E os sonhos? Sonhos são…

Yo sueño que estoy aquí / destas prisiones cargado, / y soñé que en otro estado / más lisonjero me vi. / ¿Qué es la vida? Un frenesí. / ¿Qué es la vida? Una ilusión, / una sombra, una ficción, / y el mayor bien es pequeño: / que toda la vida es sueño, / y los sueños, sueños son.

(Pedro Calderón de la Barca – La vida es Sueño)

Entre Cruz e Espada

Cheguei de avião pela madrugada, vendo totalmente deserto o aeroporto da grande cidade. Era preciso pegar o carro que eu tinha alugado prévia e impessoalmente e não foi difícil encontrar a agência locadora, também deserta. Mas ali tudo se resolvia através de máquinas. Máquinas para identificar rostos, apresentar documentos, transferir dinheiro e até mesmo dispositivos, espécie de gavetinhas retráteis, para entrega de chaves, documentos de trânsito e regras de operação, com a devida indicação do local onde eu poderia, finalmente, assumir o controle do automóvel a mim destinado.

O certo é que não vi sequer uma pessoa, um ser humano como eu, em todo este percurso. Mas o que importaria isso se o meu objeto estava, finalmente, pulsando suavemente sob o comando de minhas mãos e meus pés, em sua morna respiração de máquina, mais uma, a me servir?

Era preciso sair dali, mas havia um dilema a ser resolvido: qual estrada tomar? Sim, porque pelo que eu já sabia a respeito daquele lugar, havia sempre mais de uma opção. Podia ser pelas grandes rodovias, padrão de um mundo rico e indiferente aos desperdícios, com largas pistas de rolamento sinalizadas, limpas, com seus parques de merenda e seus postos de pedágio. Ou, quem sabe, alguma via colateral, mais estreita, nem sempre com acesso bem sinalizado, mas sempre de boa qualidade em seu piso. Por uma destas aí, pensei, poderei encontrar o país profundo, aquele a que talvez ainda “falta cumprir-se”, conforme quis um de seus poetas. Caminhos mais interessantes de se ver e estar, desde que não se quisesse mijar ou tomar um café, eis que aquelas vias são escassas neste tipo de recurso.

Com isso em mente optei pela via indicada pelas placas, a mais larga e com certeza mais movimentada. Era de manhã, bem cedo, hora de as pessoas se dirigirem para o trabalho. Seja para lá adiante, ou para cá, muito movimento, carros passando como se andassem por si próprios, com pessoas que eu não podia avistar. Um trem de ferro, ali chamado comboio, visto ao longe, colorido, parecia ir com duvidosa pressa, do nada a lugar nenhum. A mancha urbana agora atravessada me pareceu triste, despersonalizada, quase pobre e meio suja, uma “mancha” autêntica antecedendo, sem maiores sinais diferenciais, o ambiente rural. Eu não via vinícolas ou outras plantações, nem mesmo de fazendas de gado, apenas quintais relativamente grandes, cercados, com suas construções singelas, onde apenas raros porcos e ovelhas confirmavam a existência de vida. Aqui e ali, capões de eucalipto, que embora mais modestos do que as imensas e monótonas florestas da mesma espécie que se veem por aqui, mesmo assim revelam o apagamento de uma natureza que certamente já tinha sido pródiga em carvalhos e sobreiros.

O que dominava a paisagem agora, pra valer, eram os enormes “ventiladores” das usinas eólicas, que ali se contavam às dezenas, talvez mais, assentados no alto das colinas. Para os mais puristas, isso talvez maculasse a paisagem. Mas para mim, que os via como novidade, até acrescentavam sabor ao cenário, assim tão enxutos no seu desenho exato, seu movimento suave, seu etéreo zumbido. Um Dom Quixote, aqui ressuscitado, ficaria abismado com a dimensão de tais gigantes. Mas é certo que não seria eu a enfrentá-los, por me faltar qualquer inclinação, seja a Quixote ou Sancho. A proximidade com o litoral faz com que a matéria prima deles, o vento, não falte. Haveria por ali, quem sabe, um “armazém de vento” como alguém um dia perpetrou?

