Doze vinténs. O significado de tal título o leitor descobrirá já na primeira página dos textos que seguem abaixo, depois do “leia mais”. O número doze, além disso, tem significado aqui, pois representa a quantidade histórias contidas (e contadas) na presente seleção. Podem interpretar o título também à luz dos dicionários, ou seja, essas estórias valeriam tanto quanto aquela antiga fração monetária, quase destituída de valor. Sobre serem “estórias de roça e sertão”, como também consta do título, me permito um esclarecimento adicional. Não é que eu seja um especialista em tais territórios, em termos físicos, geográficos ou literários. Nunca morei naquele interior mais radical de que algumas dessas narrativas se ocupam. Mas tenho família com tal origem, por gerações, inclusive aquela imediatamente anterior à minha pessoa. Assim, o que vai aqui são estórias que se passam neste vasto território, mais cultural do que físico, certamente . Mas pensando bem, faz muitos anos que tenho residência, na verdade, no vasto “sertão” dos planaltos interiores do Brasil, primeiro em Uberlândia depois em Brasília. Aliás, passei praticamente a metade de minha vida em tal localização geográfica. E assim, aprendi a gostar de cerrado; de paisagens achatadas, que alguns consideram monótonas, mas eu não; de rios que fluem de e para onde não se espera; de arroz com pequi; de horizontes abertos; de árvores tortas e nem por isso feias ou “erradas”, como diz meu amigo Nicolas Behr. E assim apresento a vocês estes contos (se é que posso chamá-los de tal forma), que me deram muito prazer ao serem escritos, augurando que isso contamine os meus eventuais leitores também. Em tempo: “Doze Vinténs” não é um nome exatamente fictício . A bem da verdade, era este o nome da antiga fazendo do meu avô Altivo Drummond de Andrade, em Itabira, onde eu mesmo morei por alguns meses, antes de completar um ano de idade. Mas nenhuma dessas narrativas tem a ver diretamente com fatos reais, são todas totalmente ficcionais, com uma única exceção, naquela parte denominada de O Mato de seus Perigos, a qual, ao lerem, meus leitores saberão a razão disso..
AS ESTÓRIAS
Doze Vinténs
– Sim sou o dono daqui. Vou abrir a porteira, porque afinal de contas o senhor teve a gentileza de me dar esta carona, mas não ando mais fazendo isso, é muita gente que vem aqui, a toda hora. Assim não posso trabalhar.
– O que querem? Lereias… Saber histórias do tal poeta, que dizem ter nascido e morado aqui nessas terras. Mas já apurei, é tudo mentira. O velho Hermógenes, vizinho meu, que tem quase cem anos e morou aqui desde sempre, já me explicou toda a história, por isso falo com certeza. Pelo que vejo é atrás disso que o senhor também veio até aqui, não é? Sossegue, vou lhe contar o que sei, mas acho que no final vai ficar desapontado.
– Este nome de Doze Vinténs aqui da fazenda? Não fui eu quem inventou. Fui procurar na escritura antiga e ele estava lá. Mas isso aqui já teve outros nomes, Patrimônio, por exemplo, foi um deles, que aliás acho um apelido besta, porque “patrimônio” todo imóvel no fundo acaba sendo. Nessa história de por nomes nas coisas, confesso que sou meio sistemático. Aqui há uma moda, agora, de botarem nomes estrangeiros nas fazendas e nas casas. Um vizinho ali adiante, por exemplo, botou placa na porteira chamando o pedaço dele de Xangri-lá. O que será isso, meu Deus? Tiraram do japonês? Da língua dos índios? Uma mulher lá na cidade colocou Sansuci. Não aprovo esta moda. Mas como dizia, isso aqui já fez parte de uma fazenda muitas vezes maior. Por assim dizer, aqui ficava apenas uma “ponta” dela, motivo, acho eu, de ter sido conhecida também como Pontal. Mas vieram mortes, sucessões, espólios, essas coisas e tudo foi mudando de mãos e sendo dividido. Eu mesmo comprei de um sujeito que nem dono direito era, não tinha papéis comprovando nada, mas ocupou a terra por uns 15 anos e fez usucapião; aí comprei. Encontrei tudo aqui no maior desmazelo. Aliás, este último ocupante parece que montou aqui um negócio meio fora da lei, uma espécie de ferro-velho, de desmanche de carros, a gente até encontra peças deles por aí, até mesmo umas carcaças enferrujadas e queimadas no fundo da grota. Dizem que ele foi baleado em uma batida da polícia por aqui. Por via das dúvidas, quando tomei posse, a primeira coisa que fiz foi comprar um saco de sal grosso e espalhei pra todo lado.
– O tal do poeta? Eles falam por aí que ele foi o dono deste pedaço, que até nasceu e morou em uma outra casa que existia e desabou. Mas meu informante de confiança, o velho Hermógenes, já me explicou que nada disso é verdade. A fazenda grande, a antigona, era de fato do pai dele, do tal poeta, que tinha uma quantidade enorme de terras por toda parte, aqui do município e mesmo fora dele. Antes de morrer o patriarca dividiu para os filhos e isso aqui ficou para um deles, acho que o mais velho. Mas este aí já tinha outras terras para cuidar e pouco se ocupou desta aqui. Deixou de herança, por sua vez, para um filho dele, sujeito problemático, doente, daqueles gordos de dez arrobas, que nem saía de casa e tratava a fazenda de um jeito totalmente sem noção. Morreu aqui, dizem, com a fazenda colocada em leilão para pagar dívidas. Este aí nunca se casou e não teve filhos.
– O poeta? Como o senhor vê, até agora não apareceu e nem vai aparecer na história. Se brincar, nem aqui ele veio alguma vez na vida. Satisfeito com as informações? Já vai embora? O senhor ainda quer saber de mais coisas? Eu já falei o que sabia…
– Não leve a mal, não é que eu esteja com má vontade, mas este povo da imprensa me atormenta diariamente com essas perguntas, ainda mais agora que o tal poeta iria completar cem anos se estivesse vivo, este lero-lero. Para mim, com esta idade o melhor é deixar a pessoa descansar, mesmo que já tenha morrido, o senhor não acha? É uma perguntação que não acaba e ainda publicam uma mentira atrás da outra. Eu já li as coisas que saem nas revistas e na televisão e isso me fez arrepiar. Se pelo menos fosse verdade…
– Ah, o senhor quer saber que mentiras são essas? Por exemplo, botaram uma foto do curral que eu reformei há tempos e disseram que ali tinha sido a casa onde ele nasceu. E eu mexi por lá na reforma e sei que aquilo nunca foi casa de ninguém, sempre foi curral mesmo. Uma pinguela que existe por aí disseram que foi obra do pai dele e que ele até fez um poema para ela – também acho que não é verdade, pois ela cai todo ano com a enchente e só eu já tive que refazer a bendita de novo um par de vezes. A capelinha que eles falaram que foi feita pelo velho pai dele nem fica aqui. Aliás, nem sei onde fica, acho que não tem nada a ver. E por aí vai. Estou de acordo com um amigo meu que mora na cidade e vem aqui na roça de vez em quando me visitar: neste lugar tem mais gente ganhando dinheiro e falando do poeta do que propriamente lendo o que ele escreveu. Acho que é bem isso aí.
– Se pretendo ficar por aqui, minha vida toda? Depende. Estou ficando velho e comprar uma terra era um sonho antigo. Consegui realizar depois que me aposentei, mas não me lembrei que ao mesmo tempo ia ficar velho, vê se pode. Ando meio cansado, fique tranquilo, não só pelos jornalistas que me perseguem, não se ofenda, o senhor está sendo até bem simpático. A questão é que tocar uma fazenda, mesmo pequena como esta, dá muito trabalho. Acho que vou acabar fazendo o que a maioria já fez por aqui, ou seja, vender a terra para a companhia plantar eucalipto ou fazer não sei o quê.
– A companhia? O senhor então não sabe? É dona de tudo por aqui. E quanto mais compra terras mais quer comprar. Aliás, dizem que como aqui é um fundo de vale, eles querem mesmo é fazer um grande depósito, uma espécie de represa, para conter os restos de mineração. Já pensou? Nem o velho patriarca, nem o gordo, nem o cara do ferro-velho teriam imaginado uma coisa assim. Mas eu vou resistindo.
– Pois é… O poeta. Se o senhor tiver um tempinho, uma outra hora, quem sabe, podia me explicar a importância dele. Dizem que gostava de falar de pedras… Agora eu é que ando querendo saber…
– Não aceita uma água, um café? De fato, vou ser sincero, estou com pressa agora. Sua presença me agrada, mas tenho que tratar dos porquinhos, das galinhas, molhar a horta e recolher os bezerros. Até mais ver. Cerre a porteira ao sair. Apareça!
– De nada, disponha. Desculpe se estou sendo grosseiro e imprudente, mas vocês da imprensa e das universidades não acham que deviam deixar o infeliz deste poeta descansar?
***
Amor e Desamor (ou A solidez insustentável)
O lugarejo ali era um recanto esquecido do mundo. Era, não é mais. Não fosse pela igreja velha, da época dos escravos, e a meia dúzia de casarões ajanelados, ninguém ia saber que aquilo existia. Mas o povo da cidade, que gosta muito de novidades – e mais ainda, de umas velharias – se encantou com a vila de Santa Senhorinha e agora era raro o dia, pelo menos em fins de semana, que não aparecessem por lá umas dúzias deles, montados em seus jipes caros, motos possantes e o que mais houvesse para se bem mostrar, fosse para os pobres locais, mas principalmente uns para os outros. Era a regra deles, ninguém matava e ninguém morria e Tutu Caramujo, o dono da venda, se ria até as orelhas com o lucro extra que essas novas modas lhe traziam. Ele, que em antes demorava um mês para vender uma reles grade de cerveja, agora via desaparecerem, por força daquelas goelas ávidas, pelo menos meia dúzia delas em cada final de semana.
No dia em que essa história começou havia festa. A padroeira local, Santa Senhorinha, comemorava sua data e nos últimos tempos o povo da cidade descobrira aquilo como um atrativo especial. Antes, o que havia ali era uma quermesse pobre e sem nada de importante, teve vez que nem o padre da cidade veio, meio esquecido até de si mesmo, para rezar missa e dar comunhão ao povo. Mas de repente, com o movimento de gente nova, não é que até a festa passou a ser considerada e ouve até quem dissesse que aquilo era uma legítima e saudável tradição popular que carecia respeitar e divulgar? Tutu, que tinha nascido e sempre morara na vila achou graça, porque bem sabia que a tal “tradição” não era tão antiga assim, fora inventada por um padre estrangeiro que por ali andara uns 15 anos antes e que mandara reformar a capela caída aos pedaços, mudando até nome dela, de Santo Expedito para esta Santa Senhorinha, da qual, até então, ninguém por ali tinha ouvido falar. Segundo ele, era uma santinha muito afamada e festejada em sua terra, em Portugal. E depois disso até o lugar mudou de estatuto, pois nem tinha nome direito, uns chamavam de Quilombo e outros de Leva-e-Traz, passando a ser conhecido pelo nome da tal santa portuguesa.
Mas havia festa e uma pequena multidão se aglomerava, no bar e mercearia Maravilha, propriedade de Tutu, no salão da igreja e até mesmo em algumas casas que agora ofereciam quartos e refeições aos festeiros de ocasião.
Na escada larga que levava ao bar, assentada lado a lado com outros forasteiros, homens e mulheres, e gente dali mesmo, quase apenas homens, estava a personagem dessa história, Zulmira, uma das forasteiras. Ali, a roda estava animada, com muita cerveja escorrendo, para alegria de Tutu e muita conversa fiada rolando, tornando o ambiente mais do que caloroso, um tanto libertino, pois havia, em dado momento, uma sessão de anedotas sobre padres, beatas, seminaristas afeminados, mocinhas virgens e coisas assim. Isso bem no dia da festa da padroeira. Zulmira, coroa ajeitada, tendo apeado de seu jipe, no qual aparentemente viera sozinha, calça jeans justinha no corpo, botas longas, cabelos grisalhos presos em coque, roupa de couro, chamava atenção dos machos, fossem dos chegados de fora ou dos locais.
E ali, na outra ponta da escada, estava Antônio, um cidadão local, entrado nos 40 anos, mas de porte esguio e, dependendo do ângulo, um tanto formoso, pequeno sitiante que na verdade ganhava a vida era no eito mesmo, pois não tinha capital nem ferramentas para extrair meios de sobrevivência daqueles dois alqueires que o pai lhe deixara de herança. Antônio gostava de uma conversa diferente, de gente da cidade, julgava isso um aprimoramento para sua acanhada vidinha ali em Senhorinha. Ele viu Zulmira e dela se encantou de imediato. Aquele corpinho já passado dos quarenta, talvez, mas ainda curvilíneo e apetitoso na medida, aquelas roupas e botas de couro, o grisalho dos cabelos que longe de demonstrar velhice davam à sua figura um ingrediente ainda mais especial, a bulir com seus humores de macho. E ainda mais, dirigia um jipão, só dela, sem precisar de algum homem para lhe fazer companhia.
Nossa mãe! Antônio pregou os olhos em Zulmira e desejou a recém chegada com toda a força que tinha, porém, sem imaginar que algum dia pudesse ter algum sucesso em tal empreitada. Olhar alguém daquele jeito meio indecente, como ele reconhecia que estava fazendo, poderia até ser algum pecado, mas certamente não seria coisa de se pagar imposto ou tirar pedaço, perdoava ele a si mesmo. Mas não é que em certo momento flagrou Zulmira olhando para ele? Ou assim lhe pareceu, nem sabia mais.
Como nunca ninguém e nada é perfeito, Antônio só não aprovou em Zulmira o jeito meio largado dela, sentada no chão, pernas abertas, copo de cerveja na mão, rindo desbragada das piadas sujas que eram contadas e, pior ainda, acrescentando, por conta própria, outras mais. Mas o resto, admitia Antônio, enchia suas medidas.
A coisa ali na escada ia longe e Antônio ainda tinha que dar conta de uns recados e uma compras para a roça. Estava um pouco afobado, pois viera a pé para a festa, tendo a bicicleta quebrada e a velha mula estropiada naquele dia. Antes que a noite caísse, pegou estrada. Ele não era um sujeito religioso e nem acreditava em promessas para os santos, do tipo que eram comuns entre o povo ali em Santa Senhorinha. Se o fosse, talvez pudesse formular alguma promessa, sendo seu objeto, com certeza, aquela mulher de cabelos grisalhos e corpinho charmoso, com suas roupas de couro e seu jipe.
Em dado momento, teve que se afastar para um canto da estrada pois vinha um carro. Alguém que parou logo adiante para lhe perguntar se ele precisava de carona.
Era Zulmira.
Em um primeiro momento, Antônio perdeu o fôlego. Mas logo se controlou: – quero sim senhora, se não for lhe dar trabalho… – Deixa disso, que mané trabalho, nenhum trabalho. E não me chame de senhora. Senhora é aquela lá, que está no altar. Suba aí.
O destino dele ficava logo adiante, de maneira que não houve tempo para muita a conversa, mas mesmo assim, antes que ele descesse, Zulmira por algum motivo resolveu especular sobre a vida dele: o que fazia, como vivia ali, se gostava de festa, se ia muito à cidade, se era casado ou solteiro, com quem vivia – essas coisas. Contou-lhe também que frequentava a vila já há algum tempo e que tinha vontade de comprar um terreno ali, se Antônio porventura saberia de algum cantinho para vender. Ele, ainda com o coração a lhe sair pela boca, não encontrou muito jeito em responder. Mas ela arrematou, despachada, como parecia ser o permanente jeito dela: – pode deixar, vou voltar daqui a uns dias e vou lhe procurar. E coroou o gesto, já lhe dando alguma intimidade: fui um prazer conhecer você, Antônio, vi lá na venda que você é um cara bem ligado nessas coisas.
Que ‘coisas’ afinal seria essas? Foi o que o pobre tentou imaginar. E ficou nisso, entre a interrogação e a sensação de que estaria se enganando, iludido. E assim se passaram semanas. Até que ela voltou e lhe chamou da porteira já conhecida por ela; – Hei meu amigo, acho que preciso de você!
Era apenas o jipe com um pneu furado e ela não dava conta de fazer levantar o macaco e nem de folgar as porcas da roda. É claro que ele fez tudo isso com todo o maior capricho e mais ainda se sentindo embriagado com o perfume do corpo dela, que acabou se aproximando do seu, na hora de guardar o pneu murcho no porta malas. Mas aí, Antônio já tinha aprendido a se controlar, sem perder o fôlego, bem usufruindo da sensação plena de ter assim tão perto uma fêmea como aquela.
Ele não era tão desagradável às mulheres, bem o sabia. Ali no arraial, pelo menos, não eram poucas – entre as poucas de lá – que lhe davam bola. Havia por exemplo aquela Quinzinha, muito gostosinha, mas um tanto oferecida, que lhe visitava, por livre e espontânea vontade, na casinha do Sítio. Nunca pensara seriamente em casar, primeiro porque não via por ali nenhuma moça que o agradasse e depois porque se sentia um tanto comodista para ter coragem de juntar os panos com alguém. Mas ele sabia se cuidar. Suas compras de mês no armazém da cidade sempre incluíam desodorante, pasta de dente, um sabonete de qualidade razoável, água de colônia.
Mas uma mulher como Zulmira, com aquele cheiro, aquele coque meio grisalho, aquele corpo cheio de promessas, aquele jipe 4×4… talvez fosse muito para ele. Era a primeira vez que alguém assim lhe dava atenção, ainda mais sendo da cidade, e ele muito se regozijava por dentro, impado de tanta satisfação e orgulho.
Consertado o pneu em um borracheiro improvisado que havia no arraial, ela o convidou: – vamos tomar uma cervejinha, Antônio, eu sei que você gosta… Era a sede com a vontade de beber, porque ele agora se sentia senhor da situação, nada de tremores, nada de palavras que não saíam da garganta: – Vamos sim, Zulmira – só se for agora! E ficou sabendo que ela agora era quase proprietária de uma área que Tutu Caramujo conseguira para ela, do outro lado da vila, bom lugar, até servido por um corguinho, e que ia logo começar a construir um chalé. E mais: que Tutu também tinha conseguido para ela uma casinha para alugar, bem no centro da vila, para que assim pudesse acompanhar de perto a construção.
Antônio se viu acometido de certo ciúme, mas logo se acalmou ao lembrar que Tutu dificilmente atrairia uma mulher como aquela, com seus 120 quilos de barriga e aquele jeito abichalhado dele. Podia descansar, daquele mato não haveria de sair nadinha.
A obra do chalé logo começou e Zulmira, já nas primeiras semanas, propôs a Antônio que acompanhasse os trabalhos na ausência dela e que o pagaria para tanto. Ele, que andava em má fase financeira, aceitou a proposta, embora um tanto envergonhado. Mas deu tudo certo, ela confiava nele e não faltou dinheiro para tocar a construção com total regularidade, ainda mais porque ela trouxe um mestre e um pedreiro da cidade, porque a mão de obra ali da vila, como todo mundo sabia, era uma porcaria mesmo. Em seis meses estava tudo prontinho e ela deu uma grande festa para comemorar, convidando sua turma de jipeiros e motoqueiros. Do arraial, os únicos convidados eram Antônio e Tutu, o que muito honrou aquele, que já se sentia meio apaixonado por ela. A partir daí, as vindas de Zulmira passaram a ocorrer a cada quinze dias, às vezes até toda semana.
Antônio sempre por perto, fosse convocado por ela ou auto prestimoso, a ver se o objeto de seus cuidados precisava de alguma coisa. Sempre havia uma lâmpada para trocar, uma torneira vazando, uma telha quebrada, o rastro de algum animal no quintal. Melhor do que aquilo não poderia ser e Antônio se sentia no centro de um paraíso. Ela quase sempre trazia amigos e a todos apresentava seu lugar-tenente, com honras: – este é meu grande amigo Antônio; não sei o que seria de mim aqui se não fosse ele!
Um final de semana ela veio sozinha. Deteve-se na porteira por alguns instantes e o convidou: – Apareça lá em casa hoje, quero te mostrar uma coisa. Ele, que já tinha até mudando alguns de seus hábitos de vida, por exemplo, indo à cidade a comprar roupas melhores, aceitou de pronto o convite, que lhe deu inclusive a oportunidade de estrear calça, sapato e suéter recém adquiridos. E assim, pimpão como um príncipe, mal esperou a noite cair para finalmente encontrar o objeto de seus desejos. Ele nem poderia imaginar o que estava para vir daí a alguns momentos.
Ao chegar ao chalé de Zulmira, agora apelidado por um nome estrangeiro, alguma coisa como Sam-Suci, ele percebeu um ambiente chamativo: a iluminação com velas, cheiro de incenso no ar e no forno algum assado já se manifestando de modo apetitoso e convidativo. E foi logo falando para ele: – hoje vamos mudar de bebida, cerveja empanturra. A surpresa de que lhe falei é este vinho que ganhei de uma amiga, guardado há anos, especialmente para um dia especial.
Um dia especial! Antônio logo percebeu que era realmente um dia, ou melhor, uma noite, mais que isso, e que quem se via realmente como especial mesmo, no caso, era ele. A velha perda de fôlego quase lhe assalta de novo, mas para sua felicidade, foi logo controlada.
Ela o serviu, brindaram, ela tomou de leve sua mão para segurasse a taça pela haste e não abarcando-a toda nas palmas fechadas, falando que um bom vinho requeria rituais corretos, sorriu para ele com um jeito carinhoso. E o céu desceu até eles. Antônio não achou aquele vinho assim tão especial, gostava mesmo era de cerveja, mas não fez feio, elogiou e pediu mais. Sentaram-se no sofá, que era pequeno, cabendo apenas eles dois, assim mesmo quase coxa a coxa e ombro a ombro. Ela lhe falou da semana complicada que tivera no trabalho, da discussão com um colega metido a besta. Ele lhe contou da lida com a mula, que fendera o casco num pedregulho e com o paiol que estava infestado por ratos. Ela lhe prestou tanta atenção que Antônio chegou a ficar comovido e com remorso por não ter tratado o caso da colega impertinente com igual consideração.
A próxima etapa foi a mesa e aquela pata de carneiro assada com purê de maçãs foi, para ele, a verdadeira comida de um Deus. A garrafa de vinho se esvaiu, como se estivesse rachada. De volta ao sofá, com algumas das velas já extintas, a sala em quase total obscuridade, alguns de momentos de silêncio culminaram em um toque de mãos, seguido, naturalmente, de um longo e saboroso beijo, em que línguas se enroscaram e hálitos se misturaram. Dali pra frente, cama, para uma noite bem-mal dormida.
E assim uma doce rotina se instalou entre eles. Antônio, já sabendo de antemão que Zulmira viria nas sextas feiras, cuidava de chamar alguém para limpar a casa, arrumava ele mesmo qualquer defeito, trazia frutas de algum pomar ou mesmo do mato, instalava objetos que lhe pareciam decorativos, como casas abandonadas de vespas, cipós retorcidos, ninhos de passarinho, pedras do rio de formatos estranhos. Nada poderia ser melhor do que aquilo.
Antônio começou a tentar se acostumar com as visitas que ela trazia às vezes. Mas essa parte era mais difícil para ele. Por exemplo, a dupla de amigos dela, colegas de trabalho, que passaram o final de semana no chalé, foram colocados a dormir no mesmo quarto, ou melhor, na mesma cama, e fizeram barulho a noite inteira, denunciando o tipo de safadeza que estavam praticando um com o outro. Dois homens!
