Naquela noite, entre as crianças presentes na casa dos avós ninguém parecia conseguir dormir direito. Afinal havia chegado do interior, onde a família tinha raízes, trazida por um portador, uma caixa preta, de madeira envernizada, nem muito grande nem muito pequena, de misterioso conteúdo. Parecia uma daquelas caixetas de goiabada que o avô periodicamente recebia de seus parentes da terra. Mas era muito grande para tanto. Era pequena, todavia, para conter, por exemplo, um móvel ou uma ferramenta, além de leve demais para conter queijos, frutas ou mesmo livros.
Poderia ter sido um acontecimento normal a chegada de tal objeto, mas como se sabe, as crianças, assim como os animais, possuem uma espécie de sexto sentido e sensibilidade capazes de captar a natureza de acontecimentos que não se anunciam claramente à primeira vista. Além disso, puderam perceber que os adultos da casa, longe de encostarem aquilo em um canto qualquer da casa, ou o abrirem de imediato, colocaram tal objeto sobre a mesa da sala, mantendo-o fechado, em um gesto que pareceu às crianças dotado de severidade e até de inusitado cerimonial. Aquilo foi o bastante para despertar-lhes um misto de alegre curiosidade, misturada com um quase incontido temor.
E assim a tal caixa escura, ficou sobre a mesa da sala, pela tarde a fora, entrando pela noite, desencadeando mudanças sensíveis no cenário. Com efeito, o ambiente da casa, naturalmente ruidoso e alegre pela presença dos netos, de repente se demudou em silencioso respeito por parte dos adultos. E mesmo as conversas, risos e brincadeiras de pique-esconde dos pequenos passaram a ser reprimidas com olhares especialmente severos e sinais admoestatórios de contenção, por parte dos avós e das tias.
Havia naquilo, realmente, algo de extraordinário, estranho, quase sobrenatural, que longe de intimidar, deixava as crianças excitadas e ansiosas em desvendar a cadeia de segredos que tão de repente havia se instalado na casa. Indagar dos adultos não adiantava, muito, pois pareciam mais preocupados em esconder do que em revelar o que ali se sucedia de fato. Armou-se, assim, um conciliábulo infantil, longe das vistas dos adultos, com opiniões frenéticas e desencontradas sobre a misteriosa caixa.
Uma delas, mais afoita e otimista, augurou que ali talvez estivesse um presente para os netos, mas foi logo contestada pelas demais, mais velhas e mais sabidas, que isso seria impossível, por não ser época de Natal nem de aniversários por ali. Outra delas, uma das mais velhas, por sinal, estimou que ali talvez estivesse um penico ou outro objeto íntimo, a ser utilizado por uma tia velha que residia em um quarto anexo da casa. Mas, neste caso, por que raios não teria sido aberto e extraído da caixa logo que chegou, para continuar exposto como se fosse um obscuro troféu na mesa da sala? Houve também a hipótese de que talvez se tratasse de um instrumento destinado a um dos tios, que era topógrafo de profissão e que no momento estava em trabalho fora da cidade. Mas por que, então, não o teriam colocado no quarto do tio e sim sobre a mesa da sala, ainda mais tratado como se fosse uma peça cerimonial, que além do mais contrastava com o ambiente normalmente alegre e barulhento da casa dos avós?
De fato, era tudo mistério ali.
A ideia de que havia algo de circunspecto naquilo tudo trouxe-lhes a impressão que ocorria no cenário a presença indesejada de alguma desgraça ou outro tipo de coisa realmente indesejada. Mas como conciliar isso com as dimensões de um recipiente que não chegava a ter o cumprimento de um guarda-chuva, com apenas dois palmos de largura e que poderia ser confundido facilmente com algo bem mais prosaico, como uma caixeta de goiabada, por exemplo?
A ansiedade só aumentou quando as crianças viram que o telefone da casa, recém instalado, somente utilizado para chamadas muito esporádicas, apenas naquele final de tarde já tinha sido acionado, para fazer ou receber chamadas, em pelo menos uma dúzia de ocasiões. Perceberam, além disso que alguma coisa estava sendo combinada, com parentes e amigos, para a manhã do dia seguinte.
Mas, o que seria?
Neste momento, o conciliábulo já determinara a um ou dois de seus pares que montassem uma espécie de vigília ao pé do telefone, para apurar informações mais detalhadas sobre o mistério que se instalara na casa. E elas não demoraram a chegar:
– Ligaram para o Padre Álvaro agora.
– A prima Glorinha falou em levar flores.
– Um tal de Lourival disse que a mãe dele não poderia ir porque é muito impressionada com essas coisas.
– Agora a vovó está ligando para alguém que vende flores e combinando uma entrega…
– Entrega? Para onde?
– Xi, não consegui saber, saí de lá correndo para vir contar a vocês, vou voltar para ver se pego mais alguma coisa.
