Catrumanos

Estavam ali no que restava de sombra no pequizeiro, defronte à pamonharia à beira da rodovia, já havia pelo menos uma hora, e a condução não aparecia. Logo naquele dia, sexta feira, em que era possível tirar uma folguinha, tomar uma cervejinha com os amigos no armazém da vila. E tirante isso, não tinham em toda a semana nadinha, uma nesguinha que fosse, de qualquer tempo livre, porque no sábado era dia de ir fazer compras, limpar o galinheiro, dar uma rastelada no quintal, que já estava até parecendo fazenda de viúva. E Nhá Sebastiana não ia deixar por menos, arreliada do jeito que era, a encher a paciência deles até ficarem cansados e, sem ter outro jeito, tocarem a fazer o serviço, sem reclamar. – O sol já vai embora e eles não aparece, disse o mais velho… – Todo dia é essa quizumba, repostou o outro.

Semana dura aquela. Aliás, todas elas, de uns tempos para cá. Estavam trabalhando para um Abrão, sujeito enrolado como o Diabo, que tinha aberto uma carvoeira num cerradão distante, para os lados de Cabeceiras. Trabalho dos piores, todo mundo sabe como é penoso mexer com lenha pra fazer carvão, coisa que além do trabalho próprio que dá ainda obriga as pessoas a fugir dos fiscais do governo, que não andavam dando sossego. Teve uma vez que até um dos camaradas quase foi preso, por desacatar o fiscal. Ele só reclamou de estar sendo impedido de fazer seu serviço, mas o danado, metido a autoridade, não perdoou. Meteu uma multa no Abrão e chegou até a ameaçar de chamar a polícia para levar o queixoso para a Delegacia. No final relaxou, mas foi um custo fazer com que o miserável abrisse mão daquilo.

Ainda hoje, com sol quente na cabeça e a boia já meio fria e quase estragada, tiveram que matar uma cascavel de metro e tanto, que por pouco acabava total com a graça deles, escondida que estava em um monte de lenha seca.   

E era assim: levantavam de madrugada, mal e mal com a barriga forrada com um cafezinho ralo e biscoito de polvilho que a Tiana preparava, com a maior da má vontade, diga-se de passagem, tinham que se abreviar para pegar o caminhãozinho que o Abrão mandava para buscá-los no fundão de grota onde residiam. E naquela caranguejola troncha iam pela estrada, pegando poeira e sendo jogados de um lado para o outro na carroceria, naquele caminho desmazelado, que a Prefeitura nunca se lembrava de mandar consertar.  Ainda pegavam mais dois ou três camaradas pelo caminho e antes mesmo do sol levantar de todo estavam no eito. Ali era pendurar as capangas em alguma forquilha, guardar o garrafão térmico em alguma rara sombra e tocar a trabalhar até dar nó, na barriga e no corpo, o que viesse primeiro. E se davam por satisfeitos quando o Abrão ou o safado do Tinhorão, sócio dele nas trapalhadas, não apareciam para reclamar que o serviço não andava, essas coisas.

Vida dura, bem sabiam disso aqueles urucuianos, Tonico e Zé Beto, irmãos no sangue e sócios na dureza na vida. Nessas horas dava neles uma vontade doida de fazerem igual o irmão mais velho, o Abadio, que desistira daquela vida sem futuro e partira para morar em Brasília. Ali, de novo morando em terras do Goiás, mas ainda assim a dez léguas de distância da cidade, não tinha conseguido emprego decente, se virava como servente de pedreiro, cada dia numa obra diferente, mas pelo menos não tinha uma junta de mulas como Abrão e Tinhorão a atazanar a vida deles. Já era um progresso. 

Com tanta dificuldade, tudo corria até bem quando não acontecia como agora, quando já tinham terminado o serviço fazia umas duas horas, com a noite quase chegando e o filho de uma égua do Abrão não mandava a caranguejola vir buscá-los. Ainda no mês passado foram chegar em casa depois da meia noite, mesmo assim porque arranjaram uma carona de última hora com um fazendeiro que passava por lá. E ainda cobrou 20 reais pela condução… E o Abrão, do jeito malino que era, nem pediu desculpas, disse que o caminhãozinho tinha quebrado e ficou por isso mesmo.

  ***

Foi assim que eu os vi, o lusco fusco daquela sexta feira de agosto. Eu vinha pela estrada, depois de atender umas fazendas na região, onde dou assistência de inseminação, pois sou técnico veterinário, parei para tomar um café e comer uma pamonha. E lá estavam os dois, sujos e mal vestidos, debaixo de pequizeiro, que nem sombra lhes oferecia mais, pelo adiantado da hora.