Antônio não comentou nem deu a perceber nada; Zulmira fez questão de dar a entender a eles, no café da manhã seguinte, que ficara muito feliz em perceber que eles estavam aproveitando bem a estadia, piscando-lhes o olho de um jeito que pareceu a Antônio suspeito e até meio indecente. Mas longe deles isso lhes transtornar a rotina de carinho e suavidade que a vida lhes trazia a cada final de semana. E de entremeio com as visitas havia sempre festinhas íntimas, com mais três ou quatro pessoas; casais normais de homem e mulher – ou não; passeios a cachoeiras e igrejas antigas da região; almoços e jantares a dois; vinhos e cervejas tão especiais como aquele primeiro. E havia também – e principalmente – sexo, muito sexo, cada vez mais aprimorado e saboroso, cuja qualidade ela generosamente atribuía a ele, mas que ele, Antônio, modesto na medida, sabia que se tratava de uma habilidade da companheira, muito mais do que de si próprio.
E ela passou a apresentá-lo como Tonico, meu companheiro, o que o deixava feliz e orgulhoso também.
Depois de uma dessas festas em casa, com os convidados tendo preferido ficar em uma pousada das proximidades, na manhã seguinte o território da casa tinha se transformado em autêntica praça de guerra, com copos e garrafas para todo lado, pratos quebrados, restos de comida espalhados, pontas de cigarro de variadas qualidades de fumo, além de uma pia atulhada de louça até as bordas, para não falar nos cestos de papel higiênico cheios até as bordas. Antônio, que sempre acordava cedo, viu aquilo tudo e suspirou, com algum enfado. Não quis usar a cozinha nem para preparar o café, foi tomá-lo no Bar de Tutu, onde sempre havia uma garrafa térmica carregada e uns biscoitos de polvilho. Quando voltou em casa, mais de uma hora depois, Zulmira ainda estava na cama, com a cara amarrotada pela noitada e percebendo que ele estava em casa, chamou-o à cama, para lhe pedir, com voz pastosa, mas tentando ser sensual, que cuidasse da sujeira para ela, que ia ficar mais tempo deitada, por se sentir mal.
Antônio apenas emitiu um murmúrio incompreensível, mal disfarçando seu desgosto com a proposta. Voltou a cozinha, pegou seu chapéu e alguns objetos seus e saiu para a rua. Zanzou por ali e depois foi para o sítio cuidar da mula, tratar das galinhas, molhar a horta; se entreteve por lá e só retornou ao chalé na boca da noite. Zulmira o recebeu com uma tentativa de neutralidade, mas por dentro chateada. Ela já tinha percebido que para os machos locais uma pia suja era um lugar intocável, mas imaginou que dadas as circunstâncias Antônio se esforçaria para ajudá-la. Não foi o que aconteceu, pelo que via.
Como geralmente acontece entre casais, aquele mal estar passou. Ou, melhor dizendo, parecia ter passado. O fato é que a vida seguia e os bons momentos, de maneira geral, continuavam a dominar o cenário.
Zulmira tinha uma amiga especial, Marília, que a visitava com mais frequência do que os demais de suas relações. Era uma mulher ruiva, talvez falsa ruiva, pequena, bem feita de corpo e de língua tão solta quanto à da amiga, chegada a palavrões e boas gargalhadas. As conversas delas se prolongavam por horas a fio e eram marcadas por risadas sem fim, num circunlóquio que não se abria para quem estava de fora, como era o caso de Antônio. Assim, quando Marília vinha passar o final de semana, ele, por pudor, preferia dormir no sítio e foi assim que aconteceu desta vez.
Lá pela hora do almoço ele resolveu ir até o chalé, para ver se as amigas precisavam de alguma coisa da parte dele. Entrou e percebeu que a casa estava vazia. Mas logo ouviu vozes, melhor dizendo, risadas, no quintal. Para não perturbar as amigas, deu uma espiada pela janela da cozinha e se deparou com uma cena que a princípio o atraiu. Estavam as duas ao fundo, Marília assentada e Zulmira a lhe massagear os cabelos, com bastante espuma e gestos demorados e carinhosos, que desciam pela nuca e costas. Zulmira vestia apenas uma camiseta; Marília completamente nua. Antônio podia ser rústico em algumas coisas, mas era um homem discreto, resolveu não interromper. Mas seria impossível impedir que ele apreciasse a cena por alguns instantes, do basculante da cozinha. Foi então que ele viu o que não queria ver. Em dado momento, Zulmira se abaixou e aproximou o rosto da cabeça molhada de Marília, e a beijou várias vezes. Mas era impossível não observar melhor a cena: os beijos de Zulmira percorreram a testa e as bochechas de Marília, para se demorar intensamente na boca, sendo totalmente correspondidos pela amiga. As mãos acompanhavam o ritual, percorrendo, mútua e suavemente, as curvas, volumes e reentrâncias ao seu alcance.
Antônio se abismou. Já sabia de coisas como aquela, vistas principalmente nos encontros dos jipeiros ali na vila, mas nunca com tanta intensidade e nudez tão explícita. Não imaginava, entretanto, que sua companheira fosse capaz ou tivesse interesse em coisas assim. Mas se calou, na hora e nos próximos dias e semanas. Ficou uma dúvida a lhe roer as entranhas, entretanto. E agora, o que fazer diante daquilo?
Dias depois, mais uma situação imprevista para ele. Zulmira lhe comunicou que receberia uma visita, no próximo final de semana, de um grande amigo, que ela não via há tempos, pois tinha se mudado do país e agora vinha a passeio. Esclareceu mais um pouco: era um antigo namorado dela, tinham até morado juntos por algum tempo, mas a relação acabara por causa da mudança dele para exterior. Agora eram apenas amigos. Ela deve ter percebido a rugas que se formaram na testa de Antônio e tentou salvar a situação: – fique tranquilo, meu bem, isso é coisa mais do que normal entre as pessoas com quem eu convivo, tem gente que até viaja juntos, antigos e atuais companheiros. E somos muito felizes desse jeito. É normal…
O pobre Antônio só conseguir formar uma frase, mesmo assim apenas retida lá no fundo dele: – Normal? Normal para quem?
O dia da visita chegou e Antônio, que tinha dormido no chalé e resistido ao impulso dela em querer um chamego, acordou bem cedo, como era de seu costume e juntou suas coisas, indo para o sítio, sem café, sem chamego, sem mais nada – apenas com sua trouxa. Por lá ficou o resto do dia e também nos próximos finais de semana também. Zulmira o procurou uma ou duas vezes, mas não o encontrou em casa e nem teve notícias de por onde ele andaria. Depois desistiu de fazê-lo.
Passaram-se os meses e as coisas continuavam do mesmo jeito entre eles. Zulmira começou a pensar em colocar o chalé á venda e chegou até a conversar com Tutu sobre isso, para procurarem comprador.
Enquanto isso, a vida na Vila Senhorinha continuava, para os jipeiros, para Tutu, para os demais moradores. Ali, onde antes nada acontecia, começaram a surgir novidades sem conta. Além dos jipeiros apareceram, aos montes, mais motoqueiros, ciclistas e caminhantes a pé. Uma pousada, a Flor da Lua foi inaugurada, ficando lotada desde o primeiro dia de funcionamento. A igreja evangélica Na Paz do Senhor Jesus, que já tinha sede em um distrito próximo, abriu ali sua filial. O padre, um irlandês bonitão, presente ali apenas uma vez por mês e nas festas, foi transferido e parece que acabou se engraçando com uma moça na outra paróquia e se juntou com ela. A Capela de Santa Senhorinha foi fechada em definitivo, depois que teve sua torre rachada por um raio, ameaçando desabar.
***
Do mato e seus perigos
A Mauro Marcio, que me inspirou esta história.
Meu amigo, sempre cuidadoso e meticuloso, me fez o favor de preparar e me mandar um guia para uma visita que pretendo fazer ao seu Sítio dos Prazeres, lembrando, de início que “visitar a roça pode ser um passatempo inesquecível para quem mora na cidade e, ainda mais, em apartamento. A imagem idílica do campo atrai muitas pessoas, que quando acorrem à roça, pois pensam, sobretudo, no lado agradável da visita. Mas, devo avisar que uma imersão na roça supõe riscos. Para evitar um tratamento genérico da questão, falo apenas dos que já experimentei por aqui; uns com sucesso e outros com acidentes!”.
E assim ele chama atenção para os inúmeros perigos que cercam uma viagem à roça, mesmo se for um dos tais sítios como este dos Prazeres, de onde quase dá para avistar as luzes urbanas. Entre os insetos, por exemplo, ele alerta para os vespeiros, casas de marimbondos e colmeias de abelhas, sem esquecer daqueles que não andam em bando, como escorpiões, lacraias, lagartas de fogo, carrapatos e tarântulas. Quanto às formigas, então, todo cuidado é pouco, lembrando das ditas cujas de fogo, que apesar de vermelhas e pequeninas, têm um veneno poderoso. Carrapatos, especialmente na época da seca, constituem um grande perigo, seja dos redoleiros, bem grandes ou dos micuins, micrométricos. À noite, cuidado com os cupins, que embora cegos (eu nem sabia disso), são agressivos. Ele desconsidera as moscas, pernilongos e muriçocas, que mais incomodam do que produzem dores – mas mesmos estes aí eu acho que merecem cuidado especial da parte de quem se aventura no mato.
Os perigos não acabam aí, todavia. Há também uma completa antologia de animais silvestres, entre os quais se incluem os teiús, as serpentes, as ariranhas, as onças pardas, os javaporcos (para mim até então ignotos) e até mesmo os reles tatus, gambás, quatis, veadinhos, macaquinhos, seriemas, perdizes, tucanos e curicacas, quanto aos quais ele alerta que devem ser vistos a uma distância segura. E completa que por acaso se se depara com algum desses bichos e tentar correr dele, mesmo assim deve ter cuidado, pois pode acontecer que logo adiante tropece e caia, dado que nem todo terreno facilita fugas como esta que está tentado encetar.
Em casa, em descanso protegido do mundo exterior, ao ver morcegos voando nos cômodos, don’t worry, eles são frugívoros. Da mesma forma, os gambás no forro da casa só fazem barulho e não chegam a representar nenhuma ameaça à integridade de uma pessoa, salvo, talvez pela emissão de mau cheiro – mas isso passa e não faz mal (nem bem) à saúde de alguém.
No reino vegetal os perigos são menores, mas não devem ser desprezados. Cipós, por exemplo, daqueles que se ajeitam rasteiros, podem se transformar em laços quem pegam você pelo pé, não em muito bom sentido. E muito cuidado com algumas plantas espinhosas, como a bem denominada malícia, a lobeira, o jiló do mato e outras, havendo também aquelas que produzem alergias nas pessoas mais sensíveis, como a aroeira.
E como, em se estando no mato a tentação de alguns é fazer uma caminhada, é preciso também estar atento a tudo o que já foi descrito, mas é importante, assegura meu amigo, estar atento também às armadilhas escondidas sob o capim, que vão desde as tocas dos tatus aos enormes buracos cavados por ele para fazer um estudo do perfil do solo, seja lá o que isso for. Então, é preciso ter cuidado não só para evitar torcer o pé, quanto a obrigar os circunstantes a chamar o Corpo de Bombeiros, para resgatar você do fundo de algumas dessas locas quase tectônicas.
Isso tudo para não falar dos riscos meteorológicos, que vão desde chuvas fortes a raios incidentes diretamente sobre a cabeça dos incautos excursionistas. Sorte sua se estiver apenas Sítio dos Prazeres, situado em agradável planície, porque nas áreas de montanha os riscos de tromba d’água são enormes – e o mais das vezes, fatais.
Lendo tudo isso, pensei, em primeiro lugar se estamos diante apenas de um exercício de escrita, como este meu amigo gosta de nos apresentar ou se realmente ele quer nos convidar para usufruir de tais Prazeres, para lhe fazer companhia. Ou, quem sabe as duas coisas. Mas sem dúvida tudo está escrito com a graça de sempre por este escritor nem tão bissexto que é este meu gentil amigo de tantos anos.
De toda forma, na minha experiência mais “bissexta” do que a dele, aliás, de estar no mato, com ou sem cachorro, resolvi acrescentar à lista que ele me apresentou alguns outros perigos que tenho como reais.
No capítulo das formigas, por exemplo, ele se esqueceu das terríveis formigas de correição, que invadem a casa das pessoas aos bilhões, devorando tudo o que for vivo que encontrarem pela frente. Elas chegam, agem e vão embora, em poucas horas, promovendo nos domicílios humanos uma verdadeira faxina, não havendo barata, escorpião, lacraia ou mesmo lagartixa que não sucumba diante delas. Mas enquanto permanecem ali, não há ser humano que resista a suas picadas infernais e se não vencem pelo veneno, que não chega a ser forte, vencem pelo número. Eu mesmo, diante de uma das inúmeras invasões das tais correições às quais já fui submetido, tive que sair de casa e dormir no vizinho, sem conseguir sequer pegar minhas roupas e escova de dentes, tudo tomado pela horda de formigas. E para mal dos pecados, o costume delas é o de atacar pelas noites.
Acho que ele também não deu o devido peso aos ataques de abelhas, principalmente das afrodescendentes, que andam, ou melhor, voam, em enxames e matam bem mais do que atropelamento de automóver por este Brasil a fora.
Da mesma forma, ao descer na escala métrica, nunca é demais esquecer dos inumeráveis vírus e bactérias que os insetos transmitem. Na melhor das hipóteses lhe produzirão apenas febre e mal estar; do outro lado da escala, invalidez temporária, microcefalia, encefalites fatais…
Tem macacos no tal mato? Algum deles está morto ou moribundo? Corra! (com cuidado para não tropeçar nos cipós): a próxima vítima da febre amarela pode ser você.
Depois de tantas emoções, é hora de voltar pra casa. Que tal um bom vinho para relaxar. Na geladeira ou no armário não tem? Deixa a preguiça de lado e dá um pulo na mercearia da esquina.
Ao pisar na calçada, veja se não tem algum trombadinha, trombadão, pivete, punguista, descuidista ou ciclista por perto. Atravesse a rua só na faixa ou no sinaleiro e mesmo assim só o faça se a vista não alcançar algum bólido se aproximando. Com estes motoristas de hoje, nunca se sabe. Mesmo com os pés na calçada, não deixe de estar atento, pois alguns motoristas bêbados ou divergentes da norma preferem trafegar por ela…
Viver é mesmo muito perigoso, meu amigo. E não é só o mato que oferece perigos! Melhor ficar em casa….
***
Catrumanos
Estavam ali no que restava de sombra no pequizeiro, defronte à pamonharia à beira da rodovia, já havia pelo menos uma hora, e a condução não aparecia. Logo naquele dia, sexta feira, em que era possível tirar uma folguinha, tomar uma cervejinha com os amigos no armazém da vila. E tirante isso, não tinham em toda a semana nadinha, uma nesguinha que fosse, de qualquer tempo livre, porque no sábado era dia de ir fazer compras, limpar o galinheiro, dar uma rastelada no quintal, que já estava até parecendo fazenda de viúva. E Nhá Sebastiana não ia deixar por menos, arreliada do jeito que era, a encher a paciência deles até ficarem cansados e, sem ter outro jeito, tocarem a fazer o serviço, sem reclamar. – O sol já vai embora e eles não aparece, disse o mais velho… – Todo dia é essa quizumba, repostou o outro.
Semana dura aquela. Aliás, todas elas, de uns tempos para cá. Estavam trabalhando para um Abrão, sujeito enrolado como o Diabo, que tinha aberto uma carvoeira num cerradão distante, para os lados de Cabeceiras. Trabalho dos piores, todo mundo sabe como é penoso mexer com lenha pra fazer carvão, coisa que além do trabalho próprio que dá ainda obriga as pessoas a fugir dos fiscais do governo, que não andavam dando sossego. Teve uma vez que até um dos camaradas quase foi preso, por desacatar o fiscal. Ele só reclamou de estar sendo impedido de fazer seu serviço, mas o danado, metido a autoridade, não perdoou. Meteu uma multa no Abrão e chegou até a ameaçar de chamar a polícia para levar o queixoso para a Delegacia. No final relaxou, mas foi um custo fazer com que o miserável abrisse mão daquilo.
Ainda hoje, com sol quente na cabeça e a boia já meio fria e quase estragada, tiveram que matar uma cascavel de metro e tanto, que por pouco acabava total com a graça deles, escondida que estava em um monte de lenha seca.
E era assim: levantavam de madrugada, mal e mal com a barriga forrada com um cafezinho ralo e biscoito de polvilho que a Tiana preparava, com a maior da má vontade, diga-se de passagem, tinham que se abreviar para pegar o caminhãozinho que o Abrão mandava para buscá-los no fundão de grota onde residiam. E naquela caranguejola troncha iam pela estrada, pegando poeira e sendo jogados de um lado para o outro na carroceria, naquele caminho desmazelado, que a Prefeitura nunca se lembrava de mandar consertar. Ainda pegavam mais dois ou três camaradas pelo caminho e antes mesmo do sol levantar de todo estavam no eito. Ali era pendurar as capangas em alguma forquilha, guardar o garrafão térmico em alguma rara sombra e tocar a trabalhar até dar nó, na barriga e no corpo, o que viesse primeiro. E se davam por satisfeitos quando o Abrão ou o safado do Tinhorão, sócio dele nas trapalhadas, não apareciam para reclamar que o serviço não andava, essas coisas.
Vida dura, bem sabiam disso aqueles urucuianos, Tonico e Zé Beto, irmãos no sangue e sócios na dureza na vida. Nessas horas dava neles uma vontade doida de fazerem igual o irmão mais velho, o Abadio, que desistira daquela vida sem futuro e partira para morar em Brasília. Ali, de novo morando em terras do Goiás, mas ainda assim a dez léguas de distância da cidade, não tinha conseguido emprego decente, se virava como servente de pedreiro, cada dia numa obra diferente, mas pelo menos não tinha uma junta de mulas como Abrão e Tinhorão a atazanar a vida deles. Já era um progresso.
Com tanta dificuldade, tudo corria até bem quando não acontecia como agora, quando já tinham terminado o serviço fazia umas duas horas, com a noite quase chegando e o filho de uma égua do Abrão não mandava a caranguejola vir buscá-los. Ainda no mês passado foram chegar em casa depois da meia noite, mesmo assim porque arranjaram uma carona de última hora com um fazendeiro que passava por lá. E ainda cobrou 20 reais pela condução… E o Abrão, do jeito malino que era, nem pediu desculpas, disse que o caminhãozinho tinha quebrado e ficou por isso mesmo.
***
Foi assim que eu os vi, o lusco fusco daquela sexta feira de agosto. Eu vinha pela estrada, depois de atender umas fazendas na região, onde dou assistência de inseminação, pois sou técnico veterinário, parei para tomar um café e comer uma pamonha. E lá estavam os dois, sujos e mal vestidos, debaixo de pequizeiro, que nem sombra lhes oferecia mais, pelo adiantado da hora.
Pra falar a verdade, nem vi os dois rapazes quando cheguei, só quando estava de saída. Foram chegando perto, bem à maneira dos roceiros, como quem não quer nada. Logo vi que queriam alguma coisa, uma carona, talvez, na melhor das hipóteses. – Moço, desculpa, o senhor vai pra onde? Resolvi atalhar logo de uma vez: – para onde vocês querem ir? Tiveram sorte, eu ia pernoitar na fazenda de um amigo e tinha que passar perto do fundão onde moravam. No dia seguinte, sábado, eu tinha marcado uma sessão de enxertos em fazendas dos arredores. E fui logo dizendo, diante da resposta deles, que saiu meio engasgada, como se sentissem culpa em serem atendidos por mim: subam! Ainda de modo bem roceiro, me indagaram, olhos postos no assoalho da camionete: quando o senhor cobra? Resolvi brincar com eles mais um pouco: vocês não darão conta de me pagar… subam logo e vamos embora, antes que escureça. Apenas balbuciaram qualquer coisa como resposta, não sei bem o quê, mas devia ser um agradecimento.
O povo da roça é assim: se ganham uma carona não se sentem na obrigação de manter alguma conversação com quem lhes atenda, pelo contrário, talvez pensem que isso é afrontoso. Mas se deram mal comigo, porque eu gosto de conversar, acho que isso ajuda a passar o tempo. Na verdade, o meu gosto é viajar com a companhia de gente que também aprecie e tenha repertório para conversas. Não era bem o caso deles, mas aos poucos consegui dobrar neles a timidez e o silêncio.
Foi assim que fiquei sabendo do Abrão e do Tinhorão, do mal afamado caminhãozinho, da carvoeira, dos fiscais do Ibama, da cascavel, da vida dura que levavam desde a infância. Nada daquilo era novidade para mim, que sabia que ali no Urucuia aconteciam coisas assim e muito piores. Aliás, por toda parte na região – e até mais além dela. Vivi por lá durante alguns anos, andava agora por ali apenas a trabalho, mas a história deles, para mim, era coisa que eu conhecia desde sempre, já nos tempos de meus avós, pelo menos, pois que passei a infância ouvindo narrativas e assistindo casos assim.
O que mais me admirava era a maneira como essas coisas eram encaradas com naturalidade por ali. Assim era entre os mais pobres, os remediados, como era o caso de minha família e de maneira ainda mais acintosa e perversa, entre os mais ricos. O mínimo que se dizia, em qualquer uma dessas situações era algo como: deviam dar graças a Deus de arranjarem quem lhes arranje trabalho e lhes pague. Não saberia dizer, realmente, se o bom Deus deveria ser reverenciado apenas por fornecer trabalho ou também pelo fato de que este fosse remunerado…
Mas eu felizmente sempre pensei diferente disso. Talvez porque meu pai fosse um homem justo, pequeno comerciante que não tinha raízes naquela terra de criadores de gado, catireiros e carvoeiros. Tinha vindo de lugar maior e mais evoluído, em terras são-franciscanas e até estudara em colégio de padres, em Januária. Não era nenhum comunista, mas sem dúvida estranhava os costumes selvagens que dominavam por ali. Para os filhos, eu e meus dois irmãos, fez tudo o que pôde para irmos estudar fora, em Brasília no meu caso e de meu outro irmão, que fez concurso para a Polícia, e até mais longe, como minha irmã, que estudou em Belorizonte e por lá se casou. Assim, as histórias que Tonico e Zé Beto me contaram não chegavam a ser novidade para mim.
Quis saber mais da vida deles. Vivam com uma tia, de nome Sebastiana e o pai, muito idoso e entrevado, quase não andava. Pelo que contaram, confirmado pelo que vi depois, a moradia era um rancho dos mais precários, quase uma tapera. Moravam naquelas terras por cortesia do dono, que mal aparecia por ali, vivendo na cidade havia muitos anos. Ali só tinham moradia mesmo, porque trabalho tinham que procurar em outros lugares. Foi assim que o irmão mais velho foi para Brasília e uma irmã não se sabe para onde, pois um dia fez as malas e nunca mais deu as caras.