– Caramba, mas você é lerda mesmo…
Consultada Amélia, a velha empregada da família, que alternava junto às crianças momentos de cumplicidade e maldade, só fez piorar as coisas: – arredem de mim e deixem de ser curiosos. Não é assunto que interessa a vocês. Não percebem que na vida tem coisas que só os adultos devem saber? E que a criançada tem mais é que conhecer seu lugar? Arre!
A chegada, na boca da noite, do tio Tonico, que trabalhava agora em lugar distante muitas horas de viagem, ultimamente ausente na casa, conseguiu adicionar ainda mais notas de mistério àquela novela que já era substancial, mostrando que o que se passava ali era algo muito além dos acontecimentos normais da família. E as coisas mais ainda se complicaram quando viram o avô fazê-lo experimentar camisa e gravata guardadas meticulosamente no guarda roupa do casal, apesar dos protestos do recém-chegado.
Isso para não falar do telefone, que saíra de sua mudez habitual e continuava a receber e realizar incontáveis ligações.
A habitual roda de rouba-monte ou de sete-e-meio, que geralmente encerrava o dia de interações entre adultos e crianças na época de férias naquela casa foi suspensa, sem maiores explicações. E a esta altura dos acontecimentos os pequenos já tinham percebido que qualquer indagação aos adultos, em busca de esclarecimentos, seria supérflua.
O jeito era ir dormir.
Mas surgiu um problema. Como eram cinco crianças aproveitando as férias na casa dos avós, não havia quartos nem camas para todas elas, o que fazia com que duas ou três delas dormissem em colchões espalhados no chão da sala de jantar. Tal situação era considerada uma espécie de honraria, destinada aos mais velhos e mais bem comportados, que em tal localização acabavam usufruindo de direitos especiais, por poderem conversar e até armar alguma brincadeira nova, até mais tarde. Mas com a tal caixa escura e misteriosa em cima da mesa, cheirando a crime e desgraça, quem disse que tal prerrogativa era agora disputada? Pelo contrário, o que desejavam todos era se verem longe daquilo. E assim aconteceu, malgrado das tias, que assim tiveram seus aposentos invadidos pela turba completa de sobrinhos, agora totalmente ansiosa e ainda por cima profusamente loquaz.
Na manhã seguinte havia mudanças no ambiente da casa. O avô vestia camisa social com gravata, com o correspondente paletó repousando em uma cadeira. A avó e as tias vestiam roupas de domingo, de se ir à missa. Amélia já tinha separado roupas mais formais para as crianças. A caixa escura, enquanto isso, repousava solenemente na mesa da sala.
As crianças, na mesa do café, não pareciam atentas a tais acontecimentos. Maurinho, o mais novo, aparecera com uma cigarra meio morta, meio viva, recolhida no quintal, ainda molhada pela chuva da noite, tremelicando e mexendo as perninhas. A questão principal agora era se ela sobreviveria, ou não, com as apostas convergindo para a sobrevivência. Ninguém parecia mais se lembrar da caixa escura, agora totalmente ignorada na mesa da sala. Tiveram que abreviar a discussão, porque Amélia insistia em que vestissem logo as fatiotas domingueiras.
O avô interrompeu o solene conclave sobre a vida e a morte da cigarra, para pedir atenção a um comunicado importante. A custo, entre pedidos de silêncio da avó e das tias, disse aos netos que naquela caixa estavam os ossos de sua mãe, enterrada anos antes na cidade natal e que agora eram trazidos até a cidade deles para se juntarem aos restos do marido, que ali morrera anos antes.
A palavra ossos provocou algum frisson e mudança na atenção dos pequenos, pouco duradouros, entretanto.
Continuando, ainda de forma solene e fora do padrão habitual de sua interação com os netos, o avô avisou que toda a família iria ao cemitério onde uma pequena cerimônia aconteceria, com a presença do padre Álvaro, do filho Antônio que viera de tão longe, além de alguns parentes, para que, finalmente, o casal se reencontrasse.
Os pequenos, dos quais apenas a mais velha conhecia, mesmo assim de passagem, tal tipo de logradouro, bem que se na animaram com o inusitado passeio, entendendo finalmente a determinação da avó e de Amélia para que se aprontassem.
Maurinho, o coletor de cigarras moribundas, deu o toque final e necessário àquelas horas de espera ansiosa, embora naquele momento já quase esquecidas.
– Ela está naquela caixa com um com cobertor? Porque acho que com esta chuva vai sentir muito frio.
E alegremente foram vestir suas roupas de domingo, já antegozando as delícias de uma manhã tão promissora. Não sem antes o indefectível Maurinho dar o tom para a auspiciosa manhã que se augurava:
– Que tal a gente levar esta cigarra para enterrar junto com a bisa?
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