Muito estranhos aqueles acontecimentos. – Você é culpado – era o que uma voz lhe dizia. Ou melhor, quase gritava. Não era possível saber de onde vinha e nem mesmo quem era que assim lhe falava. Seria para ele mesmo? – se indagava, sem resposta. Aquilo era tudo realmente estranho, muito fora do normal. Ele morava em um quartinho alugado, em uma travessa de uma cidade desconhecida, na qual havia cúpulas de igreja coloridas, em forma de sorvete, além de estátuas e monumentos por todo lado. Fazia frio. Havia um grande edifício, não era possível saber se era museu, prisão ou quartel. O fato é que aquele cubículo que lhe abrigava estava distante de qualquer luxo; mais parecia um armário de que uma habitação.
Ele saíra de lá para tomar um ar e ia devagar, pois lhe doíam os calos, coisa agravada pelas botas novas que usava. Havia no caminho uma ponte e ao atravessá-la quase esbarrou com o velhote de quem era inquilino. Evitou encará-lo, pois lhe devia pelos menos uns três ou quatro meses de aluguel. Ele se sentiu um covarde, talvez apenas tímido, ou coisa pior, um cara fracassado. Era enorme o seu estado de excitação e enervamento, tudo a ver com certa hipocondria e claustrofobia que lhe eram habituais, agravados pelo aprisionamento naquele armário imundo onde vivia, isolado de todos.
O pior é que havia mais uma criatura com quem ele mais ainda temia encontrar, mais do que o próprio a dono do cubículo onde vivia. Era a mulher infame que lhe vinha emprestando uns trocados para que se pudesse se manter na cidade grande, longe da família, que lhe mandava algum dinheiro também, que nunca lhe bastava. Maldita aquela mulher! Por conta dela foi penhorando tudo o que tinha, suas roupas, seus livros, sua bicicleta, seu telefone celular e até mesmo alguma rara roupa mais elegante que possuía. E não havia qualquer chance de regatar os bens a ela entregues, pois o dinheiro lhe faltava cada vez mais e sua dependência dela só aumentava.
Foi assim que resolveu acabar com ela de vez, pensando em fazer rápida a passagem entre o pensamento e o gesto. Mas para começar, na penúria em que se encontrava, não dispunha de qualquer instrumento capaz de dar cabo àquela megera. Vagando pelos arredores, por sorte encontrou uma machadinha, abandonada em um lote vago. E foi cumprir sua decisão, com tal peça bem disfarçada dentro de uma velha bolsa, incômoda em excesso, não apenas por seu estado lamentável, também pelo peso da ferramenta, que ameaçava cair ao chão, devido ao tecido roto daquele traste. E assim subiu ao apartamento da velha usurária e quando ela abriu a porta já foi lhe aplicando uma bela machadada. Que coisa estranha, ele nunca havia matado ninguém, nem mesmo uma simples galinha! E foi tão fácil ela morrer… Recuou, célere, temendo se sujar com a mancha de sangue que de forma rápida se estendia pelo assoalho, qual uma ameba. Saiu de novo à rua e foi então que ouviu, pela primeira vez, aquele grito, que com certeza lhe era dirigido – a quem mais o seria? Você é culpado!
E aquilo parecia reverberar: culpado, culpado, culpado! Andava por ruas desconhecidas, sem olhar para trás. Quando passou pelo posto policial que ficava próximo, sentiu um arrepio de medo, mas logo tentou se acalmar – não havia motivo para tanto temor. Afinal, ninguém havia visto ele subir ao apartamento da velha – e nem descer de lá. Estava salvo, pensava. Deu mais umas voltas pelas redondezas, comeu um cachorro-quente na esquina e finalmente se recolheu ao seu detestado armário. Mas o sono não lhe vinha. Relembrava de cada passo durante aquele dia, preocupado em saber de havia deixado alguma pista daquilo que cometera. Mas tudo parecia bem encaixado.
Até que de repente, se lembrou da machadinha. Onde a deixara, afinal? Depois de um minuto de angústia lembrou-se que ela devia estar na velha bolsa ainda e, por sorte, logo pôde confirmar que assim ocorria. Cabia atirá-la fora, mas onde? Àquela hora da noite… Enquanto isso, muito ao longe, vindo não se sabe de onde, pareceu-lhe ainda ouvir aquela ladainha dos infernos: culpado, culpado, culpado! Acabou se levantando e saindo do armário, pondo-se a vagar pela noite para se desfazer do incômodo utensílio. Optou por abandoná-lo no mesmo lote vago onde a encontrara, sem poder confirmar se foi no exato lugar; no escuro não lhe era possível certificar. Como se não bastasse tal estado de confusão, esbarrou com dois sujeitos na rua, que lhe pareciam conhecidos. Um deles, amigo no passado, de quem andava afastado há tempos, o outro um sujeito que detestava, eterno e insistente pretendente a lhe namorar a irmã, sabe-se lá com que tipo de intenções. Teve vontade de matá-lo, também, mas logo considerou que sua cota de assassinatos estava completa para o dia. Para aquele dia, pelo menos.