Pra falar a verdade, nem vi os dois rapazes quando cheguei, só quando estava de saída. Foram chegando perto, bem à maneira dos roceiros, como quem não quer nada. Logo vi que queriam alguma coisa, uma carona, talvez, na melhor das hipóteses. – Moço, desculpa, o senhor vai pra onde?  Resolvi atalhar logo de uma vez: – para onde vocês querem ir? Tiveram sorte, eu ia pernoitar na fazenda de um amigo e tinha que passar perto do fundão onde moravam. No dia seguinte, sábado, eu tinha marcado uma sessão de enxertos em fazendas dos arredores. E fui logo dizendo, diante da resposta deles, que saiu meio engasgada, como se sentissem culpa em serem atendidos por mim: subam! Ainda de modo bem roceiro, me indagaram, olhos postos no assoalho da camionete: quando o senhor cobra? Resolvi brincar com eles mais um pouco: vocês não darão conta de me pagar… subam logo e vamos embora, antes que escureça. Apenas balbuciaram qualquer coisa como resposta, não sei bem o quê, mas devia ser um agradecimento.

O povo da roça é assim: se ganham uma carona não se sentem na obrigação de manter alguma conversação com quem lhes atenda, pelo contrário, talvez pensem que isso é afrontoso. Mas se deram mal comigo, porque eu gosto de conversar, acho que isso ajuda a passar o tempo. Na verdade, o meu gosto é viajar com a companhia de gente que também aprecie e tenha repertório para conversas. Não era bem o caso deles, mas aos poucos consegui dobrar neles a timidez e o silêncio.

Foi assim que fiquei sabendo do Abrão e do Tinhorão, do mal afamado caminhãozinho, da carvoeira, dos fiscais do Ibama, da cascavel, da vida dura que levavam desde a infância. Nada daquilo era novidade para mim, que sabia que ali no Urucuia aconteciam coisas assim e muito piores. Aliás, por toda parte na região – e até mais além dela.  Vivi por lá durante alguns anos, andava agora por ali apenas a trabalho, mas a história deles, para mim, era coisa que eu conhecia desde sempre, já nos tempos de meus avós, pelo menos, pois que passei a infância ouvindo narrativas e assistindo casos assim.

O que mais me admirava era a maneira como essas coisas eram encaradas com naturalidade por ali. Assim era entre os mais pobres, os remediados, como era o caso de minha família e de maneira ainda mais acintosa e perversa, entre os mais ricos. O mínimo que se dizia, em qualquer uma dessas situações era algo como: deviam dar graças a Deus de arranjarem quem lhes arranje trabalho e lhes pague. Não saberia dizer, realmente, se o bom Deus deveria ser reverenciado apenas por fornecer trabalho ou também pelo fato de que este fosse remunerado…

Mas eu felizmente sempre pensei diferente disso. Talvez porque meu pai fosse um homem justo, pequeno comerciante que não tinha raízes naquela terra de criadores de gado, catireiros e carvoeiros. Tinha vindo de lugar maior e mais evoluído, em terras são-franciscanas e até estudara em colégio de padres, em Januária. Não era nenhum comunista, mas sem dúvida estranhava os costumes selvagens que dominavam por ali. Para os filhos, eu e meus dois irmãos, fez tudo o que pôde para irmos estudar fora, em Brasília no meu caso e de meu outro irmão, que fez concurso para a Polícia, e até mais longe, como minha irmã, que estudou em Belorizonte e por lá se casou. Assim, as histórias que Tonico e Zé Beto me contaram não chegavam a ser novidade para mim.

Quis saber mais da vida deles. Vivam com uma tia, de nome Sebastiana e o pai, muito idoso e entrevado, quase não andava. Pelo que contaram, confirmado pelo que vi depois, a moradia era um rancho dos mais precários, quase uma tapera. Moravam naquelas terras por cortesia do dono, que mal aparecia por ali, vivendo na cidade havia muitos anos. Ali só tinham moradia mesmo, porque trabalho tinham que procurar em outros lugares. Foi assim que o irmão mais velho foi para Brasília e uma irmã não se sabe para onde, pois um dia fez as malas e nunca mais deu as caras.