Não sei bem por quê, fiquei curioso em saber mais. Disse que voltaria no sábado, depois do expediente nas fazendas, para conversar também com o pai. Queria ouvir as histórias dele, embora certamente fossem apenas confirmar assuntos dos quais eu sabia desde sempre. Esta decisão também tinha a ver com o pedido de uma amiga, a Melânia, com quem ando tendo vontades de namorar, que estuda História numa faculdade em Brasília e está interessada em saber mais sobre o povo do sertão, como ela diz, principalmente os mais velhos, que carregam conhecimento que os mais novos já deixaram escapar – ou nunca souberam.
Mas pra falar a verdade, não apenas por esta quase namorada, eu também gosto de saber de coisas assim. Os que me conhecem sabem disso e não é à toa que alguns parentes mais velhos que tenho aqui na região já me botaram o apelido de ispicula. E eu gosto!
***
– Quem, eu?
– Sim senhor, você mesmo, Seu Eufrásio!
– Não moro aqui desde sempre, mas deve ter pra mais de sessenta anos, quando meu pai trouxe a família das bandas do rio Paracatu para cá. Mas tive avô aqui e até mesmo o avô do avô dele. Meu pai saiu e depois voltou.
– Se mudou alguma coisa? Bom, seu moço, isso aqui mudou muito, virou de ponta-cabeça. Quando a gente chegou ainda era um fim de mundo desgraçado, com a maleita atacando até macaco. Meu pai mesmo adoeceu umas tantas vezes; eu e meus irmãos, do mesmo jeito. A gente era em cinco e hoje só sobrou eu e a Tiana. Teve o Derico, que foi assassinado e outros dois, já até esqueci do nome deles, que foram trabalhar na construção de Brasília e nunca mais deram notícia.
– Se eles matavam muita gente aqui? Matavam sim, morria muita gente, de todo tipo, matada ou morrida. Não passava um mês que não deixassem de existir uns dois ou três. Briga por causa de terra, quase sempre. Depois acabou. Acho que veio este povo gaúcho, comprou quase tudo que tinha pra vender por aqui e aí acabou o motivo para andarem brigando e matando tanto. Quer dizer, ainda teve uns pipocos, principalmente vitimando uns aí que não queriam vender sua terra. Isso é o que o povo diz, eu não sustento. Povo daqui é muito falador, sabe? Mas agora tudo aqui é na base do arame farpado, ou dessas cercas modernas que dão até choque na gente.
– A maleita? Graças a Deus não tem mais. Vieram os guardas da campanha e devagarzinho foram dando um jeito nela. Tinha outras doenças também, aquela do papo era uma. O que tinha de papudo aqui o senhor nem imagina, hoje não tem mais. Não sei bem por que. Eles falam que botaram um remédio no sal que a gente come, mas não acredito muito. Acho que é coisa da mudança do tempo, também. O senhor veja quanta coisa que tinha antigamente e hoje não tem mais. E o contrário também. Só a pouca-vergonha é que aumentou.
– Veja o senhor… Acho que tudo começou quando fizeram Brasília, tanto tempo atrás. Não tinha nada aqui, se um cristão adoecia e não se arranjava com umas ervas do mato, estava perdido. Em último caso levavam a pessoa para a Formosa dos Couros, mas mesmo lá era pela hora da morte. Poucos escapavam. Essa Brasília mexeu com tudo aqui. Eu mesmo cheguei a ir pra lá, mas não dei conta daquela montoeira de gente, um sistema do diabo, tão diferente das coisas que a gente sempre teve por aqui. Assim como eu, foram muitos, mas a maioria por lá ficou ou caiu no mundo. Eu voltei, porque o meu negócio sempre foi cuidar de um gadinho e além do mais tinha uma mulherzinha me esperando aqui, que Deus a tenha, já se foi. Acho que tenho a mão boa para isso de mexer com vacas e bezerros. Aí trabalhei para o dono dessas terras, pai desse homem que vai deixando eu ficar por aqui, não sei até quando. Vida de pobre, meu amigo, não tem muita coisa pra contar.
– Ah, sim, teve essa estrada também. O senhor nem imagina como era antes. Para ir na Formosa era um dia inteiro, em umas estradas amaldiçoadas de ruins. E a gente tinha que ir não só quando ficava doente. Para pegar um dinheirinho no banco, ir no Funrural, pedir aposentadoria no INPS, comprar um remédio de farmácia, remédio para formiga e carrapato do gado – tudo era lá. E a gente sempre aproveitava para fazer uma farra também, eu mesmo fiz das minhas, não nego, entornado uns bons litros de Cinquenta e Um. Mas isso passou, para mim pelo menos, para esta moçada nova que anda por aí, continua. E nem falei das casas de raparigas que tinha, nem sei se ainda tem, parece que nem isso se usa mais. Eu, pelo menos, não uso mais, nem rapariga nem cachaça, hehehe.
– Agora, se teve uma coisa que demudou total por aqui foi o movimento de gente. Nossa! Antigamente a gente passava mês e até ano sem ver uma cara nova. Era só os parentes, os vizinhos e olhe lá. Depois da estrada – e da chegada dos gaúchos – um tanto de pessoas esquisitas andam por aqui. Teve até um, de nome Quinzinho, que conheci desde menino, que tinha saído daqui homem, foi para São Paulo e quando voltou tinha virado mulher e mudou até de nome, passou a chamar Mila, ou qualquer coisa assim. E este povo trazia novidades, as maiores que tinha no mundo, coisas que eu não sabia que existiam: primeiro a televisão, depois gravador de pilha, radio que fala estrangeiro, até máquina que faz café. Agora até este aparelho novo que apareceu, dizem que é telefone, mas que até tira retrato.
– O povo antigo? Bom eu não conheci muito de perto, porque fui criado fora uma parte da vida, lá pelas bandas do Paracatu, como eu já disse. Mas meu pai falava muito neles, as histórias dessa gente, de seu avô e seus tios, que eram muitos e sempre viveram nessas bandas. Ele me disse que era um povo diferente, que não eram como os de hoje, eram mais esquentados. Sempre pobres, até mais do que hoje, viviam de criar umas vaquinhas e plantar alguma roça vasqueira por aí. Mas na entressafra apreciavam uma confusão mais grossa. Meu pai dizia que esses aí, gente de outros tempos, até tinham o costume de se alistar por conta de uns coronéis fazendeirões e lutavam por eles, chegando até na beira do São Francisco, bem armados que nem soldados a serviço deles. Mas isso é coisa pra lá de antiga, não tem mais. Nem sei onde foram parar esses valentões e os tais coronéis.
***
Pronto! Seu Eufrásio não podia imaginar o presente que me dava. Primeiro porque eu também gostava de histórias assim, sempre gostei delas. Mas o mais importante nem era isso: aquilo me abria uma porta que finalmente ia trazer a Melânia, a historiadora, para perto de mim, fazendo com que eu ganhasse os beijinhos com os quais há tanto tempo sonhava.
Eu queria mais era correr para Brasília e contar tudo para ela. E fiz isso logo que pude e meu plano deu certo. Ela ficou curiosa, doida para conhecer o velho Eufrásio também. Mas isso não foi possível de imediato, pois neste tempo eu tinha arranjado trabalho do outro lado dos Goiás. E se passaram alguns meses.
Um dia, eu fui abastecer meu carro e em um posto de gasolina perto de minha casa, na Ceilândia, quem é que eu vejo: Zé Beto, o urucuiano, agora transformado em frentista. Ele não me reconheceu de imediato, mas logo que viu quem eu era e me colocou a par das novidades da terra. O velho Eufrásio tinha morrido (tive pena, por Melânia), a velha Sebastiana fora recolhida a um asilo em Formosa, o irmão Antônio tinha se mudado para o Triângulo Mineiro, para fazer não se sabia bem o quê, pois havia tempo que não chegavam mais notícias dele. O outro irmão, Abadio, andava por aí, não o via muito.
Mas que ele, José Adalberto estava bem, dando graças a Deus por ter conseguido aquele emprego de frentista e não queria mais sair de Brasília. Além disso estava pensando em casar e sua noiva estava grávida. Despedi dele com alegria, afinal de contas parecia feliz, embora eu bem soubesse das dificuldades que certamente estava enfrentando na cidade, morando longe do trabalho e ainda tendo que arcar, dentro em breve, com as obrigações de pai de família.
Lá no fundo da mente imaginei o que mandava em um destino como o dele, descendente de gente bem assentada e sossegada nos fundões do Urucuia e agora proletário, pendurado nas beiradas de uma cidade grande e hostil, sem maiores chances de fazer progresso na vida.
Lembrei-me de o que meu pai teria dito diante de algo assim: esta era a vida dada aos mais pobres, nada mais do que isso.
Melânia ficou aborrecida com a notícia da morte do velho Eufrásio, mas aquilo que eu esperava, ou seja, conquistar as graças dela, finalmente começou a acontecer. A história do velhote trouxe para ela o efeito inesperado de ter encontrado finalmente o fio da meada para seu trabalho de conclusão de curso na Faculdade de História. Ela foi atrás de livros sem conta, revirou bibliotecas e a internet, passou noites em claro e finais de semana sem poder me ver. Mas tudo valeu a pena, mais ainda porque eu próprio acabei beneficiado, tendo ela, finalmente, cedido à minha vontade do carinho dela, com todo respeito, claro.
Foi assim que, procura daqui, procura dali, Melânia achou finalmente um livro que tratava do assunto que lhe interessava tanto. Pelo que entendi era um romance no qual se narravam histórias de uma espécie de guerreiros urucuianos, pobres de dar dó, mas sobretudo muito valentes. – Mas isso é uma história inventada, ponderei. – Que mané inventada, ela retrucou, pois o Eufrásio não contou esta mesma história pra você, que ouviu do pai e do avô? Então isso só pode ter acontecido de verdade. E pelo que você fala neste Urucuia pode acontecer de tudo, até mesmo surgir pessoas como você e eu! Achei que era um elogio, pois em seguida me beijou, de leve, mas beijou. Esta é a Melânia e não é por acaso que gosto dela mesmo assim, ou, talvez, também por causa disso… Assim resolvi me calar, esta moça quando acha que está certa vira um tratorzinho que patrola todo mundo. E me trouxe o relato que vai a seguir, copiado por ela do tal livro, do qual não me lembro o nome, só sei que fala de Sertão e que o autor é um Guimarães, de primeiro nome João, se não me engano.
***
<<Pelos modos, pelas roupas, aqueles eram gente do Alto Urucuia. Catrumanos dos gerais. Pobres, mas atravessados de armas, e com cheias cartucheiras.
E enxergamos um homem – no alto da virada – uns homens. Esses estavam com espingardas. Os quantos homens, de estranhoso aspecto, que agitavam manejos para voltarmos de donde estávamos.
Um eu vi, que dava ordens: um roceiro brabo, arrastando as calças e as esporas. Mas os outros, chusmote deles, eram só molambos de miséria, quase que não possuíam o respeito de roupas de vestir. Um, aos menos trapos: nem bem só o esporte de uma tanga esfarrapada, e, em lugar de camisa, a ver a espécie de colete, de couro de jaguacacaca. Eram uns dez a quinze.
Não consegui sentido no que eles ameaçavam, e vi que estavam aperrando as armas. Queriam cobrar portagem? Andavam arrumando alguma jerimbamba? Não convinha avançar assim por cima deles, logo, mas também dar recuada podia ser uma vergonha. Esbarramos, neles quase encostados. Íamos esperar o resto do pessoal. E eles, ali confrontes, não explicavam razão nenhuma. Só um disse: – “Pode não… Pode não…”
Nos tempos antigos, devia de ter sido assim. Gente tão em célebres, conforme eu nunca tinha divulgado nem ouvido dizer, na vida. O das esporas foi se amontar num jumento – esse era o único animal-de-sela que ali tinham. Acho que montou para oferecer à gente maior vulto de respeito; tocava batendo palma de mão na anca do jegue, veio vindo, para primeiro se presenciar.
Olhei para todos. Um tinha a barba muito preta, e aqueles seus olhos permeando. Um, mesmo em dia de horas tão calorosas, ele estava trajado com uma baeta vermelha, comprida, acho que por falta de outra vestimenta prestável. Ver a ver o sacerdote!
“Ih! Essa gente tem piolho e muquiranas…” – o Nélson disse, contrabaixo. Todos estavam com alguma garantia: que eram lazarinas, bocudas baludas, garruchas e bacamartes, escopetas e trabucão – peças de armas de outras idades.
Quase que cada um era escuro de feições, curtidos muito, mas um escuro com sarro ravo, amarelos de tanto comer só polpa de buriti, e fio que estavam bêbados, de beber tanta saeta.
Um, zambo, troncudo, segurava somente um calaboca, mas devia de ser de braço terrível, no manobrar aquele cacete. O quanto feioso, de dar pena, constado chato o formo do nariz, estragada a boca grande demais, em três.
Outro, que tinha uma foice encabada muito comprido, e um porongo pendurado a tiracol por uma embira, cochichava com os restantes uma séria falação: a qual uma espécie de pajelança. Artes vezes ele guinchava, feito o demônio gemedeiro. Esse, que por nome de Constantino acudia.
Todos eles, com seus saquinhos chumbeiros e surrões, e polvorinhos de corno, e armamento tão desgraçado, mesmo assim não tomavam bastante receio de nossos rifles. Para o nosso juízo, eles eram doidos. Como é que, desvalimento de gente assim, podiam escolher ofício de salteador?
Ah, mas não eram. Que o que acontecia era de serem só esses homens reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão, os catrumanos daquelas brenhas.
Que viviam tapados de Deus, assim nos ocos. Nem não saíam dos solapos, segundo refleti, dando cria feito bichos, em socavas. Mas por ali deviam de ter suas casas e suas mulheres, seus meninos pequenos. Cafuas levantadas nas burguéias, em dobras de serra ou no chão das baixadas, beira de brejo; às vezes formando mesmo arruados. Aí plantavam suas rocinhas, às vezes não tinham gordura nem sal.
Tanteei pena deles, grande pena. Como era que podiam parecer homens de exata valentia? Eles mesmos faziam preparo da pólvora de que tinham uso, ralado salitre das lapas, manipulando em panelas. Que era uma pólvora preta, fedorenta, que estrondava com espalhafato, enchendo os lugares de fumaceira. E às vezes essa pólvora bruta fazia as armas rebentarem, queimando e matando o atirador. Como era que eles podiam brigar? Conforme podiam viver? E enfim os companheiros apontaram em vinda, e subiram a primeira ladeira, aquele tropeado de guerreiros, em tão grande número numeroso.
Quase eu queria me rir, do susto então dos catrumanos. Mas foi não, porque eles não se aluíram do ponto onde estavam, só que olhavam para o chão, calados, acho que porque essa é a forma de declararem seus espantos. O do jegue, Teofrásio, que era quem capitaneava, deu alguma intimação para o da foice, esse que o Dos-Anjos se chamava, era o falador; e que foi quem veio adiante, saudar e render explicação: – “Ossenhor uturje, mestre, a gente vinhemos, no graminhá… Ossenhor uturje…”
Ossos e queixos; e aquela voz que o homem guardava nos baixos peitos, era tôo que nem de se responder em ladainha dos santos, encomendação de mortos, responsório. – “Ossenhor uturje, mestre… Não temos costume… Não temos costume… Que estamos resguardando essas estradas… De não vir ninguém daquela banda: povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega em todos…>>
***
Catrumanos, catrumanos… Palavra feia esta! Um dito assim só pode existir para menosprezar pobres coitados como aqueles, de ontem, de hoje e de sempre. Além de pobres, mais ainda feios. Aquelas conversas estranhas… quem sabe Melânia me ajudaria a entender o que queriam dizer. Nisso aí eu tinha que concordar com o Guimarães, gente pobre e esquisita é o que mais existe neste Urucuia, ainda hoje. Escapam umas mocinhas aqui e ali. Melânia, por exemplo, que nasceu em Arinos, é bem um caso desses.
Mas que história mais estranha a Melânia foi descobrir. Aliás, esperta e inteligente como ela é difícil de existir igual. Por essas e por outras que me perco por esta mulher – graças a Deus!
Mas, falando sério. Não sei de quando é esta história. De cem anos atrás? Ou mais do que isso? Uma coisa é certa, parece que as coisas pouco mudaram aqui neste vale de lágrimas e miséria. Ou melhor, se mudou foi para pior. Se naquele tempo não se tinha pra onde ir, hoje tem: para Brasília, morar em favela e trabalhar sem garantia nenhuma. Isso é melhorar de vida? Meu primo que mora em Arinos me falou: pelo menos aqui não tem favela. Respondi para ele: é claro, aqui se exporta a favela para Brasília. Ele só ficou me olhando com aquela cara de tacho que lhe é peculiar.
Catrumanos de hoje – e de sempre – essas pessoas que viviam tapados de Deus e de qualquer conforto, nos ocos do Urucuia e do mundo. Homens humanos? Nem tanto, tão pobres, miseráveis mesmo, que eram. Mais ainda do que aqueles outros da história contada pelo tal João Guimarães, esses infelizes de hoje, Zé Beto e seus irmãos Antônio e Abadio, e também aquela irmã desaparecida. Gente perdida e condenada a uma vida nas beiradas de um mundo que não lhes pertencia, em meio a pequenas esperanças, nunca realizadas, e duras frustrações. O sonho de morar em cidade grande: para quê mesmo? Melhor não seria se ficassem ali no sertão? Carecia fazer tal travessia rumo à capital do país? Difícil saber… Vida tão perigosa, besta e sem sentido a desses Catrumanos …
***
Os saboeiros
Angelino vivia de fazer sabão. Nem toda vida foi assim na verdade. Quando mais jovem, o pai tinha o sitiozinho, onde criavam umas vaquinhas e uns porcos, que ocupavam a ele a ao irmão, Vanderlino, boa parte do tempo. No mais, pegavam serviço de bater pasto, abrir aceiro, dar um fundo nos regos d’água na vizinhança. Vida modesta, mas ia dando para o gasto.
O problema era o pai, que vivia a ameaçar os filhos e a mulher, sempre achando de pouco valor tudo aquilo que se esforçavam em fazer. Ele mesmo não trabalhava, dizia ter sido lesado nas cadeiras por uma chifrada de novilha, anos antes, que o tornara incapacitado a pegar peso ou fazer esforços de qualquer tipo e que, com a graça de Deus, tinha agora os filhos para ajudar. Ajudar ou fazer eles mesmos todo o serviço do sítio? A verdade é que o velho, nem tão velho assim, acabou se afogando no vício antigo de beber. Antes só um ou dois dias no mês, quando havia festa de santo ou coisa igual; depois, toda semana e nos últimos tempos desde a manhã até a noite, só interrompendo a carraspana quando caia, quase morto, em algum canto de rua ou até na roça mesmo. Não fazia mais nem questão de escolher o lugar onde caísse – para ele de qualquer jeito estava conforme.
Um dia achou uma proposta de negócio que lhe pareceu boa e vendeu a propriedade, que bem ou mal vinha sustentando a família, desde uma geração antes, quando ele próprio, o cachaceiro, era ainda rapaz. Feito isso, carregou a família para a cidade, disse que ia procurar um novo negócio para tocar a vida e o que fez, de fato, foi transformar, meticulosamente, tudo o que apurara na venda do sítio em cachaçadas sem fim.
Quando Angelino se deu conta, a obrigação de cuidar da mãe e do irmão mais novo, além do traste inútil em que se transformara o pai, sobrara para ele, sem remédio. Empregou-se, então, primeiro na borracharia da beira da estrada, depois de entregador de um armazém do próprio bairro. Desistiu de uma e outra tarefa, porque na borracharia um pneu explodiu, quase lhe arrancando a cabeça, escapando por pouco. Nas entregas não foi mais feliz, porque uns vagabundos que havia na cidade lhe roubaram duas vezes a mercadoria que carregava no bagageiro da bicicleta, sendo despedido sumariamente pelo vendeiro, o qual, pior ainda, ainda desconfiou que ele tinha acordo com os tais safados.
Neste tempo o pai morreu e isso para a família não deixou de ser um alívio, pois pelo menos na conta mensal do armazém já não pesava mais a compra mensal de meia dúzia de garrafas de cachaça, como vinha acontecendo havia algum tempo.
Angelino tinha pouca escola, mas todos o consideravam inteligente e disposto a aprender coisas novas. Um dia, resolveu, por recomendação de uma comadre da mãe, fazer um curso de aproveitamento de resíduos domésticos e depois disso ele se interessou pela técnica de fazer sabão. No começo, achou que aquilo não dava futuro, porque afinal de contas era só ir a algum armazém e comprar quantas barras se quisesse, ou que fosse em pó, nem era tão caro. Mas percebeu que ali na vila, principalmente entre as pessoas mais velhas, a fé mesmo que tinham era no sabão feito em casa.
Era uma técnica bruta, uma mistura de restos de gordura de porco ou vaca, sobrada nos açougues, óleo de cozinha já usado, cinzas, soda cáustica e principalmente muita disposição para cozinhar aquilo, que fedia como os diabos, por um bom par de horas. Logo na primeira fornada viu que aquilo rendia, vendeu tudo o que tinha produzido, o que dava quase uma arroba, e ainda recebeu encomendas diversas para uma próxima ocasião.
Além de inteligente e disposto a aprender coisas novas, Angelino era cheio de iniciativas. Logo fez contato com dois ou três açougues da cidade e com a ajuda de um vereador que tinha ficado seu amigo, lançou uma campanha de recolher o óleo de cozinha usados nas casas. E ia dando tudo certo. Angelino chegou a produzir até mais de cem quilos daquele sabão grosso e fedido por mês, porém com grande alcance comercial, tendo a seu lado o irmão Vanderlino, que fazia as entregas, e até mesmo a mãe, ainda bem disposta, principalmente depois que foi aliviada daquele peso do marido cachaceiro.
Com o tempo – poucos meses, aliás – abriu no quintal da casinha que alugavam uma edícula onde guardava a matéria prima e o próprio produto, até que fosse distribuído. Em um fogão, armado no chão mesmo, um tacho de ferro era usado para cozinhar a mistura. Ao logo da semana passavam três a quatro dias ajuntando os resíduos; nas sextas ou nos sábados vinha a parte do cozimento. Já era programada até a compra de um fogão a gás, daqueles chamados industriais. Vanderlino já fazia as entregas no lombo de uma moto 125. Tudo ia bem, portanto.
Um dia, na preparação do material para um novo cozimento, Angelino percebeu que havia um objeto duro e brilhante na massa fétida de gordura animal. Logo viu que era um anel, e parecia ser de algum valor. Imaginou que o açougueiro que sempre lhe fornecia os retalhos fosse o dono, mas ao procurá-lo ele disse que não era dele. Havia outro fornecedor, este mais recente, um dono de restaurante, que havia algumas semanas lhe entregava pedaços de carne ainda congelada. Este também negou que a peça lhe pertencesse, mas pareceu a Angelino que ficara um tanto surpreendido por ter sido procurado e que sua negativa tinha se dado de maneira intempestiva, estranha, como se ficasse incomodado com a indagação que lhe era feita pelos irmãos.
Nisso chegou um convite, vindo de uma paróquia rural, não longe dali, para que os dois irmãos fossem ensinar a técnica saboeira na comunidade da igreja. Lá foram eles, tendo a grata surpresa de uma acolhida calorosa e até mesmo de verem elogiado o seu produto, pela qualidade que apresentava. Mais ainda, enquanto não fossem preparadas as pessoas locais e alguma instalação para também produzirem ali o seu sabão, encomendaram uma boa quantidade do produto de Angelino, que gentilmente agradeceu e explicou que não poderia atendê-los, pois já tinha toda a manufatura ocupada pelas próximas semanas ou até meses.
