Estórias de rossa e certão

Aqui vão mais algumas histórias (ou estórias) inventadas por mim. Podem chamar de “contos”, mas não sei se chegam a merecer tal categorização. Todas elas têm como pano de fundo a vida no interior, ou melhor, nos interiores, do país, tentando captar nuanças da personalidade dos brasileiros que por opção ou descuido aí vivem ou de tais lugares procederam. O título meio esquisito devo a meu amigo Mauro Marcio de Oliveira, que o utilizou para falar de sua Fazendinha Arvoredo. Ele é originário de uma época que a língua não era normatizada, nem em Portugal e muito menos por aqui, nos brasís e me cativou pela sua grafia estrambótica, que me pareceu adequada para nomear esta minha incursão, ponhamos, literária. Também não quero me arvorar (belo e adequado verbo!) em especialista na vida sertaneja, coisa para antropólogos e sociólogos, se não para literatos de verdade, mas não posso negar que tenho tais origens e de certa forma vivi nos certões de Minas Gerais e de Goiás por um bom tempo em minha vida, além de conviver com tal influência no meu cotidiano aqui em Brasília. De toda forma, muito obrigado pela generosidade de me lerem.  

AS ESTÓRIAS…
Arnaldo e Arnoldo
Uma mala misteriosa
Um santo homem
O apocalipse segundo JB
Apenas uma mulher
Um jardineiro
Uma vida
Um moço de fora
Uns Alves, da Beira do Mato
Senhorinha da sanfona

Arnoldo e Arnaldo

A cidade aqui é pequena e atrasada. A bem dizer, um lugar onde acontece pouca coisa – ou nada. Alguém como eu, que modéstia à parte tem alguma formação intelectual, precisa descobrir, a cada dia, um derivativo para não soçobrar em tal oceano de mesmice e lugares comuns. Eita, agora acho que exagerei no intelectualismo! Mas vamos em frente. Em primeiro lugar, é bom prestar atenção no nome que deram a isso aqui: Brejo Fundo. Mas já foi pior, antigamente era Vão do Buraco, ou apenas Buraco, só e simplesmente. Com uma sina assim, como diz um amigo daqui, o Nicanor, como é que uma cidade pode progredir? De fato, é um lugar perdido entre pouca coisa e coisa nenhuma.

A verdadeira boia de salvação aqui, aliás, os dois coletes salva-vidas mais prestantes com que posso contar são, a meu ver, em primeiro lugar, o habito de ler, sim, porque a literatura é coisa salvadora de almas e, além disso, a observação cotidiana daquilo que acontece ao redor da gente. Podem achar que com isso estou fazendo profissão de fé como bisbilhoteiro, mas – juro – estou falando é de coisa mais nobre. A tal formação intelectual de que falei acima deriva do fato de eu ter me formado em Direito. Sim, sou advogado e como tal fui concursado como burocrata judiciário – ou se quiserem, serventuário, oficial de justiça, ou ainda, meirinho – sendo designado para trabalhar neste Fórum de Brejo Fundo. Eu queria ser, na verdade, Juiz ou Promotor, mas foi o que consegui, depois de um curso malfeito em uma faculdade do interior, com a necessidade acumular trabalho ainda pior, em termos de perspectivas e um curso bem errado de, digamos assim, Direito.

Mas se me permitem, devo dizer: no serviço público já acumulei experiências, e o que conto aqui é totalmente baseado nisso. Antes de me embrejar aqui, exerci também atividades de fiscal de ICMS por alguns anos, passando por lugares os mais variados. Só com o nome Olhos D’água, estive em uns quatro. Rio do Peixe, dois ou três. Lugares sem nome (por falta absoluta de tal informação nas estradas), para mais de vinte. Brejo Fundo é primeiro e único até agora. Em alguns deles a informação mais firme que se poderia encontrar nas placas de estrada, aparentemente para designá-los, era borracharia. Quando não escrita com “x” no lugar de “ch”.

O Fórum Carmosinda Pereira, onde dou expediente, fica lado a lado, isto é, no mesmo prédio, da Prefeitura Municipal, o que já demonstra que separação de poderes por aqui é uma coisa muito relativa, totalmente distante daquilo que sonhavam os constitucionalistas pais da pátria, fossem norte-americanos ou franceses. Aliás, não é demais lembrar que também a Câmara de Vereadores se situa aqui neste mesmo espaço. E a propósito, Dona Carmosinda foi uma prefeita daqui que conseguiu recurso para a construção do prédio há uns 20 anos atrás, mas que, apesar disso, acabou cassada pela Câmara de Vereadores, por suposta corrupção, e alijada totalmente da política. Mudou-se depois para a capital e ali, abriu uma loja de especializada em produtos da China, tendo como capital inicial, dizem, o produto da corrupção que praticou sem amarras na Prefeitura do Brejo, até ser cassada. Coisas da terra, não entrarei no mérito, longe de mim, Deus me proteja.

Mas sem dúvida posso dizer que de tais personagens e ambientes sei muitas coisas; algumas curiosas, outras escabrosas. Sem querer naturalizar, outras tantas até divertidas. Sim, sei que tais personagens são eleitos pela população, de acordo com as regras que os gregos antigos inventaram, desde vários séculos antes de Cristo. Isso me faz respeitar a lida dos prefeitos, seus secretários e servidores em geral. Mas só até certo ponto, sem esquecer que esta gente nem sempre é bem compreendida pela população e especialmente por Juízes e Promotores, coisa de que me dou conta dia após dia – embora na maioria das vezes as excelências do Judiciário tenham alguma razão.

