Jornada pelas Montanhas de Minas – Março 2025

Que tal um passeio por montanhas de Minas, suas estradas com curvas a perder de vista, à sombra da mata atlântica e na extensão de seus campos rupestres, acolhendo ainda, em tal panorama, cidades históricas e repletas de monumentos barrocos? Tudo isso com acesso relativamente fácil, a partir da Capital, BH. Vamos lá! Mas também é caso de nos prepararmos para que o deslumbramento não seja apagado por surpresas menos agradáveis. Viajemos, então, através de uma parceria literária, além de amorosa, entre eu, Flavio e minha mulher Keta, tentando fazer um contraponto entre uma visão mais crítica (minha) e afetiva e construtiva (dela), como é habitual entre nós. Aqui vão assim, nas linhas seguintes, nossas impressões sobre tal viagem, as minhas (Flavio) em texto normal e as dela (Henriqueta) em itálico.

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Sim, Flavito, uma expectativa muito gostosa em retornar nossos périplos por terras, chão, céu e montanhas, tão gerais e mineiros, além de retomarmos, em nossos corações, momentos já vividos com tanta alegria e palpitação. Gosto de viajar contigo, tua curiosidade, conversas interessantes, carinhosos momentos. Vamos nessa!

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E será em busca da Cordilheira que partiremos.Talvez seja exagero chamá-la assim. Suas alturas máximas pouco passam de dois mil metros e sua extensão – assim mesmo descontinuada em alguns trechos – não chega a mil km. Além disso, não serve de divisa a países, nem mesmo a estados, já que percorre, no sentido Norte-Sul, apenas uma parte da área central de Minas Gerais e da Bahia, não chegando a cortar seus territórios de ponta a ponta. Sem dúvida, entretanto, a Serra do Espinhaço, tem presença marcante na vida de muita gente, mesmo que muitos de seus habitantes nem se deem conta que ela existe. De toda forma, é considerada pelos geógrafos como a única real cordilheira do Brasil.

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Gosto demais de me inteirar das nuanças e relevos desse Planeta tão belo, aliás sempre gostei da tão saudosa geografia, que me fazia encantada, imaginando os tantos rios, desde o Amazonas e seus tantos afluentes, o Chico pela sua bela missão de ligar norte-sul desse intenso país e da bacia Platina, nascida no Brasil, mas que liga, ou separa não sei, nossos vizinhos ao Sul. Sem falar dos ditos acidentes geográficos, que de acidentes não têm nada, caprichos da natureza se fazendo e refazendo ao longo de bilhões de anos, sempre se transformando, com requintes inimagináveis, com certeza para nos encantar.

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Grandes momentos desta viagem foram alguns encontros que tivemos. Com Claudia e Jesus, Lucia e Eugênio, meus cunhados; com Favita, tão querida; com Beatriz e Luiz Prata, tão amigos. Para não falar de Nanda, Alex e sua turminha. Nosso périplo montanhoso começou na casa dos primos do Flavito, Xico (como ele próprio escreve) e Patrícia, em sua casa no Jardim Petrópolis, em Nova Lima, sobre um deslumbrante mar de morros. Ali assistimos um lindo pôr do sol, partilhamos troca humana valiosa, falamos de coração sobre nossas caminhadas e aprendizados. Gostaria de declarar o grande prazer de estar ali, sentados naquela varanda que nos inspira acolhimento, usufruirmos tão grande amizade. Muito grata Patrícia e Francisco Marcos  

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Recorrendo à prestimosa Wikipedia, vejo que ela, a Serra do Espinhaço, se situa no chamado Planalto Atlântico, formada há mais de um bilhão de anos a partir de terrenos da era proterozóica, o que a faz rica em jazidas de minerais diversas, entre eles o ouro e o ferro, que contribuem para dar a estas montanhas um estatuto de importância econômica – ao mesmo tempo de devastação da natureza. Em Minas, o tal do Quadrilátero Ferrífero, situado ao longo de sua sombra, é prova disso.

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E foi assim que em uma luminosa manhã de março de 2025, saímos de BH, Henriqueta e eu, para buscar tal cordilheira, não a pé ou através de suas trilhas mais intimas, a famosa Estrada Real, cantada em prosa e verso, mas por estradas mais pérvias e em bom veículo alugado, com o conforto e segurança indispensáveis à idade dos viajantes.

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Antes de tal façanha, pudemos usufruir o encontro com os queridos Nanda e Alex e seus pimpolhos Martin e Gonçalo. Mesmo em curto espaço de tempo, nos alimentamos dos carinhosos abraços, da conversa afetiva da Nandinha e da música alegre e graciosa do artista e sanfoneiro Alexandre. Ah! não posso deixar de expressar minha enorme alegria em rever a Favita e abraçar e aproveitar a presença da minha amiga e cunhada Claudia Goulart, e Jesus, seu companheiro, realmente uma emoção e tanto. Grata minha flor, imagino que sejam reencontros que não se perderão nos tempos. 

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Sair de BH, particularmente, por suas vias ao Leste, que dão acesso à Cordilheira do Espinhaço, não chega a ser uma jornada agradável. É uma periferia muito pobre, na qual vislumbra-se, além da miséria material das pessoas e uma urbanização precária, grande devastação da natureza, um dia ocupada pela mata atlântica. O rio das Velhas, que logo aparece, é também vítima e testemunha de tal estado de deterioração. E não há sinais de mudança ou de intervenção humana que tenda a minorar tais problemas. Pelo contrário, são ruas subindo morros, habitações precárias dependuradas em barrancos, lixo por toda parte. Viver em lugares assim é para os fortes. Mas não havendo alternativa, vamos em frente. Sabará, pelo menos está bem perto da Capital.