Nesta parte da jornada ainda não me era possível sequer imaginar que eu chegaria, em breve, a um cenário de fortificações, igrejas, mosteiros, aldeias outros monumentos históricos, alguns até com mais de mil anos de idade. Abundantes até agora, como obra humana, além dos silenciosos moinhos de vento, era as casas claras, esparsas, convencionalmente modernas, porém com marcante aspecto de abandono ou, pelo menos, de apagamento humano, pois todas me pareciam vazias. Via-se também um ou outro arranjo de prédios de apartamentos, que talvez não passassem de habitações de se dormir, apenas, tudo bem decente e conservado, porém de janelas fechadas e nenhum movimento seja de bípedes ou quadrúpedes em seu entorno imediato. Quintais bem cercados mostravam hortas de couve e fruteiras variadas, tudo muito bem cuidado, dentro de um traçado, por assim dizer, minimalista. Mas gente, que é bom… Onde estariam as pessoas, meu Deus?

As placas já avisavam sobre a chegada à velha cidade-monumento, mas parecia incrível que uma fortaleza medieval como aquela pudesse se fazer presente dentro de um cenário tão convencional e sem mostrar qualquer anúncio de si. Eu começava a procurar, à frente, os sinais da chegada a ela, até que encimando uma colina mais adiante, me dei com a linha recortada por seteiras de uma típica muralha. Mais uma curva da estrada e então a enxerguei por inteiro, cinzenta e chamativa contra um céu azul imaculado, a acompanhar a lombada da colina, como se dela fizesse parte. Muito estrangeiro, sarraceno ou castillano, passando por ali em eras passadas, deve ter pensado duas vezes e relutado antes de enfrentar as alabardas e as balestras dos habitantes locais tão bem amuralhados.

Naquela hora bem que eu queria ver e aproveitar tudo, tendo à mão um bom vinho da terra, bem acompanhado, para que, à sombra de alguma azinheira ou plátano, pudesse gozar cada instante daquele momento. Mas por ora não havia sombra, nem vinho, um naco do queijo da Estrela ou o denso pão que ali se encontra em qualquer padaria. Melhor do que isso, entretanto, seria estar lá dentro da velha cidade, mesmo de barriga vazia. Foi o que fiz em poucos minutos.

Passado o pórtico da muralha, sobre um piso de pedras polidas ao longo de séculos pelo pisoteio de pessoas, ovelhas e muares, vinha um recesso com formidável painel de azulejos, a evocar o ornamento urbano secular daquela terra. E eu segui adiante, a percorrer as vielas da Vila milenar, com suas duas ou três ruas longitudinais e seus becos transversais, suas casas sólidas, sem deixarem a modéstia de lado, com sua pintura imaculadamente branca, com os barrados, cantoneiras, portas e janelas em azul ou amarelo.

Poucas igrejas, talvez duas, não mais. Para as rezas em favor d’El Rey e contra os mouros e castelhanos já seria o bastante. As ruazinhas, de costumeiro fervilhar, pelo menos nesta época do ano, estavam extraordinariamente vazias. Onde foram parar as cabeças louras e ruivas, o porte avantajado das pessoas que vinham do Norte, a cacofonia babélica, coisas que eu esperava encontrar por aqui? A profusão de bares, cafés, pequenos restaurantes, as lojas de souvenirs dominadas pelos indianos ou orientais, como no resto do país: tudo vazio agora. Por que seria?

Eu me detive em um banco de pedra, em frente a uma das igrejas, para contemplar o conjunto. Lembrei-me de um texto de um viajante, que eu lera alguns dias antes, falando deste mesmo local, no qual uma dama se aproxima e puxa conversa com o narrador, também acolhido em um banco de praça, como eu. O nome dela era Clarinha. Mas agora não vejo Clarinha e nem qualquer outra pessoa, homem ou mulher, velho ou jovem, bem ou mal vestido, receptiva ou hostil, naquelas ruas. Alguma coisa está acontecendo – ou deixando de acontecer ali. Há um enorme mistério naquilo.