Voltando ao meu colete salva-vidas, ou seja, a observação do que acontece ao meu arredor, ela me é facilitada pelo carrossel de oportunidades que o dia a dia do trabalho aqui me oferece, sendo vizinho, de corredor, de banheiro, de cantina, de calçada e de estacionamento das autoridades locais dos três poderes – ou de quem assim se considera. As coisas que me lembro aqui nem sempre são lisonjeiras para aqueles lá, os poderosos, sem querer demonstrar ao mundo dos leigos e não iniciados, com todo respeito, que seja eu um crítico intransigente da autoridade, pelo menos no plano municipal. Mas a verdade é que tenho histórias para contar – e não dá para ser bonzinho, passar o pano, como se diz. Antes que me perca nas ironias e críticas devo reconhecer algumas das virtudes, digamos, do poder local. A maior delas, certamente, é a proximidade que bem ou mal as prefeituras têm com o povão, com a real possibilidade de que quem precisa lhes bata à porta. Isso por si só diferencia os prefeitos e auxiliares diretos – para melhor – de algum burocrata em Brasília ou na capital do estado. Prefeitos roubam do erário? Sim, todo mundo sabe disso. Mas, convenhamos, quem seria mais perigoso: um prefeitinho que bem ou mal tem cidadãos e vereadores de oposição por perto, ou algum daqueles burocratas abrigados em remotas casamatas nas esplanadas da vida.

Falando em casamatas, vamos por partes… Falo só do Executivo, mas se tiverem tempo para ouvir, posso incluir dúzias de casos do Legislativo e do próprio Judiciário também. Uma coisa de cada vez.    

Os gabinetes dos Prefeitos, por exemplo, são ambientes curiosos. Refrigerados ao ponto de escorrerem estalactites de gelo dos tetos. Mau gosto quase sempre presente, nos móveis, nos tapetes, nos decotes das secretárias, nos estampados dos sofás. Mas o que espanta mesmo é a quantidade de gente que faz ponto ali, por exemplo, das moçoilas de gabinete, especializadas em funções de convidar as visitas a entrar para o encontro com suas excelências, ou de servir água e café, aos motoristas das “aviaturas” chapa-branca, cuja presença, mesmo estacionadas em definitivo, suas excelências não dispensam.

Mas é sobre um segmento especial de tal fauna que quero falar aqui. Não sei bem a que se dedicam, só sei que costumam ser numerosos, gente com funções pouco definidas ou ordenanças, à espera, quem sabe, de uma ordem de cima que nunca se sabe quando virá. Seriam apenas amigos, aderentes, cabos eleitorais? Não se sabe quase nada deles, apenas que geralmente são muitos e constantes, indistintamente do sexo masculino ou feminino. Eles mostram sempre um ar de quem tem tarefas sérias a cumprir, olhando para o teto ou, no caso de alguns deles, para eventuais pernas e quadris femininos que por ali transitem. Mas para mim sempre foi um mistério saber exatamente a que se dedicam de fato.

Aquelas figuras sempre me lembravam um personagem de literatura. Pensei em Machado de Assis e Raul Pompeia tentando me lembrar, mas logo me dei conta e não foi difícil localizar nas minhas leituras um trecho daquelas afamadas Memórias de um Sargento de Milícias, de Manoel Antonio de Almeida, já com dois séculos de existência, mas que em tal quesito, atualíssimas. Com efeito, estava lá:

Passavam ali todos os dias do ano três ou quatro oficiais superiores, velhos, incapazes para a guerra e inúteis na paz, que o rei tinha a seu serviço não sabemos se com mais alguma vantagem de soldo, ou se só com mais a honra de serem empregados no real serviço. Bem poucas vezes havia ocasião de serem eles chamados por ordem real para qualquer coisa, e todo o tempo passavam em santo ócio, ora mudos e silenciosos, ora conversando sobre coisas do seu tempo, e censurando as do que com razão já não supunham do seu, porque nenhum deles era menor de 60 anos. Às vezes acontecia adormecerem todos ao mesmo tempo, e então com a ressonância de suas respirações passando pelos narizes atabacados, entoavam um quarteto, pedaço impagável.

Qualquer curiosidade sobre eles estava, portanto, ao alcance da mão esclarecer. Dois desses camaradas, os mais assíduos por sinal, adoravam atravessar o corredor e vir até setor do Judiciário para assuntar os temas do dia, desde mandados de prisão até as audiências de paternidade. Na verdade, tinham especial afinidade pelo café que era servido do nosso lado, de forma mais generosa e com mais qualidade do que no Executivo ou no Legislativo. Eram duas simpáticas criaturas, sessentões, meio barrigudos, carona gorda, sorriso fácil, conversa inesgotável. E o mais curioso: eram gêmeos, tendo sido no passado idênticos, atendendo pelos nomes de Arnoldo e Arnaldo. Foram com a minha cara e eu resolvi aproveitar a chance para fazer-lhes uma abordagem, digamos literária – ou sociológica.  

Inventei para eles a história de que, como advogado, eu queria escrever um tratado sobre política, particularmente no nível municipal e que gostaria muito de saber como eram as funções e as características de cada agente da tarefa política. Vi então que, dois a dois, os olhos deles brilharam, com manifesta vontade de colaborar, talvez por acreditar que com isso suas tarefas ali no gabinete do Prefeito pudessem adquirir algum sentido. Por que não?

Nas primeiras conversas vi que Arnaldo (ou seria Arnoldo?) tinha um jeito mais direto e até abrangente o de tratar minhas perguntas. Logo pude perceber que daquela moita sairia alguma lebre. O outro, mais fechado, foi logo me perguntando se poderia responder por escrito. – Pode sim, com certeza, abreviei. O que eu queria de fato era conhecer aquele universo tão curioso, para não dizer outra coisa.