Não sei bem por quê, fiquei curioso em saber mais. Disse que voltaria no sábado, depois do expediente nas fazendas, para conversar também com o pai. Queria ouvir as histórias dele, embora certamente fossem apenas confirmar assuntos dos quais eu sabia desde sempre. Esta decisão também tinha a ver com o pedido de uma amiga, a Melânia, com quem ando tendo vontades de namorar, que estuda História numa faculdade em Brasília e está interessada em saber mais sobre o povo do sertão, como ela diz, principalmente os mais velhos, que carregam conhecimento que os mais novos já deixaram escapar – ou nunca souberam.

Mas pra falar a verdade, não apenas por esta quase namorada, eu também gosto de saber de coisas assim. Os que me conhecem sabem disso e não é à toa que alguns parentes mais velhos que tenho aqui na região já me botaram o apelido de ispicula. E eu gosto!

 ***

– Quem, eu?

– Sim senhor, você mesmo, Seu Eufrásio!

– Não moro aqui desde sempre, mas deve ter pra mais de sessenta anos, quando meu pai trouxe a família das bandas do rio Paracatu para cá. Mas tive avô aqui e até mesmo o avô do avô dele. Meu pai saiu e depois voltou.

– Se mudou alguma coisa? Bom, seu moço, isso aqui mudou muito, virou de ponta-cabeça. Quando a gente chegou ainda era um fim de mundo desgraçado, com a maleita atacando até macaco. Meu pai mesmo adoeceu umas tantas vezes; eu e meus irmãos, do mesmo jeito. A gente era em cinco e hoje só sobrou eu e a Tiana. Teve o Derico, que foi assassinado e outros dois, já até esqueci do nome deles, que foram trabalhar na construção de Brasília e nunca mais deram notícia.

– Se eles matavam muita gente aqui? Matavam sim, morria muita gente, de todo tipo, matada ou morrida. Não passava um mês que não deixassem de existir uns dois ou três. Briga por causa de terra, quase sempre. Depois acabou. Acho que veio este povo gaúcho, comprou quase tudo que tinha pra vender por aqui e aí acabou o motivo para andarem brigando e matando tanto. Quer dizer, ainda teve uns pipocos, principalmente vitimando uns aí que não queriam vender sua terra. Isso é o que o povo diz, eu não sustento. Povo daqui é muito falador, sabe? Mas agora tudo aqui é na base do arame farpado, ou dessas cercas modernas que dão até choque na gente.

– A maleita? Graças a Deus não tem mais. Vieram os guardas da campanha e devagarzinho foram dando um jeito nela. Tinha outras doenças também, aquela do papo era uma. O que tinha de papudo aqui o senhor nem imagina, hoje não tem mais. Não sei bem por que. Eles falam que botaram um remédio no sal que a gente come, mas não acredito muito. Acho que é coisa da mudança do tempo, também. O senhor veja quanta coisa que tinha antigamente e hoje não tem mais. E o contrário também. Só a pouca-vergonha é que aumentou.

– Veja o senhor… Acho que tudo começou quando fizeram Brasília, tanto tempo atrás. Não tinha nada aqui, se um cristão adoecia e não se arranjava com umas ervas do mato, estava perdido. Em último caso levavam a pessoa para a Formosa dos Couros, mas mesmo lá era pela hora da morte. Poucos escapavam. Essa Brasília mexeu com tudo aqui. Eu mesmo cheguei a ir pra lá, mas não dei conta daquela montoeira de gente, um sistema do diabo, tão diferente das coisas que a gente sempre teve por aqui. Assim como eu, foram muitos, mas a maioria por lá ficou ou caiu no mundo. Eu voltei, porque o meu negócio sempre foi cuidar de um gadinho e além do mais tinha uma mulherzinha me esperando aqui, que Deus a tenha, já se foi. Acho que tenho a mão boa para isso de mexer com vacas e bezerros. Aí trabalhei para o dono dessas terras, pai desse homem que vai deixando eu ficar por aqui, não sei até quando. Vida de pobre, meu amigo, não tem muita coisa pra contar.

– Ah, sim, teve essa estrada também. O senhor nem imagina como era antes. Para ir na Formosa era um dia inteiro, em umas estradas amaldiçoadas de ruins. E a gente tinha que ir não só quando ficava doente. Para pegar um dinheirinho no banco, ir no Funrural, pedir aposentadoria no INPS, comprar um remédio de farmácia, remédio para formiga e carrapato do gado – tudo era lá. E a gente sempre aproveitava para fazer uma farra também, eu mesmo fiz das minhas, não nego, entornado uns bons litros de Cinquenta e Um. Mas isso passou, para mim pelo menos, para esta moçada nova que anda por aí, continua. E nem falei das casas de raparigas que tinha, nem sei se ainda tem, parece que nem isso se usa mais. Eu, pelo menos, não uso mais, nem rapariga nem cachaça, hehehe.