Enquanto isso o anel encontrado alguns dias antes no preparo das carnes ficou esquecido, dentro de uma latinha no armário da edícula, e ali ficaria esquecido para todo o sempre, não fosse um acontecido novo.
Foi assim, havia muita matéria prima a processar. Era época de festas e os dois açougues fornecedores entregaram uma boa lata, cheia até a tampa, de material. O homem do restaurante, que tinha ficado contrariado com a pergunta sobre o anel, resolveu, por algum motivo, retomar sua entrega, deixando na porta da saboaria, sem se identificar, um balde inteiro de uma carne rosada, recoberta de uma grossa camada de gordura amarela. Parecia carneiro, ou bode, não dava para saber ao certo. Mesmo não tendo se identificado o fornecedor, os saboeiros sabiam de quem se tratava, pelas características da carne e da própria vasilha que acondicionava o material.
O final da semana já estava chegando e havia ali sido depositada, por baixo, entre carnes e óleos servidos, bem mais de uma arroba de material. E toca a trabalhar. Nada de reclamar, claro, aquilo era realmente o que movimentava a vida e trazia sustento aos dois irmãos e à mãe.
Alguma coisa, entretanto, chamou a atenção de Vanderlino. Ele destrinchava aquela massa de gordura e carne, amarela e rosada, entregue pelo homem do restaurante, quando deu com um objeto duro, que lhe pareceu ser um osso, passando logo a limpá-lo, para que não se misturasse ao material a ser cozido e saponificado.
Era um dedo, agora. E aquela unha ainda colorida por esmalte escarlate não deixava dúvida: pertencia a uma mulher.
***
Um mel nojento
Este hemos por bem / reduzir à simples / condição ninguém. / Não lavrará campo. / Tirará sustento / de algum mel nojento. Carlos Drummond de Andrade – Os Bens e o sangue.
– Prólogo
Astórgio, mais conhecido como Totó, nunca se esquecera dele, Libório, seu irmão mais velho. Durante muito tempo de sua vida, até ali pelos sete ou oito anos, com irmão dez anos a mais do que ele, faziam tudo junto. Buscar a mula no pasto, reunir as vacas para a ordenha diária do leite, encher o coxo com água da bica, debulhar o milho para as galinhas. Coisas assim, que na roça, mais do que obrigação, fazem parte inseparável da vida de quem lá vê correr seus dias, sem usufruir de outras opções.
Libório aplicava no caçula uns coques na cabeça de vez em quando, sem muita força, mais para corrigir alguma bobagem que o mesmo cometesse, por exemplo, dar uma corrida nas galinhas justamente na hora do milho ou espantar a mula quando ela vinha atraída para o cabresto. Mas aquilo sempre terminava em risadas, mesmo quando Totó, simulando vingança, pegava uma pedra ou um pedaço de pau no chão e ameaçava jogar nele, o que na verdade nunca fazia, por medo e também por sintonia com uma coisa mais importante para ele, o orgulho de ter com alguém já adulto como o irmão a lhe dar tal intimidade, a ele, que não passava de uma criança,
Momento especial de tal cumplicidade eram as idas ao armazém da vila, para comprar o suprimento da semana, quando o pequeno o ajudava a preparar a charrete, além de buscar a mula Estrela no pastinho de trás da casa. O caçula ficava encantando com sua maneira de chamar o animal através de pequenos muxoxos, que tentava imitar, sem sucesso. Mas com a Estrela dominada, era o pequeno que trazia os baixeiros e uma parte dos arreios e até os assentava no lombo do animal, só não fazendo mais por lhe faltar força e altura para os apertos finais das cintas de couro. Aquilo lhe enchia de satisfação e orgulho, principalmente quando ouvia do irmão, o que era frequente em tais ocasiões, elogios ao seu esforço e aos seus eventuais acertos. E logo vinham os tradicionais, coques, sentidos pelo irmão menor como quase um carinho.
Isso tudo sem contar que, chegando no armazém, o pequeno acabava aquinhoado com um naco de rapadura ou um biscoito de chuva que por lá havia sempre à disposição dos fregueses.
– Família
Da mesma forma que a mãe, Totó compartilhava sintonia e mesmo admiração por Libório. Eram, no dia a dia, apenas quatro pessoas: ela, seu marido Afonso, Libório e o caçula. Outra irmã Finota, Josefina de nome verdadeiro, já era casada e morava longe deles, aparecendo raramente em casa, eis que seu marido não se dava bem com Afonso. O pai, é bom dizer, Totó nem conhecera, tendo morrido dois ou três anos depois dele nascer. Afonso era um parente longínquo dele e pelo que Libório lhe contou um dia, passadas poucas semanas da morte de meu pai, passou a frequentar insistentemente a casa da família, até que veio a se juntar com a mãe. Ele não a tratava mal, aparentemente, embora sempre silencioso e um tanto mal humorado, mas com o resto da família seu trato era diferente, para pior. Libório se queixava muito dele, tentar sempre submetê-lo a serviços pesados e também por dirigir-se a ele sempre com maus modos, de uma maneira que não fazia nem com os empregados e estranhos em geral.
De sua parte, o caçula não tinha maiores queixas do padrasto. Ou melhor, poderia apenas dizer que não seria capaz de se lembrar de alguma vez que ele lhe tivesse dirigido alguma palavra, seja boa ou ruim. Era como se o garoto não existisse para ele. Sinceramente, contudo, ele preferia que assim fosse, porque aquele homem taciturno dentro de casa, com um mau olhar atravessado para tudo e para todos, era alguém de quem preferia mil vezes estar distante. Mas o caso de Libório era diferente, pois com ele já em idade de pegar no pesado, aquele homem abusava em sobrecarregá-lo com tarefas difíceis, algumas vezes até desnecessárias, como buscar a mula no pasto em uma madrugada fria e chuvosa, apenas porque ele queria tê-la à porta quando precisasse sair.
A mãe, contudo, se calava, pois na verdade, tinha imenso medo dele, que não raramente se tornava violento, como demonstravam as manchas roxas que às vezes apareciam nos braços e também no rosto dela. Em mais de uma ocasião, aliás, um deles, Libório ou Finoca, pôde ouvi-la gritar no meio da noite, em meio ao barulho de pancadas ou objetos sendo jogados nos móveis ou nas paredes. Só não sabiam mais sobre aquilo porque a mãe nunca se abriu com eles a respeito e, além do mais, o quarto do casal era separado do corpo da casa, o que lhes dava certo resguardo.
Quincas, o marido de Finoca, era outro que tinha problemas com Afonso. No começo, quando namoravam, ele vinha trabalhar no sítio, dado que seu pessoal era vizinho à propriedade da família da noiva. Em pouco tempo, porém, resolveu se afastar, dada a visível a má vontade de Afonso com ele, o que acabou fazendo com que ele buscasse trabalho em outras bandas, ou mesmo se detendo em ajudar o próprio pai, sem precisar sair de sua área. Quando se casou com Josefina conseguiu um emprego em uma empresa de plantação de eucalipto e se mudou com ela para lá. O casal, em visitas à família, jamais chegava até a casa onde viviam a mãe e os irmãos e ela, para vê-los, sempre cuidava de que fossem todos até o sítio da família do genro, deixando de lado o indesejado marido da mãe.
– Fuga
Há muito Libório demonstrava querer se livrar daquilo. Ele se sentia responsável em relação à propriedade, da qual, aliás, era o herdeiro primordial. Afinal, se tratava de uma terra que pertencia à família de seu pai, não diretamente de Afonso, há duas ou três gerações. A relação dele com o padrasto era a pior possível; quase não se falavam e mesmo as comunicações habituais do dia a dia eram feitas apenas por gestos e olhares, assim mesmo bem pouco amistosos. Um dia, Totó acordou com um vozerio intenso na cozinha. Afonso estava gritando com Libório a respeito de alguma coisa que ele fizera – ou deixara de fazer – e este respondia com igual ímpeto. Quando chegou à porta do cômodo o pequeno pôde ver o pampeiro que lá se desenrolava: Afonso se aproximara ameaçadoramente de Libório, com os punhos em riste, e este, então, lhe desfechou, com vontade, uma bofetada na cara. Esguichou sangue até na parede, fazendo com que a dentadura dele fosse parar no chão. Afonso pegou uma faca, mas Libório saiu de cena, por precaução.
Horas mais tarde Libório chamou o mais novo através de um assovio que era convencional entre eles e lhe pediu que juntasse seus objetos, umas roupas, um rádio e coisas assim, e lhe levasse até certo local à beira do córrego, onde ele o esperaria – tudo isso o mais depressa possível. Totó fez o que ele pedia e não lhe foi difícil, pois Afonso também saíra de casa depois no entrevero e não dera notícias até mais tarde. Quando o caçula entregou ao irmão a trouxinha, que a mãe me ajudara a preparar, ele simplesmente lhe tomou o rosto, apertou-lhe suavemente a cabeça entre as mãos e apenas lhe disse: cuide da mãe, até um dia.
E durante muito tempo, anos mesmo, eles não se viram. Havia notícias esparsas dele pela mãe, que não se sabe por que tipo de artes conseguia obtê-las. Soube-se que ele agora morava em uma cidade grande, na capital e que lá se dedicava a trabalhos de um tipo que se via apenas nas cidades grandes, coisas como cobrador de ônibus, entregador de encomendas, encarregado de algum leva-e-trás. Um vizinho que com ele esteve na cidade trouxe mais notícias, a de que ele agora estava bem de vida, ganhava até algum dinheiro com uma nova atividade, mas não especificou muito bem o que seria, ou talvez não o soubesse de verdade. Passado algum tempo, um primo que esteve com ele, trouxe notícias por um lado alvissareiras, mas por outro preocupantes. Ele agora tinha subido na vida, tinha carro, mulher, andava bem vestido, até de terno e gravata e, principalmente, demonstrava ter dinheiro para gastar. Quis saber do parente alguma notícia da família, mas avisou ao mesmo tempo que ainda não iria fazer visita a ela, pois não queria, acima de tudo, se encontrar com Afonso, já que soubera que o mesmo não raramente deixava escapar, em conversas de botequim, desejos de matá-lo, se tivesse oportunidade para tanto.
Mas havia, na história de Libório na grande cidade, qualquer coisa estranha – e nisso o primo, embora tivesse levantado alguma suspeita, quanto ao mais resolveu se calar. Mas deixou entrever que talvez os meios que o rapaz encontrara para subir na vida não fossem os mais recomendáveis. Mas nisso ele, o primo, talvez não fosse de total confiança, sendo ele próprio uma pessoa que tinha como meio de vida negócios um tanto obscuros, que envolviam um ferro-velho e até mesmo uma provável banca de jogo de azar, correndo mesmo a notícia de que durante algum tempo ele esteve recolhido à prisão, em cumprimento de pena.
Depois que Libório saiu de casa, seu nome só era pronunciado em surdina pelo restante da família, ou seja, a mãe e Totó, por temerem as reações de Afonso. Este, aliás, na maior parte do tempo ignorava o enteado e quando se referia a ele usava palavras pesadas, às vezes acrescentando: alguma coisa nojenta deve estar fazendo por lá.
– A busca
Por esta época Totó já completara18 anos. A mãe adoecera, piorando de uns achaques antigos que a faziam inchar ao ponto de lhe minar água nas pernas, cada vez mais balofas. Ele, que cuidava dela quase o tempo todo sozinho, levou-a a um doutor que atendia aos sábados na Vila o qual deu-lhe o parecer que era o caso dela era grave, havendo pouca ou nenhuma chance de cura. Havia necessidade de muitos cuidados com ela, embora sem muita garantia de que isso pudesse lhe prolongar a vida. Ela se dava conta da gravidade da situação e foi então que pediu a Totó que corresse atrás de Libório, estivesse onde fosse, para que ele viesse lhe receber a bênção dela, talvez final. Ela iria encontrá-lo em algum lugar, evitando assim o contato direto com Afonso; que o filho viesse sem susto. Nós cuidaremos de tudo, não é? – assim ela disse a Totó, que prontamente procurou se desincumbir de tal tarefa.
E lá se foi Astórgio para a cidade grande. Ele só tinha informações vagas sobre onde encontrar o irmão, mas o tal primo poderia ajudá-lo, segundo lhe disse a mãe – que fosse atrás dele. Assim ele fez e não foi difícil encontrar o primo, que a princípio não se dispôs a dar qualquer ajuda no caso, mas depois concordou em fornecer pelo menos algumas indicações gerais sobre o paradeiro de Libório. Havia um endereço de trabalho a ser procurado e já no caminho Totó pôde perceber que ficava em uma parte rica da cidade, pelo que via através da janela do ônibus que tomou, seguindo as indicações do primo.
Ao chegar ao endereço indicado, o moço se impressionou com o porte da construção que ali existia. Não era como um prédio de apartamentos, com muitos andares e janelas sem conta. Era muito alto sem dúvida, mas sua fachada era dominada por colunas enormes, entre as quais havia um recesso e dentro deste uma porta extraordinária, na qual até um caminhão passaria, sem risco de esbarrar em nada. Ali em volta, junto às colunas, ao lado da porta e por toda parte, havia alguns homens engravatados, um deles tendo se aproximado de Totó, indagando se ele precisava de alguma coisa e convidando-o a entrar no prédio. Ao prenunciar o nome do irmão, um dos homens pareceu não saber quem era o indivíduo procurado pelo rapaz, mas logo comentou com um outro que estava a seu lado: ah, deve ser o Irmão Liberato.
Totó naturalmente se espantou com aquilo. Os nomes, Libório e Liberato, eram parecidos sem dúvida, mas será que se referiam à mesma pessoa? Quanto a Irmão, surpresa total, para ele aquele era um designativo de outra conotação. O homem então lhe disse que iria verificar e que ele podia ficar por ali, esperando. Voltou cinco minutos depois e falou que havia feito um contato por celular, que a pessoa procurada era mesmo aquela e que o Irmão Liberato o atenderia em outro local, passando-lhe o endereço em uma espécie de cartão de visita, no qual Totó finalmente pôde compreender que aquilo era uma instituição religiosa, de crentes, pelo jeito: a Igreja Global da Vinda do Messias, ou IGVM.
– Encontro
O local do encontro com o irmão não era mais uma igreja, mas sim uma sala, ou melhor, um punhado delas, em andar superior de um prédio muito alto, de onde se via meio mundo, e em cuja entrada era preciso fornecer todos os números de documentos e até mesmo tirar uma foto, o que deixou Totó entre assustado e curioso.
Na sala de espera onde o puseram a esperar, também muito luxuosa, uma secretária bem vestida e perfumada lhe perguntou se queria água, cafezinho, algum lanche e diante da negativa do rapaz colocou-se à disposição dele se precisasse de alguma coisa. – Qualquer coisa, reforçou ela.
Como Totó ficou por ali por um bom tempo, ele que era curioso, apesar de estar intimidado pelo ambiente e pelo jeito das pessoas que por lá circulavam, percebeu que ali as coisas eram bastante movimentadas. Havia, por exemplo, gente que chegava trazendo volumes grandes, como se fossem mochilas de lona, porém trancadas com cadeados, e eram conduzidos a uma determinada porta, através da qual, em breves relances repetidos, ele percebeu que o conteúdo das tais mochilas era nada mais que dinheiro. E no meio dos pacotes que se abriam, não eram poucas os maços de notas azuis. Através de outra porta se via um grande escritório, onde um monte de pessoas trabalhava em frente a telas de computador. E havia em tudo aquilo um grande movimento de gente entrando e saindo.
Totó finalmente viu o irmão. Ele saiu de uma terceira porta, através da qual se via uma grande mesa, em torno da qual um grupo de pessoas estava reunido. Veio se assentar ao lado do irmão, mas não sem antes abraçá-lo fortemente e lhe aplicar um coque, agora bem carinhoso, na cabeça, como fazia em tempos passados. Mas ele estava muito diferente agora, havia engordado, mostrava um novo brilho na pele, os dentes reluziam de tão brancos, uma barba bem cuidada lhe ornava o rosto, falava como gente de cidade. O que mais chamava atenção, todavia, eram as roupas que vestia: um terno de tecido brilhante, uma gravata azul-forte, sapatos de verniz, além de uma atmosfera de perfume em torno de si. Tudo aquilo devia custar muito dinheiro, imaginou Totó, ainda assustado, mas orgulhoso daquela surpreendente nova vida que descobria no irmão.
Então, puderam conversar, embora o Libório fosse interrompido algumas vezes pela secretária, por uma chamada de celular ou por alguém egresso daquela grande mesa onde até há pouco ele também estava. O primeiro que se dirigiu a ele o tratou como Irmão Liberato, o que ele, logo em seguida, fez questão de esclarecer para o caçula que naquela organização as pessoas adotavam nomes mais “comerciais”, segundo ele, escolhidos dentro de uma lista oficial, mesmo que tivessem que mudar os nomes que tivessem antes, o que para ele foi bom, por ter sempre detestado aquela alcunha que tinha sido ideia de uma comadre da mãe.
Contou-lhe que trabalhava muito, que seu setor estava ligado às finanças da organização (assim ele preferia chamá-la, ao invés de simplesmente igreja). Havia começado como obreiro, que ele explicou ser uma função de importância menor, apenas alguém que recolhe o dinheiro das pessoas presentes nos eventos, mas que fora sucessivamente promovido e até mesmo contemplado com um curso de gerência financeira realizado em São Paulo. E que não tinha queixa de tal estatuto, só lamentando o excesso de trabalho e a dificuldade de se dedicar maior tempo à família. Aliás, contou que se casara com uma colega da organização e que já caminhavam para o segundo filho. Havia posições melhores na hierarquia, ser pastor, por exemplo, mas isso exigia, segundo ele, um tipo especial de esforço, principalmente na memorização de versículos da Bíblia, não que ele se sentisse pouco capaz de desenvolver, mas achava aquelas mensagens em tanto contraditórias, negando ou afirmando coisas opostas em passagens diferentes. Com ele essas coisas não pegavam, disse sorrindo, pois era tudo pão-pão, queijo-queijo. Mas esclareceu que o próprio, presidente da organização, o Bispo Medeiros, o tranquilizara quanto a isso, pois ali onde estava, no setor das finanças, ele poderia crescer também e até vir a ser membro vir a ser membro de um Conselho Apostólico, dentro do qual as decisões realmente fundamentais eram tomadas.
Falaram também sobre a vida da família. Libório Liberato queria saber notícias de todos, da mãe principalmente, mas também da irmã, do cunhado, dos sobrinhos, de cuja existência ele acabara de tomar conhecimento. Uma única e breve menção a Afonso foi acompanhada de um muxoxo de desgosto e desaprovação. Totó informou-lhe do estado de saúde da mãe e quis saber quando ele a veria. O irmão lhe confessou que só tinha intenção de ir à roça depois que o padrasto morresse, desocupasse a vaga, nas palavras dele, mas que se a mãe quisesse vir vê-lo ele a receberia de bom grado, em sua própria casa.
Interessou-se também pela vida do irmão mais novo. Totó revelou-se descontente com a falta de oportunidades na vida que levava, além de queixar-se do modo resignado da mãe e do humor negativo e alternante do padrasto, que de certa forma o respeitava, entretanto sem nunca lhe dirigir palavra, como se ele nem existisse. Queria também ter a oportunidade de estudar, aprender coisas, como via acontecer com o irmão, além de ganhar melhor e ter uma vida mais realizada do ponto de vista financeiro. Estava cansado de ser pobre, desabafou.
– Epílogo
Na rodoviária Totó pensava nos acontecimentos do dia. Quanta coisa lhe tinha acontecido, quantas revelações. Ficara feliz em ver o irmão, sentir que ele estava bem de vida, tinha dinheiro, mulher, filho, uma vida firme. Nada parecido com aquela rotina de acordar de madrugada, tirar leite de uma ou duas vacas, dar milho às galinhas, buscar a mula no pasto, tomar chuva e frio nas madrugadas, estar sempre de olho no céu para ver se vinha ou não a chuva. Uma enfiada de coisas prosaicas e desprezíveis. E de quebra conviver com o olhar atravessado e a má vontade permanente estampada na cara do padrasto. Bem que ele queria para si uma rotina diferente, com certeza não merecia aquilo.
Sentimento especial foi de ter visto o irmão cuidadoso e carinhoso com ele, mesmo tendo passado tanto tempo sem se verem. Na saída, como se lhe fosse aplicar um daqueles coques no alto do crâneo, tomou-lhe a cabeça nas mãos e lhe beijou a testa. Seja feliz, foi o que ele disse. Alguma coisa a mais, entretanto, o marcou com mais intensidade: venha trabalhar aqui na organização, eu lhe garanto uma vaga de obreiro. E para completar afirmou que quando o desgraçado do Afonso morresse estava pensando em transformar a propriedade da família em um abrigo para jovens drogados, para ser mais um de tais locais de recuperação sob responsabilidade da IGVM.
Mais tarde, depois de horas de espera pelo seu ônibus, Totó finalmente embarcou de volta à casa e à família, com o sentimento de havia para ele agora um destino diferente daquela triste rotina roceira que enfrentara até então, e que sobre tal futuro ele tinha o poder de decidir, vendo que eram coisas que agora estavam em suas mãos. Ele queria de verdade provar doçura de tal mel. O mais importante é que a mãe deveria estar com ele, mas para que tal coisa acontecesse, alguém precisava morrer antes. Precisava morrer antes – foi o pensamento que ocupou sua mente durante o restante da viagem.
***
A História de Jacó
Jacó, o vaqueiro desta história. Sim, ele, Jacó da Vereda Alta, filho de Isaque e neto de Abrão Borges. Jacó gostava de Raquel, filha de Lesbão, fazendeiro assentado no Buriti Seco. Jacó não era de enxada e foice, tinha orgulho de seu trato com o gado bravo, peão corajoso, segundo todos que o conheciam, com fama assentada da Vereda Alta ao Buriti Seco e mais além.
Jacó, do alto de seus vinte anos, com efeito, não era homem de plantar milho e feijão, isso não, mas sim de laço e ferrão. Mas deu de frequentar com assiduidade os mutirões de bateção de pasto e mais o que houvesse na fazenda de Lesbão. Foi lá uma vez, duas e três, depois outras tantas. Agora, o ano já virado pela metade, aquela pastaria, de se perder de vista, precisando ser limpa antes da chuva começar, para receber o gado magro, vindo do alto sertão, que ia ganhar ali arrobas sem conta. E foi assim que ele um dia se deu conta que existia Raquel.
Raquel, aquela dos olhos verdes, pele morena, cabelo na cintura e cinturinha delgada. Raquel, que mal viu Jacó lhe dirigiu um olhar que talvez fosse o seu costumeiro, mas para ele foi como se viesse dos anjos.
– Bom dia como está o senhor? Aceita um café, umas broinhas?
Isso foi da primeira vez. Em seguida já estavam quase íntimos, o moço já vencido em sua timidez com o jeito alegre e dado da outra. As conversas já tomavam rumo mais aberto, aqui e ali até falando de flores, de guabiroba, bacupari e outras frutas da estação e de intrigas da vila, não mais do invariável assunto da falta de chuva, que dominava toda a conversa por ali, na ocasião e quase sempre. E o vaqueirinho exultava.