Alguns dias depois, assentei-me com Arnaldo debaixo do mulungu defronte ao prédio onde trabalhávamos e ouvi dele um depoimento bem completo.

Profissão, assim formal, me disse que nunca teve. Saiu da escola com 15 anos e nunca mais voltou. O pai queria que ele fosse padre, mas desde menino já tinha percebido que seu negócio era outro, o mesmo acontecendo com o gêmeo Arnoldo, que a família queria destinar à Polícia. Também não deu certo neste ramo.

Na política? Foi assim, o pai e dois dos tios sempre foram ligados nisso, como candidatos, ou mesmo cabos eleitorais. Eleição mesmo só um desses tios ganhou, e foi por um único mandato. Na verdade, o autêntico ramo de negócio de todos ali era ganhar eleição – para os outros – sem deixar de ter algum lucrinho também, que ninguém é de ferro. E como lucro, explicava o seguinte: uma beiradinha na mesa ou na antessala de quem fosse eleito. Antes isso era mais forte, dava melhor resultado, ele mesmo tendo sido secretário da Prefeitura numa ocasião, chegando até a morar na capital, trabalhando no gabinete de um deputado. Tudo isso foi por pouco tempo, porque depois as coisas foram piorando, quem acabava por pegar as melhores bocas eram os caras indicados pelos partidos, muitos vindos de fora e eles, os locais, cabos eleitorais de sempre, ficando apenas com as sobras, umas meias bocas muito sem-vergonhas, como aquela em que estava metido agora.

Ali no gabinete do Prefeito, sua função principal era acompanhar as visitas à Prefeitura, de políticos de outras cidades e de deputados, por exemplo. Não eram muitos visitantes, por certo, mas volta e meia aparecia algum, meio extraviado. Quando isso acontecia, já havia um carro para esta finalidade na garagem da prefeitura, um Opala velho, mas ainda prestante, que servira na primeira gestão do prefeito atual, 15 anos atrás, mas que ainda dava conta do recado. Outro dia, porém, tiveram que empurrá-lo para fazer o motor funcionar, mas por sorte o visitante era de pouca importância, um chefe de departamento de lixo de uma cidade próxima, que veio conhecer o lixão do Brejo. E o tal sujeito até ajudou a empurrar aquela furreca.

Bom mesmo, para ele, era a ocasião das festas, quando o povo comemorava o São João e apareciam uns artistas. Aí a coisa ficava animada. É claro que se fossem artistas famosos, quem cuidava disso era um Quinzinho, secretário do Prefeito, que ele considerava um cabra danado metido a besta, a se julgar o rei da boniteza. Para eles e outros bagrinhos, sobravam os artistas menos cotados, mas mesmo assim, me garantiu, dava para se divertir, depois de se apresentarem os artistas e quase sempre saírem para alguma farra.

Que tipo de farra? Seria bom nem contar com detalhes, me disse ele, porque rolam também umas poucas-vergonhas bem cabeludas. No tal do Moinho de Ouro, por exemplo, uma antiga fazenda ali perto da cidade, na qual o dono cansou de tomar prejuízo e resolveu arrendar para uns caras que vieram de fora. Criaram lá uma espécie de cabaré, com música de disco, roda de viola e depois de uma certa hora, a presença de uma muiezada de fazer gosto – e gasto. Esta era a parte mais divertida, mas também complicada, porque era preciso disfarçar o tempo todo do povo da oposição, principalmente de uma vereadora inimiga, a tal da Zuzu, que ele designou como uma pecinha sem graça e sem valor, gente de esquerda, que não vale nada.

Aquilo era o normal na entressafra, como ele denominava o tempo em que não há eleições a vista, nem as daqui do município, nem aquelas para deputado e governador. Mas quando elas chegavam, aí o bicho pega, tem que ficar muito esperto, correr atrás de eleitor o tempo todo, andar por cada biboca que até Deus duvidaria que existisse. Mas gostava disso, sem dúvida: porque é nessas horas que eu mostro o meu valor. Nisso aí se incluía distribuir cestas básicas (que a primeira dama preparava), passes de ônibus, consultas no SUS – essas coisas por assim dizer “normais”.

Garantias? Nenhumas…  Coisa complicada tal profissão. Pra ter garantia, me disse, era preciso ganhar a eleição, o que nem sempre acontecia, claro. Na penúltima, por exemplo, ficaram na mão – e na penúria. Mas depois era sempre possível dar a volta por cima. Em relação às próximas, daí a dois anos, contudo, tinha fortes dúvidas.  

Dava pra ganhar um dinheirinho? Ficou em dúvida se poderia de fato revelar tal coisa… Lembrou que eram contratados, ele e os demais, sem concurso, e que recebiam mixaria, um salário mínimo e pouco – e olhe lá. Mas eles, os de cima, arranjam sempre umas vantagens, pagamento de diárias por exemplo, sem que se precisasse de fato viajar. Deus o livrasse de viajar de verdade, porque se fosse assim o dinheiro não pagaria nem um PF em uma birosca qualquer. Ouvia sempre dizer também que havia uma turma contratada sem obrigação de vir trabalhar, mas que no final do mês deixavam uma parte do ganho com o Secretário do Prefeito e com este dinheiro, ou parte dele, melhoravam um pouco o valor que recebiam. É o que diziam, ele não tinha certeza, nunca vira de perto aquilo acontecer, nem tinha como, claro.

Quis saber de mim, que era um homem da Justiça, se havia algum jeito de ser diferente, com o tanto de fiscalização que colocam em cima das prefeituras hoje em dia. Por ele, pensava, tinha que ser assim mesmo.