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Nessa saída tive a oportunidade de entender um pouco melhor a posição geográfica de BH e suas direções, ou saídas apinhadas de bairros e gente, que, de forma precariamente criativa se organiza como pode: em morros, beira de estradas, nos fundos dos quintais, ocupando becos e construindo novos percursos de vida. Então, pontos cardeais apontam para Brasília, Vitória, Rio, São Paulo, servidos por tantas BRs que nem sei contar. Realmente Flavito, percebe-se o abandono das autoridades que assumem, ou melhor dizendo ocupam esse lugar, com certeza eu ficaria muito feliz em ver crianças e jovens com seus uniformes indo para boas escolas públicas, construindo um futuro mais digno, mulheres e homens utilizando-se de bons transportes coletivos para alcançar suas labutas, e áreas públicas embelezadas pelo cuidado dos que se comprometem a cuidar.

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Esta parte eu assim a descrevi, um dia:

<<Para sairmos da grande cidade é preciso trilhar seus tristes caminhos de periferia, lixo jogado nas ruas e o povo pobre nos pontos de ônibus. Mas lá na frente, mal e mal vislumbradas, as montanhas já nos auguram, em pálido azul que se confunde com o cinzento, a passagem por mais aprazíveis lugares. Em marcha sinuosa e intercalada pelos quebra-molas, passagens de linha de ferro e semáforos, ladeando as grandes filas de moradias toscas e sem reboco, vamos deixando para trás essa “mancha urbana” – coisa que aqui é sempre uma “mancha”, pelo menos em relação ao destino que esta gente deveria ter, mas não tem. Mas é ir em frente – fazer o quê?>> 

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Mesmo quem não se liga em geografia conhece ou já ouviu falar de algum dos núcleos populacionais históricos situados em tal cordilheira: Ouro Preto, Mariana, Sabará, Serro, Diamantina, Grão Mogol e já na Bahia, Rio de Contas, Brumado, Mucugê e Lençóis. De entremeio, relíquias coloniais como Santuário do Caraça e as igrejas projetadas pelo Aleijadinho. Isso para não falar de uma cidade como aquela Itabira, onde nasceu uma vasta parentada minha – e eu mesmo.

Na verdade, este termo Espinhaço é apenas um de seus nomes, este com origem científica baseada na geologia, por se referir a uma imensa dobradura da crosta terrestre, que se estende no território mineiro e baiano como uma espinha dorsal. Quem assim a batizou foi o geólogo alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege, ainda no século 19. Em lugares diversos ela possui denominações específicas, como Gandarela, Curral, Moeda, Piedade, Caraça, Gongo Soco, Itacolomí, Cabeça de Boi, Cipó, Breu, Tabuleiro, Itambé, Ivituruí, Botumirim, além de muitos outros apelidos, dependendo do lugar.

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Esta viagem de BH a Sabará, na verdade, faz parte de memória muito antiga minha. Era este o caminho pelo qual se passava para ir a Itabira, minha terra, também alojada no Espinhaço, só que do lado oriental da cordilheira, enquanto BH está na vertente oeste. É bem verdade que deixávamos a Capital por outro caminho conhecido como o do Taquaril, ainda hoje existente, mas abandonado como via principal. Além disso, a sucessão de favelas que rodeiam o mesmo desaconselha a passagem por lá. É pena, porque por ali, pelo menos antigamente, o percurso se fazia em belo trecho montanhoso e coberto de mata, até a chegada em Sabará.

Memória vai, memória vem, lembrei-me também de uma ida, na infância, a um lugar chamado Roça Grande, situado nas proximidades de Sabará, junto ao rio das Velhas. Fomos lá, toda a família, pagar uma promessa que uma vizinha fez para que minha mãe se recuperasse da síndrome de Guillain-Barrè, que ela contraiu em 1961. Até aí seria um acontecimento normal, mas havia um sério problema, no caso. O tal lugar era sede de um leprosário, estabelecimento ainda em atividade na época e era na igreja que o atendia que a promessa tinha que ser paga. Do outro lado do rio um estabelecimento ainda pior, a chamada Pupileira, onde eram recolhidos os filhos dos doentes, afastados de suas famílias. Coisas de uma época que ainda preservava ecos da Idade Média.  Lembro-me bem que fomos todos, mãe, pai e filhos, devotamente cumprir a obrigação, que deveria nos ser gratificante, mas que na verdade nos deixava constrangidos e temerosos, acossados pela fobia que a simples denominação da doença de Hansen provocava. Ficamos todos de pé, nos recusando mesmo a assentar nos bancos da tal igreja e vimos com real alívio o final da longa reza conduzida pela promitente. Chegando em casa, lavamos freneticamente as mãos e talvez alguns dos meus irmãos, senão eu, tenhamos tomado um banho adicional naquele dia.

Procurei, ao longo da estrada a tal igreja, o tal leprosário, a maldita pupileira e até mesmo a ponte que atravessava o rio das Velhas bem junto a eles, mas não encontrei nada disso. Ou melhor, havia uma ponte, mas sem qualquer um dos acompanhamentos presentes em minha memória. Resumo da ópera: é melhor não confiarmos totalmente nas lembranças que temos. Será que eu apenas sonhei com aquilo um dia?

E seguimos em frente.   