Não seria possível falar de tal cidade sem incluir suas floradas. Disso já havia me alertado o viajante de que falei e de fato elas estavam presentes.  Boa época para se estar lá seria a de agora: a primavera. Eu as vejo por todo lado, as maiúsculas Glicínias, lilases, em diferentes tons, escalando as fachadas brancas, com seu perfume suave e ubíquo. E outras plantas, também, muitas delas florais, das quais me é impossível declinar o nome, por me faltar conhecimento botânico.

Sobre um muro antigo, de pedra, um gato majestático, encimando um pedestal nodoso de glicínias, fita além muralha, dono de si mesmo.  Mas, onde a gente, as pessoas, the people, os seres humanos, a malta… Onde teriam se escondido?

Melhor seguir adiante.

Há outra cidade mais à frente que me disseram valer a pena conhecer. Para chegar até ela cabe, novamente, uma aposta na sorte, pois os mapas mostram alternativas viárias múltiplas no caminho, permitindo saborear a sonoridade vernácula ou moura de alguns de seus nomes. Agora a rota não mais se fazia através de uma pista larga e ornada pelos moinhos de vento, mas pelo almejado país profundo. A minha nova meta logo se apresentou e nela adentrei por uma via ampla e moderna, atravessando conjuntos de apartamentos e casas bem construídas e modernas, como já visto antes. Mas não se via, ainda, o que me trouxera até aqui, da mesma forma que as pessoas. Eis que aqueles mil e mais anos de história, a princípio, me figuravam repousar apenas dentro de algum museu, não dentro das ruas e praças daquela cidade que também parecia dormir, com suas ausentes pessoas.

O miolo histórico legítimo acabaria surgindo, entretanto, após uma esquina, como uma extensa praça, sem jardins, mas apenas um paço de terra clara batida, árvores gigantescas, caminhos calçados em pedregulhos cúbicos de cores diferentes. E ladeando tudo isso o grande mosteiro, com sua igreja enorme. Aqui, toda hipérbole seria necessária, a começar pela magna Igreja.

Igreja na qual se fez mister conhecer o túmulo da amante do rei que ali repousa em companhia de seu monarca, talhado em mármore branco, de tal modo que o cinzel do artista parece ter antes tecido do que cortado a pedra, em verdadeiras filigranas. Pedro e Inês, com o círculo permanente de visitas curiosas em volta deles – mas não neste momento – seriam como a Mona Lisa daqui. Com horror e fascínio contemplei as cenas da punição dos assassinos da pobre mulher gravadas em mármore, dos quais foi retirada a pele, ainda vivos, como se a desvesti-los dos pés à cabeça.

A Igreja é só o começo. Por uma passagem lateral se entra no Mosteiro que lhe corresponde. Aqui, com certeza, a sobriedade não reina e a austeridade, pelo menos no sentido material, passou longe. São incontáveis salas, salões, saletas, salinhas, quartos, recessos, alcovas, capelas, oratórios, vestíbulos, jardins, repuxos. E quando se pensa que acabou, tudo começa de novo, fazendo disso ser quase impossível uma descrição minimamente coerente e fidedigna. Formidável cozinha esta, toda revestida de pedra branca e polida, onde se preparava comida para centenas de glutões. Além dela, no andar superior, um vasto dormitório em arcadas. Há séculos, talvez, não haja mais quem cozinhe ou durma em tais lugares, mas tudo continua sendo exagerado e monumental.

Em tudo isso imperava um silêncio sepulcral, com exceção de algum arrulho de pombos, chilreio de pássaros ou zumbido de inseto. Aqui também não se via gente. Continuei sozinho em meu périplo, nesta passagem entre o território antes visto, dedicado à Espada, e este agora, consagrado à Cruz.   

Lembrei-me de ter lido sobre outro sítio, não muito distante daqui, onde outra grande Igreja, inacabada, se impunha na paisagem. Decidi ir até lá, embora já antevendo a continuidade do mistério da ausência de pessoas. Foi complicado pegar o caminho para lá, pelas indicações confusas e ausência de pessoas a quem eu pudesse indagar alguma coisa que me esclarecesse. Na base de tentativas e erros, mais erros do que acertos, acabei pegando a direção que me pareceu correta.