Dito isso, concluiu: o que sei é que tenho que me virar. Dar uns trocados para a Maria ir à venda, abastecer o Corcel II que tenho, pagar uma cesta para minha mãe. Como é que eu ia viver? Acho que meu trabalho é de muita responsabilidade. Sério!

Arnoldo, o irmão-gêmeo de Arnaldo, me mandou um texto, pouco mais que um bilhete, rabiscado em papel almaço amarrotado, sobre o qual me avisou: olha, o senhor pode dar uma ajeitada nisso que está escrito aí, porque eu infelizmente sou de pouca letra.

O texto, uma vez ajeitado por mim, dizia o seguinte:

Meu trabalho aqui é de resolver os problemas do Prefeito e do Secretário da Prefeitura. Por exemplo, receber uns aluguéis, pagar as contas deles e outras coisas assim. Uma vez por semana fazer a feira e levar até a casinha de uma senhorinha que é amiga do Prefeito, a Stela, onde ele vai quase todo final de tarde, para espairecer um pouco da luta brava que é tomar conta de um lugar como este. Tenho também de acompanhar, quando me chamam, as batidas de um Azevedão, policial aposentado que cuida da segurança do prefeito. Olha que aqui as coisas são barra-pesada. Algumas das saídas do Azevedão, por exemplo, têm que ser feitas com mais dois ou três cabras decididos do lado dele, e eu sou um deles. Porque volta e meia a coisa se resolve aqui é bem na base do pé na porta. Ganho pouco, mas acho que é o que a Prefeitura pode pagar. O Azevedão às vezes faz uma complementação para mim, mesmo sem eu pedir, mas eu sei que ele tira muito mais em algumas das empreitadas que pega, porque tem uns malandros aí que pagam para não ir presos ou para não levar uns bons tapas. Atendo a dona Hortência, também, que é a mulher oficial do prefeito. Faço compras, busco encomendas. Ela ganha muitos presentes, por exemplo, na época das licitações da Prefeitura, mas exige que sejam buscadas no meio da noite, para não chamar a atenção de alguém mal intencionado. Acho que ela está certa; o povo aqui é muito falador. Acho que é assim que funciona. Não tenho mais nada a dizer, ou melhor, a escrever.  Espero que o senhor fique satisfeito. Agradeço e peço licença para encerrar esta conversa, que já está me deixando preocupado. Permite?   

 Quanto informação, meu Deus! Mas não resisto, por conta própria, acrescentar umas coisinhas … Nicanor, meu primeiro-amigo aqui, responsável pelo controle da dengue no município, me relatou situações problemáticas e impeditivas no controle da endemia, com necessidade de mudanças substanciais, no entanto quase sempre rejeitadas liminarmente pelo Prefeito, sempre sob argumento do tipo: com isso aí não posso mexer. Coisas banais como aplicar fumacê, alocar mais gente numa área de infestação brava de pernilongos, remover ou mudar funcionários de lugar, afastar de vez algum inadimplente. E em “isso aí” se poderia incluir o tanto o marido de uma vereadora (ou vice-versa), ou um cabo eleitoral, um médico que colaborou na última eleição ou simplesmente algum outro intocável, sem que se explicitem razões, digamos, republicanas, ou pelo menos lógicas, para tal qualificação.

Nas conversas de café, percebi também que a ida de algum assessor ou outro funcionário para reunião fora do município, costumava fazer o tempo fechar, pois com certeza confiança e autonomia são palavras que não costumam constar do dicionário da autoridade municipal, sendo trocadas por submissão e dependência. Isso não valia, claro, para o próprio Prefeito, para a Primeira Dama, para o Primeiro Secretário Quinzinho.

Dá para imaginar: com intocáveis de um lado e uma multidão de “desempoderados”, de outro, fica realmente difícil, se não impossível, fazer alguma coisa que preste.

E já que se falou em Primeira Dama…  Aqui é preciso fazer justiça, pois assim como a presença de corruptos na administração, as besteiras de tais personagens não seriam, nem de longe, uma prerrogativa municipal. Mas que como diz o adágio espanhol, que elas existem, existem, e aliás aprontam de tudo, desde terem sala ao lado do marido-prefeito, de onde comandam, formal ou informalmente, segmentos inteiros da máquina pública, até distribuírem, por conta própria, medicamentos adquiridos pela Prefeitura, sabe-se lá mediante quais critérios. Ah, sim, sem esquecer do comando das ambulâncias, aquelas “aviaturas” que, como se sabe, foram feitas para transportar eleitores, não exatamente pacientes.

História sublime sobre essas indefectíveis criaturas da política brasileira: certa vez, quando eu era ainda auditor, fui apresentado a uma espécie de atlas ou almanaque onde constavam as informações mais importantes sobre municípios, coisas como nome do prefeito, partido do mesmo, população, economia local, recursos públicos disponíveis, IDH, orçamentos, instituições locais, área em km2 etc. Até aí, tudo bem, mas havia outra informação surpreendente: o nome da primeira dama e sua data de seu aniversário! Para que seria? Os floristas e a fábrica de chocolates Kopenhagen, na melhor das hipóteses, poderiam informar.

Para encerrar este desabafo, recorro a meu amigo Nicanor, este misto de mata-mosquito e filósofo: Quem não vigia se atrofia. Cidadão que é cidadão mesmo não dá moleza pra governo. E eu completo: mas para isso é preciso que vigiados e vigias adquiram vergonha na cara. E que se revoguem, se houver, disposições contrárias.

Voltando a Arnoldo e Arnaldo: são apenas humildes testemunhas e vítimas da falta que a tal vergonha na cara nos faz, desde sempre.

