos perigosos de adversários dos portugueses: a malária e os índios Botocudos. Isso deve ter afastado, pelo menos até o século XIX, a presença de quem por lá quisesse se aventurar. Havia, é bem verdade, as terras férteis do vale do rio Guanhães, nascido na vertente oriental da Serra do Espinhaço (ali chada de Ivituruí), além de madeira abundante na vasta floresta atlântica circunjacente, mas cuja apropriação exigia cautela, diante de tais agravos. Assim, é provável que o pessoal já instalado no Serro somente resolvesse se arriscar em descer ao vale quando a mineração finalmente passou a não valer a pena, já no final do século XVIII.

Ah, os famigerados Botocudos… Em primeiro lugar cabe lembrar que esta é uma designação pejorativa, dada pelos lusitanos, que os consideravam mais feios ou estranhos do que os demais índios conhecidos, pelo uso dos batoques em lábios e orelhas (como aquele do cacique Raoní). O mínimo que os historiadores menos sensíveis e mesmo caretas falam deles é dado pelas palavras selvagens, bravos, brutos, ferozes, como tratassem de animais. Sua classificação étnica é controversa, sabendo-se que, em termos linguísticos, pertenceriam a um suposto tronco Macro-Gê, não ligado ao Tupi. Eles são também conhecidos como Aimorés, Boruns ou Guerens. Esta primeira designação, aliás, deu nome a outra cidade do vale do rio Doce, onde deviam ser dominantes. Espalhavam-se, em séculos passados, por todo o Sul da Bahia, vales do rio Doce, Mucuri e Pardo, bem como todo o norte do Espírito Santo

Quando os portugueses chegaram, tais grupos dos ditos Botocudos viviam da pesca, caça e coleta, além de pequena agricultura de subsistência. Foram eles o grupamento a ocupar o maior território na região do atual Espírito Santo (Minas Gerais a dentro) e sem dúvida aqueles que opuseram maior resistência aos invasores brancos. Eram de fato muito aguerridos, defendiam seu território com determinação, não hesitavam em tocar fogo em fazendas, igrejas e aldeias, não deixando por menos ao entrar em conflito com outros grupos originários, como os goitacases, situados mais ao Sul.

Não foi por pouca coisa que os portugueses passaram a tratá-los não só com violência desmedida, mas também com o apelido pejorativo. Os grupos do Rio Doce, entre os quais certamente se incluem aqueles residentes na área de Sabinópolis, sobreviventes destituídos de suas terras, foram, por assim dizer “aculturados” no início do século XX e assim recolhidos (reduzidos) a diversas localidades situadas no Espírito Santo e em Minas Gerais, como é o caso da própria Aimorés e Maxacalis.

Podemos dizer, então, que Sabinópolis vem à luz, como cidade de alguma importância, somente no século XIX, a partir de uma diáspora serrana cuja composição mostrava brancos falidos e negros libertos, além de eventuais índios depauperados. Se isso por um lado é um começo aparentemente inglório, por outro representa uma mescla cultural promissora, da qual deriva diretamente a festa da qual iremos tratar mais adiante nestas páginas.   

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Toda a vertente oriental do Espinhaço, desde Mariana até a região de Sabinópolis – e até mais além – foi conhecida primitivamente como Mato Dentro (mato-a-dentro…). Não só por conta dos índios, mas também da malária e da geografia caprichosa, ficou isolada do restante do estado por muito tempo. Como exemplo, recordo que na minha infância, nos anos 50, a viagem entre Itabira (do Mato Dentro) e BH chagava a durar mais de seis e até oito ou nove horas, embora a distância entre essas cidades não passe de 100 km.

Quando falo de uma geografia caprichosa refiro-me não só à grande cordilheira e seus contrafortes, mas também aos Mares de Morros adjacentes, entremeados que foram um dia de densas florestas e numerosos cursos d’água, acidentes geográficos hoje em estágio de exaustão. Em tal território, abrir estradas era uma tarefa inglória e mantê-las mais ainda. Lembro-me bem, nas antigas viagens a Itabira, naqueles saudosos fifties, de momentos em que os passageiros das antigas jardineiras eram convidados (ou forçados…) a arregaçar mangas e calças, para ajudar a desatolar o veículo. Era assim que acontecia naquelas estradas, por assim dizer, solúveis em água.

Mas aí veio JK e foram abertas estradas por todo lado, inclusive alcançando o Mato Dentro, no qual a linha de Itabira até as cidades mais ao norte, já no Jequitinhonha, passaram a ser servidas. Isso certamente deve ter trazido algum progresso (digamos assim) a todo o pedaço e até mesmo o surgimento de novos núcleos populacionais. O preço disso foi, em alguns casos (talvez os mais frequentes) o surgimento de alguns monstrengos urbanos, verdadeiros cânceres metastáticos, invadindo e escalando morros sem qualquer critério lógico, como é o caso de Guanhães e outras cidades.