Mas resolvi parar logo adiante, pois havia uma bica d’água à beira da estrada e o calor reinante me trazia enorme sede e desconforto. Desci do carro, molhei meu rosto e braços, tirei a camisa e fiz o mesmo em meu corpo, para melhor me refrescar. Diante do silêncio e da modorra do ambiente me deitei na relva e me pus a refletir sobre os insólitos acontecimentos que me acompanhavam desde que cheguei ao país. Eu realmente não sabia explicar nada daquilo.

No meio da estrada vi algo que me chamou a atenção: um animal atropelado. Parecia ser uma raposa, um gambá, um bicho de pequeno porte. Ainda não cheirava mal, mas os moscardos já o tinham descoberto e zumbiam com avidez em torno do cadáver. O veículo que o colhera deixou, junto a seu corpo esmagado, um rastro de alguns metros, com o sangue do bicho servindo como tinta para registro, no concreto da estrada, de um perfeito desenho das estrias dos pneus. Era finalmente um sinal de presença de viventes, humanos pelo menos, porque para aquele animal foi apenas o aviso da morte.

Ao longe, uma grossa coluna de fumaça subia. Havia lá, pelo visto, vida humana, pois não acredito nessa história de fogo espontâneo. Porém, neste momento meus devaneios foram interrompidos, devido ao ruído de uma sirene, relativamente próxima. Meu primeiro pensamento foi – é gente que chega, finalmente! Mas logo soube que estava enganado.

Só então eu percebi, embora de forma gradual, que estava sonhando e que a sirene provinha de algum veículo, fosse ambulância, polícia ou bombeiros, que passava por perto. E eu me vi em minha velha cama, no meu tão conhecido quarto, na minha casa, no meu país de sempre. Mas a nitidez daquele sonho repercutia em mim. Sou daqueles que sonham muito, mas é raro que eu me lembre do enredo sonhado com alguma capacidade de relembrá-lo de forma precisa. Aqueles cenários de cidades, por exemplo, revistos com tanto detalhe, me eram totalmente familiares. Eram as vilas portuguesas de Óbidos e Alcobaça, que eu visitara (e admirara) intensamente em uma viagem ao país alguns meses antes. Por que elas estavam ali naquele sonho, com tanta nitidez imagética, como se fosse um filme, é claro, me faltava esclarecer. Haveria alguma relação entre aqueles cenários revelados no sonho, de lugares que eu havia amado intensamente e seu marcante contraste com a estranha e agoureira situação nele presente? Qual seria o real significado daquilo? Eu de fato estava cada vez mais confuso.

Pensando assim, acabei por abrir a janela do quarto, ao ouvir mais duas ou três passagens estridentes de sirenes na minha rua. Eram os bombeiros… Como meu apartamento fica em uma via que leva aos limites da cidade, situados a poucos km de onde eu moro, pude perceber que uma coluna de fumaça se erguia em tal direção. Isso me deixou estremunhado com a dúvida se haveria relação entre o que foi sonhado por mim e a realidade que eu agora assistia e confirmava.

No meio da rua, vista com dificuldade da distância da janela onde eu estava, uma pequena massa de pelos, vísceras e um rastro de sangue, parecia confirmar a irrealidade daquilo tudo. Ou, quem sabe, eu continuava sonhando?

Sim, eu ainda estava enfrentando outro pesadelo, assim me pareceu, quando de novo acordei com o ruido de uma sirene. Mas agora eu não estava em meu quarto ou em alguma cama, mas sim deitado em uma calçada, tendo um chão sujo em torno de meu corpo e um monte de gente me espiando de cima, quase tapando a luz do sol. Em tudo um cheiro de borracha queimada e de óleo diesel. Meu peito e minhas pernas doíam muito, eu quase não conseguia respirar. Uma doutora que mais parecia uma agente de polícia – ou talvez o fosse – me colocava uma fita vermelha no pulso. Dois sujeitos também uniformizados me pegaram no chão, até com certa delicadeza, e me deitaram em uma maca, conduzida a uma ambulância. Mas o ruído daquela sirene continuou a me penetrar como um punhal, cada vez mais alto. Acho que desmaiei nesta hora.