 ***

Uma mala misteriosa    

Eu tentava, de maneira muito desajeitada, consertar um pedaço de cerca de arame farpado, junto com meu filho, então adolescente, quase ou mais desajeitado do que o pai, mas carregado de boa vontade. Eu comprara recentemente aquela terra, buscando apenas um bom lugar para descanso. O estado era de desmazelo geral, com uma casa de construção interrompida, onde habitavam algumas galinhas e outros bichos. Havia cerca, mas aquilo na verdade nem merecia este nome, sendo em muitas partes formada por um ou dois fios de arame, se arrastando pelo chão, entre paus carcomidos pelo cupim ou pela podridão da madeira velha.

Eis que ele se aproxima, dando vista de quem queria ajudar. Pequeno, mulato claro, magrinho como ele só, idade indefinida, mas certamente passando dos setenta, bem sertanejo, foi logo dizendo aquele ‘tarde moço, típico dos roceiros. 

– Boa tarde, tudo bem? Acho que estamos levando uma surra dessa cerca…

– Mas ‘cês não estão fazendo a coisa direito… Não tenho nada com isso, mas posso ensinar…

Foi em sua casa e veio armado com um simples martelo e alguns pregos. Com uma pequena acha de pau, firme, jogada pelo chão, improvisou uma alavanca. E agora munido de tal ferramenta, esticou os fios bambos do arame, dando-lhes logo a tensão de cordas de viola, com cuidado para não romperem, pois estavam também marcados pelo tempo, com ferrugem evidente. Com os fios esticados, no jeito, ficou fácil utilizar aquele martelo e alguns grampos, para fixá-los nos postes remanescentes.

Pegamos de papo, agradecidos e ali mesmo nos apresentamos (e fomos apresentados) a uma figura marcante: José Osmânio, dito Zé Lapicho, ou Seu Zé, meu vizinho, meu amigo, com quem convivi e aprendi muitas coisas, durante mais de 20 anos de convivência afetuosa e respeitosa. Prova disso é que, um dia, sabendo do meu interesse pela cultura sertaneja e também devido a acolhida que eu lhe dedicava, me disse que preparara uma surpresa para mim. E assim fui apresentado ao artifício, uma ferramenta produtora de fogo, um verdadeiro isqueiro caipira, formado por um tipo especial de pedra, o fígado de galinha; uma pequena barra de aço de facão, devidamente temperada no fogo; um recipiente feito de chifre, que ele denominou cornimboque. E assim, ao se bater na pedra com o aço, saltavam pequenas fagulhas que iam incendiar, depois de algumas assopradas, o algodão que estava inserido no tal cornimboque. Simples assim. 

Faleceu anos depois, com idade ignorada, mas certamente passando bem dos noventa. Não pude levá-lo ao pequeno e tosco cemitério da Vila e lamentei por isso. Mas Zé Lapicho, mesmo depois de morto, continuou presente: não posso me esquecer da cena, um mês depois de sua morte, em que eu e seu filho nos abraçamos e choramos, juntos, copiosamente aquela perda tão sentida. 

Compartilhamos, por um tempo, uma história singular.

Na casinhola onde ele morava, defronte ao meu terreno havia uma espécie de anexo. Para falar a verdade nem sei como aquilo ainda estava de pé, com paredes em que sobravam apenas restos de reboco, telhado em que havia telhas inteiras e buracos em quase igual proporção, janelas e portas totalmente devassáveis, deixando entrever um interior escuro e tosco, onde mal se via um catre e uma cadeira capenga. Supus que meu amigo deixasse aquela tapera ali apenas para esperar a hora de demolila. Um dia lhe indaguei, meio de brincadeira, se não tinha medo de aquilo lhe desabar na cabeça. Ele coçou a testa, dando a entender que realmente tinha preocupações com tal possibilidade, mas respondeu que não podia, por enquanto, fazer isso. Então resolveu me contar o porquê, numa história curiosa.

Alguns anos antes tinha cedido a casinha para um recém-chegado à vila morar. Ele não o conhecia, apenas lhe fora recomendado por alguém dali – e ele nem se lembrava mais quem era este – mas acedeu. 

O novo morador veio com armas e bagagens, mas isso é apenas modo de dizer, pois não tinha mais do que uma mala e algumas sacolas. Roupas, aparentemente, só as do corpo. No mais, um cobertor, duas ou três panelas e pratos de folha. Combinou com ele um valor de aluguel, de pequena monta e ficou morando ali. Muito discreto, jamais deu ao meu amigo qualquer indicação a respeito do lugar de onde viera e de qual seria seu propósito de estar ali. Passava a maior parte do tempo dentro de casa, aparentemente preso a leituras, talvez, também, a alguma escrita. Em algumas madrugadas, saía para um giro pelas redondezas, para logo em seguida se recolher à tapera, que, aliás, à época de sua chegada, talvez ainda apresentasse melhores condições de conservação.  

O pouco que Seu Zé conseguiu saber dele era de que esperava alguém que viria de fora, para lhe trazer um objeto ou valor muito esperado, que o tal inquilino especificava muito bem o que seria. Poderia ser algo que lhe deviam, segundo a interpretação de meu amigo.

Foi ficando por ali. Pagou o primeiro aluguel adiantado e a partir do segundo mostrava ao Zé Lapicho um caderno de anotações, com supostos registros da dívida, garantindo, porém, que quitaria tudo quando lhe chegasse de fora o que esperava. Isso, entretanto, nunca aconteceu e o senhorio também não se ocupou de cobrar, pois tinha o estranho como um bom vizinho, que ocasionalmente até lhe ajudava na capina do quintal, em algum reparo urgente no casebre e no cuidado com as galinhas.

