O crido e o havido

Do justo o certo, do certo o crido, do crido o havido. […] Pois então o senhor mesmo me diga: o que foi que ele foi fazer? Que saiu daqui, em encoberto, na vagueação, por volver meses, mas com ponto de destino… (J. Guimarães Rosa – O Cara de Bronze)

Meu nome é Antônio, mas meu médico, não sei bem porque, resolveu me apelidar de Porfírio. Ou melhor, eu no começo nem sabia de onde vinha tal apelido, mas quando descobri, achei até bem-posto. Depois eu explico.

Tudo começou há uns bons anos atrás. Eu era moço e aliás muito bem disposto para cuidar das coisas que meu pai, que Deus o tenha, me deixou. Umas terras, algum gadinho e a esperança que as coisas sempre iam melhorar, com a chuva, com a sorte, e mais o trabalho de quem nisso bota fé. Eu tinha tudo, mas um dia me faltou o que não podia faltar: um pouco de sorte. Quem é que manda no corpo da gente? Esta máquina complicada com seus mil nervos, músculos, juntas, tripas, sangue, este sarapatel que se ajunta dentro da gente e que só os médicos – e muitas vezes nem eles – dão conta. Para não falar do que encobre tudo isso, a pele, que parece um para-raios, sempre a recolher as influências de fora e de dentro da gente. Cruzes!       

Mas eu dizia: eu era moço e o balaio da minha vida, com suas tantas laranjas, andava cheio até as bordas. Levantava cedo, ia para a lida no campo e voltava para casa já na boca da noite, lamentando que o dia fosse tão curto. Porque, para mim, de bom tamanho estaria até se fosse maior. Mas um dia comecei a notar que a pele me ardia além da conta, parecendo que correram uma lima das grossas em cima de mim, total. Efeito do sol achei que não fosse, porque desde criancinha o que mais fazia era receber seus raios chapados nos braços, na testa, na nuca, onde quer que fosse terreno de pele deixado a descoberto. E não parou nisso, comecei também a botar bolhas por todas essas partes. E essas não doíam, mas vazavam ao ponto de me enxarcar a camisa e fazer grude. Até eu tinha nojo.

Tentei andar coberto, camisas de mangas longas, lenços no pescoço.

Fiquei parecendo uma freira – ou alguma mulher das estranjas, nem sei.  Mas aí o calor me matava; eu não dava conta de andar daquele jeito pelo dia a fora. O jeito era ir ao médico. E fui.  

Doutor Hermógenes me recebeu muito bem. Ele era especialista em doenças da pele e eu já fui direto nele, decidido a não perder tempo com intermediários. Ficou me examinando uma hora inteira, usou até uma lente para escarafunchar melhor, raspando aqui e ali com uma espécie de faquinha. Era um cara atencioso, de um tipo que é difícil se encontrar hoje em dia, principalmente entre os médicos. Pediu um tantão de exames, de sangue, de urina e até mesmo da farofinha que ele me recolheu na pele com sua raspadeira. Quando voltei uns dias depois, para ver o resultado de tudo, ainda pediu mais um monte de testes. Eu já estava quase desistindo daquilo. Mas na terceira vez que lá fui, me disse que tinha uma boa notícia: havia um diagnóstico. Mas que eu não me animasse muito, pois havia coisa ruim também: aquilo era uma doença sem cura. 

– Mas sossegue, meu rapaz, você pode controlar isso aí com bons cuidados com seu corpo. 

E assim me explicou tudo, tim-tim por tim-tim. Era tão complicado que eu nem sei contar direito, uma doença do sangue, mas não dessas que a gente pega quando leva uma má vida, ele me tranquilizou.  Havia qualquer coisa errada com a minha hemo-não-sei-o-quê, que tinha uma química atrapalhada – foi o que entendi – na qual o ferro estava alterado. Eu nunca soube que dentro da gente tinha um metal assim, cruzes! Aquilo era genético, me veio como herança de família. Miséria, pensei, nunca tive pai ou parente rico para deles herdar alguma coisa e me vem uma porqueira dessas. E mais, que aquilo me impedia de me expor ao sol e tudo o que se podia fazer era evitar isso, ao máximo. O nome da tal quizumba era porfiria. E foi assim que ele me botou o apelido de que falei antes.

Não gosto de apelidos, mas aquele doutor Hermógenes era tão gente boa que acabei aceitando aquilo. E quando eu ia visitá-lo, já na porta do consultório me chamava, alto, para todo mundo ouvir: Porfírio Belizário de Albuquerque! Eram meus sobrenomes verdadeiros – e eu bem que achava graça naquilo.

Mas tinha aquela coisa ruim que era passar o resto de minha vida coberto, como um monge – ou freira – penitente. Além de usar na pele, por obrigação, uma montoeira de cremes que iriam acabar fazendo de mim um tipo de rosca ou sonho de padaria.  Mas me conformei, era o caso, de fato, de arranjar um jeito de mudar minha vida.