Culpado, eu – pensava, agora ferozmente. Lembrava de certos crimes de que ouvira falar pela imprensa. Aquele homem que matou o bandido que lhe estuprou a filha nunca foi condenado, para não falar do outro que desviou uma grana do banco onde trabalhava. E mais aquele outro que fuzilou e estuprou uns dez mil, lá nas estranjas? Mas também pensou: se quem rouba e mata outros criminosos com certeza merece perdão – por que não ele? E aquela velha era o diabo em pessoa. Se não fosse ele, certamente algum outro daria um jeito nela. E além do mais ele já havia poupado da morte o pretendente de sua irmã – e isso certamente lhe redimiria. Assim, depois de muitas voltas no escuro, ouvindo o eco daquelas acusações de culpa, retornou à sua cama no armário. Entretanto, dormiu muito mal, acordando a cada meia hora ou até com mais frequência. Logo que a manhã chegou, procurou sair para comer alguma coisa, algo que em seu armário-quarto era impossível. Na cozinha da pensão, nem pensar – ele estava proibido de entrar lá. Aliás, aquele velho miserável e explorador bem que deveria entrar para uma determinada lista, para a lista de alguém, pensou.
Na padaria da esquina, pediu a habitual média de café com leite com o pão na chapa, percebendo que de uma mesa nos fundos um indivíduo olhava para ele de modo um tanto esquisito. Viu que era aquele um, com quem havia se desentendido há tempos numa partida de bilhar, conhecido desocupado do bairro, com fama de ser alcaguete da polícia. Caramba, pronto, estou lascado, pensou: será que este estrupício estaria lhe aprontando alguma? Por sorte, o tal sujeito ficou pouco tempo por ali e ele relaxou, disposto a deixar de ser tão pessimista. Afinal – pensava – o que fizera não tinha chance de ter deixado qualquer rastro.
Voltou para casa para ver se descansava um pouco mais. Tinha a sensação de uma noite passada em claro. Ao entrar no quarto, percebeu que a velha bolsa em que abrigara a machadinha, curiosamente, não estava pendurada no gancho atrás da porta, onde pensava que a tivesse deixado, depois de seu passeio noturno. Achou estranho, mas como não tinha total certeza disso, deixou para pensar melhor, e depois. Ao deitar, percebeu que havia uma coisa volumosa debaixo do travesseiro. Não é que passara a noite inteira ali e nem tinha notado isso? Aquilo era um livro maçudo que ele andara lendo nos dias anteriores, emprestado por um colega de trabalho, antes de serem ambos despedidos. Não pôde devolvê-lo. O título daquilo era Crime e Castigo e seu personagem principal um sujeito de nome complicado, parece que era russo; um assassino, também, como ele. Começou a relembrar da história ali contada, na qual o tal sujeito havia matado uma mulher a machadadas, depois ficando alucinado. Pelo amor de Deus! Será que tudo aquilo que ele achava estar vivendo tinha sido uma história induzida pelo livro? Ou que estivesse sonhando? Tentou se convencer que tudo não passava de algum tipo de alucinação e assim conseguiu se tranquilizar por uns momentos.
Mas não durou muito. A manhã já ia alta e lhe chamaram à porta. A filha da senhoria lhe avisou que havia um sujeito na portaria, com um envelope para lhe entregar, mas que ele precisava descer para assinar. Que coisa chata, o que seria? Na entrada, um sujeito seboso, de paletó e gravata, pose de quem manda, lhe entregou um papel. E lhe avisou que cabia ele se dirigir ir a certo lugar, parece que uma delegacia, dali a sete dias. Gelou por dentro, sem conseguir encontrar alguma explicação para aquilo, que não fosse sua incriminação. De alguma forma, imaginou, seu segredo havia sido descoberto. Voltou ao quarto angustiado, curioso para descobrir no tal livro o que acontecera ao assassino da velha, pois a esta altura já se identificava com ele. Mas o livro já não estava onde eu o deixara, minutos antes. E ficou ele ali, com aquele papelucho que o seboso lhe entregara nas mãos, sem saber o que fazer. A claridade da manhã entrando pela janela, longe de aliviar, lhe revelou manchas de sangue na calça e nas botas, as quais ele não tinha se apercebido ainda.
Céus, o que era aquilo que lhe perseguia? Na rua um autofalante móvel, habitual por ali, sempre anunciando pamonhas fresquinhas, agora ecoava: culpado, culpado, culpado! Era para ele, bem o sabia. Precisava escapar. Trocou sapato e roupas, para se livrar das manchas denunciadoras, mas sem saber como, agora se via descalço e vestido com outra roupa, um macacão cáqui, duas vezes maior que o seu tamanho, com uma etiqueta numerada no bolso. Na porta, assim como na janela do cubículo, o que havia agora eram grades, e das mais grossas. Gelou, mais uma vez, tudo agora tinha a temperatura de uma câmara frigorífica. Precisava escapar, mas logo percebeu estar a porta trancada por fora. Havia a janela, mas saltar por ela, daquele terceiro andar seria morte certa. Para piorar, ouvia passos pelo corredor, como se fossem botas pesadas, pelo ruído que faziam no piso. Em uma dessas passadas por ali, tentaram abrir a porta do quarto, mas por sorte sua a fechadura parecia travada. Gritaram por alguém, que imaginou ser um chaveiro especializado em abrir portas emperradas. Como ninguém atendeu ao chamado, começaram a forçar a porta e então percebeu que não era um apenas, mas dois ou até três homens que faziam isso. O que lhe restava, agora, era mesmo a janela. Sempre se considerara covarde para um gesto extremo como aquele, mas saltou, sem titubear.
A última coisa de que se lembrava foi da gravação do carro da pamonha – mas agora a insistir: culpado, culpado, culpado. Mas logo viu que a sorte lhe sorrira: o que lhe esperava na rua não era tal veículo, mas sim uma espécie de carruagem, com belos cavalos brancos e um cocheiro muito bem-vestido. Lá dentro da boleia havia dois lindos anjos vestidos de brancos e rosa, que o confortaram e disseram que podia relaxar, que sua vida mudaria depois do resgate que lhe traziam. E seguiu com eles.
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