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Realmente Flavito, muito triste lembrar que há tão pouco tempo ainda tínhamos situações de exclusão como essa. A Doença de Hansen deixou uma marca de sofrimento imensa, desde as citadas no Novo Testamento, até os grandes leprosários que dominavam a paisagem das grandes cidades europeias até o século XVIII. Na transição para o século 18, em plena Revolução Francesa, esses prédios já progressivamente esvaziados pela redução estatística da lepra, foram sendo ocupados por outros igualmente excluídos que “manchavam” a imagem da Cidade Luz e outras em ascensão. Assim, mendigos, ladrões, prostitutas, fugitivos da Lei e loucos, que vagavam na cidade, foram sendo depositados nesses locais, mantendo a tradição de exclusão que a Hansen suscitava.  Os relatos históricos contam que Phillippe Pinel, médico adepto da Revolução libertária francesa, ao ocupar o cargo de diretor do Hôpital de la Salpêtrière, observando que alguns desses alijados da sociedade na verdade eram doentes, colocou-os separados dos demais e passou a estudá-los e tratá-los segundo as recomendações da época: eram os denominados “alienados mentais”. Era preconizado como tratamento o afastamento dos familiares e da sociedade. Defendia-se que se foi a sociedade que os deixou loucos então a forma de superar seria interditar sua convivência.  No Brasil não foi diferente, e aqui, a exclusão dos pacientes com transtornos psíquicos permaneceu nos chamados manicômios, até pouco tempo, sendo palco de um movimento exaustivo na década de 80 e 90 para conseguirmos reduzir as arbitrariedades existentes.

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Sabará, finalmente. As placas na rodovia, aquelas de cor marrom, que indicam pontos turísticos, nos lembraram várias vezes que havia relíquias barrocas e coloniais logo à frente. Mas quando chegamos lá, nada mais foi visto. Uma série de ruas conduziam ao topo da colina, do lado esquerdo, onde se concentra a cidade, algumas indicando contramão, mas quanto a indicativos turísticos, nada. Por fim, pudemos vislumbrar uma ou duas torres de igreja e telhados característicos de casarões antigos e assim subimos uma modesta e não sinalizada ladeira que se apresentou à nossa esquerda, através da qual conseguimos acessar, finalmente, o centro histórico tão decantado na estrada, mas ignorado totalmente por ali.

Reflexão pessimista e talvez mal-humorada: não seria uma atribuição da prefeitura, mais do que do órgão rodoviário federal ou estadual chamar para si tal sinalização, ou pelo menos dar seguimento a ela quando as pessoas chegam, de fato, aos objetos de interesse? Tal fato vai se repetir em Caeté e Barão de Cocais. Não há turismo que resista a uma omissão assim…

De toda forma, encontramos, sem qualquer sinalização, aquela simpática ladeira calçada em pedras brutas que nos conduziu à Igreja Matriz de N. S. do Carmo, barroca até dizer chega, diante de um interessante cemitério vertical, e a partir dali o centro histórico. Destaque especial para a padaria Vila Real, nada colonial ou histórica, onde pudemos degustar uma broa de fubá verdadeiramente exponencial, chamada bomba, que por si só vale a visita a tal cidade. 

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O texto seguinte, relativo a Sabará e extraído da Wikipedia resume a situação descrita nas linhas acima:

<<Apesar do seu valor como monumento, o Poder Público reconhece que há problemas a serem resolvidos no manejo e conservação do Centro Histórico e sua exploração para o turismo, incluindo uma gestão mal integrada entre o município, a comunidade e a iniciava privada; estrutura deficitária para eventos de grande porte; pouca infraestrutura de apoio ao turista; serviços desatualizados e pouco eficientes; políticas fracas para preservação dos bens históricos; dificuldades para conter o crescimento urbano desordenado, e outros. >>

Vejo, portanto, que não estou sendo injusto, pessimista nem desagradável ou exageradamente exigente…

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Em Sabará tivemos o prazer de conhecer o antigo Teatro, frequentado por ambos os D. Pedros, I e II, quando em ocasiões de viagens de reconhecimento de seu reinado pela região. Nesse monumento histórico, razoavelmente conservado e objeto de reforma recente, fomos recepcionados por uma agradável senhora, que de forma gentil nos colocou informados da história de tal edifício. Fomos informados, também por ela, da existência de um outro local, também histórico, o casarão. Bem cuidado e reformado, esse casarão, de tetos decorados e inúmeros cômodos, pertencente a um padre dono de mina de ouro na região, hospedou várias autoridades, inclusive D Pedro I.  Que pena né Flavito, que o Pedro I não provou a gostosíssima broa de milho da Padaria Real. Mas continuemos…Mesmo com a parca sinalização local, podemos aproveitar bem nossa visita. Mais uma vez afirmo minha alegria de percorrer esses locais históricos com Flavio, não é só pelos monumentos históricos, mas também pelas naturais conversas que surgem e vagueiam pelas informações, trocas de opiniões e, principalmente, pelo prazer da partilha.

