Tinha verdadeira mania em procurar por amigos antigos e parentes em geral. Quando viajava, então, este traço se exacerbava. Mas não raro os procurava também em lugares inusitados, como em listas telefônicas, placas de túmulos, ou mesmo em convites de formatura, através dos sobrenomes dos formandos. Certa vez, na formatura de uma neta como advogada, atazanou-a durante vários meses para que indagasse se um José Pereira Neto, que constava na relação de formandos, não seria descendente de um primo distante, com o mesmo nome. A moça tentou ignorar o pedido, mas ele não lhe deu descanso, até que ela lhe disse que perdera o colega de vista, irremediavelmente. Mesmo assim, quando podia, voltava ao assunto.
Com a mulher isso era objeto de polêmica histórica, não raro fazendo piorar ainda mais o azedume que reinava entre os dois, casal antigo que eram, com mais de 50 anos de convivência. Em excursões que passaram a fazer juntos depois que os filhos se emanciparam, ela de costume se abespinhava quando ele, ao ver alguma placa de comércio, profissional liberal ou coisa assim, logo deixava escapar um pensamento: preciso ver se este Valdomiro Pereira aí não seria aparentado com um primo do meu pai que migrou pra estas bandas na década de 30.
Certa vez, quando foram à praia no Espírito Santo, ainda no tempo que ele dirigia seu próprio veículo, ao passarem pelo trevo que ligava a rodovia a uma cidade perdida nas brenhas da Zona da Mata, coisa de 50 km em má estrada sem pavimento, pronunciou a frase que lhe era contumaz e sempre objeto de fúria da patroa:
– Acabei de me lembrar que nesta cidade aí tenho um colega de curso técnico, acho que vale a pena revê-lo, para saber notícias.
– Ora deixa disso, Apolinário, uma pessoa que você não vê há décadas, vai ver que nem se lembra mais de você.
Ele não se fazia de rogado, acostumado a não dar ouvidos à mulher e ela, cansada de entrar em querelas que não levavam a nada, se não desgosto e mau humor, se deixava levar. Desta vez, porém, o infortúnio foi grande e memorável. Embora tenham localizado o tal colega pelo nome, no posto de gasolina da cidade, residindo em uma fazenda a 20 km do centro, erraram mais de uma vez o caminho e gastaram mais de hora para chegar ao destino. Não bastasse isso, o carro, pouco preparado para estradas daquele tipo, atolou no barro outras tantas vezes, dando um trabalho louco, com grande perda de tempo adicional, fazê-lo rodar novamente. Na chegada à fazenda do homem a cena foi mais ou menos a seguinte:
– Olá como vai, Nestor!
– Bem. O que o senhor deseja?
– Que bom revê-lo! Estava passando por aqui e resolvi fazer-lhe uma visita, para botar os assuntos em dia.
– ?
– Não se lembra de mim?
– ??
– Sou Apolinário Pereira seu colega de escola agrícola. Eu estava, na verdade, em série mais à frente da sua, mas participamos da Semana do Fazendeiro de 1940. Tomamos até um café no stand da cooperativa de leite. Não se lembra?
– Não. Não me lembro.
– …
– Agora, se o senhor me dá licença, preciso tratar dos porcos e voltar para a cidade, pois tenho alguns compromissos lá ainda hoje.
Retomaram a viagem, já atrasados em várias horas em relação ao cronograma almejado. Diante da impossibilidade de chegarem ao litoral no mesmo dia, tomaram um hotel de beira de estrada, na verdade o primeiro que apareceu e ali a patroa teve um choque ao ligar a TV e ver o que viu, aquelas coisas feitas entre homem e mulher que ela nem imaginava que existissem. No mais, quase não conseguiram dormir pela intensidade do ataque de pernilongos e também pela agitação permanente e ruidosa provocada pelo entra e sai (de pessoas e entre corpos!), por toda a noite, no estabelecimento. Era uma sexta feira ou véspera de feriado, ocasião em que, como se sabe, as pessoas saem de casa para se divertir, sejam solteiras ou casadas (e ali era passagem obrigatória para o prazer).