Nem tudo eram flores e frutas do mato, entretanto. Ia tudo muito bem entre ele e a moça, mas eis que um dia quase tudo se perde. Era hora do almoço e havia suã de porco com arroz. Jacó acocorado segurava um prato cheio até as bordas, ele se pelava por aquilo. E ali na casa de Seu Elesbão não tinha miséria, é o que todos reconheciam e agradeciam. Chegava ao ponto de até de se oferecer um copinho de boa caninha, no final do eito, para quem tivesse o costume, claro. Mas não passava disso. A garrafão logo desaparecia após uma primeira e única rodada entre os trabalhadores.
Pois bem, Jacó num canto da varanda, prato equilibrado nas coxas, assentado nos calcanhares, se deliciando com a comida, quando a moça chegou, de surpresa, e o saudou, com a aberta alegria de sempre. Ele, com boca e dedos lambuzados de gordura e molho tingido pelo urucum – quem já comeu suã sabe que é preciso enfrenta-la assim com intimidade – se sentiu pego em má situação, e tentou disfarçar escondendo o prato de folha atrás de si. Porém, cuidando de não desperdiçar o belo pedaço de osso e carne que ainda tinha nas mãos, visando voltar a atacá-lo quando o anjo completasse sua passagem por ali. Não foi este, entretanto, o entendimento de Nero, um danado cão mestiço de Fila com sei-lá-o-quê, malandro que nem ele mesmo. Aquele diabo ia passando por ali justo naquele momento e não teve dúvidas: abocanhou o belo pedaço de suã, com muita carne ainda não comida e chupada, e o levou consigo, num bote só. Não é que o dedo de Jacó estava enfiado e meio preso no buraco do osso e o puxão dado pelo cão só fez arrastar suã, dedo e dono do dedo pelo pátio a fora?
Jacó queria morrer de vergonha, mas Raquel lhe foi generosa, lhe estendeu a mão para que levantasse, perguntou se ele estava bem e chamou logo uma mulher da cozinha para que limpasse a lambança. Linda e querida como sempre, ainda emendou, apesar de rir à solta do acontecido:
– Não se preocupe, moço, isso acontece. Até meu pai já sofreu coisa parecida, com este mesmo Nero, que derrubou ele da cadeira…
Tudo está bem quando acaba bem – e a vida seguiu. Não faltou em breve oportunidade para ele estar de volta. Era festa da Santa Cruz e no Buriti Seco, como de costume, havia missa e festa. Havia muita gente por lá e ele custou a ver o objeto de seus cuidados. Estavam ela e sua irmã mais velha, Lia, que era coxa de uma perna, a comandar um batalhão de mulheres e moleques na cozinha, pois ali naquele dia comeriam mais de cem. O vaqueiro postou-se próximo à porta da cozinha, mas o máximo que recebeu da amada foi um bom dia, mesmo assim de passagem. Depois ela foi acolitar o senhor vigário.
Na despedida, algo mais animador, embora muito breve para ao desejo dele: – Volte outro dia, hoje estive tão ocupada, nem pude lhe dar atenção.
Para quê mais do que aquilo, pensou o moço, de modo a disfarçar o que em outra ocasião poderia ser apenas frustração. Mas para ele já estava de bom tamanho.
A outra ocasião não tardou. Passado um mês e meio ou dois chegou a notícia que um doutor veterinário vinha da capital para dar uma palestra à vaqueirada da zona, eis que ele muito entendia de doenças de bezerros. O moço era dali mesmo, filho de um Azevedo da beira do rio, rico que nem ele só. Ninguém fazia muita fé nele, que tinha fama de mandrião, mas ao mesmo tempo não era o caso de perder a oportunidade de se aproveitar a mesa farta de Seu Lesbão, que em ocasiões assim, não deixava por menos, às vezes até mandava comprar na Vila uma ou duas grades de cerveja.
Agora, sim, pensou Jacó – e rumou para lá. Realmente o dia estava pra peixe. Raquel, junto com a irmã, cuidava das quitandas, mas como havia um exército de mulheres na cozinha e nem tinha padre para ela se ocupar, sobrou tempo para longas conversas entre ela e Jacó, que começaram com apreciações sobre as chuvas que não vinham, passaram pelas floradas de pau de pombo, que naquele ano estavam soberbas, desaguando no enxame de moças emprenhadas e sem pai conhecido por todo lado ali na região.
Em certo momento, Raquel teve que ir à cozinha, para ver como andavam as coisas. Voltou de lá apenas alguns minutos depois, trazendo a agora a irmã coxa a reboque.
– Minha mana querida, Jacó, que cuidou de mim quando eu era criancinha e quando minha mãe se foi. E olha que eu quase morria de coqueluche e febre malina. Se não fosse por ela…
Lia tinha vergonha de todo jeito e pouco ficou com eles, numa conversa que rendeu nadinha. Pediu logo licença e voltou para a cozinha. Mas Raquel parece que tinha encontrado um novo pé de conversa:
– Não repare o modo dela, é muito acanhada. Com essa perninha seca, coitada, acha que ninguém liga pra ela. Você ainda vai conhecer ela melhor, vai gostar muito dela…
Falou mais ainda das qualidades da irmã por longos minutos, de sua mão boa como doceira e quitandeira; do auxilio que ela prestava aos filhos dos empregados, ensinando-os a ler e escrever; dos ouvidos e ombros que ela emprestava às mulheres dos pões da fazenda em suas queixas contra maridos e sogras. E ia assim por um rosário interminável. Jacó, contrariado, pois o que mais queria era voltar aos bons assuntos, à parolagem sem compromisso que vinham levando com apuro até a chegada da manquitola à conversa. Raquel pediu licença para voltar à cozinha, mas emendou:
– Você precisa conhecer ela…
A palestra do moço doutor já estava no fim. Raquel sumiu pelo casarão a dentro, até que Lia apareceu a Jacó, com um bule e uma bandeijinha na mão, não sabendo muito o que dizer:
– Um cafezinho? As broinhas foi eu mesma que fiz e assei…
Jacó era educado, aceitou. Mas não passou disso. A moça tinha pouco repertório, não era boa de prosa, como a irmã. E Jacó, pra falar a verdade, não tinha vontade nenhuma de esticar o assunto.
– Então, você me desculpe, mas tenho que pegar a estrada, antes que chova por aí.
A bem da verdade, não havia uma nuvem no céu.
Mas o moço ficou mordido atrás da orelha. – Qual é, minha Santa?
Mas não fosse por isso. Quem ali estava era Jacó, dos Borges da Vereda Alta, vaqueiro de profissão, filho de Isaque e neto de Abrão, que não era de enxada nem de foice, mas de coragens. Seu negócio era o trato com o gado bravo, sua força todos conheciam, ali e mais além. Não ia, assim, se desanimar por pouca coisa. Não seria uma dúvida por causa de mulher que o derrubaria. Resolver mandar carta, assim escrita:
– Senhorita eu queria muito ti falar umas coisa, de pessoa a outra pessoa, mas não vi oportunidade ainda. Voçê fica sabendo que estou intereçado é na sua pessoa, não em nenhuma irmã, por milhor que seja, nem que não fosse capenga. E espero resposta. Viu?
Tratou logo de arranjar um moleque para levar o bilhete, por uns poucos trocados. Deu a ele variadas recomendações, temendo, principalmente, alguma interceptação de Lesbão, por quem tinha grande temor. Mas esqueceu do principal: dar ao moleque indicações mais precisas sobre a destinatária da mensagem.
E lá se foi o mensageiro improvisado, rápido como um corisco, cumprindo rigorosamente as instruções de quem o contratou. Perdeu um pouco de tempo na chegada, por Lesbão estar por ali, em conversa com uns visitantes, bem na porta da casa, o que obrigou o moleque a esperar algum tempo junto a uma moita de bananeira. Liberada a entrada, não foi difícil encontrar a destinatária, que peneirava um polvilho numa coberta do quintal. Entregou a ela o bilhete, usando exatamente as palavras da encomenda: – Seu Jacó mandou trazer.
Saiu dali correndo, apenas a tempo de perceber, com malícia, que Seu Jacó devia estar doido de querer namoro com uma moça coxa como aquela, que andava como se tropeçasse a cada passo. Mas ele não tinha nada com isso. Estava ali só para ganhar um dinheirinho mesmo.
E Lia, sobressaltada, leu o bilhete e o guardou no decote da blusa. Mais tarde contou para o pai, com quem ela tinha grande proximidade, sendo ele o salvador dela em muitas ocasiões que recebera troças, não só dos meninos da escola e mesmo da família, pela sua condição de manquitola.
Lesbão era de boa paz e, viúvo como era, tinha imenso amor pelas filhas, especialmente por Lia, que não era bonita como a outra e ainda por cima tinha aquele problema nas pernas. Judiciosamente, mas sem deixar de lado seu carinho extremoso de pai, falou:
– Uai, minha filha. É caso de se pensar, conheço esses Borges da Vereda Alta não é de hoje. É tudo gente boa, honesta, que cumpre os prometidos. Dou apoio. Vamo cuidar disso, então!
Jacó esperou resposta uma semana, duas, um mês e mais. Já pelo décimo quinto dia começou a receber cestinhas de quitandas e docinhos, primeiro de forma totalmente anônima, depois com confeitos em forma de “L”, depois com o nome inteiro.
Até que um dia Lesbão mandou recado pela comadre Dolores que ele fosse ao Buriti Seco. E a mensageira acrescentou: – Jacozinho, bote sua melhor roupa porque você tem que se preparar para entrar para uma família de respeito.
Era o sétimo mês desde que ele começara a desenrolar seus planos de conquista de Raquel. E agora vinha aquilo… Ele não merecia. Só pensou assim: – sete meses é pouco. Eu daria sete anos, e muito mais do que isso para ficar com ela.
Mas como tudo passa, mas também o que está ruim pode ficar pior, um dia ele ficou sabendo que Raquel tinha ficado noiva do Azevedinho, o moço doutor veterinário.
***
É aí que entra na história o Doutor Luís de Camargos, filho da terra, advogado sem diploma e professor de português no ginásio da Vila, amigo da família Borges, que ao saber da triste história de Jacó, compôs para o infeliz vaqueiro o seguinte poema:
Em muito mutirão Jacó servia
A Elesbão, pai de Raquel, moça tão bela,
Mas não era pelo pai, era por ela
E dela era a mão que pretendia.
Passavam os dias e ele em agonia
Ter ela bem perto, o que mais pretenderia?
Porém Raquel, com visível felonia
Impunha ao pobre moço sua irmã Lia.
Vendo, porém, Jacó que com trapaça
Lhe era assim negado o que queria
Abrindo-lhe no peito tal ferida
Avisa a toda gente, em plena praça
Não me importa, mais ainda eu serviria
Pois por tanto amor eu daria até a vida
***
Continuação
Fantasia sobre o conto “João Porém, o criador de perus”, de João Guimarães Rosa (in Tutaméia)
Não, Lindalice era a outra. Eu sou Gerismina.
Foi assim: João vivia para seus perus. Mangavam dele os amigos. dizendo que havia, nas redondezas, uma moça loura que o olhava e queria conhecer, Lindalice. Esta, de verdade, não existia. Mas João, dito Porém, que só sabia de perus, milho e terreiro, transtornava-se. Queria porque queria. Os amigos, maldosos, não lhe diziam a verdade. Pelo contrário, traziam recados, propunham respostas, ofereciam para escrever cartas de amor. João deu de gastar, perfumes, terno de brim, botinas – coisas que nunca tinha usado na vida. E queria tertúlias com a amada que não via – e nem podia ver.
Os amigos, apoiavam. Marcaram encontro, para dizer, à última hora, que Lindalice, adoecida, tivera que viajar para a cidade, atrás de doutor. João penava, queria saber quando, e se, e onde. Descuidava da criação. Uma ninhada inteira de peruzinhos, solta no terreiro em altas horas, por puro descuido do dono, sumira, devorada por algum bicho da noite. O milho para as aves, antes negociado escrupulosamente com vizinhos, já mal se via nos improvisados cochos espalhados pelo terreiro. Os perus davam de invadir os quintais vizinhos, onde se fartavam das abóboras ainda não colhidas ou maduradas. João Porém, na porta da venda provava do restilo, até então desconhecido. E não poucas vezes foi visto cambalear pelas ruas da corrutela.
Um dia, jogou pedras na janela da casa das professoras, julgando sua amada ali escondida. O cabo meteu-o no xadrez, o sujo banheiro da delegacia do vilarejo. Dalí, humilhado, foi solto ao romper do dia. Na rua, chusma de garotos gritava “João Porém, João Pooorém…” Ele, atormentado, ainda pálido e amarrotado pela carraspana, mais zarolho que nunca, corria atrás. E o escárnio se recolhia, para reaparecer adiante, atrás do muro da Igreja, de dentro das salas da Escola.
Foi aí que vieram os amigos me buscar. Que eu fosse e passasse por Lidalice, mesmo Gerismina sendo. Que Porém não me conhecia e tinha, da outra, apenas imaginada, a visão de loura cabeleira, em tranças composta. Eu, bem sarará e de bexigas, além do mais ganhando a vida do jeito que todo mundo no arraial sabia, nunca que ia enganar ninguém, mesmo um peruzeiro caolho que nem João. E eles insistiam, propondo até paga.
Então fui. Era de tardinha e João, sentado num toco à porta de casa, olhava para o chão. Em volta, a peruzada ciscava e gorgolejava. Mesmo dentro da cafua era uma barafunda de penas e titica. Parei ali e fiquei olhando o pobre. Ele de repente me viu, acho que contra o sol. A cara triste e amarela, de repente se iluminou. Ficou de pé e me olhava, olhava. No princípio, achei que não era pra mim, mas logo percebi que era um olho apenas. O outro, me fitava sério, úmido, amoroso, como o de um cachorrinho aos pés do dono. João me estendeu a mão, grossa, suada, fria. Puxou-me para dentro de casa. Fez café, ofereceu cadeira. Pediu pra fumar, me ofereceu o pito. Quase não falava, só olhava com um olho, o outro corria solto e conferia o mundo em volta. João, num fio de voz, disse: “a gente ficamos aqui, de romances…”. Um peru, perto, fez seu glu-glu e João nem acabou o que ia dizendo. Já escurecia. Minha mão já suava junto com a dele. Encostou a cabeça no meu ombro e uma peninha de peru me fez cócegas no nariz. Fiz força para não espirrar. Gostava daquilo. Assim vimos o dia nascer…
Hoje, ele se foi. Finou. Deu de inchar, ficou mais amarelo que o costume. O doutor, na cidade, dizem, tirou dez litros de água da barriga dele. Voltou para ser enterrado, numa rede encharcada. A saudade aperta, mas não chega a maltratar de verdade quem tem ofício de herança. João Porém quis que eu continuasse sua lida, e eu me entendo com ele e com todos os estes perus, aqui em roda, precisando de mim.
***
Do balcão de minha venda
Olá, meu nome é Bertoldo e sou comerciante na Vila Feliz, bem no fundo do interior mais fundo das Minas Gerais, longe de tudo. Na verdade, eu queria ser é escritor e não dono de armazém. Bem que venho tentando me aproximar da escrivinhatura – se é que posso chamar assim – mandando causos, charadas e até uns versinhos para os jornais de cidades maiores aqui perto. O problema é que a maioria deles nem responde e alguns até mesmo já deixaram de circular. Gosto de frequentar livrarias também, mas a única que havia aqui na minha região, na cidade maiorzinha, já há muito se transformou em loja de um e noventa e nove.
Estou feliz agora, porque abriram na cidade uma faculdade de letras, ou coisa parecida, e fiquei sabendo que vão fazer lá um concurso de contos e poesias escritos por pessoas daqui da região. É claro que vou concorrer, mas tenho medo de não ter competência para tanto. Até reconheço que sei contar umas histórias, uns causos; pelo menos é o que as pessoas daqui dizem que faço direitinho, mas contar é outra coisa, inventar é outra. Escrever é ainda mais complicado. Não sei se darei conta do recado.
Tem também o problema que este trabalho de vendeiro me cansa muito, quase não me sobra tempo para nada. E mais uma família grande para cuidar, que depende de mim: mãe idosa, irmão paralítico, três filhos. Mulher, não tenho. Ou melhor, tive, mas ela se engraçou com o motorista da van escolar – ou foi o contrário, sei lá – e se mandou para a cidade. Ficou tudo por minha conta. Acordo cedo, levo as crianças à escola e corro para abrir esta espelunca, que bem ou mal me ajuda a passar o tempo e ganhar a vida. Herdei o ponto de meu pai, tentei ganhar a vida fora daqui e acabei voltando. Na crise em que estamos, vou ficando por aqui mesmo até ver como ficam as coisas.
Mas o que eu queria mesmo era escrever. Acho que quem me botou isso na cabeça foi dona Clara, minha professora no primário, que dizia que minha cabeça era boa para isso, pois sempre eu ganhava nota máxima nas redações. Aí, tomei gosto pela coisa, primeiro no Grêmio da Escola – que depois fechou – e também na associação de moradores, onde eu sempre me candidatava a fazer as atas das assembleias. Mas isso é bem pouco para um projeto de escritor, eu sei. Para mim, um bom escritor tem que ser, em primeiro lugar, um bom observador das coisas que acontecem a seu redor. Ouvi dizer, acho que foi dona Clara que me disse isso, que um escritor famoso, certa vez falou que a melhor maneira de escrever sobre o mundo é tomar como ponto de partida sua própria corrutela. Ou alguma coisa assim. Gostei de saber disso, porque por aqui não faço outra coisa a não ser observar as coisas que acontecem – quando acontecem – em volta de mim. Mas até nisso este lugar vagabundo me decepciona, vou ser sincero: não existe no mundo canto mais parado do que este aqui, onde até um cachorro morto na rua vira novidade…
Às vezes até parece que vai acontecer algo diferente, como foi o caso daquele Mané Simplício, sujeito meio esquisito, que deu pra conversar com as vacas e cavalos e depois se disse enviado do Espírito Santo, tentando na sequência expulsar o pastor da igreja dos crentes, botando nele um monte de nomes ruins. Mané acabou expulso daqui da Vila, ou melhor, recolhido pela ambulância da Prefeitura. Parece que foi parar no hospício – nem isso deu pra saber direito. E assim, um assunto como este, que parecia dar pano pra manga, simplesmente secou. Teve também o caso da professorinha nova da escola, figurinha das mais sirigaitas, parece que andava confiada demais da conta nas conversinhas de uns sujeitinhos daqui. Resultado, logo foi afastada, parece que já barriguda, mas com certeza mal falada. Teve pai que até queria tirar os filhos da escola. O povo daqui não perdoa… Eita lugarzinho safado!
Acho que o personagem mais interessante daqui, capaz de despertar a criatividade de um candidato a escritor, como eu, é o tio Pedro. Na verdade, ele não é meu tio e nem de ninguém aqui, mas todo mundo trata ele assim, talvez pela sua idade, que deve ser de uns 90 anos. Ele trata todo mundo como compadre e comadre. Vai se saber por quê. Tio Pedro vem sempre aqui na venda e gosta de um dedo de prosa. Às vezes um dedo e mais a mão inteira. Se brincar, até os pés também. Se molhar a boca com uma cachacinha então, não há quem o faça parar. Ele vive sozinho num sítio a meia légua daqui. Ele já me contou passagens de sua vida, mas acho que se eu lhe espremer a ideia, ele conta mais, pois tem umas coisas meio misteriosas nas histórias dele. Veio a trabalhar com seu Couto, um grande fazendeiro das redondezas, já falecido. Depois foi ficando. Quando o homem morreu, a família começou a brigar feito louca pela herança, teve até morte entre os sobrinhos – ele não tinha filhos. Tio Pedro que morava num ranchinho dentro da fazenda foi ficando por lá, fingindo de morto, e lá está até hoje. Os herdeiros já se acalmaram, aliás, nem são donos mais do lugar e o velho agregado não foi mais incomodado. Sabe-se lá até quando. Mas ele não parece se preocupar com isso. Neste ponto, eu queria se como ele – levar uma vida desligada e sem grandes preocupações. Mas não é para todo mundo, claro.
– Tio Pedro, como é que um homem vive assim, sozinho, sem mulher, sem família?
– A gente se ajeita, compadre.
– Mas sem ter direito a um cafunezinho…
– Eita, meu tempo já passou! Eu agora só tenho as lembranças, mas essas são só minhas, ninguém me tira.
– Conta um pouco de sua história, meu velho.
– E pobre tem lá história pra contar, meu filho? Levantar todo dia ainda com o escuro, garrar no guatambu, passar o dia no eito, de noite desacordar numa cama de varas. Isso é lá coisa que alguém quer ouvir?
– Uai, ti’Pedro, eu, por exemplo, quero. E gosto de saber. Toma aqui uma pura, pra soltar a língua. É por conta da casa. Cê já foi casado, meu tio?
– Bem, meio que já fui, meio que não fui, meu compadre. Mas mulher, sabe como é. Elas parecem mariposas em volta de um lampião. Um dia, o querosene acaba e elas batem asas. Tem umas que tentam pousar no pavio e ficam por ali mesmo, chamuscadas – mas as mais espertas, quase todas, sempre escapam. De maneiras que me cansei, meu filho. – Mas tem umas que se apaixonam – e vão ficando…
– Lá isso tem, deveras, mas ainda não aconteceu comigo. E acredito que nem vai acontecer mais. Meu parafuso já perdeu a rosca, minha cerveja ficou sem gás, meu café esfriou. Faz tempo. Ai, meus tempos…
– Fala mais desses tempos, tio Pedro, fala mais.
– Não vale a pena compadre, melhor deixar pra lá…
No meio dessa conversa me entra na venda o Tibúrcio. Deixa que eu apresento o sujeito. Ele se intitula “consultor de vendas”, mas o que ele é mesmo é um mascate, daqueles antigos. Anda pelas estradas do sertão em sua lata-velha, levando mercadorias para vender, pegando encomendas para sua próxima passagem, daí a quinze dias. E mexe com tudo: tecidos, perfumes, agulhas, linhas, sabonetes, alguma roupa, peças de carro e trator, macarrão, biscoitos. Tudo de qualidade mequetrefe, mas é o que o povinho desses lugares pode comprar. Tibúrcio não é má pessoa. Seu único problema é que ele é muito insistente, principalmente quando quer vender alguma coisa. Ou seja, sempre… É meio ingênuo, também, apesar de seu convencimento. Além disso, como ele tem maior contato com a cidade grande, pois mora em uma dessas, ele se considera mais sabido do que todo mundo. Só vendo a cara que ele faz quando se sente divulgador de uma novidade que ele imagina que ninguém conhece ainda. Aí, seus olhinhos de tiú rebrilham.
– E aí moçada, já sabem da grande novidade?
– Será que é mesmo novidade – e grande, seu Tibu?
– Com certeza! Esta é de primeira!
– Então desembucha, porque se vier com coisa dormida para contar aqui, deixo você na mão; não lhe compro nadinha desta vez.
– Melhor você se sentar, então, pois desta vez vai cair pra trás. – Será? – Calma, você vai ver… Não é que lá na cidade houve o casamento de duas mulheres?
– Tibúrcio, pelamordedeus! Isso é o que você considera novidade? Já tem até lei!
– Lei? Mas então vai ser obrigatório?
– Tibu, caramba, vá se informar melhor… Aliás, quer saber de uma grande novidade, mesmo?
– Só quero, Bertoldo!