E assim que o Mato Dentro da floresta intocada, da malária e dos Botocudos, foi por assim dizer penetrado (no sentido perverso de tal palavra) e se transformou no território tal como hoje se apresenta, com sua ocupação caótica, sua natureza devastada, suas cidades descuidadas, seus morros detonados seja pela ocupação humana ou pelas pastagens, seus rios transformados em poluídos fios d’água, suas tradições quase apagadas.

Eis o que eu chamo de efeito rodoviário ou “civilizatório” (aspas!) sobre o Mato Dentro e ele foi tão terrível quanto a mineração arrasadora, a derrubada da floresta, a extinção dos Botocudos, a pecuária intensiva e predatória, a descaracterização cultural.

Para nos salvar da miséria total, registre-se, pelo menos, a visão durante a presente viagem, do florescimento, em plena seca, da miríade de Mulungus, Ipês Amarelos e até mesmo Embaúbas prateadas que ainda ornamentam o tal Mar de Morros, entre Guanhães e Itabira.

Mato Dentro ou mato fora? Porventura alguma floresta verdadeira? Não. Apenas uma mancha aqui e ali, em alguma pequena grota entre morros. Não seria por acaso que quase não vimos queimadas nesta jornada: simplesmente já não há mais combustível para tanto.

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História ambientada supostamente em Sabinópolis que me foi contada pelo meu amigo Eduardo Guerra, cujo pai, médico, tentou iniciar sua carreira aqui nos anos 30 (ouvi também uma versão semelhante, porém com foco em Guanhães). Quando o jovem doutor chegou, lhe deram o seguinte aviso: aqui ou você é ‘Coelho’ (sobrenome tradicional da cidade) ou é ‘couve’. De maneira que precisa escolher de que lado está.

Pano rápido.

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Finalmente, chegamos à Festa de Nossa Senhora do Rosário – assim mesmo, bem maiúscula.

Academicamente, este tipo de manifestação se encaixa no conceito de folclore e assim representa “o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social”. Seus fatores de identificação incluem a aceitação coletiva, a tradicionalidade, a dinamicidade e também algum grau de funcionalidade, sendo esta última a existênciadealguma razão para o fato acontecer, não constituindo um dado isolado, e sim inserido em um contexto dinâmico e vivo.

Acrescente-se a isso a espontaneidade, já que o fato folclórico não nasce de decretos governamentais nem dentro de laboratórios científicos; é antes uma criação surgida organicamente dentro do contexto maior da cultura de uma certa comunidade. Uma coisa assim deve ser também regional, ou pelo menos localizada, típica de uma dada comunidade ou cultura, ainda que fatos similares possam ser encontrados em outras e distantes realidades.

Até aí, a Festa de Sabinópolis está completamente enquadrada em tal rede conceitual: tradicional, compartilhada socialmente, dinâmica, espontânea, popular, abrangente geograficamente, repleta de significados ‘funcionais’. Aqui se convergem as influências ibéricas e europeias dos donos das minas, temperadas pelo dendê africano dos escravizados. O que tenho a dizer aqui sobre tais fatos não pretende ser uma análise técnica, mas apenas impressionista do que assisti. Aliás, que fique bem claro que estou produzindo este texto apenas por diletantismo, sem outra preocupação do que a de registrar – pelo menos para meu uso próprio – uma viagem que me trouxe muitas alegrias. Não fala aqui algum especialista – o que definitivamente não sou, aliás.

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Com certeza, um evento como este não significa apenas uma festa de negros ou seus descendentes. Eles estão aqui e sua presença e influência são marcantes. Mesmo aqueles índios vestidos de penas de espanador trazem significado, não exatamente alguma reminiscência dos antigos Botocudos, apenas uma alegoria. Assim como Mozart compôs sua célebre Marcha Turca sem ter ido à Turquia ou sem ter talvez conhecido um turco de verdade, ali as referências indígenas são indiretas, remetendo a um passado considerado nobre, sem trazer em si influências diretas desses. A própria indumentária de tais índios, aliás denominados caboclinhos (o que mostra sem dúvida que a referência a eles não chega a ser direta ou unívoca) é bastante alegórica, com uma profusão de penas tingidas, atadas a todo o corpo e membros dos participantes, sem uma relação direta ao possível modus-vivendi dos Aimorés verdadeiros, que certamente preferiam andar nus.  

Verifica-se também uma nítida presença, na festa, de uma classe média e até alta de brancos, seja de nativos sabinopolitanos emigrados ou mesmo residentes na cidade. A forte presença, nas ruas da cidade, de carrões novos em folha, 4×4 ou congêneres, com placas de BH e outras cidades bem reforça certa “democratização” da festa. Mas é claro que isso não representa nenhum desdouro para a mesma, bem ao contrário, mostra seu poder aglutinador e de quebra de barreiras sociais. Curiosamente, tal democratização se fez de baixo para cima, ou seja, uma atividade de gente mais pobre e tida como inculta exercendo atração para aqueles situados em pontos mais altos da pirâmide social, seja por adesão consciente, simples modismo ou desejo de parecer politicamente (e culturalmente) corretos.