Acordei mais tarde em um ambiente branco, cheio de luzinhas coloridas e apitos, com a sirene finalmente emudecida. Não via ninguém por perto e não aparecia qualquer pessoa por mais que eu chamasse. Até que eu percebi que eu perdera a voz, apenas mexia a boca e tentava articular a palavra, mas da minha garganta não saía qualquer som.

Daí em diante não vi e nem ouvi mais nada.

 ***

Uma Jornada Particular (Cinema Transcendental)

Já não sou capaz de me lembrar como cheguei até aquilo. Parecia um labirinto, mas ao mesmo tempo era possível dali ter uma ideia do todo o conjunto, aquele enorme salão, dividido em partes menores, onde coisas aconteciam e podiam ser assistidas. Parecia um teatro, aliás, múltiplos vários deles, com pequenos palcos, com cenários diferentes e personagens também. Tudo era estranho, mas ao mesmo tempo parecendo familiar, estranhas sendo as cenas que ali se mostravam. Para mim pelo menos. Eu me via como participante direto da ação, mas em outros momentos as coisas aconteciam e eu me via dentro delas, como se fosse um observador externo. De toda forma, sair daquilo eu não podia, ou não sabia como fazer. O jeito era seguir em frente. E assim o fiz, caminhando por um piso de paralelepípedos regulares, mas que se amoleciam debaixo de meus pés quando caminhava, como se fossem feitos de borracha.

Para começar, aquela festa infantil, na qual uma garota, com tranças negras, me pegava pelo braço, depois pelas mãos e dançava comigo, ainda uma criança também, completamente intimidada pela presença feminina tão próxima. Uma sanfoneira insistia, repetidas vezes, na mesma melodia habitual neste tipo de festejo. Mas tudo se dava de um jeito simples, como se não houvesse outra maneira possível de tais coisas acontecerem. Aquela cena, logo vi, tinha a ver com uma dificuldade que arrastei por anos a fio, relativa à timidez e dificuldade de comunicação que me assaltava quando havia garotas por perto. Digo garotas porque quando me tornei adulto creio que conseguir, aos poucos, mas não de forma muito competente, superar isso.

Mais tarde, eu vestido de padre, em ambiente festivo e junino. Como parte da festa, eu não rezava missa nem casava ninguém, mas andava no meio das pessoas, que eram crianças da minha idade, como um pequeno pavão, orgulhoso das minhas vestimentas eclesiásticas. Dali fui devolver a roupa à sacristia da igreja do bairro, emprestada que me fora por uma das beatas que por lá dava expediente. Na rua uma chuva se armava, mas quando começou a cair de verdade, me dei conta que que esta não chegava a me molhar, o que me fez pensar ser o protagonista de um milagre. Dei graças ao bom Deus por ter me proporcionado isso, algo que para mim seria uma indicação de que uma carreira religiosa, com a qual eu então sonhava, assim tão bem começada, de fato me cairia bem.

Depois uma viagem de ônibus, por estradas de chão, em meio a montanhas e florestas. Em algum lugar do caminho, antes de qualquer parada regular do trajeto, o veículo se detinha por alguns momentos, para que, em uma cena aparentemente habitual naquela viagem, algumas pessoas recolhiam donativos e esmolas dos passageiros. As marcas de pobreza e também de deficiência física eram evidentes, com dois ou três de seus membros, entre crianças e adultos, mostrando pernas e braços totalmente atrofiados, o que os fazia rastejar no chão ou mesmo permanecerem em cima de toscas cadeiras de rodas. Alguém comentou que era uma família na qual eram comuns os casamentos entre primos e até mesmo entre irmãos.

Em um corte súbito, agora me via dentro de uma cozinha antiga, escura, com as paredes cobertas de fuligem. Em um fogão de lenha, enorme, eram cozidos variados tipos de comida, com especial presença de uma panela de carnes, mal divisada em meio à fumaça, mas que apesar da aparência escura, cheirava de maneira atrativa. Em todo daquele fogão, cozinheiras negras se agitavam em grande azáfama, com seus aventais ensebados em perfeito acordo com o ambiente de tal cozinha.