– Agora, se teve uma coisa que demudou total por aqui foi o movimento de gente. Nossa! Antigamente a gente passava mês e até ano sem ver uma cara nova. Era só os parentes, os vizinhos e olhe lá. Depois da estrada – e da chegada dos gaúchos – um tanto de pessoas esquisitas andam por aqui. Teve até um, de nome Quinzinho, que conheci desde menino, que tinha saído daqui homem, foi para São Paulo e quando voltou tinha virado mulher e mudou até de nome, passou a chamar Mila, ou qualquer coisa assim. E este povo trazia novidades, as maiores que tinha no mundo, coisas que eu não sabia que existiam: primeiro a televisão, depois gravador de pilha, radio que fala estrangeiro, até máquina que faz café. Agora até este aparelho novo que apareceu, dizem que é telefone, mas que até tira retrato.

– O povo antigo? Bom eu não conheci muito de perto, porque fui criado fora uma parte da vida, lá pelas bandas do Paracatu, como eu já disse. Mas meu pai falava muito neles, as histórias dessa gente, de seu avô e seus tios, que eram muitos e sempre viveram nessas bandas. Ele me disse que era um povo diferente, que não eram como os de hoje, eram mais esquentados. Sempre pobres, até mais do que hoje, viviam de criar umas vaquinhas e plantar alguma roça vasqueira por aí. Mas na entressafra apreciavam uma confusão mais grossa. Meu pai dizia que esses aí, gente de outros tempos, até tinham o costume de se alistar por conta de uns coronéis fazendeirões e lutavam por eles, chegando até na beira do São Francisco, bem armados que nem soldados a serviço deles. Mas isso é coisa pra lá de antiga, não tem mais. Nem sei onde foram parar esses valentões e os tais coronéis.

 ***

Pronto! Seu Eufrásio não podia imaginar o presente que me dava. Primeiro porque eu também gostava de histórias assim, sempre gostei delas. Mas o mais importante nem era isso: aquilo me abria uma porta que finalmente ia trazer a Melânia, a historiadora, para perto de mim, fazendo com que eu ganhasse os beijinhos com os quais há tanto tempo sonhava.

Eu queria mais era correr para Brasília e contar tudo para ela. E fiz isso logo que pude e meu plano deu certo. Ela ficou curiosa, doida para conhecer o velho Eufrásio também. Mas isso não foi possível de imediato, pois neste tempo eu tinha arranjado trabalho do outro lado dos Goiás. E se passaram alguns meses.

Um dia, eu fui abastecer meu carro e em um posto de gasolina perto de minha casa, na Ceilândia, quem é que eu vejo: Zé Beto, o urucuiano, agora transformado em frentista. Ele não me reconheceu de imediato, mas logo que viu quem eu era e me colocou a par das novidades da terra. O velho Eufrásio tinha morrido (tive pena, por Melânia), a velha Sebastiana fora recolhida a um asilo em Formosa, o irmão Antônio tinha se mudado para o Triângulo Mineiro, para fazer não se sabia bem o quê, pois havia tempo que não chegavam mais notícias dele. O outro irmão, Abadio, andava por aí, não o via muito.

Mas que ele, José Adalberto estava bem, dando graças a Deus por ter conseguido aquele emprego de frentista e não queria mais sair de Brasília. Além disso estava pensando em casar e sua noiva estava grávida. Despedi dele com alegria, afinal de contas parecia feliz, embora eu bem soubesse das dificuldades que certamente estava enfrentando na cidade, morando longe do trabalho e ainda tendo que arcar, dentro em breve, com as obrigações de pai de família.

Lá no fundo da mente imaginei o que mandava em um destino como o dele, descendente de gente bem assentada e sossegada nos fundões do Urucuia e agora proletário, pendurado nas beiradas de uma cidade grande e hostil, sem maiores chances de fazer progresso na vida.

Lembrei-me de o que meu pai teria dito diante de algo assim: esta era a vida dada aos mais pobres, nada mais do que isso.