Qual era o nome do tal homem? Meu amigo disse que uma vez perguntou, mas, por ser diferente do comum, logo se esqueceu do mesmo. Lá uma vez ou outra o homem saía dali para ir à cidade, deixava a porta trancada com um cadeado que trouxera, mas voltava sempre ao cabo de dois ou três dias, carregando previsíveis embrulhos, que pareciam ser apenas as compras do mês. Nunca demonstrou qualquer aumento de seu modesto patrimônio, feito por cobertor, roupas velhas e esgarçadas, além do deplorável vasilhame de cozinha. Com aquilo chegara ali, com aquilo vivia.  

E assim foram se passando os anos. Um dia, o estranho avisou ao Zé que precisaria fazer uma viagem de maior duração, talvez demorasse fora algumas semanas, ou meses. Mas que pedia a seu bom amigo que lhe deixasse guardar as coisas no casebre, até que voltasse, pois era sua intenção continuar morando ali. Na saída dele, Zé observou que o inquilino levava apenas uma sacolinha, deixando para trás a mala e demais pertences.  

Eu insistia: mas isso foi há quantos anos? Ele ficava em dúvida para responder, então me disse que foi antes de seu último neto nascer – e o tal garoto já falava grosso e até tinha bigode. Ou seja, deveria ter pelo menos uns quinze anos que aquele homem havia partido. Melhor dizendo, desaparecido. Mas abandonara ali uma mala…

Queira-se ou não, malas abandonadas sempre despertam suspeitas. Nesses tempos de terrorismo internacional, então, nem se fala. Mas evidentemente tal não era o caso daquela mala tosca deixada num casebre nos sertões goianos. Um escritor de mistério certamente se lembraria de colocar ali os restos esquartejados de alguém, ou pelo menos um esqueleto. Não devia ser o caso presente; ou quem sabe? O fato é que aquela mala misteriosa – digamos assim, à falta de outra palavra – começou a despertar minha vontade em descobrir o segredo que ali se escondia. 

Um dia revelei, com alguma cautela, minha curiosidade ao Zé. Para minha surpresa, ela me disse que já estava pensando nisso há algum tempo, pois realmente se dera conta que aquela viagem “de algumas semanas ou meses” havia esgotado seu tempo de espera. Além do mais, chegara à conclusão que já passava da hora de se demolir a tal tapera, que a cada dia se deteriorava mais, arriscando-lhe a própria segurança. Combinei com ele, assim, que em próxima oportunidade faríamos a abertura da mala, eu gostaria de assistir aquilo.  

Voltei ao Sítio algumas semanas depois, ansioso com a perspectiva da revelação do segredo, porém realmente sem muita expectativa de que ali se escondesse algum mistério polpudo. Assim fomos Seu Zé e eu, finalmente, ao grande desfecho. Abrimos a tapera, com uma nuvem de poeira desabada sobre nós pela porta há muito travada. Uma nuvem de morcegos nos saldou, augurando, aparentemente, que aquilo ali prometia alguma coisa fora do normal. A mala estava jogada a um canto. Eu nunca a havia visto antes, era uma daquelas feitas de papelão, ou material parecido, com alças e fechadura, como se usava antigamente, e estava derreada a um canto, meio encostada na parede, bastante deformada pelo tempo e pela umidade. Aliás, aquilo se parecia com tudo, menos com uma mala, para dizer a verdade. Ao trazê-la para um lugar mais claro, me pareceu que iria se desmanchar no caminho, mas resistiu, não sem antes nos dar um banho de poeira, detritos de cupim e provocar em mim espirros sem conta.  

Hora de abri-la, finalmente.

Zé Lapicho se antecipou com seu proverbial canivetinho e forçou a fechadura, já bastante enferrujada, que cedeu sem opor maior obstáculo. E lá dentro havia… nada mais que livros. Livros sem conta! Mas nada de filosofia, literatura ou mistérios em geral. Apenas uma profusão de antigos almanaques de farmácia, singelas publicações que não se usam mais, contendo curiosidades, piadas, informações sobre moléstias e, principalmente, propaganda abundante de remédios, geralmente do tipo popular. Isso e nada mais, a não ser muita poeira e muito mofo, com histórico de anos. Uma peça, por assim dizer, arqueológica. Além de um material com mostras de manuseio intensivo, sem dúvida.

Então aquele homem passava seus dias, semanas, meses e anos a ler aquilo! Ausência total de mistério… Ou melhor, o mistério era exatamente este: que proveito ele tirava daquilo? E para completar, que homem era aquele, vindo não se sabe de onde, de identidade desconhecida, sempre a esperar algo que nunca chegou, que se entretinha com charadas e propaganda de remédios, e que da mesma forma que apareceu, desapareceu um dia? Pensando bem, havia muita coisa misteriosa naquilo. Interpretar é que seriam outros quinhentos.

Mas pensei: na vida sempre há mistérios, principalmente para quem sabe procurar. E de onde menos se espera, de almanaques de farmácia a propagandas de remédios, podem surgir grande revelações. Tudo não seria muito diferente do que parece ser à primeira vista? De nada sei, mas penso que é melhor procurar uma resposta mesmo diante de mínimas evidências, como na história desta mala abandonada.

De toda forma, quando voltei à minha casa, dei uma limpada geral nos armários, entregando aos cuidados dos lixeiros uma caixa contendo velhas roupas e sapatos, livros, revistas, além de utensílios diversos. Sem nenhum mistério associado. Preferi assim, antes que algo fosse criado a partir de tais objetos.

 ***  

Um Santo Homem  

Dom Luiz Soares de Azevedo, grande homem, virtuoso sacerdote.

Chegou nomeado Bispo em minha cidade e só não foi a Arcebispo ou Cardeal por ser, por assim dizer, um exagerado, mas na modéstia que lhe era peculiar. Sei da história dele o bastante para reconhecer e propagar suas virtudes e, principalmente, a boa bizarrice de suas atitudes com a vida e a batina. 