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Em Sabará já temos um horizonte verdadeiramente montanhoso, e é por caminhos assim que vamos prosseguir. Para os geo-curiosos, como eu, outra menção importante é que a cordilheira já bem próxima – ou parte dela – é responsável pela divisão entre a bacia do rio São Francisco, onde está Sabará, com outras redes de drenagem que correm diretamente para o oceano Atlântico, com destaque especial para os rios Doce e Jequitinhonha. Ela é também considerada Reserva Mundial da Biosfera, por ser uma das regiões mais ricas do planeta em termos de biodiversidade. Sem dúvida, é um belo título honorífico, mas os efeitos práticos de tal galardão ainda estão por se revelar.  A região faz também parte do tal Quadrilátero Ferrífero, que abriga também muito ouro, desde os tempos do predador, digo fundador, de Sabará, Borba Gato. Isso iremos confirmar de agora em diante, nas abundantes crateras e escavações, presentes praticamente em cada uma das numerosas curvas das estradas pelas quais passaremos. E sentiremos isso também na maneira como se organiza a vida das cidades por onde passamos, nas quais a exploração de minérios virou o motor principal de tudo o que acontece por lá, em detrimento da história e da cultura, por exemplo. 

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Amado companheiro de vida, também me sinto uma geo-curiosa, adoro saber dos interstícios e das reviravoltas tectônicas de Gaia, este Planeta tão generoso e acolhedor de todos e de tudo que existe. Entremeando estradas e montanhas, encontramos também pessoas, cidades, vidas, dores, sentimentos, relações que, dinamicamente, se redesenham na medida que percorremos nossos passos curiosos. Com certeza, nunca entraremos no mesmo lugar duas vezes, até porque não seremos os mesmos e a realidade se apresenta uma mutante caleidoscópica (parafraseando Heráclito). Nós mesmos, Flavito e eu, já fizemos outras incursões pelas cidades das Gerais, mas nesta presente algo especial nos permeava, nos deixando de certa forma impermeáveis às pequenas dificuldades encontradas. Mas, pensando bem a propósito: quais dificuldades mesmo? 

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Subindo a montanha que separa as duas cidades, Sabará e Caeté, com as curvas abruptas da velha estrada, ao longo das quais mal há tempo e tranquilidade para apreciar a paisagem, vamos dar de cara com uma dessas mineradoras, a Anglo Gold Ashanti, que como o próprio nome indica, não tem sede no Brasil. Ela é sucessora de uma famosa Saint John del Rey Mining Company, presente em Nova Lima desde o século 19 e uma das maiores produtoras atuais de ouro do mundo, com operações em nove países, de onde são extraídas mais de dez toneladas anuais. Curiosamente tal gigante da mineração, dona de imensa reserva fundiária, não dispõe de uma área para seus funcionários deixarem seus carros no horário de trabalho e assim estes ocupam o acostamento da estrada por um bom pedaço, sobrando apenas uma faixa estreita para as idas e vindas dos demais veículos. Caberia indagar se nas minas da AGA na Inglaterra ou na Austrália também seria assim, mas nesses países, é claro, a companhia deve oferecer transporte para os colaboradores.

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O nome Ashanti, assumido pela antiga St. John Del Rey me provocou a vontade de esclarecê-lo. Pensei inicialmente que fosse algum sobrenome indiano, dando continuidade à sanha de algumas empresas daquele país em emporcalhar o mundo, como é o caso da Mittal, associada hoje no Brasil – e na região que visitamos – com a siderurgia, sucedendo a antiga Cia. Belgo Mineira, de igual feição fumacenta. Nada como a Wikipedia: trata-se de nome com originário do povo Akan, de Gana, na África Ocidental, significando “aquele que tem muito ouro”, ou seja, representando riqueza, poder e prosperidade. É também o nome de uma cantora pop afro-americana também, mas isso é outra história.

Se bem entendi, isso significaria que a Anglo Gold, não satisfeita em amealhar as riquezas minerais do mundo ao sul do Equador, optou também por usurpar alguns de seus legados culturais…

Assim caminha o Mundo.  Vamos em frente.

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Em Caeté, comparando com Sabará, as coisas conseguem ficar ainda piores, em termos de indicações turísticas ou históricas. Mas na verdade o que se vê na cidade é um patrimônio realmente exíguo e depauperado. Há uma bela igreja, dedicada a N. S. do Bom Sucesso e alguns casarões respeitáveis, mas nada sinalizado ou apresentado sob a forma de placas, folhetos, seja lá o que for. Um centro de informações ao turista? Nem pensar. Sair da cidade foi um insucesso e nem Nossa Senhora do Bom Sucesso conseguiu nos ajudar. O próprio aplicativo do Google Maps quase não ajuda, insistindo em nos apontar uma BR 262 que na verdade é apenas virtual por ali. A Serra da Piedade é grande atração, mas sem maiores indicações de direção. Por sorte, seu perfil serrilhado é avistado de toda parte, na cidade, servindo de orientação aos desavisados como nós. Para culminar, no dia em que lá estivemos, uma segunda feira, o conjunto paisagístico e arquitetônico do Santuário respectivo estava fechado para manutenção, inclusive em termos de natureza. Manutenção da natureza? Caberia esclarecer melhor o que seria isso.

O jeito foi seguir em frente.

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Sim, fomos, finalmente, até a base da Serra da Piedade, como estava sonhado por nós dois, mas pela necessidade de manutenção do complexo, e provavelmente pela liberação dos funcionários para seu justo descanso, após um final de semana provavelmente cansativo, estava fechada naquele dia, e não pudemos subir. Esse impedimento nos trouxe como casal um grande ganho. Flavito que nos primeiros segundos após a notícia, ficou muito frustrado, mas de forma muito bonitinha, rapidamente se reformulou e entendeu que estávamos em um contexto infinitamente agradável, vivendo tantas bençãos e, que de fato um impedimento como este naquele dia não iria sombrear nossa alegria. 