A primeira coisa que fiz foi desistir de ser fazendeiro. Como é que eu podia olhar gado no pasto e gente no eito sem poder sair ao sol? Tive sorte, sem que eu esperasse apareceu um sujeito que me comprava tudo, por um bom preço. Depois descobri que quem levou a melhor foi ele mesmo, ou a empresa em que ele trabalhava, porque aquelas terras estavam perto demais da cidade e iam fazer ali um desses condomínios para o povo endinheirado. Mas aí já era tarde e não me chateei demais, pois precisava ajeitar minha vida também. Comprei uma casa na cidade e fui viver minha sina de prisioneiro, ou de pessoa temente, vejam só, não a Deus, mas aos raios do sol. 

Se eu insistia em sair de casa a irritação da pele e as bolhas só pioravam. Decidi me aquietar de vez. Mas sempre me dava a sapituca de querer sempre saber notícias do mundo lá fora. Foi então que apareceu o Ivo.

Ele, nos seus dezesseis ou dezessete anos, era meu vizinho de rua, sujeito curioso, sempre dava com ele me espiando por cima do muro, mesmo eu todo o tempo dentro de casa. Um dia perguntei: quer trabalhar para mim? Ele parecia já ter a resposta pronta. Antes que eu acabasse de perguntar já me veio com um sim de todo tamanho. Nem quis saber que tipo de tarefas eu tinha para ele. Aliás, nem eu sabia muito ao certo. Mas para começar mandei ele ir até o doutor Hermógenes para ver se ele tinha alguma novidade em relação ao meu tratamento. Voltou meia hora depois:

– O doutor disse que não tem nada de novo por enquanto. Mas parece que não era para o senhor o recado, falou de um tal de Porfírio. 

Agradeci, rindo por dentro do engano. Mas o diabo do rapaz fez um acréscimo que me fez rir mais ainda:

– Mas deixa eu lhe contar uma coisa, moço. Peguei ele fazendo uma coisa esquisita. Resolvi espiar pela janela e ele estava com uma mulher, a saia dela levantada até a cintura e ele espiava as pernas dela com uma lente deste tamanho… 

Expliquei para ele o que era um dermatologista e como este tipo de médico trabalhava. Mas o Ivo não pareceu botar muita fé em minha conversa. Deixei para lá. A tarefa seguinte foi mandá-lo ao mercado, com uma lista de compras. O diabo parecia ter asas nos pés, voltou menos de uma hora depois, com o pacote nos ombros e mais novidades.

– O senhor sabia que estão vendendo carne de cavalo por lá? Vi também umas pelancas que para mim eram de algum cachorro morto. Pois é, estão vendendo…

Deus do céu. Era o caso de se botar fé naquilo? Mas nos dias seguintes as novidades continuaram. 

Mandei-o a Prefeitura, para pegar as guias de imposto da casa:

    Quando passou pela porta da Igreja:

    – O padre não está mais lá. Largou a batina e foi casar.

    No Fórum, para pegar uma certidão:

    – O senhor sabia que agora pode casar mulher com mulher e até homem com homem?

    E mais:

    – Dizem que vai vir uma chuvarada forte, com trovoada batida e uma ventania doida, com um tanto de areia pra cima de nós. Estão falando que é o caso de nós tudo se mudar daqui.  

    Fiquei um pouco irritado com tanta imaginação. Evidentemente aquilo tudo só podia ser mentira. Mas para uma pessoa reclusa como eu, sem poder sair de casa, sem maior contato com o mundo, seria até divertido. Aí comecei a querer que ele me trouxesse qualquer coisa que acontecesse na cidade.

    – Um homem xingou um Santo lá na vila e então se abriu debaixo dele um buracão de todo tamanho e ele agora está lá pedindo pelo amor de Deus para tirarem ele.

    – O ‘Ebezener’, dono da igreja dos crentes, botou fogo no salão lá deles e deu um tiro na cabeça em seguida.

    – A mulher do motorista do ônibus da escola ficou com ciúme e cortou os documentos dele com uma faca. Tá presa agora.

    – Dizem que lá na prainha agora pode nadar pelado. E tá cheio de gente para apreciar aquilo. E já deu até polícia lá para vigiar o povo.

    – Tem um montão de gente chegando de um lugar que eles nomeiam de Valenzuela, parece que tá todo mundo com fome, querendo tomar as coisas da gente.

    Aquele ali, sem dúvida, sabia de coisas além da conta. Ouvia o galo cantar, mas não sabia aonde – e nem se era galo mesmo. E as novidades não paravam de chegar, em verdadeira enxurrada. Eu me divertindo.

    Um dia: 

    – Encontrei o Doutor Hermógis na rua e ele me disse que descobriram um remédio danado de bom para o senhor. Vai lhe curar.

    Seria bom se fosse verdade, mas eu já estava conformado, com aquela doença e com a companhia daquele patife. Além disso, não era questão de acreditar nas lorotas que aquele sujeitinho me trazia. Era diversão mesmo, deixei correr. Afinal, mais vale uma alegria de quando em vez do que uma vida atolada em seriedade bovina. Já me basta a falta que o bom sol me faz.  

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