Quando soube da passagem deste meu amigo, procurei logo saber informações biográficas mais detalhadas sobre o mesmo, pois gostaria de homenageá-la aqui neste espaço. O Conass, Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde, em cuja construção ele teve participação fundamental, me atendeu e me municiou logo sobre tal pedido, mas cheguei à conclusão de que não precisaria dispor de tais dados, pois o que realmente fazia sentido para o meu relato era o que a memória me trazia de maneira farta, sem outros adereços.
Tudo começa assim: tivemos uma convivência muito próxima na infância, embora sem nos conhecermos pessoalmente. Eu tinha como colega e amigo no Colégio Estadual, o Carlos Alberto Scotti, seu primo. Pelo que soube depois, não só Carlos Alberto, como boa parte da família, tinham como residência do bairro da Serra, em Belo Horizonte, onde também residiam meus avós maternos e onde eu regularmente estive presente. A família de Carlos Alberto morava bem no início da rua do Ouro, a mesma dos meus avós, e ali o pai dele era o proprietário de uma vetusta Farmácia Scotti, do tempo em que as farmácias ainda não tinham sido transformadas em supermercados. A primeira rua paralela à rua do Ouro é hoje denominada Americo Scotti (talvez pai ou avô do meu personagem) e isso demonstra as raízes da família em BH. Nesta rua, situada bem ao fundo da antiga farmacinha da família, vive e talvez ainda viva a família Scotti, onde foi criado também o personagem que é objeto desta crônica, com quem só vim a ter contatos pessoais muitos anos depois.
Curiosidade meio vadia, o nome da família não tem nada a ver com a Escócia e nem com a bebida ali produzida, tratando-se de um sobrenome italiano – nada de scotch, portanto. Aliás, a prestimosa internet me informa que Scotti é família italiana de forte tradição, estabelecida na cidade de Pádua, na região norte de tal país, desde o século 13. Esta gente deu até papas, como é o caso de Eugênio IV (1431 a 1447), fornecendo também governantes na cidade de Pádua e outras cidades da região.
Mas o fato que aqui interessa é que passado muito tempo, desde aqueles luminosos anos 50 no bairro da Serra, eu só me encontrei de verdade com Ricardo Scotti já na nossa vida profissional, quando ele e eu éramos servidores na mesma repartição, a Secretaria Estadual de Saúde de MG, ele como membro do staff central em BH e eu como técnico regional; ele na capital e eu em Uberlândia. Nos anos de faculdade, ele na Farmácia e eu na Medicina da UFMG, talvez tenhamos nos esbarrado em alguma hora dançante no DCE ou em alguma passeata na Av. Afonso Pena, mas realmente não reúno lembranças de tal época.
Em Uberlândia ele chegou de maneira inusitada, nomeado como uma espécie de interventor (embora tal função não fizesse parte do estilo de atuação dele) na Diretoria Regional de Saúde, onde eu dava expediente. É que havia sido nomeado ali, como diretor, através da eterna injunção dos políticos de todos os naipes e facções, um daqueles sujeitos que representava a antítese completa dos requisitos desejáveis para o cargo: um médico de Uberlândia cuja notoriedade vinha da produção e venda de remédios para emagrecimento, verdadeiras bombas farmacológicas, tendo como “laboratório” instalações no quintal de sua residência. E que se movia a bordo de uma reluzente Mercedes-Benz. A Regional de Saúde, como seria de se esperar, tinha sido transformada em um enorme e movimentado balcão de negócios, onde prefeitos, vereadores e outros agentes políticos se acotovelavam em busca de escassos medicamentos e equipamentos (mais escassos ainda) para suas cidades, além de aprazíveis (além de pragmáticas) conversas a portas fechadas. Alguns cargos disponíveis na estrutura foram logo ocupados por notórios cabos eleitorais de suas excelências, além de algumas esfuziantes e perfumadas moças portando vistosas minissaias, também escassas, pelo menos em suas dimensões. Tudo conforme manda o figurino da política brasileira, de hoje e de sempre.
Era um ambiente de matar ou morrer, ou, pelo menos, de arrombar algumas portas. Mas Ricardo Scotti não fez nada disso, foi devagarzinho ocupando seu espaço, numa salinha ao lado do diretor farmacólogo, e aos poucos foi colocando as coisas no lugar. Conseguir afastar alguns dos mais renitentes, mas com os demais nomeados usou táticas de persuasão e boas relações, no que teve muito sucesso, posto que alguns deles, bons agentes eleitorais que eram, não terem oferecido maior resistência frente aos delicados e humanos modos da nova autoridade.