– Recebi uma carta da distribuidora lá da cidade, aquela enorme que tem filiais em toda parte. Aceitam agora pedidos de mercadorias por simples telefonema e mandam entregar em três a cinco dias. Acredita?
– Bertoldinho, você não vai me deixar na mão, vai?
O infeliz já estava ali com aquela conversa fiada há meia hora e nem havia percebido que tio Pedro o observava de um canto, e ainda por cima sem ter lhe dirigido aquele boa tarde regulamentar.
– Compadre, de papel passado?
– Boa tarde, Ti’Pedro. Acho que sim.
– Pois pra mim não é novidade nenhuma. Lá onde eu nasci isso é comum. Eu mesmo conheci uma meia dúzia em situação assim. Acho que o governo devia deixar casar quem quisesse correr o risco, até mais de duas pessoas de uma vez. Por mim podia até ter casal de três. Ou de quatro. Gente com bicho também.
– Avançadinho este Tio Pedro, hein?
– Ele tá mangando de você, seu bocó. Não percebe?
E o bocó foi espichando aquela conversa descosturada, com Tio Pedro a cada vez o provocando e enredando, sem que ele desse por isso. A esta altura, mas um personagem entre na venda e se incorpora à cena. O Nozito de Sebastiana, um rapazola meio metido a besta, filho da zeladora da igreja. Dito “da Sebastiana” por lhe faltar um pai conhecido. Um mandrião, como se diz por aqui. Daqueles que se por acaso pensar em trabalho logo procura uma rede para deitar, para ver se afasta tal ideia.
– ‘Tarde pessoal, como vão?
– Meu filho, não era hora de você estar caçando alguma coisa pra fazer? – Fazer o quê, Bertô, aqui nesta praga de lugar não há nada pra alguém se ocupar…
– Ainda ontem o Tonho Carapina estava procurando alguém para limpar um terreno.
– Praquele ali eu não trabalho. Ruim pra pagar que só…
– Depois me conta pra quem tu topa trabalhar aqui na Vila que eu vou espalhar a notícia, pra ver se tu arruma serviço.
– Além do mais estou conseguindo um baita serviço lá na cidade. E é pra ganhar muito dinheiro.
– Bem que queria saber o tipo de serviço que te ofereceram lá, com toda essa disposição que você tem…
– É no ramo do dinheiro, das finanças. Coisa de responsa. Mas nem devia estar falando isso com vocês. Podem ficar com inveja e botar algum mau olhado…
– Vamos botar um bom olhado em você, pra ver se começa a trabalhar de verdade, pode ficar tranquilo.
– Ah, tá bom, vou contar. É pra fazer inveja em vocês mesmo. A coisa chama pirâmide. As pessoas compram uma espécie de ingresso para entrar no projeto, trazem outros sócios para investir com elas e depois de três meses recebem o dinheiro multiplicado dez vezes!
Aí entra Ti’Pedro:
– E vai me dizer que você acredita nisso, compadre?
– Acredito sim, Tio Pedro. Um primo do meu cunhado já está quase rico com este negócio.
– É mesmo?
– Já está comprando até carro!
– É… Na cidade tem coisa boa mesmo, para quem tem as crenças frouxas… Ouvi dizer que comprar gente pelo preço que ela vale e vender pelo preço que ela acredita ter é negócio dos melhores, também.
– ?
– E terreno na lua também dá um lucro danado. Um primo do sobrinho do meu concunhado disse que ficou quase rico assim. Pena que a polícia prendeu ele antes…
Gente desculpe, aqui é o Bertoldo, de novo. Acabo de receber o edital do concurso de contos. Preciso me concentrar nas ideias. Acho que minha vez vai chegar. Vocês ainda ouvirão falar de mim. Desculpem ter feito vocês perderem tempo, com essas histórias bestas do povinho daqui desta Vila que de Feliz, pensando bem, não tem nada. Com licença, até logo.
***
Tiros que o senhor ouviu…
Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras. Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas
Não foi nada não, lhe asseguro. Os pipocos de agora mesmo não foram de briga de homem. É coisa minha mesmo, gosto de praticar a pontaria, quase todo dia faço isso. Agora, com o preço da munição pela hora da morte – desculpe a brincadeira – está ficando mais difícil. Mesmo assim não deixo de dar meus tirinhos, sempre num barranco aqui do quintal, para não acertar ninguém – Deus me livre.
Já fiz disso profissão e acho que até criei fama. Mas agora o que me interessa são essas galinhas, essa horta de couves, algum leitão que engordo para o Natal. Armas quase não tenho mais, só uma zinha a Flobé, quase um cisco de carabina, brinquedo de menino perto do que já tive nas mãos, em tempos passados. Mas isso já acabou para mim, total: o senhor fique sabendo. Minha vida agora é outra.
Vi que o senhor arregalou o olho quando eu falei que já vivi disso. Caçador? Espere que eu conto. Reparei no susto seu quando falei de coisas minhas, antigas. Não me ofendi. Longe de mim fazer qualquer julgamento de pessoa tão educada, cidadão de verdade, como é o senhor. Não carece dizer que espero isso das outras pessoas também, e do amigo mesmo, por que não? Mas relevo seu jeito de me olhar, os costumes daqui sempre foram meio brutos mesmo. Gente que vem de fora, ainda mais se for mais fina, como o amigo, não está acostumada, e com razão até estranha. Agora está melhorando, mas tem umas coisas agarradas em demasia na cabeça das pessoas. Ou será na alma delas?
Viver de arma na mão, de tocaia, preferir um fundão de mundo para morar… Não, não era bem de caçadas que eu vivia. Ou um pouco disso, sim, dependendo do bicho em que se pense. E se eu disser para o senhor da natureza desse que eu caçava, sem penas, sem rabo, apoiando-se no chão em dois pés? Bichos falantes, parece que até pensantes, mas sempre a engenhar malfeitos por aí? Bichos-homens, claro, não faço segredo; não se assuste comigo. Mas nunca, nunquinha, bichos de saia, ou em idade de brincar. Mas aqui no fundão, o senhor sabe, se brinca muito pouco tempo na vida…
Profissão de família: avô, tios, primos. De pai, não sei, nem conheci o meu. Minha mãe me disse uma vez que ele foi morto por um primo dela, a mando de meu avô. Mas não sei muita coisa sobre isso; e para falar a verdade, prefiro nem saber. O que sei é que serviço desse tipo era demais por aqui, em antes. Esse mundão de terra era tudo de uma família só e assim o povo foi devagarzinho dando um jeito. Uns morriam de tiro, outros de facada, uns tantos de veneno, outros sumiam no mundo, de medo ou mesmo para escapar de coisa pior. Depois se arrumava o resto, papéis em cartório, certidões, registros, alvarás, essas coisas da lei. Da noite para o dia o arame farpado corria solto. Minha família era do ramo, mas não sujava as mãos nisso de papelório e fazimento de cercas na calada da noite; pegava a empreita de fazer limpeza e só. Aqui teve gente que botou fogo num cartório inteiro! Questão de honra para nós não se meter em tal tipo de empreita, dizia meu avô, que Deus o tenha. O resto era com a rabulice dos advogados e outros iguais a eles, na cidade: um povo que nunca soube o que era honra ou compromisso; umas pestes. Assim meu avô falava deles.
Era coisa organizada. Meu avô, por exemplo, é o que diz o povo ainda hoje, só pegava serviço certo, de gente que tinha dinheiro e até conta em banco. Nunca ia atrás de trabalho; os interessados é que vinham até ele. E era gente de longe, muitas vezes. Um fazendeiro, dizem, viajou mais de uma semana só para combinar serviço. Dar conta de bagrinhos era coisa que ele passava para algum filho ou à sobrinhada. Ele, não. Só pegava serviço grosso. Mas mão de obra para o ofício não faltava. E houve caso até de gente que se deu mal por tentar pegar o serviço que era para outro fazer. E assim morreu gente em dobro. Tudo como numa empresa verdadeira, dessas da capital, assim donas de meio mundo. E olha que este meu avô morreu tarde, na cama, cercado de família, mulher oficial, padre e tudo mais. Nas quermesses da igreja sempre oferecia um novilho ou uma leitoa no ponto para o leilão. E até confessava no padre…
Era assim: só iam parar na cadeia os mais sem sorte ou que queriam mudar o jeito certo de se fazer as coisas. Mas o senhor quer saber como começou isso para mim e vou contar. Só sei que um tio meu, certa vez, tinha pegado um servicinho desses, mais um na rotina dele, e adoeceu, não pôde cumprir. Aí, passou pra mim, que na verdade já andava me preparando para quando chegasse minha vez. E com facilidade e nenhum medo ou remorso despachei um sujeito ruim como quê, que devia dinheiro pra todo mundo e ainda tinha mania de se engraçar com a mulher dos outros. O mundo ficou livre desse aí, graças a mim – e este já foi tarde. Entre o contrato que me fizeram e a questão bem resolvida passou menos de uma semana e quando deram com o infeliz, os urubus já tinham feito isso antes, no fundo de uma grota.
Assim foi que criei fama e aos poucos fui vencendo na profissão. Mire e veja: só de garanhão abusado já livrei o mundo de uns cinco ou seis; de genros metidos a besta e caçadores de herança, além de outros sujeitos perdulários, outros tantos; assassinos, já perdi a conta; confrontantes renitentes, nem sei quantos, isso é o que mais dá serviço por aqui. Tinha também aqueles que queriam inverter as regras da natureza, me envergonha dizer, aqueles homens que se deitam com outros, como se fossem mulheres. Esses, não perdoava. Mas recusava certas coisas também: mulher que bota chifre em marido, por exemplo, deixava por conta dele mesmo, para criar tento. Mas se a encomenda era para dar um conserto no garanhão, era comigo mesmo. E emendava o tal sujeito para sempre, aliás. Encomenda para moleques não pegava, a não ser de uns danados aí que com quinze ou dezesseis anos já cometem coisas como se tivessem dezoito ou vinte. Um, por exemplo, nessa idade, quis se engraçar com uma mulher honesta, vinte anos mais velha do que ele, esposa de um sitiante lá adiante. Ficou nessa proeza, não foi adiante. Minha lei era a seguinte: se podem votar, também podem pagar pelas estrepolias que fazem. Ora se podem!
Teve uns casos estranhos, diferentes, também; é da profissão. Por exemplo, um que me chamou porque queria desistir de viver e não tinha coragem para fazer isso. Eu fiz para ele. Qual o problema? Acho que é tipo da questão que cabe às pessoas decidir – e só elas mesmas. Eu apenas fiz o que aquele sujeito me pedia, ou melhor, me pagava para fazer no lugar dele. Outro caso foi o daquele homem que pegou doença ruim, parece que o tal do fogo-selvagem. O corpo dele virou uma chaga só. De manhã, quando lhe abanavam o lençol, caía pra mais de meio-quilo de pele solta, em pedaços, no chão. E aquilo fedia a mijo de rato. A mulher o abandonou e os filhos foram levados pelos parentes, por caridade. E o coitado mandou me chamar. Achei que era para dar conta de algum desafeto, porque ele tinha motivos para isso, mas não: era ele mesmo que queria dar um jeito naquilo, acabando com aquela vida que para ele faltava sentido. Mas dessa vez recuei. Eu sabia de coisas que ele fazia quando estava sadio, tomando terra dos outros, emprestando dinheiro e até mesmo mandando matar quem não lhe pagasse. Achei que era de bom tamanho ele penitenciar um pouco de seus pecados, sendo queimado vivo por aquela doença maldita. Aquilo era até bem pouco para um sujeito ruim como ele.
Mas não se assuste comigo. Só lhe quero bem e fico muito aprazido com sua visita, coisa rara por aqui. Já vi que o senhor veio em tarefa de paz, para me conhecer, parece que escreve sobre a vida de pessoas assim como eu, meio diferentes das demais. É isso mesmo? Eu bem-queria ter ganhado minha vida com um trabalho de outro tipo, quem sabe como o seu, mas sou de pouca letra, mal e mal faço uma lista de armazém. Carta, nunca escrevi – e nem recebi também. Leio alguma coisa, principalmente esses almanaques de farmácia, que trazem luz para um mundo de ignorância como este aqui em que vivo. Quem bem me ilustra e esclarece é meu compadre e amigo Clemente, que lê muito e deve ter para mais de vinte livros em casa. Ele sempre me diz que eu devia me esforçar para aprender cada dia mais coisas, que a gente abre a cabeça assim. Mas aquelas letras todas juntas, uma página depois de outra e mais outra, isso costuma me dar uma dor de cabeça dos diabos e até me embaralha a vista, a ponto de me tontear. Quando vou em visita ao meu compadre ele sempre lê umas coisas nos jornais para mim. Só outro dia descobri que na verdade é coisa já acontecida, pois se os jornais saem todo dia nas cidades, aqui eles só chegam lá uma vez ou outra – o senhor sabe: lugar mais sem eira nem beira, este. Ele gosta de ler umas coisas mais espirituais, também. Eu escuto com atenção, embora nem tudo seja de meu entendimento completo. Meu compadre conhece minha história. Ele sabe que agora me retirei de tudo, cuido só aqui deste sitiozinho. Ele sempre vem com uma conversa que não existe pecado que não possa ser perdoado, coisa que acho que ele tira das leituras dele, de um tal de Cardeque. Ele insiste que preciso pedir perdão, ou, pelo menos, reconhecer o que fiz de errado.
Mas não consigo pensar, de fato, que eu tenha sido na vida um assassino criminoso, a cometer injustiças. Nunca tirei a vida de gente de bem, esses que trabalham de sol a sol, são bons pais de família, respeitam a mulher dos outros e tudo mais. Não! Isso nunca fiz e nem faço! Pelo contrário, acho que livrei o mundo de um tanto de safados, desonestos, falsos, invertidos. Acho que deviam era me agradecer, como alguém que tira o mal do mundo, mudando ele para melhor, deixando mais limpo e mais fácil de se respirar. Do que devo pedir perdão, então? Para mim, de nada, nadinha. Aí a minha conversa com Clemente empaca. Aprecio e respeito demais este meu compadre, mas acho que seu pensamento tem pouca escora. Além do mais, já fiz minha parte, mudando de vida como eu mudei. E já faz tempo.
O que me importa agora são esses leitõezinhos, esses pés de couve, essa rocinha de feijão andu – apenas disso me ocupo. Nada de contratos, nada de carabinas, de tocaias, de arrastar fardos para as grotas. Com a flobezinha apenas treino minha pontaria, pois, afinal de contas, não alcanço se ainda posso precisar dela. Não como antigamente, para ganhar a vida, mas agora só para me defender. E para caçar uma paca, de vez em quando. Sei que tem gente que me quer ver debaixo da terra, este povinho daqui é por demais vingativo, tem a alma meio suja. Para mim, meu senhor e amigo: a gente está no mundo como numa travessia. Não pode ficar parado vendo as coisas ruins acontecerem sem que se faça nada. E que me desculpe aquele meu compadre lá: pecado, para mim, é coisa bem diferente, não pode ser o que alguém faz com boa intenção. E sei que existe de verdade no mundo é a gente humana mesmo. Uns bons, outros ruins de amargar. Cada um fazendo sua parte na travessia. O resto é nada; ou o destino da gente.
***
Os trabalhos de Éricles
Este nome esquisito é o meu. Ouvi dizer que foi um erro do escrevente no cartório, ignorante que só ele. Meu pai queria, na verdade, que eu me chamasse Hércules, mas como ele estava viajando quando fui registrado, ficou por isso mesmo. E a maioria me chama assim, por este nome meio fora de propósito. Pelo menos, aí não cabem apelidos. Um padre estrangeiro que reza missas aqui de vez em quando me tranquilizou, explicando que em sua terra tal nome existe de verdade e se escreve assim mesmo. Menos mal.
Mas foi por ele mesmo, este meu nome estranho, que custei a entender, mudado que foi para Eurico, que ouvi no autofalante da rodoviária, para comparecer a um ponto de encontro, porque lá uma pessoa me esperava. Só podia ser ela, Eurídice, minha cunhada, sempre atrasada, ainda mais em um momento como este, de alto significado em nossas vidas. E lá estava ela, linda como sempre, mas com um olhar de preocupação. De cara vi que tinha algo errado: ela não carregava mala ou mochila, mas apenas uma bolsinha a tiracolo, ao contrário do que tínhamos combinado. Aquilo não era bagagem para a viagem pretendida.
Eurídice é mulher de meu irmão mais velho. Aliás, meu único irmão, e só por parte de pai. Aristeu é o nome dele, somos uma família que carrega nomes esquisitos, como os primos Menelau, Heráclito e Esperidião. Meu pai tinha o nome de Anfitrião – isso mesmo, acreditem – embora não fosse muito de ser gentil com as pessoas e ter pouca simpatia por qualquer tipo de visita. Pior era o nome de meu avô, que se chamava Zeus… Vejo que estou exagerando nos detalhes. Melhor retomar o caminho mais reto.
Meu pai ficou viúvo em seu primeiro casamento, tendo com sua mulher Espéria só um filho, esse Aristeu de quem falei. Daí, casou-se de novo, desta vez com Ismênia, que é minha mãe. Fomos criados juntos, Aristeu e eu, ele meia dúzia de anos mais velho do que eu. Para dizer a verdade, não chego a me lembrar de um só momento que tenhamos convivido com harmonia na nossa infância e juventude. Aristeu frequentemente me batia, tomava meus brinquedos e ainda tinha o costume de me denunciar a nosso pai por malfeitos meus, inventados por ele com frequência. Minha mãe bem que tentava me defender, mas quem disse que aquele velho turrão, o terrível e mal nomeado Anfitrião, acreditava em mim ou nela? Meu pai faleceu faz muitos anos. Ismena sobreviveu a ele e vive comigo e meu irmão em nosso sítio, onde plantamos hortaliças, tocamos uma rocinha de milho, criamos umas vaquinhas e uns porquinhos. Aristeu pouco se importa com minha mãe, que afinal não é dele também, ao contrário de mim, que tenho por ela um grande amor, procurando confortar e proteger esta pobre criatura, sempre.
Voltando a falar desta Eurídice, Aristeu a conheceu numa feira de gado ou algo parecido, e veio a se casar com ela depois de poucos meses de namoro. Mas mesmo casado com uma criatura doce, continuou sendo o mesmo Aristeu de sempre: turrão, grosseiro, desconfiado, ruim de conversa como ele só. Puxou em tudo o velho Anfitrião. Logo vi que Eurídice, tão formosa e delicada, tinha pouco a ver com ele, numa relação quase incompatível, para dizer pouco. Não sei realmente como ela foi cair em tal armadilha. Aristeu se considera o verdadeiro dono da propriedade em que vivemos. Ele tem certa razão, porque quando o velho Anfitrião se casou com sua mãe Espéria, o sítio pertencia à família dela, de longa data. E meu pai nunca fez questão de deixar isso acertado em qualquer cartório. De modo que sou tratado aqui não como parte da família, mas como um empregado comum. Aliás, devo dizer, há outros serviçais aqui que são mais bem tratados e respeitados do que eu.
Nas tarefas do sítio, sempre fico com a pior parte. As bicheiras do gado, por exemplo, quem cura sou eu. Buscar a Estrela, aquela mula desgraçada que morde e dá coices, além de se esconder nas grotas e capoeiras, de madrugada ou debaixo de chuva, também sempre fica a meu encargo. Uma cobra aparece dentro do curral ou no paiol, é a mim que recorrem. A roda d’água mostra algum enguiço – chamem o Éricles, é o que sabem dizer. E ainda me fazem ficar de tocaia quando por acaso um bando de ciganos aparece por aqui, e para isso não me cedem nem mesmo a cartucheira de meu irmão, mas apenas uma garrucha velha e enferrujada, que nem sei se atira de verdade. O cachorro do Juca, um outro agregado, ficou louco, babando feito uma vaca e querendo morder todo mundo. Quem foi chamado para dar conta dele? Eu, claro. Com uma boa paulada mandei o dito cujo para o quinto dos infernos – o que mais poderia fazer?
Outro dia me incumbiram de limpar sozinho o chiqueiro dos porcos. Aquilo estava sem nenhum cuidado há meses e meses, numa fedentina de dar medo. O Quinzinho, o camarada que cuidava de lá, tinha ido visitar a mãe fora da cidade e nunca mais voltou. Acho que o monte de esterco da porcada já chegava a uns dois palmos. Fui fazendo aquilo quase a vomitar com a catinga aumentada pelo calor do dia, atazanado por mil e uma moscas. Num canto havia uma cascavel bruta, erada, e ela quase me atacou. Se não fosse aquele chocalho acho que nem estaria aqui uma hora dessas. Mas eu que não sou bobo nem nada, dei conta do recado. Desviei o rego d’água, que passava ao lado, para dentro do chiqueirão e deu até gosto de ver aquele bosteiro todo rolar por água abaixo, para finalmente se soverter no corguinho. Aristeu veio conferir o serviço e ao invés de me elogiar, ainda disse que de um troço mal-feito como aquele só eu mesmo seria capaz.
Meu irmão a cada dia inventa serviço novo para mim. Agora, por exemplo, me pôs para vender alfaces e rabanetes na estrada. Passei o dia no sol e na poeira, sem comida e no final ainda tive que ouvir que não me esforço o bastante. Ele não percebe que o povo daqui não come essas coisas de rabanete e verduras, muito menos alface. O pessoal gosta mesmo é de suã de porco no arroz, bem untado de preferência. Ali na estrada não tive nem mesmo uma água fresca para beber… ou melhor, Eurídice ficou com pena de mim e apareceu por lá com uma bilha d’água. E ainda esticou a conversa, dizendo que não concordava com os modos de Aristeu comigo, pois achava que eu não merecia coisas assim. Ganhei meu dia. Ah esta Eurídice! Que pessoa especial, completamente diferente da peste do marido. Ela me trata muito bem, tem simpatia mesmo por mim. E de minha parte é assim também. A gente às vezes pega de conversa, por horas a fio.
A derradeira tarefa que Aristeu me arranjou foi a de vigiar o primo Menelau, que segundo ele, andava roubando coisas aqui no Sítio. Um colar de sua esposa havia desaparecido e ele suspeitava desse primo. Duvidei. Ando muito com Menelau e nunca o vi fazer uma coisa dessas. Como Eurídice agora ficou bem amiga minha, comentei com ela o acontecido, e vi que ela ficou meio transtornada, querendo saber detalhes de tal assunto. Eu só sabia daquilo por alto, pelo tipo de ordem que Aristeu me dera, mas prometi procurar mais informações. Eurídice mais tarde me procurou para fazer revelações estranhas, mas que na verdade combinavam bem com o temperamento de Aristeu. Ela me falou do desaparecimento do colar, mas passados alguns dias, ao guardar umas roupas lavadas do marido, descobriu a peça na gaveta da cômoda onde ele punha as cuecas. Para ela havia maldade nisso, vontade de envolver o primo em alguma intriga. De passagem, me disse ainda que apreciava muito a pessoa de Menelau e que detestava vê-lo ameaçado pelo marido, e que procurava uma solução para protegê-lo. Me contou também que sua vida com Aristeu estava pela hora da morte e isso a fazia sofrer muito, tendo ele recentemente sido violento com ela, sem entrar em detalhes. Sobre Menelau, disse que nem que lhe custasse o próprio casamento, no qual já havia perdido as esperanças, iria tentar salvá-lo das garras de Aristeu. Isso me pegou de surpresa, não por me fazer confirmar a ruindade de meu irmão, que não era dirigida somente a mim, pelo visto, mas também porque nos últimos dias eu e Eurídice tínhamos nos aproximado muito e eu até começava a achar que estava surgindo algo fora do normal entre nós. Alguma coisa bem proibida e que me matava de medo, por causa de Aristeu, mas ao mesmo tempo me enchia o peito e me tirava o fôlego.