Em momento seguinte a viagem de ônibus já chegara ao destino. Chovia muito e eu agora chegava à casa de parentes no interior. Era a primeira vez que eu estava ali e o meu contato com o ambiente externo à casa deve ter demorado alguns dias para acontecer, pois chovia sem parar, ensejando mesmo forte temos de minha parte, ao ouvir de um adulto algo como se isso não seria o fim do mundo, que se acabaria em água e não em fogo como está nas profecias. Eu não sabia de nada disso, nem de água nem de fogo, mas tais palavras me impressionavam profundamente. Quando finalmente pareou de chover fui autorizado em andar um pouco pelos arredores e no córrego em frente pude assistir pela primeira vez uma pescaria, no caso aparentemente muito bem sucedida, pela fieira de bagres gordos que um rapaz levava consigo.  

Peixes, chuva, água. Deve ser por isso que logo depois eu me via em um quintal, de uma casa velha e triste. Apesar de tudo, um ambiente familiar. Uma horta de imensos pés de couves, maiores que um adulto, entre os quais galinhas passeavam e pastavam, tranquilas. Dentro de um reservatório de água, certamente utilizado para regar a horta, um objeto se via no fundo, bem parecendo um osso de galinha, porém repousando em posição perfeitamente vertical, como se estivesse fixo ali. Mas isso se desfez ao agitar da água com as mãos, com que o objeto rodopiou, ficando deitado no fundo cimentado. Em volta, o vento soprou e os pés de milho, em total apogeu de suas espigas balançaram alegremente e encheram o quintal com seus sons de palha e seu cheiro benfazejo. 

Dali, não sei como, fui parar em um passeio de barco, junto com meus irmãos. Apenas a gente, mais ninguém. Eu era o mais velho e nenhum de nós sabia nadar. É bem verdade que o açude era pequeno e talvez pouco profundo, mas mesmo assim aquilo parecia assustador. Eu temia e certamente meus irmãos também a bronca que nosso pai nos aplicaria – ou bem pior do que isso. Quem nos colocara naquela situação fora meu avô, que empurrara com o pé a pequena canoa onde nos encontrávamos, e agora se ria do nosso medo na beirada. O final foi feliz, com meu pai entrando na água até acima dos joelhos e trazendo o barco até a margem. Felizmente não recebemos nenhuma zanga, da mesma forma não sendo atingido o verdadeiro autor daquela façanha estúpida.

Depois, uma família, a minha, num passeio de domingo. Estreava-se um carro novo, um daqueles automóveis americanos dos anos 50, que jocosamente era às vezes chamado der “porta-aviões”. Oldsmobile, Buick – um nome assim. Não que fôssemos ricos, o carro já teria mais de 10 anos de uso e era comum que a classe média possuísse um como aquele, em tempos que a indústria nacional ainda não tinha inventado os Fuscas e os DKW. Estacionamos em uma pequena colina às margens de uma estrada principal, aparentemente para apreciar a paisagem. Nós, crianças, descemos do carro e começamos a brincar e sondar o ambiente por ali. Nossos pais ficaram dentro do veículo, dando a perceber que havia visível tensão entre eles. De repente, minha irmã menor se pôs a chorar, dizendo estar sendo maltratada com palavras por outro irmão mais velho, um acontecimento comum entre nós. A mãe sai do carro em seu socorro, momento em que o pior acontece: nosso pai também sai, aos gritos, aplica um tapa ruidoso no mais velho, determina a todos que entrem no carro e, ainda alterado, põe o veículo em movimento pela estrada precária até o asfalto, levantando poeira e ringindo os pneus no pedregulho do caminho. 