Nossos maiores desafios ainda estavam por vir, entretanto. Era 1982, ano de campanha eleitoral e eu já estava vinculado à campanha do futuro prefeito, Zaire Rezende, do PMDB dito “autêntico” (para a época, pelo menos). Eu apresentei o Scotti ao Zaire e passamos a dar palpites juntos na proposta de saúde do candidato. Mais adiante, ficamos eu e ele como alternativas de escolha como novo secretário de Saúde (em uma secretaria que, na verdade, nem existia ainda). Nenhum de nós se posicionou frontalmente para ganhar a nomeação. Eu contava com maior tempo de casa junto ao prefeito eleito; Scotti com o sobrenome materno (Freitas) de origem uberlandense, o que conta muito por lá. Acabou sendo eu o escolhido, quase que ao mesmo tempo em que ele foi confirmado como diretor regional de saúde, agora de fato e de direito, já dentro do novo governo de Tancredo Neves. Nem por isso nossa relação foi afetada, ao contrário, nos tornamos mais próximos ainda e recebi dele total colaboração para meus planos de novo secretário, tendo ocorrido sob tal regime de cooperação a transferência até então inédita de uma dezena de unidades da gestão estadual para a municipal, com total controle por parte da prefeitura, seja das instalações, dos equipamentos ou das pessoas. Não nos esqueçamos que ainda corria o ano de 1983 e o SUS só viria a ser concretizado em 1988, mas tive a imensa honra de participar e liderar (além de antecipar), junto com Scotti, tal processo de unificação municipal do sistema de saúde, ainda mais em uma cidade com a importância política e demográfica como Uberlândia.
Problemas não nos faltaram, claro. As lideranças políticas já eram outras naquele momento, mas muitos dos hábitos permaneciam. A parceria entre estado e prefeitura começou a ser notada e parlamentares majoritários regionais do PMDB começaram a temer o risco de perderem espaço nas nomeações e decisões. O mínimo que fomos acusados foi de sermos agentes “do PT” infiltrados na máquina peemedebista, o que não era verdade em relação a qualquer um de nós. Na ânsia de deter o controle da Diretoria Regional, suas excelências logo maquinaram para que Scotti fosse reconduzido ao nível central da SES, o que acabou acontecendo depois de poucos meses. Quanto a mim, tentaram investidas também, às quais prefeito Zaire se antepôs (embora um desfecho desfavorável a mim só não tenha ocorrido “por pouco”). Por sorte o novo diretor nomeado, um cancerologista de clínica privada, porém cheio de boas intenções, teve a sabedoria de respeitar os acordos vigentes, embora com alguma relutância inicial, permitindo assim dar prosseguimento ao processo de unificação (melhor dizer “SUSificação”) já em curso, transformando Uberlândia em um dos polos avançados em relação às novas propostas de saúde que começavam a ganhar corpo naquela ocasião. Pouco depois, em 1986, veio finalmente a Oitava Conferência Nacional de Saúde e tudo começou a mudar de verdade e por toda parte.
Com a ida de Ricardo Scotti para BH passamos a nos ver apenas esporadicamente, mas ele nunca deixou de olhar com simpatia e, dentro de suas possibilidades, apoiar os processos de mudança na saúde em Uberlândia, os quais eu pude conduzir até 1988. A partir deste momento, pude abrir novos espaços de convivência com este amigo, quando ele se associou laboralmente à pessoa admirável que foi Maria Helena Brandão e com ela, seja no ambiente da SES-MG e depois no âmbito do Conass, foram desenvolvidas as estratégias de descentralização e partição federativa de poderes que desaguaram na formatação do SUS atual. Nesta ocasião eu já estava no Ministério da Saúde e não poucas vezes pude participar das discussões encetadas pela dupla Scotti-Brandão, às vezes como palpiteiro informal, outras oficialmente, dentro das primeiras tentativas de gestão tripartite na saúde.
Não seria exagero afirmar que nestes ambientes a história do SUS se fez. E eu tenho imensa honra de ter participado disso, ainda mais em companhia de pessoas tão importantes como Maria Helena e Ricardo Scotti. Para gente assim cabe como uma luva o dito de Brecht, não sendo eles apenas pessoas sensíveis, dedicadas ou competentes, mas acima de tudo imprescindíveis para a construção de nosso sistema de saúde.
Não posso deixar de mencionar ainda as várias oportunidades que Scotti me ofereceu, ao longo dos anos, ao me convidar para colaborar com o Conass em numerosas reuniões plenárias, nas quais fui convidado a ser o relator, produzindo documentos que acabaram por fazer parte da rica história da entidade, o que muito me honra, também. Da mesma forma, com minha filha Fernanda, a quem ele dedicou uma atenção de filha, como publisher do Conass durante algum tempo.
Salve Ricardo de Freitas Scotti. A construção do sistema de saúde no Brasil deve muito a ele!