Nasceu de família pobre e acabou no seminário ainda adolescente, pelas graças de um parente cônego. A vida eclesiástica era uma constante na família, alcançando tios e primos em diversos graus. Mas de uma longa série de irmãos ele foi o único a seguir tal caminho. Ordenado padre foi enviado a paróquias remotas, onde primou pelo zelo religioso e pelo exercício de uma liderança social sempre reconhecida. Deixou marcas por onde passou, seja pelos sermões inspirados ou por obras materiais visíveis, como orfanato, casa de idosos, abrigos e outras. Nunca se empenhou em construir novas igrejas, todavia, alegando que não era isso o que de fato interessava ao Todo-Poderoso. Montado em um velho Chevrolet percorria cada biboca de sua alçada, pregando, aconselhando, confessando, casando ou batizando quantos lhe aparecessem pela frente.

O primo cônego dizem, recomendou ao Arcebispo que se lembrasse dele em futuras promoções. E assim ele foi subindo de paróquia em paróquia até que um dia, para surpresa de ninguém, a não ser de si mesmo, fui nomeado Bispo na minha cidade, a principal de nossa região, onde pude conviver com ele por alguns anos.

Um sujeito especial. Baixinho, rosto inclinado para o chão, tímido, voz quase sussurrante (a não ser em seus sermões), sempre vestido com batinas que lhe excediam no talhe, já que as ganhava das beatas, que por sua vez as mandavam fazer não se sabe em que tipo de alfaiate. Dom Luiz era, por assim dizer, uma pessoa quase invisível, dada sua enorme discrição, mas por onde andou era um gigante, deixando sempre rastros que o fizeram querido e admirado. E em torno dele se criou um verdadeiro folclore, com as narrativas de suas intervenções, casos, frases, ações surpreendentes – e até algum humor.

De tudo que se conta, quando ainda era apenas pároco no interior, história bizarra é a do dia que salvou o farmacêutico da cidade de um suicídio. O homem tinha sido enganado pela mulher com seu melhor amigo e mesmo disposto a perdoar o casal adúltero, desesperou-se com a notícia que os dois fugiram da cidade para levar uma vida longe de qualquer escândalo. Tentou se suicidar, primeiro com uma mistura tenebrosa de drogas de sua própria farmácia, mas não obteve seu intento. As más línguas logo se fizeram presentes, dizendo que o homem era tão incompetente em seu ofício que nem nisso lograva sucesso. 

Passada a ressaca da carraspana farmacológica, o pobre boticário sobe ao telhado do sobrado do estabelecimento, onde já nem conseguia dar expediente e ali passa a caminhar em visível desorientação, com evidentes sinais de que ia dar prosseguimento à sua falhada tentativa anterior. 

Nisso alguém vai atrás de Dom Luiz, amigo do casal, que acorre pressuroso e chega sem ao menos tentar dialogar com o homem a partir do piso onde estava. Ao contrário, ele pede uma escada, sobe ao telhado, ajeita-se ali ao lado do quase suicida, que a esta altura aceita parar de se mover nas alturas, e dá início a uma conversa ao pé do ouvido por longos minutos. Finalmente descem, com o Bispo a conduzir o homem discretamente à casa paroquial, onde passam o resto do dia em confabulações secretas. 

O resumo da ópera foi o fechamento da farmácia por algumas semanas, até que o boticário retornou de onde estava, ninguém sabendo em que lugar, com a reabertura do estabelecimento, sem outras explicações. Como se não bastasse, em poucos meses passou a morar junto com a vistosa mulata que desde muito lhe fazia a faxina na farmácia. Dizem que Dom Luiz lhes abençoou a união e que só não os casou porque a adúltera sumira no mundo e não havia como, canonicamente, anular aquele casamento malsucedido.

De outra feita o chamaram para exorcizar um roceiro que sem mais nem menos chegara em casa, no meio de seu expediente no milharal, e começara a quebrar móveis, louças, aparelho de rádio, e ainda a perseguir mulher e filhos com um porrete nas mãos. Não sem antes fazer diversas tentativas de colocar fogo na casa. Luiz, apenas um pároco na ocasião, estava em visita pastoral pela região e foi chamado a dar uma solução ao caso, que a todos parecia uma possessão demoníaca. 

Antes de se munir de um crucifixo e rosário, entretanto, ele preferiu conversar com o homem, com a mulher e outros familiares, a respeito de seus hábitos anteriores. O provável endemoninhado havia se recolhido aos matos vizinhos e para lá o padre Luiz dirigiu, chamando-o pelo nome e convidando-o a conversarem. Determinou que ninguém o acompanhasse de perto. Teve sucesso em sua estratégia, porque passada uma meia hora, quando os circunstantes á pensavam em intervir, ele foi visto saindo da capoeira de braço dado com o infeliz, logo o levando até sua casa e em seguida até a cidade, onde o deixou aos cuidados do doutor. E este, aliás, já conhecia bem o caso e inclusive avaliou que o problema estava acontecendo por conta de que o paciente havia abandonado, fazia algumas semanas, o tratamento com antipsicóticos que lhe fora prescrito. Caso resolvido, portanto. 

Para concluir, o vigário fez correr uma rifa na cidade e praticamente remobiliou, quase por completo, a casa do infeliz casal, que já era pobre o suficiente para ainda ter que arcar com os custos de um acontecimento desastroso como aquele.  