Era ainda uma cena de estrada, viajávamos ao longo de um tedioso dia, rumo a um destino longínquo. Em certo lugar da rodovia havia objetos claros, como tijolos, espalhados pelo chão. Eram barras metálicas que haviam caído de um caminhão, tombado no fundo da ribanceira ao lado. Meu pai desce para ver o que havia ali. Minha mãe nos retém dentro do carro, certamente temendo que fôssemos presenciar alguma cena forte. Em poucos minutos o pai volta, dizendo que não havia ninguém dentro do veículo, que provavelmente já tinham sido socorridos, mas que havia marcas de sangue. A mente infantil guardou aquilo como um presságio funesto.

Em uma cidade próxima paramos para almoçar. Na lanchonete ficamos sabendo que na mesma rua, logo acima, havia uma espécie de milagre acontecendo. Dali mesmo onde estávamos era possível ver um trecho de maior movimento na rua, seja de carros ou pessoas. Fomos até lá para conhecer a novidade: dentro de uma casa modesta pessoas se aglomeravam em torno a um catre antigo e desmazelado. Ali, segundo nos informaram, morrera há tempos uma mulher, entrevada durante anos, cuja vida teria sido de total santidade. E agora, ou pelo menos em tempos recentes, na parede por cima da cabeceira, um desenho se formara, como se resultasse da interação entre a caiação e a umidade, figurando a silhueta uma santa. Um simples contorno, a lembrar uma imagem com a cabeça coberta por uma túnica ou véu.  Mas no lugar onde ficariam os olhos uma gota de sangue tinha também aparecido. E mais nos informaram que aquilo era recente, mas que muitas pessoas, assim como nossa família, estavam chegando até ali, às vezes até vindas de lugares remotos, até da capital. Constava também que já havia milagres acontecendo. Ainda ontem um aleijado voltara a andar.

Ainda uma cena de estrada, aparentemente não era a mesma viagem que nos trouxera a santa e o caminhão tombado. Estava toda a família junta, de novo. Paramos para apreciar a paisagem ou, como a gíria familiar considerava, para ver se o pneu de trás estaria furado, na verdade um código para resolvermos certas necessidades fisiológicas. Meninos para um lado, mãe e meninas para o outro. O pai ficava para o arremate, como um guardião da honra e da pureza de todos. Crianças, principalmente meninos, resolvem estes problemas de maneira rápida. E tendo me aliviado fui andar por ali, sem perceber que o caminho tomado na verdade me levava ao outro lado do terreno baldio. E logo ali, porém sem me ver, estava minha mãe agachada, com a saia puxada até a cintura, a se aliviar também. Aquela visão me foi extremamente perturbadora, bunda e pele tão brancas assim reveladas. Eu nunca havia visto nada como aquilo, com aquela mãe extremamente pudica, que nunca se apresentara a nós em trajes íntimos ou mesmo de maiô. Chocante, aquilo, simplesmente, a me gerar uma culpa que persistiu por dias a fio.

Depois veio a descoberta do mar. Naquela cidade grande a maior novidade tinha sido, até então, a escada rolante. Mas havia mais. Depois de rodarmos algum tempo por uma paisagem plana e repleta de prédios e fábricas, começamos, finalmente, a descer uma enorme serra. Lá no fundo apenas um nevoeiro cinzento, mas aqui e ali alguém dizia: é o mar! E logo se repetia: o mar, o mar! Mas ele ainda estava longe, tivemos que atravessar florestas e morros sem conta, depois uma feia periferia cinzenta, para encontrá-lo, finamente. E o mar não era nada que eu pensava, embora fosse uma massa impressionante de água, orlada por uma faixa de espuma amarelada. Mas onde estavam as ondas, a areia branca, os coqueiros que fatalmente eu associava como obrigatórios em seu ambiente natural? Decepção maior não poderia haver: o mar era cinza, a paisagem também, e havia em tudo uma atmosfera pesada e pegajosa, cheirando a algo que me pareceu desagradável, a que os adultos designaram como maresia.

E tudo isso ia se passando como um filme, colorido e muito nítido, alegre e ao mesmo tempo um tanto angustiante, quando de repente, uma mão fria me percorreu a nuca. Era a empregada que tínhamos em casa na infância, que tinha tal costume maldito, ao avisar a mim e a meus irmãos que era hora de ir para a escola.

Acordei.

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