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Estrada ou estradas? Quando ouço falar de “Estrada” Real tal dúvida me assalta. Acredito que fossem muitas, não apenas uma, dada a necessidade de se fazer mudanças no trajeto a todo momento, seja pelo resultado de erosões e desabamentos, diante de clima e relevo hostis, seja porque uma parte de seus viandantes agia fora da lei, por exemplo, no contrabando de outro de pedras preciosas, sendo assim necessário burlar os olhos do Estado através da abertura de caminhos paralelos. A travessia da serra entre Caeté e Barão de Cocais não deixa de revelar isso, pois há pelo menos três trajetos diferentes, nenhum deles devidamente sinalizado, com exceção daquele que aponta o caminho da Mina de Gongo Seco. Mais uma vez a mineração parece dar as cartas por ali.

Mas é uma região onde se exibem atrações pictóricas diversas, boas ou nem tanto, naturais ou de obra humana, como a vista da Serra do Espinhaço, os panoramas do Oeste são-franciscano (de onde viemos) ao Leste, desaguando no rio Doce; trechos de mata atlântica; ruínas de mineração diversas; espetaculares viadutos ferroviários; buracos e feridas produzidas pelas minas atuais, que mais parecem o portal do centro da terra e até mesmo pinturas rupestres e um antigo cemitério de ingleses do século 19. Boa parte disso só é possível saber pela Wikipedia, porque não há qualquer informação, seja na estrada ou nas duas cidades citadas.

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Flavitinho, lembras que na descida para Barão de Cocais, apesar da não recomendação de João Mauricio, pegamos a opção da estrada que serve exclusivamente à exploração da Mina do Gongo Seco? Mesmo assim achei legal, pois eu não tinha ideia do processamento desse setor pelas terras mineiras. São verdadeiros impérios que dominam paisagens, vegetação, morros e servidores exclusivos do setor. Nos chamou a atenção que eles não organizam nem um estacionamento decente para os funcionários mais aquinhoados, seus carros estacionam ao longo das estreitas estradas de chão.  

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Em relação a Barão de Cocais se poderia repetir o parágrafo acima, relativo a Caeté, com a diferença de que aqui a cidade é ainda mais descuidada do que aquela, dada a poluição visual causada por uma siderúrgica local. Mas uma vez a mineração em ação.

Mas para não deixar passar em brancas nuvens, que se registre, aqui pelo menos (porque in loco não se registra nada…), a elegante igreja de São João Batista, exuberantemente barroca e com torres redondas, traçada pelo próprio Aleijadinho, além de mais algumas outras, e também de meia dúzia de casarões preservados. O resto é pó e domínio das minerações. Além da falta de placas sinalizatórias além daquelas que indicam apenas as rotas de fuga – e que trazem vontade de fugir logo daquilo.

Em Barão de Cocais lembrei-me, não por acaso, de um poema de Drummond que fala de um vendeiro, o Tutu Caramujo, na sua Itabira ali tão próxima, que diante da decadência geral, à porta de seu comércio, cisma na derrota incomparável. Em Barão de Cocais certamente se cumpre algo assim, dada a degradação urbana e da natureza que domina a paisagem.

O jeito é, mais uma vez, seguir em frente, fugindo da sensação de derrota, em busca de sítios, se não repletos de glórias, pelo menos mais acolhedores.

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Vale um comentário adicional sobre a região. Salvo um restaurante de beira de estrada que contém a palavra em seu nome, não se nota por aqui nenhuma referência, absolutamente nada, sobre os acontecimentos conhecidos como Guerra dos Emboabas, ocorrida também nesta região nos idos do século 18, entre 1707 e 1709. De um lado, os bandeirantes, que foram os responsáveis pela descoberta das jazidas de ouro na região, que hoje pertence ao estado de Minas Gerais, mas naquele tempo inteiramente paulista. Do outro, os olhos cúpidos da Coroa Portuguesa, imbuída do espírito de mais uma vez salvar Portugal de uma derrocada material. O Memorial do Convento, de Saramago trata das consequências disso em suas páginas.

Em cenário de grandes tensões, Emboabas era o apelido, um tanto pejorativo, que os locais deram aos lusitanos, que lhes lembravam uma ave da região, um tanto desengonçada, certamente. Em 1709, a Coroa Portuguesa, esmagando a resistência local, pôs fim aos combates e determinou a separação das capitanias de Minas Gerais e São Paulo. A grande causa da Guerra dos Emboabas foi a luta pela exploração do ouro, que ainda hoje deixa seus sinais nas montanhas da região, para o que os bandeirantes paulistas queriam exclusividade, já que foram seus descobridores.

Se é que pode ser considerada de tal forma, a guerra dos Emboabas teve, pelo menos, a vantagem de forçar o parto do que veio a ser, em seguida, o glorioso estado das Minas Gerais

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Fiquei muito curiosa em saber um pouco mais sobre o conflito dos Emboabas, aliás sempre tive interesse em conhecer os movimentos das populações exploradas, oprimidas ou mesmo escravizadas. Pelo que sei eles pulularam no período do Império. Eram os “movimentos nativistas”, em diferentes períodos e regiões brasileiras, pela defesa dos interesses locais, como a revolta de Beckman em São Luís do Maranhão, as Emboabas, Revolta dos Mascates em Pernambuco, Revolta de Felipe dos Santos em Vila Rica, revolta dos Malês em Salvador. Existiam também as “revoltas separatistas”, a Inconfidência Mineira, Sabinada na Bahia, Conjuração Baiana ou dos alfaiates, Cabanada envolvendo Alagoas e Pernambuco e, a Revolução Pernambucana de 1817. Nesta última, reza a lenda, que foi dado o primeiro grito de República no Brasil, mesmo antes da Independência do Brasil em 1822. Nossa! me empolguei… melhor então, continuar nossa conversa avançando” saltitantemente” rumo ao Santuário do Caraça.     