Curioso também na festa do Rosário é o seu nítido sentido em dupla via, ao mesmo tempo religioso e profano. Todas aquelas pessoas paramentadas para a celebração da santa e aparentemente imbuídas de um profundo espírito de fé, de repente se transformam em animados foliões, em frenética batucada alimentada pelos mesmos instrumentos e intérpretes que até alguns momentos antes estavam ali para louvar Nossa Senhora do Rosário. O surgimento dos bonecões inspirados no Carnaval de Olinda, neste ano de 2024 transformados em instrumentos de contestação ao poder paroquial, bem demonstra tal característica de dupla via da festa. Aliás, no sábado à noite, no momento em que os grupos se concentram à porta da igreja para receber a benção do Pároco, isso se torna nítido, ao ser proferido aquele amem final, dando por encerrada a procissão, quase ao mesmo tempo um grupo numeroso desencadeia pujante batucada, com cânticos agora profanos em termos de ritmo e conteúdo.  

A dupla via mística – carnavalesca parece ter tido seu apogeu neste ano de 2024, com o polêmico embate do Pároco local, que demonstra ser persona quase destituída de noção, com alguns paroquianos, que acabaram levando a uma excomunhão em praça pública, somado ao desfile de um bonecão provocador vestido de batina e sobrepeliz, com repercussões midiáticas importantes, no nível do próprio estado e mesmo no país, aspecto em que meu genro Alexandre teve um papel decisivo. Tudo em honra e homenagem a Nossa Senhora do Rosário, claro.

Aspecto a ser destacado é o sentido afirmativo que a festa traz para a cidade. Não só pela presença maciça dos cidadãos nativos emigrados e de turistas vindos de outras localidades, como pelo envolvimento geral da população, tanto das camadas “de baixo”, como das classes média e alta, além de autoridades de diversas extrações. O próprio investimento material que a Prefeitura carreia para a festa, além de incentivar as atividades comerciais, sem dúvida, representa mais uma prova de que o tal sentido afirmativo se estende também ao campo da política.

É claro que tudo isso faz movimentar a economia. Os hotéis ficam lotados, os postos de combustível abastecem sem parar, uma vasta feira de utilidades e quinquilharias se alastra pelas ruas da cidade – enfim, todo o comércio se agita nos três ou quatro dias de agosto em que a festa acontece.

Uma tentativa de síntese da grande festa de N. S. do Rosário de Sabinópolis pode ser traduzida por outra modalidade de duplicidade e contradição que a mesma traz. Com efeito, ali reside, sem qualquer dúvida, uma marcante manifestação resiliente de autêntica cultura popular e isso se demonstra, por exemplo, na miscelânea das representações de marujos, caboclos, índios, santos, anjos, reis, rainhas e princesas. Mas por outro lado, a real origem de muitas de tais representações provem do lado oposto da estrutura social, ou seja, do polo dominante, que aporta à tal festa sua própria religião, seus ícones de nobreza, seus parâmetros de beleza física, além de seu poder material e de suas (já um tanto remotas) origens europeias e lusitanas.

A verdade é que tudo aqui se funde e se amalgama, num verdadeiro milagre de transubstanciação. Vamos encontrar o elemento negro dentro da representação branca e vice-versa, a figuração branca, de reis rainhas e princesas, por exemplo, encarnada em faces e peles pretas. Aqueles pigmeus de bulevar, dos quais falou Chico Buarque.

Mas assim como a vida, esta Festa de N. S. do Rosário em Sabinópolis não deixa de ser uma mistura contraditória e nem sempre resolvida de forma simétrica e ou harmonizadora entre suas partes componentes, já que representa, ao mesmo tempo, dominação de classe e afirmação cultural popular.

Mas vamos combinar: é tudo festa e feliz é o povo que sabe festejar!

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PS. Uma viagem como esta não é de se fazer sozinho. Ao contrário, tem que ser bem acompanhado. E eu tive ao longo desses dias a companhia fraterna e solidária de meu amigo e irmão João Maurício, que não só me guiou no seu Suzuki pelos caminhos da Cordilheira & Vale, como fotografou, como um possesso do bem, gente e paisagem, provendo-me, além do mais, de muito boa prosa. Meus agradecimentos também a dona Sinhá e sua família, aí incluídos Alexandre e Nanda, que nos receberam de maneira tão carinhosa em Sabinópolis.

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E para coroar esta edição, fotos da festa by João Mauricio

 ***FIM

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