É que eu estava sob o impacto de um fato acontecido alguns dias antes, quando depois de uma longa conversa comigo, Eurídice se despediu com um ligeiro beijo no rosto – e isso me deixou transtornado. O coração acelerou e eu nem consegui olhar para ela, muito menos retribuir o gesto. Era uma coisa doida. Por um lado, uma sensação de aleluia, forte demais, como nunca havia sentido. Mas por outro, o medo de que meu irmão viesse para cima de mim insinuando coisas. Nada foi como antes depois disso entre eu e ela, pelo menos de minha parte, esta é a verdade. Eu tinha agora um grande dilema nas mãos, que situação! Dar conta daquele frio na barriga e no descompasso do coração. Ao mesmo tempo avisar Menelau que havia desconfianças de Aristeu com relação a ele. Mas também desejava vê-lo longe de mim e de Eurídice, pois eu suspeitava que houvesse entre os dois alguma coisa especial e diferente, pois as reações de minha cunhada me pareceram suspeitas, mais fortes do que uma simples amizade poderia gerar. Acho que eu queria isso só para mim… E eu, como ficava nessa história? E assim aconselhei o primo que desaparecesse por algum tempo, até que Aristeu mudasse de atitude – se é que ele faria isso. Mas deixei claro que meu irmão parecia disposto a tudo. Em se tratando de um sujeito de maus bofes como ele talvez até cogitasse de mandar matá-lo. Menelau me disse que já era sua intenção se afastar e que faria isso no máximo em um ou dois dias, tendo até conseguido um serviço na fazenda de um tio, que morava a um dia de viagem de nós. E me disse mais: sabia que Aristeu tinha desconfianças dele com relação a Eurídice. Ele já os tinha visto conversando a sós por duas ou três vezes e ficara enciumado com isso, chegando até a dar uns tapas na esposa. Me abismei, pois Eurídice que parecia tão próxima a mim agora não me falara sobre isso, a não ser de maneira vaga. Acho que a esta altura eu já estava era com ciúmes.
O ponto mais delicado de minha conversa com Menelau foi quando ele me disse que de fato amava secretamente minha cunhada e que já tinha até conversado com ela sobre isso, inclusive propondo fugirem juntos dali. Ela ficou de pensar, sem negar de todo tal possibilidade, mas ele achava que mais dia menos dia poderia acontecer. Deus do céu, era tudo o que eu não queria ouvir! Eu me via como um bobo apaixonado, totalmente sem chance de ser feliz com a mulher que já sentia amar, quase perdidamente. Logo eu, que também ansiava por não só proteger Eurídice, mas sobretudo ficarmos juntos. Foi quando Aristeu me chamou para redobrar a vigilância em Menelau, pois desconfiava que ele ia fugir. Me disse que agora tinha outros planos para ele e que por isso era preciso mantê-lo sob vigilância permanente. Isso só confirmou minha suspeita de que tramasse um assassinato. E eu, inocente, no meio daquela confusão toda.
Resolvi procurar Eurídice, para dizer a ela que desse um jeito escapar também, mas não para o lugar onde estava Menelau, mas sim para a casa de uns parentes, em outra banda, onde ela estaria mais bem protegida, enquanto não encontrava uma boa maneira de deixá-la segura. Viagem em minha companhia, claro. Ela aceitou, sem saber exatamente que meus planos eram favoráveis a mim mesmo, pois minha intenção era de me declarar a ela no decorrer da fuga, além de tentar convencê-la que juntos eu poderia protegê-la melhor. E juntos, para mim, significava exatamente isso: juntos, de corpo e alma. Mas quantas voltas a vida dá… Marquei com ela, um tanto às pressas, aquele encontro na rodoviária, para que pegássemos um ônibus e fugíssemos, simplesmente, para ficarmos longe das garras de Aristeu. Quase caí para trás quando Eurídice veio me dizer que havia desistido da viagem. E me ofereceu o veneno em dose dupla, pois na sequência, depois de alguns minutos, me confessou que Menelau fizera contato com ela e assim combinaram que ele iria esperá-la em outro lugar, para que dali caíssem no mundo. E no dia seguinte ela daria início ao plano. Foi como se eu tivesse caído de um edifício de trinta andares. Fiquei sem fôlego e sem palavras. E o que é pior, tinha que admitir que toda minha conversa com ela tinha sido apressada pelo sufoco dos acontecimentos, e que talvez grande parte das decisões que julgava serem minhas e dela, estavam apenas na minha cabeça. Afinal, ela havia concordado que eu a ajudaria a escapar de Aristeu, mas ficar comigo era certamente outra história. Lembrei de uma música, que fala de um desejo de morte e de dor…
Da rodoviária voltei para meu quarto enlouquecido, não sem antes passar na venda e comprar uma garrafa de rum e um litro de Coca-Cola. Fui aos infernos. Na minha cabeça só passavam intenções malévolas. Eliminar aquele diabo do Menelau não seria a solução? Colocar veneno de rato na comida do Aristeu? Cair no mundo, desaparecer? Atazanar a vida no novo casal até quem sabe, encontrar um jeito de fazer Eurídice cometer adultério? Mas o que fazer com minha mãezinha? Só ideias tronchas me vinham à mente. Acordei tarde, no dia seguinte, com um tremendo gosto de corrimão na boca. Aristeu batia na porta do quarto, vociferando sobre meu atraso para as tarefas do dia. Avisou, de passagem, que iria à cidade “tomar umas providências” – e eu bem imaginei quais seriam. Fui começar meu trabalho, resignado, mas o que me ocupava de verdade a mente nesse momento era outra coisa, a vingança. Não sabia como, mas ela aconteceria. Nem que me custasse outra dúzia de tarefas ainda maiores do que aquelas que eu cumprira até agora.
Vencer serpentes e cães loucos, domar uma mula renitente, remover uma tonelada de bosta tudo isso era apenas um tira-gosto para o que me aguardava de agora em diante. O mundo ia ver, sim: eu iria à luta! Enquanto eu matutava em tais coisas, Aristeu topou com uma jararacuçu de dois metros e foi picado por ela. Eu fui o primeiro a ser avisado e providenciei a charrete para levá-lo ao hospital. Ali penou por uma semana, à espera da chegada do soro. Acabou não resistindo, formando uma ferida brava que levou à amputação do pé e infecção generalizada. Ajudei a providenciar o enterro. Só me falta agora resolver o problema chamado Melenau.
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Promised Land, now!
Aqueles eram demônios fortes, viris, de olhos avermelhados, demônios que dominavam e instigavam homens… homens, estou lhes dizendo! Porém, de pé naquela encosta, tive a premonição de que, na luminosidade ofuscante daquela terra, conheceria um demônio flácido, dissimulado, de olhar débil, o demônio de uma loucura voraz e impiedosa. [Joseph Conrad – No Coração das Trevas]
Com as bênçãos do Senhor, aquele parecia ser um dia igual a qualquer outro. Não fazia frio nem calor, passarinhos cantavam, cães latiam, as irmãs da limpeza já começavam suas tarefas, entoando salmos e hinos conhecidos. Eu tinha aberto minha Bíblia e meditava um pouco sobre algo que disse Isaías, como faço diariamente, variando apenas de Profeta. Ainda me lembro muito bem, Isaías falava que a terra de seu povo viria a ser assolada, suas cidades abrasadas por pragas e invadidas por estranhos. Hoje me penitencio por ter faltado fé verdadeira em mim, pois vejo que ali havia mensagens às quais não prestei a devida atenção, que diziam respeito, sem dúvida, ao que eu iria vivenciar em mais adiante. Ah, aquelas palavras falavam de gente estranha; de turvação nos corações; de devastação e traições; de conflitos e vinganças; de um Deus onipotente, porém ausente! Saber que também existiria por ali uma senda santificada, pela qual não passariam os imundos, ainda que aberta aos loucos e doentes, não me dava alívio.
A verdade é que fui pego de surpresa. Foi assim: mal me levantara e me dirigia ao refeitório, Sigrid, a secretária do Doutor Wilhelm, me avisou que ele queria falar comigo. Logo de cara percebi que devia ser coisa séria, pois Sua Excelência raramente dava tal honra aos mortais comuns. Devia haver algo de grave naquilo, que me afetava diretamente, sem que eu soubesse o motivo. Alguma coisa realmente estranha se armava, só não sabia ainda por que envolvia a minha pessoa. Wilhelm na verdade era além de Doutor, Pastor. Ele era filho de uma família brasileira descendente de pomeranos e havia feito sua preparação religiosa na Alemanha, lá recebendo tal título formal, pelo qual gostava de ser tratado. Dirigia aquela escola de formação religiosa luterana, o Diaconato Lutherhaus, com rigidez e devoção extremas. Ele me tratava de forma severa e com intimidade zero, aliás, como à maioria dos alunos, funcionários e demais pessoas que por ali andavam e trabalhavam. Mas encarei com coragem, embora um tanto ressabiado, o mal-estar de começar o dia com uma entrevista como aquela.
Para encurtar minha narrativa, em certo momento da conversa o Doutor me perguntou sobre Karsten Freitag, se eu o via com frequência, que tipo de contato tinha com ele nos últimos tempos. Karsten era um cara da minha terra, que anos antes havia me ajudado a desviar do trauma que eu tinha com o catolicismo, por conta de um padre de má fé que era próximo de minha mãe e que, só mais tarde me dei conta, tentara me assediar sexualmente na infância e na adolescência. Karsten pertencia a uma família de crentes e foi meu vizinho na infância. Quando um dia confessei a ele o mal-estar que eu sentia com os contatos forçados que eu me vi obrigado a ter com o padre Carlos, ele prontamente se ofereceu para me ajudar, fazendo com que eu me aproximasse de pessoas de sua confiança na Igreja Luterana da cidade, de cujo rebanho ele e sua família faziam parte. De fato, fui bem acolhido ali e como sempre tive uma inclinação espiritual, deixei-me levar pelos ritos protestantes e em pouco tempo me tornei um deles.
Karsten era quatro ou cinco anos mais velho do que eu e extremamente interessado e versado em assuntos religiosos. Tinha sempre uma bíblia no bolso e uma memória fabulosa, sendo capaz de recitar trechos inteiros do Antigo Testamento, trazendo muitas vezes a conversas banais citações apropriadas de salmos. Seu tio era pastor em uma cidade próxima à nossa e Karsten foi morar com a família dele quando terminou o ensino médio. Eu ainda era ginasiano, de maneira que praticamente nos separamos desde então, com encontros apenas ocasionais, nas férias minhas ou dele. Quando estive com ele, certa vez, me disse que tinha se decidido a virar pastor, assim como o tio, que lhe dera grande apoio e mesmo o encaminhara à sede da Confissão Luterana na capital. A partir daí continuamos a nos encontrar apenas por cartas e numa dessas ocasiões confessei a ele meu desejo de também me aproximar da vida religiosa, tendo ele me recomendado, e ato contínuo me indicado à tal formação de diácono, justamente na Lutherhaus, onde tiveram início os fatos que narro agora.
Ao terminar meu curso por lá, entretanto, Doutor Wilhelm, o diretor, por algum motivo, achou que eu não deveria ser pastor, mas sim me voltar ao ensino religioso formal, em alguma escola ligada à Confissão Luterana. À espera de que isso acontecesse, já fazia bem uns seis meses, é que me levantei naquela manhã primaveril com o aviso que o Doutor me esperava para uma conversa. Wilhelm tanto tinha de rigoroso e severo como de experiente no trato com as pessoas, mesmo subalternas, como eu. Foi logo me deixando à vontade. Perguntou se eu estava satisfeito com o curso, com os aposentos, com a comida, com os professores e demais encarregados; me ofereceu uma limonada. Tudo bem, tudo bem, eu repetia meio infantilmente, tentando entender o que viria depois. E o que veio depois demorou mais de meia hora para ser finalmente revelado – e envolvia diretamente o meu velho amigo Karsten Freitag. O Doutor insistia em me indagar se eu recebera notícias recentes dele. Fazia pelo menos um ano que não nos víamos e nem trocávamos telefonemas ou mensagens. Eu o sabia baseado em algum lugar da Amazônia, com passagem por Santarém, ao que parece. Recebera a missão de evangelizar as comunidades ribeirinhas no Tapajós, que tinham sido deixadas à mingua da Palavra algum tempo antes, por falecimento de um veterano pastor batista norte-americano, que cuidara delas por décadas a fio. E o mais era apenas por ouvir dizer.
– Ouvir dizer o quê, inquiriu o Doutor. Ele queria saber mais, por exemplo, se eu percebera algo diferente ou mesmo estranho no comportamento de meu amigo. A princípio neguei, mas depois resolvi abrir o jogo, pois na verdade um dos motivos do meu afastamento de Karsten era por percebê-lo um tanto heterodoxo com relação a certas tradições luteranas. Por exemplo, pelo uso repetido de palavrões nas conversas ou por algumas vezes ter me dito, como despedida, que ia beber umas em minha homenagem. Em uma ocasião me disse que a mulherada do lugar era infernal, expressões exatas dele, que eu sabia serem muito estranhas a um protestante, ainda mais em se tratando de um pastor luterano. Acabei por revelar, ao longo da conversa com o diretor, que tinha sido na verdade o próprio Karsten que deixara de me procurar a este tempo, antes de que eu fizesse o mesmo com ele.
– Era tudo o que eu tinha a dizer, Doutor… Wilhelm me olhou de um jeito que me pareceu ser de confiança em mim e eu percebi que o pior já tinha passado – ou nem mesmo se ameaçara de verdade. Mas eu estava enganado. Ele agora me confessava sua preocupação com Karsten, pois já sabia das coisas que eu lhe contara e, pior, tinha muito mais a acrescentar. O que acontecera com o aquele pastor, agora perdido, seja em meio à floresta amazônica, em termos geográficos ou em outros sentidos da palavra, era estarrecedor. Primeiro parara de dar notícias a seus superiores em Belém, depois se negara a prestar contas do dízimo recebido dos fiéis e de outros valores que lhe eram enviados pela Igreja. O material de divulgação que vinha da matriz em Porto Alegre começou a ser simplesmente devolvido, por falta de quem lhe procurasse no correio. Um diácono que passara pela comunidade onde Karsten era ministro, tivera apenas notícias vagas dele. Por exemplo, que abandonara a sua esposa legal, uma galega de Passo Fundo e agora vivia amancebado com uma cabocla, que havia transformado seu salão de orações em local para festas estranhas. Tinha ouvido dizer ainda, que ele pregava o amor livre, dizendo que isso era bom aos olhos de Deus, por se dar sem vínculos egoístas ou sentimentos de possessividade em relação a esposas e maridos. Não bastasse, dera para andar todo o tempo de calção e camiseta regata, como a maioria dos ribeirinhos, destoando completamente das normas luteranas do recato, aceitando também que em sua igreja os fiéis assim se vestissem. Convocado repetidas vezes pelos superiores em Belém e mesmo no Sul, ignorava solenemente os chamados.
A esta altura eu voltei a ficar preocupado. Afinal, o que poderia querer de mim o Doutor Wilhelm, diante de uma situação tão escabrosa, que ele próprio parecia se considerar impotente para enfrentar? Ele logo me esclareceu. Queria que eu fosse ao local dos acontecimentos para confirmar se e até que ponto eram verídicos. Disse-me também que havia um plano para resgatar o pobre Karsten (qualificativo posto por ele) e reconduzi-lo à boa razão do espírito. E mais: que isso seria confiado a mim, que afinal de contas era uma pessoa que o conhecia desde a infância. – Como? Eu quis saber, sem obter resposta no momento, já bastante temeroso com tais responsabilidades e com minhas preocupações acrescidas em várias oitavas. Passei o resto do dia em estado de alerta, com um olho em Isaías e o outro, ou melhor, o ouvido, na campainha de meu quarto de diácono. No dia seguinte, Sua Excelência não me convocou. Pior, veio falar comigo pessoalmente, me convidando para uma conversa debaixo das mangueiras do quintal. Por dentro eu tremia, claro. Desta vez não me fez prolegômenos, indo direto ao assunto. A Congregação pagaria minha passagem até Santarém e de lá forneceria o que fosse necessário para eu chegar a cidade de Belterra, onde Karsten agora estava praticamente homiziado. E deixou bem claro que a minha missão não era simplesmente de reconhecimento do terreno ou de apuração do comportamento do personagem. Bem mais do que isso, cabia trazer o trânsfuga (palavra dele) de volta, custasse o que custasse e para tanto havia sido preparada uma estratégia, que me foi logo apresentada: uma caixinha de metal com seringa e ampola de medicamento. E mais um recado claro: se Karsten resistisse à persuasão, que eu desse um jeito de pegá-lo à força e aplicar nele o conteúdo da seringa. Isso o tornaria dócil com um cordeirinho, me garantiu o doutor, aceitando me acompanhar até onde eu impusesse. Não havia urgência, entretanto, dada uma seca muito forte em toda a região do Tapajós, com o rio baixo e a navegação impedida. Dentro de dois ou três meses, com certeza, haveria condições para a execução do plano. Enquanto isso poderíamos caprichar no planejamento, para o que também contava com a minha ajuda. E antes que eu dissesse pau ou pedra me alertou: – que isso fique somente entre nós. E mais: na volta e diante do sucesso da minha intervenção uma vaga estaria garantida para mim no principal colégio da Congregação. – Uma posição muito disputada – completou.
Era setembro. Passou um mês, e depois, quase dois. No final de outubro o rio voltou a fluir e eu peguei o avião para Santarém, com escala em Belém. Na capital fui recebido pela própria esposa do maioral de lá, que disfarçou, mal e mal, que não sabia da missão que me fora confiada – apenas que era algo muito importante para a Igreja e que seu resultado faria de mim uma pessoa abençoada. Abençoado ou não, eu, um pobre diácono, aquilo era para mim missão a cumprir. No final do arco-íris havia um emprego, que era o meu sonho real naquele momento, pois queria me casar e ganhar independência total do regime que me era imposto em Lutherhaus. Fui para o sacrifício me consolando com a ideia – sem qualquer fundamento concreto até então – de que talvez as coisas não fossem tão difíceis como eu pensava. Desci do avião em Santarém ainda com tais pensamentos otimistas, mas o próximo passo, o embarque para Belterra já começou a me mostrar que o pior ainda estava por acontecer. No velho porto sujo e cheirando a peixe e esgoto, sobrevoado por uma multidão de urubus, havia várias embarcações, de tamanhos variados aguardando passageiros. Não havia hora marcada para sair, pois isso só acontecia quando a lotação estivesse completada. O conceito de lotação significava ali, pelo que pude ver, pelo menos o dobro da capacidade recomendada, em termos de pessoas embarcadas e carga. O barco que me era destinado se chamava Tucuxi, o que me pareceu um nome em sintonia com a missão que me fora destinada pela Igreja. A partida ainda iria demorar, pois apenas uma pequena parte das redes abertas no convés superior estava ocupada. Não precisei comprar uma para mim, pois tal peça fazia parte do pacote da viagem, como se fossem as poltronas de um ônibus ou avião. Me acomodei naquele pano sujo como pude, procurando me abstrair do cheiro de corpos e sei lá o quê mais que dali se exalava. Cheguei no porto por volta das cinco da tarde e pouco depois da meia noite a viagem começou.
Lentamente vadeamos e eu me distraí vendo as luzes fugindo em ambas as margens. Com menos de uma hora de viagem, o barco estacionou para pegar passageiros e entre encostar, aportar, acolher gente e carga, vadear de novo, havia transcorrido mais outra hora inteira. Tentei dormir, mas o calor e o barulho das conversas era tanto que isso me pareceu totalmente impossível. Além do mais, nunca consegui dormir em rede. Assim me resignei a passar uma noite em claro. Os passageiros nas redes ao redor de mim eram incansáveis em conversar, cantarolar, dar risadas, contar piadas, sem parar de comer seus quitutes oleosos e cheirando a peixe. Aqui um cristão paga todos os seus pecados, pensei. Aliás, por falar nisso, logo percebi que boa parte da gente que viajava comigo eram mulheres com saias no meio da canela, tanto elas como os homens vestindo camisetas em que frases bíblicas se repetiam, geralmente com erros de sintaxe e baixa sintonia com a realidade. – Oh Deus, perdoai-os…
Lembrei-me nesta hora de meu bom Isaías: anunciai-nos as coisas que ainda hão de vir, para que saibamos; ou fazei bem, ou fazei mal, para que nos assombremos, e juntamente o vejamos. Ajudai-me, meu Profeta, o que eu não daria para saber o que essa aventura me traria e se eu escaparia são e salvo dela… E aquela viagem estava apenas começando…
Logo que escolhi minha rede, vi que a dois metros dela estava uma senhorinha que não parecia muito bem. A filha, que a acompanhava, explicava para quem quisesse ouvir, que a mãe voltava para casa depois de algumas semanas internada na cidade, desenganada pelos médicos. Ela me pareceu estar, na verdade, agonizando, bem ali naquela rede, quase a meu lado. A filha, pródiga em detalhes, acrescentava que a mãe era uma “pinhoneira” na região, pois tinha vindo do Ceará ainda menina e havia trabalhado, como babá, para uma família de americanos da Companhia Ford na grande plantação de borracha, muitos anos antes. Depois tudo acabou, explicava, e sua mãe, que dera à luz a ela própria, a narradora, com assistência direta de médicos gringos, agora tinha que ir a Santarém mesmo para pequenas consultas médicas. – Este lugar só piora, suspirava. Em estado de piora mesmo, e a olhos vistos, estava a velhinha. Ela mantinha os olhos fechados, sem se comunicar com a filha ou com qualquer outra pessoa, respirando com algum ruído. Lá pela meia noite pareceu sair de sua letargia, abriu os olhos, tentou se levantar na rede, balbuciou qualquer coisa e tombou inerte. Estava morta. Isso desencadeou um movimento previsível na vizinhança, apinhada de redes e curiosos. Ninguém sabia ao certo o que fazer. O Imediato foi chamado e disse que a chegada a Belterra estava prevista para quatro da tarde do dia seguinte, mas só se corresse tudo bem, alertou. Um curioso disse que o melhor era desembarcar o corpo, pois transportar defuntos era contra as leis, e além do mais poderia dar azar. Este logo se calou porque a filha da falecida lhe advertiu que se intencionava fazer isso, que fosse com a própria mãe dele, não com a dela.