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Lembrando, todavia, que não havia ninguém santo nesta famigerada Guerra dos Emboabas. De um lado os lusos, do outro, os bandeirantes… Haja!

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Finalmente a montanha do Caraça. Ela nos surge à vista, desde as cercanias de Barão de Cocais como um imponente maciço, negro, de enormes penhascos lisos, a dominar o cenário mais ao Sul. Em torno do mesmo, uma mata densa e fechada, que não deixou de ser Atlântica, mas já contém elementos de Cerrado, dita de transição, portanto. Consola perceber que agora a profunda ferida aberta pela intervenção radical que foi a reconstrução da estrada de acesso ao Santuário nos anos 80 já cicatrizou e se transformou em mata tão fechada como seu entorno. Menos mal.

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Seria supérfluo qualquer comentário ou descrição da sinfonia natural, mineral e botânica, além de arquitetônica, que é o Caraça e seu entorno. Não me atreverei a fazê-lo. Porta do Céu, como às vezes o lugar é tratado em alguns textos, ainda seria pouco para falar dele. 

Ali é tudo beleza e harmonia, apesar da natureza abrupta e rústica, naquelas montanhas pouco acessíveis à incursão humana. Mas quero sempre – e mais uma vez – voltar ali, com a permanente sensação de que lá tenho uma parte de minha essência, naquelas montanhas que me são tão simbólicas e também pela memória de meus antepassados que (imagino) terem passado por lá.

Sem esquecer que aquelas paredes construídas pelo homem, três vezes centenárias, abrigaram também muito sofrimento, muita sensação de abandono, muito banzo, por parte daqueles coitados que ali foram escravizados ou preparados para a vida monástica, social ou política na antiga sociedade. Suas paredes guardam pecados, segredos ou lástimas do passado, aquelas ali têm muito a dizer.  

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Ah Flavito, como falar do Caraça sem enfatizar nossa história, nosso encontro, por ocasião da primeira viagem que fizemos juntos, em 2008. Para mim a surpresa diante daquela beleza secular, sentida na primeira viagem, se vivificou quando nesta feita, andávamos por entre trilhas e caminhos pedregosos, pela Via Sacra, tão belamente reproduzida entre pedras e morros; pelo fogão a lenha, poeticamente usado no café da manhã; pelo reencontro com o muro, que dantes, numa noite estrelada, abrigava dois corpos e duas almas unidos no encantamento do encontro amoroso. Ficam lembranças eternas que certamente existirão em nossos espíritos até além das paredes acolhedoras daquele Santuário.  

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O Caraça hoje remete ao Lobo (ou Loba), que ali comparece regularmente para uma lauta refeição noturna, cujo cardápio é frango cru (menos mal, porque já foi assado…), misturado com bananas. Sim, os lobos adoram frutas também e não é por acaso que dão nome a uma solanácea abundante no Cerrado: a lobeira (Solanum lycocarpum).

Com a equipe local aprendemos que não há bicho tão prejudicado pelos equívocos do julgamento humano como este, porque não é um predador contumaz de animais de criação, mas sim um devorador de calangos, insetos e outros animais pequenos, além de ser muito tímido e arisco e também chegado a uma alimentação, digamos, mais natural, como bananas ou a fruta que lhes leva o nome.

Mas o fato é que a chegada vespertina e cotidiana de tal indivíduo no tal Jantar do Lobo é um grande espetáculo que o Caraça oferece a seus hóspedes. Para o bem ou para o mal? Fica a cargo dos zoólogos responderem.

Mas ante de fechar a seção, uma constatação: o Caraça hoje é um destino top em termos de hotelaria. Cinco estrelas, ou mais (além daquelas do céu…), com preços a alturas equivalentes. 

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Mas não deixou de ser o nosso Caraça!

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Serra da Piedade. Mais um levantamento tectônico paralelo à Cordilheira do Espinhaço. Se o Caraça fica a Leste, a Piedade, distante alguns quilômetros, está do lado Oeste, são-franciscano.

A Serra da Piedade me acompanha desde a infância em BH, de onde ela pode ser vista de quase toda a cidade, principalmente de um ou outro ponto mais alto. De alguns ângulos assemelha-se a uma pirâmide, de outros a um castelo, mas sempre mostrando bordas irregulares, escarpadas, perceptíveis mesmo a uma distância de 40 km. Eu então não sabia, mas passei ao pé dela diversas vezes nos anos 50, nas viagens de férias a Itabira, exatamente no trajeto dos dias de hoje, entre Sabará e Caeté.

Depois de muito observá-la de longe, ou de passar por ela sem perceber, atingi seu cimo pela primeira vez no final dos anos 60, numa curiosa aventura. Fomos, meu irmão Eugênio e mais dois amigos acampar no platô que abriga a simpática igrejinha do alto da serra. Depois de saltar do ônibus que tinha como destino Caeté, distante pouco mais de 20 km, começamos a subida pela estrada, já adequada para veículos, na ocasião. Nossa caminhada durou pouco, pois logo em seguida um senhor simpático nos ofereceu carona em sua camionete. Fomos logo (auto) apresentados a frei Rosário Jofilly, o dominicano prior, que vivia ali como verdadeiro eremita, até hoje referenciado em fotos e citações presentes no atual santuário. Ele nos ofereceu a parte debaixo da residência aos fundos da igreja, quando percebeu a nossa incapacidade de armar barracas no âmago da ventania que normalmente assola o alto da montanha. E fez mais, ao nos convidar para jantar com ele na casa paroquial. Aquilo nos salvou de uma noite de tormenta, mas não foi o bastante em nos evitar sofrimento talvez mais intenso, que foi a terrível infestação por piolhos-de-galinha, abundantes no porão, um antigo galinheiro do mosteiro. Ficamos gratos a frei Rosário e ao mesmo tempo de nos lembrarmos dele por semanas a fio, diante da coceira renitente que custou a nos abandonar.