Melânia ficou aborrecida com a notícia da morte do velho Eufrásio, mas aquilo que eu esperava, ou seja, conquistar as graças dela, finalmente começou a acontecer. A história do velhote trouxe para ela o efeito inesperado de ter encontrado finalmente o fio da meada para seu trabalho de conclusão de curso na Faculdade de História. Ela foi atrás de livros sem conta, revirou bibliotecas e a internet, passou noites em claro e finais de semana sem poder me ver. Mas tudo valeu a pena, mais ainda porque eu próprio acabei beneficiado, tendo ela, finalmente, cedido à minha vontade do carinho dela, com todo respeito, claro.

Foi assim que, procura daqui, procura dali, Melânia achou finalmente um livro que tratava do assunto que lhe interessava tanto. Pelo que entendi era um romance no qual se narravam histórias de uma espécie de guerreiros urucuianos, pobres de dar dó, mas sobretudo muito valentes. – Mas isso é uma história inventada, ponderei. – Que mané inventada, ela retrucou, pois o Eufrásio não contou esta mesma história pra você, que ouviu do pai e do avô? Então isso só pode ter acontecido de verdade. E pelo que você fala neste Urucuia pode acontecer de tudo, até mesmo surgir pessoas como você e eu! Achei que era um elogio, pois em seguida me beijou, de leve, mas beijou. Esta é a Melânia e não é por acaso que gosto dela mesmo assim, ou, talvez, também por causa disso…  Assim resolvi me calar, esta moça quando acha que está certa vira um tratorzinho que patrola todo mundo. E me trouxe o relato que vai a seguir, copiado por ela do tal livro, do qual não me lembro o nome, só sei que fala de Sertão e que o autor é um Guimarães, de primeiro nome João, se não me engano.

 ***

<<Pelos modos, pelas roupas, aqueles eram gente do Alto Urucuia. Catrumanos dos gerais. Pobres, mas atravessados de armas, e com cheias cartucheiras.

E enxergamos um homem – no alto da virada – uns homens. Esses estavam com espingardas. Os quantos homens, de estranhoso aspecto, que agitavam manejos para voltarmos de donde estávamos.

Um eu vi, que dava ordens: um roceiro brabo, arrastando as calças e as esporas. Mas os outros, chusmote deles, eram só molambos de miséria, quase que não possuíam o respeito de roupas de vestir. Um, aos menos trapos: nem bem só o esporte de uma tanga esfarrapada, e, em lugar de camisa, a ver a espécie de colete, de couro de jaguacacaca. Eram uns dez a quinze.

Não consegui sentido no que eles ameaçavam, e vi que estavam aperrando as armas. Queriam cobrar portagem? Andavam arrumando alguma jerimbamba? Não convinha avançar assim por cima deles, logo, mas também dar recuada podia ser uma vergonha. Esbarramos, neles quase encostados. Íamos esperar o resto do pessoal. E eles, ali confrontes, não explicavam razão nenhuma. Só um disse: – “Pode não… Pode não…”

Nos tempos antigos, devia de ter sido assim. Gente tão em célebres, conforme eu nunca tinha divulgado nem ouvido dizer, na vida. O das esporas foi se amontar num jumento – esse era o único animal-de-sela que ali tinham. Acho que montou para oferecer à gente maior vulto de respeito; tocava batendo palma de mão na anca do jegue, veio vindo, para primeiro se presenciar.

Olhei para todos. Um tinha a barba muito preta, e aqueles seus olhos permeando. Um, mesmo em dia de horas tão calorosas, ele estava trajado com uma baeta vermelha, comprida, acho que por falta de outra vestimenta prestável. Ver a ver o sacerdote!

“Ih! Essa gente tem piolho e muquiranas…” – o Nélson disse, contrabaixo. Todos estavam com alguma garantia: que eram lazarinas, bocudas baludas, garruchas e bacamartes, escopetas e trabucão – peças de armas de outras idades.

Quase que cada um era escuro de feições, curtidos muito, mas um escuro com sarro ravo, amarelos de tanto comer só polpa de buriti, e fio que estavam bêbados, de beber tanta saeta.

Um, zambo, troncudo, segurava somente um calaboca, mas devia de ser de braço terrível, no manobrar aquele cacete. O quanto feioso, de dar pena, constado chato o formo do nariz, estragada a boca grande demais, em três.

Outro, que tinha uma foice encabada muito comprido, e um porongo pendurado a tiracol por uma embira, cochichava com os restantes uma séria falação: a qual uma espécie de pajelança. Artes vezes ele guinchava, feito o demônio gemedeiro. Esse, que por nome de Constantino acudia.