Dois dos expectadores, em momento diferentes, se aproximaram e segredaram alguma coisa à filha. O primeiro deles puxou da mochila uma Bíblia e começou a ler algum versículo, atropeladamente e ignorando totalmente vírgulas, pontos e parágrafos. E ia alterando a voz, chegando quase aos gritos, como se estivesse num púlpito de sua congregação pentecostal. O outro esperou a arenga terminar e de certa forma a repetiu, com um pouco mais de cerimônia, contenção verbal e letramento. Enquanto isso, a velha defunta, na sua rede, tomava parte em tudo, com a serenidade dos mortos. Findo o tumultuado ofício, vi que os dois pastores se dirigiram à proa do barco e ali começaram a conversar; logo percebi que era um diálogo um tanto acalorado. Em poucos minutos chegaram às vias de fato, com o mais alto deles tentando jogar o oponente dentro do rio. Armou-se o deixa-disso, mas a participação de dois tripulantes deixou os ânimos aparentemente domados. – O que seria aquilo? Indaguei da minha vizinha da direita. Briga antiga, ela me esclareceu. Há muito viviam às turras, cada um acusando o outro de estar roubando fiéis de suas respectivas igrejas de periferia. Outra mulher acrescentou: – que nada, tem rabo de saia no meio disso! Segundo ela, o baixinho também era acusado pelo outro de ter lhe roubado uma fiel especial, a mulher com quem ele mantinha um romance. Será que Isaías, que viveu em uma época de muito tumulto e disputas, teria presenciado alguma cena como aquela?
Nisso um baque surdo se ouve, o motor se silencia e na sequência o barco estaca, em uma curva do rio, longe das duas margens. Um alarme soa. Alguém fala em incêndio e muitos se agitam em suas redes. De uma fileira de luzes na margem esquerda chega o som de uma lambada, além de vozes e gritos frenéticos, de homens e mulheres. Me envergonha repetir o que se cantava, mas o faço por fidelidade ao momento: – chega aqui meu benzinho, vem sentir o meu quentinho, o meu carinho. Quanto mais se sofre aqui, mais se esbalda – pensei. Durante uma ou duas horas, sem outra explicação que não fosse a especulação dos passageiros, depois de ruídos de quem bate um martelo, o Tucuxi retoma a marcha, embora agora parecesse mais fatigado, pela mudança do barulho que o motor produzia abaixo de nós.
Mal retomada a viagem, um empurra-empurra domina o convés. Era uma confusão entre duas mulheres, que logo se engalfinharam, bem no estilo dos dois pastores. Eu tinha visto que o filho de uma delas era autista ou algo parecido, pois gritava de tempos em tempos, por nenhum estímulo. Apenas berrava, de forma dolorosa e sem sentido. Uma delas, pelo que percebi, reclamara da mãe, que incontinente partiu em defesa do filho, atacando a ofensora. Esta não se deu por vencida e rebateu a outra, dizendo que aquele devia ser um filho que a infeliz tivera com o Diabo, um castigo de Deus. A turma do deixa-disso parecia estar em plantão permanente, pois logo apareceram dois ou três para acalmar os ânimos. Daí em diante eu só ouvi os gritos da pobre criança, cada vez mais rouca, cada vez mais espaçados. Parece que finalmente conseguira adormecer. Numa breve parada, em um lugar sem nome e sem maiores predicados, em plena madrugada, uma família sobe a bordo: pai, mãe e dois filhos já quase adultos. Novo rebuliço no convés. Da rede vizinha ouço o comentário que são leprosos e por isso todo mundo quer fugir deles. A sequência de perigos e emoções parece nunca terminar a bordo do Tucuxi.
Logo em seguida uma voadeira rodeia o barco e tenta abordá-lo. Dois homens gritam que é um assalto e que todos deveriam mostrar o que tinham nas bolsas e sacolas. São interrompidos, entretanto, pelo Imediato acompanhado de dois dos marinheiros, que os expulsam com um bastão de choque elétrico, reforçado por enérgicos golpes de remo. Um dos assaltantes fica ferido e grita palavrões. Fogem. Uma mulher obesa tenta atravessar o emaranhado de redes para ir ao banheiro e é hostilizada pelos demais passageiros, que reclamam que seu corpanzil perturbava a imobilidade das redes. Chegam a dizer para ela até mesmo que gente com aquela bunda toda deveria ficar em casa, ao invés de perturbar a paz dos outros. Surgem risadas e vaias, entremeadas por palavrões. A ofendida ao mesmo tempo que responde às agressões com nomes sujos, empurra alguns dos que reclamavam dela. Naquele momento cheguei a imaginar que a pancadaria iria rolar solta, mas tudo terminou em risadas, e depois silêncio, eis que a manhã já se anunciava no horizonte da margem esquerda do Tapajós e o sono parecia, finalmente, ter tomado conta de todos.
Manhã chegada, topamos com duas ou três canoas que atravessavam o rio com imagens de santos e bandeiras e gente além da sua capacidade de carga. Alguém comentou que era dia de finados e que aquelas pessoas, de filiação católica, iam reverenciar seus mortos em um cemitério que ficava do outro lado do rio. Novo agito no convés, com um outro grito do tipo vão enterrar o Papa e chega de idolatria, com gestos de mão pouco lisonjeiros. Uma mulher, de saias incrivelmente curtas, decote profundo, peitos gelatinosos, pernas grossas e pintura carregada na cara, que até então permanecera quieta, resolveu intervir e passar, aos gritos, uma lição de moral nos demais, dizendo que a religião dos outros deveria ser respeitada. Gritos e vaias ecoaram das fileiras de redes mais distantes e alguém acrescentou: – logo você para dizer isso? Essa é boa… Lembrei-me novamente de Isaías. Impossível não recordar dele a cada momento desta travessia. Ele deve ter dito alguma coisa apropriada a momentos com estes que vivi no Tapajós.
Em certo momento pude ouvir alguém falar de um pastor chamado Carste e sua seita “PLN”, ou algo assim. Apurei os ouvidos. A narrativa, entre divertida e escandalosa, falava em sessões públicas marcadas por grande agitação, com promessas de liberdade e cura, mas também seduções e até sexo com menores. Haveria também certas experimentações com ervas nativas capazes de produzir estados alterados na mente das pessoas. Era só o que faltava no cenário e isso me fez atinar realmente com a grossa confusão em que havia me metido. Mas tudo bem, se no final eu fosse pelo menos recompensado com um bom emprego ou quem sabe até um cargo na hierarquia administrativa da Igreja. O fato é que o ponto de possível retorno já havia sido ultrapassado, mesmo antes de eu pegar o avião em São Paulo. Aquela viagem parecia que nunca ia terminar, mas finalmente desembarcamos em Belterra. Depois de me equilibrar perigosamente na pinguela que conduzia os passageiros do barco à terra firme e tendo escapado de um banho nas águas lodosas, fedidas e repletas de detritos do porto, alcancei o alto da barranca para procurar um merecido pouso, com um mínimo de conforto, quem sabe um banho e cama com lençóis limpos. Na escalada vi meio enterrado na lama um barco pequeno, que aqui chamam baleeira, que tinha escrita na lateral a mesma sigla que ouvira na conversa alheia, um pouco antes, ainda a bordo do Boto Tucuxi: PLN. Tudo indicava que o foco da minha procura finalmente seria alcançado. Restava saber o que significavam aquelas letras.
Mas pelo menos eu agora já sabia que o tal do “Carste” era a pessoa que eu procurava.
Fui atrás de um hotel decente, mas o que encontrei foi uma pensão que não chegava perto disso, muito antes pelo contrário. Fazer o quê? Fiquei por ali mesmo. As paredes de madeira deixavam o quarto em calor insuportável, embora já fosse quase noite. Um velho ventilador fazia mais ruído do que propriamente produzia vento. Um cartaz advertia ser proibida nos quartos do estabelecimento a “entrada de pessoas prosaicas”, fosse lá o que isso significasse. Fui dar uma volta pela cidade e depois de perguntar aqui e ali sobre o Carste, descobri que ele agora morava numa vila rural, distante uns poucos quilômetros da sede, mas que sua igreja ainda existia não ficava longe de onde eu estava. Fui até lá, apenas para constatar o abandono de um prédio que mais seria adequado a uma oficina mecânica, mas que pelo menos em uma de suas paredes, um letreiro tosco, já esmaecido pelo tempo, esclarecia o significado da misteriosa sigla PLN: Promised Land Now. Mas porque em inglês, meu Deus?
A cidade ainda guardava vestígios de sua época de ouro com a presença dos norte-americanos, com algumas moradias no padrão daquelas que a gente vê em filmes made in USA, com jardins, ausência de muros, telas mosquiteiras, vidraças quadriculadas, alpendres. Mas havia, naqueles restos do sonho insano de Mister Ford, a marca do tempo, do descuido amazônico e do clima úmido dos trópicos. Aquilo tinha a ver com o slogan ali colocado por Karsten? Será que ele andava a prometer a seus fiéis as benesses de um paraíso imediato, na próxima curva do rio? A volta a um passado glorioso que fora varrido pela floresta e pelas doenças? Mas por que em outra língua? Aquilo realmente não fazia sentido para mim… As pessoas com quem eu conversei me indicaram que o homem que eu procurava estava por perto, no povoado de São Gabriel, cerca de 20 km floresta adentro. O encontro com Karsten era agora questão de tempo, cada vez mais curto, aliás, pois queria alcançar o homem antes que o Tucuxi voltasse rio abaixo, dentro de três a cinco dias.
Uma nova viagem precisava ser feita, entretanto, felizmente bem mais curta. E lá fui eu corcoveando pela floresta, em um caminhãozinho Toyota, na carroceria transformada em lotação, entre porcos, galinhas, sacos de mantimentos e adubo, latões de querosene, mais algumas pessoas, inclusive a mulher que eu já vira no barco, aquela defensora dos católicos, com suas pernas maciças, lábios pintados e tudo mais. E ela, não sei por que, não tirava os olhos de mim. A vila de São Gabriel, meu destino final – assim eu esperava – era um lugar desolado, perdido mesmo naquele fim de mundo, com restos de floresta, cães, porcos, ratos e lixo – muito lixo por toda parte. Achei estranho ver as ruas desertas, da mesma forma que em Belterra, na véspera. Logo, porém, caiu uma chuva e tudo se encheu de gente. Imaginei que assim fizessem as pessoas para se refrescar. E pude então apreciar a fauna humana local, mulheres e meninas em camisetas e shortinhos, com as roupas molhadas mostrando-lhes os corpos ou pelo menos mamilos em quase total transparência. Para os homens o obrigatório par formado por bermudões e camisetas regata. E pareciam todos felizes assim, quem era eu para desdizê-los? Aliás, começava a achar tudo normal ali.
Lembrei-me da frase daquela canção que fala sobre não existir pecado ao sul do Equador – principalmente no meio dele, pelo visto. De fato, era pouca coisa que ainda me poderia surpreender por ali, pois no aeroporto de Santarém já havia visto um cartaz que anunciava um concurso chamado Miss Camiseta Molhada, com fotos sugestivas, revelando, sem qualquer pudor, mamilos, umbigos e curvas femininas, além de reentrâncias diversas. Dose cavalar para um protestante como eu. Logo na chegada a São Gabriel a dona dos atributos físicos já descritos me perguntou se eu não pagaria uma cerveja para ela. – Não bebo, eu disse, mas quero sim conversar com você. Nada de intenções pecaminosas, claro, pois luteranamente aprendi a ser resistente aos vícios não só do álcool como da carne, mas pensei que talvez aquela criatura pudesse me dar informações sobre o objeto de minha viagem até ali. Ela de fato conhecia o Carste, aliás de longa data, mas não ia com a cara dele, primeiro por ser católica (não das mais praticantes, claro), depois porque achava aquela história de PLN uma babaquice (palavra dela) sem muito sentido, por ali se misturar religião e pouca-vergonha de diversas qualidades. De fato, eu percebi que ela dominava o assunto, quando enumerou algumas das tais sem-vergonhices. Aproveitou para me contar um pouco de sua história, sem que eu perguntasse por isso. Ela fora criada pela avó ali em São Gabriel, mas que vivia em Santarém há tempos, onde trabalhou de doméstica e babá, mas que agora havia feito um curso de massagista. E que se chamava Genitália, porque a mãe, Geni, era fã de um jogador de futebol italiano.
Eu lhe atalhei a conversa, porque tinha pressa e além do mais só tinha um interesse agora, o Karsten – e a Toyota voltaria a Belterra antes do final da tarde. Com o beiço estendido Genitália me mostrou lá adiante um prédio rosa-choque, a sede da tal seita. De fato, no frontão havia um anúncio em neon, apagado àquela hora do dia, mas que logo pude ler de perto: “Promised Land, Now: aqui você se salvará”. Era uma construção inacabada, na qual havia um salão sem reboco ou caiação, com alguns bancos e uma espécie de púlpito ao fundo. Estava deserto naquele momento, mas quando rodeei o terreno para ver se dava com alguém, me apareceu, surgido do nada, um sujeito baixinho, bem do tipo originário, perguntando o que eu desejava. Uma figura que minha mãe rotularia de cara-lambida, moreno, imberbe, com os cabelos, umedecidos pelo suor, caindo pelo rosto e pela nuca. Indaguei do Carste e ele fez um sinal com a mão, como me pedisse para esperar, o que me deixou animado. O tal sujeito convidou-me a sentar dentro do “templo” e lá se apresentou como Epotamênides Good, fazendo questão de acentuar o sobrenome em inglês (não é Gud nem God: é Good, com dois ‘o’!), que significava bom ou bacana, segundo ele. Quanto ao primeiro nome, que tive que anotar em seguida para não esquecer, atribuiu ao seu pai judeu, ele próprio seguindo tal credo até certo tempo atrás, abandonando-o por ter se convertido à fé verdadeira cristã. O sobrenome inglês tinha sido adotado por ele, depois que conhecera um missionário batista norte-americano, chamado Calvin, que passara por sua terra. Me disse ainda que era o secretário da PLN e que ajudava o reverendo em suas tarefas, até que ele adoecera e teve que se afastar dos cultos. Ele falava de Karsten, claro, tratando-o de Reverendo. No mais, me disse que era um estudioso da Bíblia, especialista em Velho Testamento. E num gesto que me pareceu magnânimo, aquiesceu que eu poderia tratá-lo como Popó, simplesmente. Pelo visto ali as pessoas gostavam de falar de si mesmas – eu não havia perguntado a ele nada, ainda. Sobre o nome Promised Land me garantiu que fora ele que tinha sugerido a Karsten, que logo o aprovou, acrescentado depois vírgula Now. E que isso era resultado das conversas que teve com Calvin, que lhe revelou ser membro de uma igreja com igual denominação em Louisiana, nos Estados Unidos.
Dito assim, parece ter sido uma conversa simples e rápida, mas sei eu o quanto me custou. Popó era completamente gago e transformava cada sílaba em três, quatro ou mais, lembrando uma metralhadora ou um motor avariado de baleeira, sei lá. Naquela terra, realmente, tudo era possível: de Genitália a Epotamênides, tudo em uma única manhã. Sobre ela, Popó me disse que havia visto nós dois conversando e que eu não deveria acreditar muito nas coisas que ela tenha me dito, pois aquela mulher era intrigante como quê. Ela fora discípula da PLN e mesmo usufruíra da intimidade de Karsten, mas que haviam se separado por excesso de ambição dela. Insisti que queria ver o reverendo e ele aquiesceu. Me guiou por um caminho no mato, que dava acesso a uma espécie de barracão, no fundo do terreno da igreja. Entrei no ambiente escuro e pude ver, finalmente, em um catre no fundo do cômodo, a pessoa que eu procurava. Mas não era o mesmo filho de alemães que eu conhecera em minha cidade, sacudido e saudável. Karsten Freitag era agora apenas uma sombra do outro. Muito magro, esquálido mesmo, com a barba de muitos dias, olhos injetados de amarelo e sangue, bafejando um hálito terrível. Saudei-o e ele mal respondeu. Disse a ele a que vim e quem me mandou buscá-lo e ele reagiu com um gesto resignado de concordância, inclusive aceitando partir comigo ainda naquele mesmo dia. Aquela seringa e a ampola de remédio não seriam necessários, felizmente. Daí a prepará-lo para entrar na Toyota foi um átimo. Bagagem sua era apenas uma malinha de mão, tão leve que parecia estar vazia. Popó me ajudou levá-lo até a parada e lá tivemos praticamente que carregar seu corpo inerte para instalá-lo num dos bancos da carroceria. E assim fomos pela floresta a fora, cada solavanco recebido com um esgar de dor e mal-estar por parte do resgatado.
Ele volta e meia se manifestava com palavras, que me eram quase incompreensíveis. Mas consegui entender bem o que me soava lugubremente como uma ladainha: horror, horror, horror. Muito apropriado… Meu mal-estar com tudo aquilo ainda estava longe de acabar. A volta do Tucuxi estava prevista para daí a cinco dias. Pelo menos agora eu conseguira vaga em um hotelzinho simplório em Belterra, mas pelo menos equipado com um ventilador que fazia jus ao nome. Tive que pegar um quarto com duas camas, uma para mim, outra para Karsten, que piorava cada vez mais. Em alguns momentos se retirava para um mundo de sombras, onde passava horas inteiras. Às vezes, no meio da madrugada, tinha ondas de lucidez. Numa delas me falou de Leatriz, Beatriz ou um nome assim, que eu entendi ser uma pessoa muito importante para ele, talvez a galeguinha de Passo Fundo, de quem eu já havia ouvido falar. Na ocasião, pediu que eu lhe trouxesse a mochila ensebada e de lá retirou o único volume, um envelope cinzento grosso, que parecia cheio de papéis, talvez fotos e cartas. Pediu que eu fizesse chegar às mãos dela – e eu prometi que o faria, embora não tivesse a mínima ideia de como e onde encontrar tal pessoa. Tive que me aproximar de seu rosto para poder ouvi-lo e confesso que o hálito de alguém nunca me pareceu tão desagradável. Vi nele a materialização de uma frase de um livro que eu havia lido certa vez, que falava de um homem portador de uma loucura voraz e impiedosa, possuído por algum demônio dissimulado, de olhar débil.
Três dias depois, depois de ter passado uma manhã e tarde ofegante e nauseado, recitando ainda a sua ladainha, percebi que Karsten se calara na cama ao lado, no meio da noite. Estava morto. Esperei o dia amanhecer e fui tomar as providências cabíveis. Por sorte, pelos préstimos do porteiro do hotel, que parecia estar acostumado a situações como aquela, havia uma funerária disponível na cidade, que me atendeu prontamente, cuidando do atestado de óbito e de outras providências burocráticas. Com o saldo que ainda havia na conta que Wilhelm abrira em meu nome, encomendei para ele um enterro sem maiores honras, a ser realizado naquele mesmo dia. Acompanhei o caixão coberto de pano de chita roxo ao pobre cemitério de Belterra, que sem dúvida não pertencia à era fordiana, e na companhia de um cão sarnento e solitário que por lá apareceu – ou ali habitava – prestei a Karsten Freitag as despedidas possíveis, em uma cova rasa. Não havia tempo para mais do que isso.
Assim voltei a Lutherhaus. Quando lá cheguei me informaram que Wilhelm tinha viajado para a Alemanha, onde passaria alguns meses. Quis saber se havia deixado algo para mim, mas nada havia. Sigrid, a velha secretária dele, apenas me disse que o Doutor entraria em contato comigo tão logo retornasse. Falei a ela da encomenda para Beatriz, nome que ela corrigiu para Leatrice, dizendo saber quem era e que faria contato com ela. Assim se passaram mais de dois meses. Um dia recebi um telefonema de alguém, em nome de Wilhelm. Era uma enfermeira, ou alguém com tal função, que trabalhava em uma instituição para idosos pobres e abandonados, mantida pela Congregação Luterana no sul do país. Ela me disse que havia uma vaga para assessor no tal asilo, mas quando lhe perguntei para qual função exatamente foi evasiva, falando apenas de prestar assistência espiritual aos internados, fazer contato com as famílias deles, resolver burocracias, coisas assim. Sobre o salário, foi ainda mais vaga, me dizendo apenas que eu teria ali cama e comida de graça. Agradeci, aquilo estava longe de ser aquela tarefa apostólica que o Doutor me prometera. Como eu insistisse na questão do vencimento, a mulher falou de uma quantia que era pouco mais do que um salário-mínimo, de maneira que recusei enfaticamente, avisando que iria procurar outro tipo de oportunidade.
Poucos dias depois Sigrid me avisou que eu podia levar a encomenda do Karsten até Lutherhaus, porque a destinatária estaria por lá às tantas horas. Lá fui apresentado a uma mulher mais ou menos de minha idade, loura e muito pálida, com longas tranças e vestida como uma crente tradicional, que esboçou o que me pareceu ser uma contração de desgosto na face quando lhe falei do envelope cinzento. Mas pegou-o de minha mão, sem qualquer entusiasmo e eu me despedi dela e da velhota de forma ainda mais contrafeita. Passei pela tesouraria da Congregação para receber umas diferenças das despesas da viagem que ainda me eram devidas, fui à cozinha beber um cafezinho e rever algumas das minhas irmãs de fé que lá trabalhavam e desci à rua.
De repente, vi atirado na lata de lixo da portaria da Lutherhaus, sem sequer ter sido aberto, o envelope que Karsten parecia especialmente Não sei se isso chegou a me surpreender, mas realmente esive empenhado em que fosse entregue a Leatrice. Em todo caso, resolvi recolhê-lo, não sei bem por que, talvez para dar àquilo um destino mais digno. Isso adiantou pouco, pois na mesma noite, voltado para casa, fui assaltado a caminho da rodoviária e me levaram a mochila onde tinha guardado o tal pacote. De toda forma, não tive mais notícias de Leatrice, mas na conversa com a velha secretária da Luther tiver certeza que era ela, de fato, a galeguinha de Passo Fundo, de quem eu ouvira falar antes.
E assim se encerra esta história? Não totalmente. Eu retomara minha vida, arranjara um emprego de conferente de cargas em uma empresa de construções e já me conformava com esta nova situação, longe da hierarquia religiosa e sem grandes chances de crescimento profissional.
Um dia me chegou uma carta, de ninguém menos que Popó, que agora estava em Roraima, pelo que vi no carimbo dos Correios. O gaguinho me surpreendeu pela fluidez de sua escrita. Ele se mostrava até competente naquilo, o oposto verdadeiro de sua comunicação pela palavra falada. Sobre o Reverendo Karsten, me contou que providenciara para ele um túmulo mais digno do que aquela cova rasa. Disse que resolvera “adotar” a minha já conhecida Genitália, para fazer com que ela levasse uma vida menos ou nada pecaminosa e que viviam juntos agora. Deu notícias gerais de sua nova vida e finalmente chegou ao ponto culminante: um convite para que eu e ele criássemos uma Igreja lá no lugar em que agora vivia, onde havia, segundo ele, não só muito dinheiro circulando como também muita gente, principalmente venezuelanos, precisando de assistência espiritual. E mais, que eu era talhado para aquilo, pois conhecia bem a Bíblia e tinha o dom da palavra. Já ele, que não tinha tais atributos, poderia cuidar da parte administrativa e “comercial”, acrescentando que Genitália já dava mostras de recuperação espiritual e estava se revelando uma discípula fiel e compreensiva a respeito dos ideais de uma empreitada como aquela, se destacando em arrebanhar novos fiéis. Ela poderia ser muito útil em tal sociedade.
Ele tinha até um nome em vista para tal empreendimento, Missão Sagrada do Gozo e da Alegria, adicionando à carta um versículo de Isaías onde tal expressão aparecia – pelo menos agora em português: os resgatados do Senhor voltarão e virão a Sião com júbilo; alegria eterna se derramará sobre suas cabeças; gozo e alegria os alcançarão e deles fugirão a tristeza e o gemido.
Fiquei pensando, de mim comigo mesmo, se isso não poderia ser uma proposta a considerar… A vida anda tão difícil.
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