De outra feita foi visitar o filho mais velho que morava em estado vizinho. Passou com ele dois ou três dias e então lhe anunciou que no dia seguinte iria fazer uma viagem, já tendo comprado a passagem, de ônibus. O filho quis saber onde e o que iria fazer lá. Era uma cidade sertaneja, famosa pela violência urbana e fundiária e o motivo era visitar um velho amigo.
– O fulano de tal, você não se lembra dele? Foi nosso vizinho quando você era mocinho…
O filho mal se lembrava daquele vizinho mal-encarado, que tinha por hábito lavar pachorrentamente um velho carro bem na porta da casa onde moravam e que fazia um lamaceiro geral toda vez que isso acontecia. Apenas de maneira vaga, lembrava-se também de ter visto o pai trocar com ele conversas rápidas ali na porta. Para completar, a implicância da mãe com a esposa do dito cujo, que segundo ela era uma “sirigaita”, muito “dada” e usava roupas provocantes. Eram as lembranças que conseguia reunir a respeito do tal vizinho.
– Ok, pai, mas olha lá se não vai se perder por lá. Não devem existir muitos horários de ônibus ao longo do dia.
– Deixa comigo!
– Mas ainda que mal lhe pergunte, o que você vai fazer lá? Deve algum dinheiro a este homem? Ou, quem sabe, ele lhe deve?
– Nada disso, meu filho. É meu hábito de cultivar amizades. Acho que você não sabe o valor que isso tem!
Diante de tanta tranquilidade o filho relaxou e quando se deu conta já passavam de dez horas da noite e nada do pai aparecer. Começou a ficar preocupado. De repente, o telefone toca, era a Policia Rodoviária comunicando que num posto de beira de estrada a 60 km dali o senhor Apolinário havia chegado de carona e agora se via sem condução para alcançar a cidade. Era necessário que o buscassem, uma vez que não competia aos policiais de plantão este tipo de serviço. E lá foi o filho pela noite a dentro, resgatar o procurador de parentes e amigos.
– E que tal foi, Seu Pereira, a visita ao fulano de tal?
– Não o encontrei, parece que não mora mais por lá.
– Lamento…
– Não precisa se lamentar. Aproveitei para cortar o cabelo e fazer a barba. Sabe quando paguei? Menos da metade do que costumam cobrar na cidade grande. Pensando bem, até lucrei com esta viagem. Não posso me queixar.
Outro momento especial se deu quando o filho mais novo o convidou a viajar com ele, para assistirem uma feira de maquinário agrícola, assunto que era a especialidade profissional do mesmo. Já de saída foi avisando que estava bastante feliz de ir até aquela cidade, famosa pela sua pujança agrícola, pois ali… morava um colega de turma. E falou naquilo por vezes repetidas durante a viagem. Chegando ao local, não foi difícil ao filho localizar o dito amigo, pois se tratava do patriarca de alguns dos maiores fazendeiros e plantadores da região. Pelo telefone, falou com uma filha dele, que se mostrou surpresa, mas agradecida pelo contato, embora alertasse que o pai sofria de Alzheimer e já não andava reconhecendo até os próprios filhos. Mas que certamente faria bem a visita, seria inclusive uma boa oportunidade para que ele saísse um pouco de casa, para o que colocariam à disposição motorista e carro da família.
E em tais passeios transcorreu o dia, sem que o pai desse maiores notícias. Depois se soube que o mesmo rodara pela cidade demoradamente no carro dos anfitriões e que fora almoçar e tomar o café da tarde na companhia da família. À noite mal se viram, pois, o filho se metera numa convenção de vendedores e o pai, certamente, cansado pela movimentação intensa do dia, preferira se recolher ao hotel. Na viagem de volta:
– E aí, Seu Pereira, como foi a visita ao colega e amigo ontem?
– Ficou muito feliz de me ver!
– Conversaram muito?
– Bastante.
– Relembraram os velhos tempos, então?
– Muito pouco. Para falar a verdade, preferimos abordar as coisas do futuro, principalmente relacionadas ao desenvolvimento agrícola. Quem vive olhando pra trás é farol de ré.
– Ficaram de se encontrar de novo?
– Não falamos sobre isso, mas um dia, quem sabe…
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