Todos eles, com seus saquinhos chumbeiros e surrões, e polvorinhos de corno, e armamento tão desgraçado, mesmo assim não tomavam bastante receio de nossos rifles. Para o nosso juízo, eles eram doidos. Como é que, desvalimento de gente assim, podiam escolher ofício de salteador?

Ah, mas não eram. Que o que acontecia era de serem só esses homens reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão, os catrumanos daquelas brenhas.

Que viviam tapados de Deus, assim nos ocos. Nem não saíam dos solapos, segundo refleti, dando cria feito bichos, em socavas. Mas por ali deviam de ter suas casas e suas mulheres, seus meninos pequenos. Cafuas levantadas nas burguéias, em dobras de serra ou no chão das baixadas, beira de brejo; às vezes formando mesmo arruados. Aí plantavam suas rocinhas, às vezes não tinham gordura nem sal.

Tanteei pena deles, grande pena. Como era que podiam parecer homens de exata valentia? Eles mesmos faziam preparo da pólvora de que tinham uso, ralado salitre das lapas, manipulando em panelas. Que era uma pólvora preta, fedorenta, que estrondava com espalhafato, enchendo os lugares de fumaceira. E às vezes essa pólvora bruta fazia as armas rebentarem, queimando e matando o atirador. Como era que eles podiam brigar? Conforme podiam viver? E enfim os companheiros apontaram em vinda, e subiram a primeira ladeira, aquele tropeado de guerreiros, em tão grande número numeroso.

Quase eu queria me rir, do susto então dos catrumanos. Mas foi não, porque eles não se aluíram do ponto onde estavam, só que olhavam para o chão, calados, acho que porque essa é a forma de declararem seus espantos. O do jegue, Teofrásio, que era quem capitaneava, deu alguma intimação para o da foice, esse que o Dos-Anjos se chamava, era o falador; e que foi quem veio adiante, saudar e render explicação: – “Ossenhor uturje, mestre, a gente vinhemos, no graminhá… Ossenhor uturje…”

Ossos e queixos; e aquela voz que o homem guardava nos baixos peitos, era tôo que nem de se responder em ladainha dos santos, encomendação de mortos, responsório. – “Ossenhor uturje, mestre… Não temos costume… Não temos costume… Que estamos resguardando essas estradas… De não vir ninguém daquela banda: povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega em todos…>>

 ***

Catrumanos, catrumanos… Palavra feia esta! Um dito assim só pode existir para menosprezar pobres coitados como aqueles, de ontem, de hoje e de sempre. Além de pobres, mais ainda feios. Aquelas conversas estranhas… quem sabe Melânia me ajudaria a entender o que queriam dizer. Nisso aí eu tinha que concordar com o Guimarães, gente pobre e esquisita é o que mais existe neste Urucuia, ainda hoje. Escapam umas mocinhas aqui e ali. Melânia, por exemplo, que nasceu em Arinos, é bem um caso desses.

Mas que história mais estranha a Melânia foi descobrir. Aliás, esperta e inteligente como ela é difícil de existir igual. Por essas e por outras que me perco por esta mulher – graças a Deus!

Mas, falando sério. Não sei de quando é esta história. De cem anos atrás? Ou mais do que isso? Uma coisa é certa, parece que as coisas pouco mudaram aqui neste vale de lágrimas e miséria. Ou melhor, se mudou foi para pior. Se naquele tempo não se tinha pra onde ir, hoje tem: para Brasília, morar em favela e trabalhar sem garantia nenhuma. Isso é melhorar de vida? Meu primo que mora em Arinos me falou: pelo menos aqui não tem favela. Respondi para ele: é claro, aqui se exporta a favela para Brasília. Ele só ficou me olhando com aquela cara de tacho que lhe é peculiar.

Catrumanos de hoje – e de sempre – essas pessoas que viviam tapados de Deus e de qualquer conforto, nos ocos do Urucuia e do mundo. Homens humanos? Nem tanto, tão pobres, miseráveis mesmo, que eram. Mais ainda do que aqueles outros da história contada pelo tal João Guimarães, esses infelizes de hoje, Zé Beto e seus irmãos Antônio e Abadio, e também aquela irmã desaparecida. Gente perdida e condenada a uma vida nas beiradas de um mundo que não lhes pertencia, em meio a pequenas esperanças, nunca realizadas, e duras frustrações. O sonho de morar em cidade grande:  para quê mesmo? Melhor não seria se ficassem ali no sertão? Carecia fazer tal travessia rumo à capital do país? Difícil saber… Vida tão perigosa, besta e sem sentido a desses Catrumanos

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