Hoje está tudo muito bem-organizado por ali, inclusive com um acesso asfaltado, que abre só em horários definidos e fecha para momentos de manutenção. Existe ali gestão privada, por parte da Igreja Católica, que deixa tudo muito bem-organizado, inclusive com vans que fazem a parte final do percurso até o santuário, para evitar engarrafamentos, dado que a estrada se estreita ainda mais em sua parte final. No alto as atrações são numerosas, incluindo não só a velha igreja, muito bem conservada e além dela uma moderna e ampla basílica, museu, lanchonete, observatório astronômico, estacionamento e outras benfeitorias. Tais vantagens de uma gestão privada do espaço são evidentes, mas é preciso ter cuidado com certos enganos que costumam cercar tais iniciativas, por exemplo, determinadas isenções e incentivos governamentais que podem existir, embora nas sombras. Mas enquanto aguardamos o surgimento de formas mais transparentes e eficazes de gestão pública, que de fato não são tão evidentes no Brasil, é melhor deixar as coisas assim mesmo.

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Esta visita à Serra da Piedade me foi prometida pelo Flavito há tempos. Ele expressava alegria em me oferecer a oportunidade de conhecer uma pérola nas redondezas de BH, e tinha razão, a subida anunciava uma vista especial, a cada avanço os horizontes iam se alargando, de 90, 180, passava pra 360 graus de visão. Está tudo bem cuidadinho e isso é ótimo; não vimos lixo jogado no chão, pois imaginamos que assim como aconteceu conosco, saboreamos nosso almoço nos bancos do grande pátio e nos utilizamos das lixeiras como forma de honrar aquele espaço, outros visitantes devem sentir o mesmo sentimento inédito por essas bandas, de não deixar pra os próximos visitantes sua sujeira.

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Mais adiante, nos dias seguinte, a Serra do Cipó. Curiosamente o lugar está na planície, não na montanha, a qual, entretanto, cerca o conjunto bem de perto. Fica na mesma cordilheira do Espinhaço, cerca de 100 km a nordeste de Belo Horizonte, ao contrário dos lugares que visitamos até agora, que se situam a leste da Capital.

O lugar até outro dia era Cardeal Motta, impropriamente assim denominado, aliás. O tal prelado da Santa Madre, Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta, não tem nada a ver com aquilo ali, nascido que foi em Bom Jesus do Amparo, ainda um lugar beira-serra, embora situado do outro lado do Espinhaço, nas proximidades de Itabira. Motta iniciou sua carreira eclesiástica na região da Serra da Piedade, o que o mantem ligado à região, mas subiu na vida e foi sucessivamente arcebispo (no Maranhão!) e em São Paulo, tornando-se na década de 50 o Cardeal Primaz do Brasil, daqueles que são até convocados para a eleição do Papa! Ele era muito influente na época, principalmente entre os grupos políticos mais conservadores do país, em particular àqueles ligados à antiga UDN.

Neste aspecto, reza a lenda (se é que ela não foi inventada pelo meu amigo Nicolas Behr), que Motta acabou se inserindo na história da construção de Brasília, ao ser convencido da justificativa da mesma, unanimemente rejeitada pelos udenistas, apresentado que foi ao famoso Sonho de Dom Bosco, por recomendação de um assessor de JK, que descobrira a narrativa do mesmo perdida nas páginas de um diário do Santo. A partir daí teria virado o jogo em relação à Novacap, pelo menos de parte da facção mais carola do velho partido conservador brasileiro.

Se não é bem verdade, pelo menos é bem achado.

A mudança de nome para a denominação atual Serra do Cipó não deixa de ser, também, uma curiosidade digna de nota. O nome já era tradicional no lugar, substituindo informalmente o tal apelido católico. Até que um dia se descobriu que em Conceição do Mato Dentro, também uma cidade da cordilheira, 100 km ao Norte, havia um movimento político para registrar o nome Serra do Cipó como patrimônio geográfico e cultural local. Isso tocou, imediatamente, o nervo mais sutil das autoridades da pequena Santana do Riacho, ali do lado, município ao qual pertenceu, desde sempre, o tal distrito de Cardeal Motta. O resultado foi que na calada da noite os vereadores de Santana se reuniram e mudaram, sem maior burocracia, o nome religioso para aquele que era apenas informal, porém disputado pelo pessoal do Mato Dentro. E assim ficou. Melhor isso do que deixar passar batido. Longe de ser uma manifestação de provincianismo localista, deixemos como sintoma de orgulho e civismo.

