Você gosta de sertão, de boiada, de vereda de buritis, de velhas cidades à beira-rio? Ou está mais interessado em comer um bom surubim ou dourado na brasa? Tudo bem, não chegaria a recomendar leituras em Guimarães Rosa, se bem que se você quiser levá-las na bagagem, será de bom proveito. Pegue seu carro (qualquer modelo, desde que esteja com boa mecânica, pneus novos, etc.) e siga comigo. Vamos pegar a saída norte de Brasília. Passando Formosa, você logo estará em altos chapadões o que só perceberá ao fitar o horizonte ainda mais amplo que o de Brasília. Esqueça – ou finja que não vê – a feia periferia de tal cidade e principalmente as bandeiras deste Brasil que não é o nosso que estão por toda parte. Siga em frente, deixando de lado o latifúndio totalmente improdutivo que é a imensa área pertencente às Forças Armadas à direita da estrada. Na primeira encruzilhada, virando à direita (apenas no sentido literal, da estrada…), a cidade que você logo encontrará, Cabeceiras, indica a situação geográfica da região, parideira de grandes rios. Aqui, a água flui para o São Francisco; um pouco antes para o Paranã, afluente amazônico e, mais atrás, para os formadores do São Bartolomeu, que via rios Paranaíba e Paraná, acabam desaguando em Buenos Aires. Cabeceiras de um continente, meu senhor! Algum corguinho verdoso desses – sem maiores pretensões – vai acabar dando no Urucuia, que corre para o Velho Chico. São personagens de uma história que está para começar. Deixa que eu apresento este Urucuia, “rio vermelho” na língua originária, que aqui principia a correr mundo e é marcante personagem de Grande Sertão: Veredas. Nada como viajar por ele na voz do próprio Guimarães Rosa.
<<Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.
O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda a parte.
… De em de, sempre, Urucuia acima, o Urucuia – tão a brabas vai… Tanta serra, esconde a lua. A serra ali corre torta. A serra faz ponta. Em um lugar, na encosta, brota do chão um vapor de enxofre, com estúrdio barulhão, o gado foge de lá, por pavor. Semelha com as serras do Estrondo e do Roncador – donde dão retumbos, vez em quando. Hem? O senhor? Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno; meu, em belo, é o Urucuia – paz das águas… É vida!…
Beiras nascentes do Urucuia, ali o povi canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revoredo, o saci-dobrejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo quente, a rola-vaqueira… e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas.
Vaqueiros? Ao antes – a um, ao Chapadão do Urucuia – aonde tanto boi berra… Ou o mais longe: vaqueiros do Brejo-Verde e do Córrego do Quebra-Quinaus: cavalo deles conversa cochicho – que se diz – para dar sisado conselho ao cavaleiro, quando não tem mais ninguém perto, capaz de escutar. Creio e não creio. Tem coisa e cousa, e o ó da raposa…
Dali para cá, o senhor vem, começos do Carinhanha e do Piratinga filho do Urucuia – que os dois, de dois, se dão as costas. Saem dos mesmos brejos – buritizais enormes. Por lá, sucuri geme. Cada surucuiú do grosso: voa corpo no veado e se enrosca nele, abofa – trinta palmos! Tudo em volta, é um barro colador, que segura até casco de mula, arranca ferradura por ferradura.
Viemos pelo Urucuia. Meu rio de amor é o Urucuia. Chapadão – onde tanto boi berra. Daí, os gerais, com o capim verdeado. Ali é que vaqueiro brama, com suas boiadas espatifadas.
Pelos modos, pelas roupas, aqueles eram gente do Alto Urucuia. Catrumanos dos gerais. Pobres, mas atravessados de armas, e com cheias cartucheiras.
Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia.
Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucuia vai se levar no mar.
Mas, de parte do poente, algum vento suspendia e levava rabos-de-galo, como que com eles fossem fazer um seu branco ninho, muito longe, ermo dos Gerais, nas beiras matas escuras e águas todas do Urucuia, e nesse céu sertanejo azul-verde, que mais daí a pouco principiava a tomar raias feito de ferro quente e sangues.
Ah, o meu Urucuia, as águas dele são claras certas.
E descemos num pojo, num ponto sem praia, onde essas altas árvores – a caraíba-de-flor – roxa, tão urucuiana. E o folha-larga, o aderno-preto, o pau-de-sangue; o pau-paraíba, sombroso. O Urucuia, suas abas. E vi meus Gerais!
Daí, passamos um rio vadoso – rio de beira baixinha, só buriti ali, os buritis calados. E a flor de caraíba urucuiã – roxo astrazado, um roxo que sobe no céu.
Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez? Eu queria formar uma cidade da religião. Lá, nos confins do Chapadão, nas pontas do Urucuia. O meu Urucuia vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes.
Diadorim e Otacília. Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucuia, mas que é rio de braveza. Ele está sempre longe. Sozinho. Ouvindo uma violinha tocar, o senhor se lembra dele. Uma musiquinha até que não podia ser mais dançada – só o debulhadinho de purezas, de virar-virar…
Urucuia – rio bravo cantando à minha feição: é o dizer das claras águas que turvam na perdição. Vida é sorte perigosa passada na obrigação: toda noite é rio-abaixo, todo dia é escuridão…
Comparsa urucuiano dos olhos verdes, homem muito feioso. Ainda nada não disse, coçou a barriga com as costas dobradas da mão – gesto de urucuiano. Eu bati com a minha mão direita por cima da canhota, que pegava o rifle, e deixei deixada – gesto de jagunço. Apertei com ele: – “Ao que me quer?” Me deu resposta: – “Ao assistir o senhor, sua bizarrice… Osenhor é atirador! É no junto do que sabe bem, que a gente aprende o melhor…”
Uma poeira dessa dúvida empoou minha ideia – como a areia que a mais fininha há: que é a que o rio Urucuia rola dentro de suas largas águas, quando as chuvaradas do inverno.
Nós estávamos na beira do cerrado, cimo donde a ladeirinha do resfriado principia; a gente parava debaixo dum paratudo – pau como diz o goiano, que é a caraíba mesma – árvore que respondia à saudade de suas irmãs dela, crescidas em lontão, nas boas beiras do Urucuia.
Pra mais onde? Ah, aonde os altos bons: o Chapadão do Urucuia, em que tanto boi berra. Mas nunca chegamos nem na Virgem-Mãe. Afiguro, desde o começo desconfiei de que estávamos em engano.
Como os rios não dormem. O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo. O Urucuia é um rio, o rio das montanhas. Rebebe o encharcar dos brejos, verde a verde, veredas, marimbus, a sombra separada dos buritizais, ele. Recolhe e semeia areias.
O Urucuia, o chapadão derredor dele. Estas árvores: essas árvores. Conversa, Zé Bebelo: conversa, com as marrecas chocas, no meio das varas do juncal. Mesmo na hora em que eu for morrer, eu sei que o Urucuia está sempre, ele corre.
Mas, quadrando que primeiro, mais para o norte: para o Chapadão do Urucuia, aonde tanto boi berra. Que eu recordava de ver o rio meu – beber em beira dele uma demão d’água… Ah, e essas estradas de chão branco, que dão mais assunto à luz das estrelas.
– “Amigo o amigo, aqui é aqui?” Ao que ele confirmou: – “Aqui, o senhor, meu senhor, os senhores estão nos andares do rio Urucuia…” Aos campos. Sentei que estava. Estrela gosta de brilhar é por cima do Chapadão.
Como que algum santo ainda não há de vir, das beiras deste meu Urucuia? E o diabo não há! Nenhum. É o que tanto digo. Eu não vendi minha alma.
Já estive em Ingazeiras, na Barra-da-Vaca, no Oi[1]Mãe, em Morrinhos… O Urucuia não é o meio do mundo?” – assim ele se temperou.
Urucuiano conversa com o peixe para vir no anzol – o povo diz.
O Rio Urucuia sai duns matos – e não berra; desliza: o sol, nele, é que se palpita no que apalpa.
O Urucuia – lá onde houve matas sem sol nem idade. A Mata-de-São-Miguel é enorme – sombreia o mundo…
Mas o vaqueiro aquele não teria o certo pouso. Só atrás de seu gado urucuiano.
O que eu pensei: … rio Urucuia é o meu rio – sempre querendo fugir, às voltas, do sertão, quando e quando; mas ele vira e recai claro no São Francisco.
– “… Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então, quando eu casar, tu deve de vir viver em companhia com a gente, numa fazenda, em boa beira do Urucuia… O Urucuia, perto da barra, também tem belas troas de areia, e ilhas que forma, com verdes árvores debruçadas. E a lá se dão os pássaros: de todos os mesmos prazentes pássaros do Rio das Velhas, da saudade – jaburu e galinhol e garça-branca, a garça rosada que repassa em extensos no ar, feito vestido de mulher… E o manuelzinho-da-troa, que pisa e se desempenha tão catita – o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?…”
O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucuia é ázigo_ Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O senhor enche uma caderneta… O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?… Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei.
Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero. >>
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