A Serra do Cipó, ou simplesmente Cipó, como é mais conhecido o lugar, é um belo lugar. Além da moldura formada pela Cordilheira do Espinhaço, a se estender por dezenas de km ao Norte e ao Sul, tem belos trechos de rio (também denominado Cipó), com magníficas cachoeiras, piscinas naturais e lindas paisagens, compostas pelos chamados campos rupestres, onde pontificam diversas espécies de sempre-vivas, particularmente do curioso pepalanto (ou chuveirinho), além de outras espécies. Não bastasse tudo isso, o vale é forrado por uma mata de transição, já meio escassa, mas ainda pujante em alguns trechos, na qual espécies do cerrado e da mata atlântica compartilham o território.

Qual a importância de tudo isso? Ao contrário de muitos lugares de Minas, a Serra do Cipó não foi palco de nenhum fato histórico digno de nota ou de feitos arquitetônicos, artísticos ou mesmo políticos. Ali foi apenas um lugar de passagem, nem mesmo o mais importante de todos ao longo da história, pois a ligação entre os dois grandes centros antigos que eram Ouro Preto e Diamantina – a famosa Estrada Real – não se fazia por ali, mas sim pela face oriental da cordilheira. Por ali passava apenas o caminho que ligava o distrito dos diamantes a Sabará e a Santa Luzia, berço de alguns Pais da Pátria, embora tal caminho fosse vedado por mais de um século aos viajantes comuns.

Mas o fato é que os eventuais passantes o faziam por ali, mais exatamente no lugar que visitamos, no qual o rio Cipó, pacato no cotidiano, mas terrivelmente ameaçador em suas cheias periódicas, deixava um vau. Ali havia, e ainda há, a Fazenda Velha, situada em raro trecho da planície onde o rio permite ser atravessado a pé, em carro de boi ou em lombo de animais. E já os bandeirantes antigos o faziam, na busca insaciável do outro e das pedras brilhantes, que foram encontrar apenas mais adiante. Em função de tal facilidade logística é que ali foi construído, possivelmente em finais do século 18, um estabelecimento que reunia não só moradias, como entreposto de gêneros, capela, hospedaria, senzalas, oficinas de reparos e cuidados com animais e mais tarde até mesmo uma pequena ponte para pedestres.

Tal lugar, uma ampla praça gramada, cercada de casarões, está lá até hoje, relativamente intocado ou até mesmo melhorado em certo caso,  por obra e graça de gente sensível como Eduardo Queiroz e sua esposa Norma, que reconstruíram um de seus cantos, um antigo pedaço de senzala, com fidelidade ao passado e bom gosto, onde tivemos uma recepção repleta de atenção e informações geográficas e históricas.

Não custa lembrar que sua reduzida importância histórica não retira da Serra do Cipó seu enorme charme natural e turístico, que a rodeia desde há muitas décadas. Nos meus tempos de criança, por exemplo, era o must das famílias bem aquinhoadas de BH passar temporadas de férias no famoso Cipó Veraneio Hotel, como alternativa ao Rio de Janeiro.   

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Norma e Eduardo foram muito acolhedores, nos mostraram sua casa, parte de uma área da fazenda, antes cedida para um filho do proprietário original, quando por ocasião do casamento, hoje reformada pelos atuais donos e casal anfitrião. Sobre a reforma realizada por aqueles que nos receberam, difícil até de descrever pela beleza e capricho; cada detalhe, cada solução inserida na construção colonial, trouxe um conforto da atualidade sem perder nem um minuto o charme e a originalidade da casa. Ressalto aqui a reconstrução da Venda, colada na casa como de praxe, antes ganha pão do filho pródigo já casado, se tornou uma joia de estilo interiorano com todos os apetrechos necessários a um bom comerciante da época.  Estávamos juntos com a Myrinha e o Marção, o que promoveu uma combinação perfeita, visitar algo bem interessante na companhia de pessoas tão absolutamente interessantes. Sou grata ao Flavio o engendramento dessa oportunidade. Valeu!

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Mas a graça da Serra do Cipó não para por aí. Do lugar citado acima, onde tivemos um excelente almoço, seguimos para o grande pedrifúndio do Ermo dos Gerais e das Brumas do Espinhaço, glebas de campos altos das quais Marcio e Myriam, além de Eugênio e Lucia são sócios, distante 40 km no rumo norte da cordilheira.

Paisagens sensacionais, com altos morros e picos de pedra, vegetação em florada permanente, acomodações muito ajeitadas e uma vista de largos horizontes, tendo ainda a simpatia e o cuidado total dos anfitriões. Melhor impossível!

É um fim de mundo, mas ao mesmo tempo um lugar abençoado onde desejamos que este final chegue logo, desde que estejamos por aqui. Acesso difícil, só para 4×4, mas também para corações 4×2 ou menos do que isso.

Uma sorte benfazeja termos estado lá.

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Aqui gostaria de fazer uma declaração a Myrinha e ao Marção, e também a nós dois. Adorei nossa estadia de três dias nessa terra intocada, natureza ainda em sua concepção mais profunda, que borbulha encanto e jorra água de bica vinda de fontes profundas, e de acréscimo, trazendo energias telúricas para nutrir a vida florida na superfície.  Meus cunhados, amigos, parceiros de dias tão pacíficos e alegres, sou imensamente grata por ter tido a oportunidade de sentir o coração de vocês e receber uma acolhida tão fraterna. Ainda mais, por bençãos do Altíssimo, fomos brindados com um por do sol deslumbrante, com seus raios lilás, vermelhos e arroxeados, banhava nossa melancolia vibrante, aguardando nossa noite de aconchego, em torno do fogão, tão genuinamente a lenha e de prosas que pareciam que sempre estiverem ali. Gratidão Myrinha, Marção e Flavito, gratidão.

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E está tudo documentado, por que não?

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