De outra vez um marido relapso com seus deveres conjugais, inclusive distribuindo afetos por toda a vizinhança, foi chamado às falas por ele e a partir daí ninguém mais o viu em botequins e bordéis. É o que dizem…

Mas no meio de tanta virtude tinha também umas fagulhas de mundanidade. Não, não era caso de rabo de saia, isso não. Nesse quesito, Luiz era rigoroso ao extremo. Era cercado de mulheres sim, mas apenas de beatas de má catadura, que o vigiavam, cozinhavam para ele, lhe lavavam as roupas e cerziam suas meias e cuecas com o zelo de corujas com seus borrachos. A vida mundana de Dom Luiz tinha um só nome: Truco! Ah, ele se pelava por uma boa mão de carteado! E tinha até sua própria roda, onde era tratado com as honras merecidas, formada pelo gerente do Banco, pelo Promotor, pelo Tabelião, pelo vice Prefeito, por mim, que era na ocasião advogado e Procurador da Prefeitura, além de um ou outro convidado ou agregado ocasional.

Ali Dom Luiz dominava o cenário, sempre com sua voz de sussurro e sua postura cabisbaixa: é truco pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, meu filho! É seis e você chega pra lá! Olha que eu convoco o Arcanjo Gabriel para lhe expulsar daqui… Todos achavam graça naqueles modos e mais ainda o respeitavam – e não era para menos. Com Dom Luiz não tinha jeito de se fazer diferente. No arremate, lá pelas dez da noite, porque o Bispo era precoce em seu sono, servia-se um licorzinho de jenipapo e os trabalhos eram dados por encerrados.

Um dia apareceu na roda um jogador novo. Era sobrinho ou primo do Tabelião e ao contrário dos demais membros, todos passados dos sessenta anos, este tinha no máximo trinta. Chegara ali por convite do seu parente, também dono na casa, que avisou que o rapaz era gente de bem – um requisito fundamental para alguém se assentar naquela mesa – e que além do mais se pelava por um bom joguinho de truco, sendo também um bom jogador (outro requisito).

Feitas as apresentações foram distribuídas as cartas e a mão começou. De saída notou-se que o recém-ingressado era um tanto inquieto, mexendo-se muito na cadeira e fazendo suas trucagens com certo espalhafato, o que era excepcional ali. Neste dia, Dom Luiz estava com sorte excepcional, as mãos sempre lhe saiam cheias. E o jovem, ao contrário, tinha o total azar de seu lado. Lá pelas tantas, depois de o Bispo ter ganhado três ou quatro rodadas sucessivas, a sorte finalmente pareceu sorrir ao recém-chegado. Ele se impou todo, como um pavão ou um peru e tonitruou aos quatro pontos cardeais: é truco, safados! Botinas pressurosas rapidamente lhe pisaram os pés em sinal de advertência. Ninguém, até então, ousara proferir algo assim na frente do Bispo. Mas dessa vez o Promotor tinha a manilha, fazendo o estouvado adventício recolher o rabo entre as pernas.

Mas o pior ainda estava para acontecer. A onda de sorte do novato ainda não passara de todo e logo depois ele achou que a sua vez de trucar havia chegado de fato. E o fez com o modo intempestivo de sempre. Lá de seu cantinho Dom Luiz sussurrou: é seis, meu filho, pela graça de Nosso Senhor e da Virgem Maria… O novo sortudo agora estava com tudo e mais alguma coisa e sabia que o Bispo não poderia levar a melhor naquela rodada. E já irritado com aquela parcimônia verbal, resolveu botar pra quebrar no recinto, no velho modo a que estava acostumado nas rodas de jogo entre seus pares em outras mesas mais profanas. E aos gritos fuzilou: pois é doze, seu bispinho filho da puta…

Constrangimento geral, desculpas em salvas repetidas. Só Dom Luiz não se abalou com aquilo. Foi até o mancebo, agora exangue num canto da sala e colocou as mãos em sua cabeça, a abençoá-lo: pois é meu filho, coisas da vida, né? Jesus Cristo te abençoe. Volta na semana que vem para a gente jogar mais.           

Assim era Dom Luiz. 

Ele foi capaz de atravessar incólume todas as mudanças que a Igreja Católica experimentou a partir dos anos sessenta. Passou, por exemplo, a rezar a missa em língua pátria e de frente para o público, sem maiores contratempos ou dissensos, da mesma forma que abandonou o púlpito para fazer seus famosos sermões, passando a discorrer com mais proximidade a seu rebanho, andando para lá e para cá na nave da igreja. Adotou também o costume de colocar vários dos fiéis em posição de destaque nas missas, às vezes até o substituindo nas homilias. 

Passou a fazer batismos e casamentos de forma mais esporádica, pelas suas atividades burocráticas na Diocese, mas adotou novos hábitos criativos em tais celebrações, pedindo salvas de palmas para os noivos ou pagãozinhos incorporados ao rebanho de Deus. Quando achava que o “sim” de um dos noivos não tinha ênfase suficiente obrigava-o a repetir a palavra até que esta fosse quase gritada, debaixo de risadas gerais. E a admiração dos fiéis por ele só crescia.    

No final da vida fez o que ninguém esperava. Passou a andar de roupas esportivas pela cidade, reservando a batina apenas para as celebrações e encontros importantes. Cansado de benzer instalações e placas comemorativas, bem ao gosto dos políticos, mandou avisar que não mais faria isso, não tendo abandonado, porém, o atendimento aos variados convites para aniversários, chazinhos e outras comemorações de paroquianos comuns. 

Nos seus anos finais podia ser encontrado de pijama, na varanda da casa paroquial, cumprimentando indiscriminadamente quem passasse pela rua. E não foram poucos os convidados, mesmo desconhecidos, para entrar e tomar um café e comer um bolinho com ele, para horror das corujas beatas.

Morreu como viveu: discretamente. Um dia, simplesmente, a beata de plantão, estranhando sua mudança de hábito madrugador, deu com ele no leito em plenas oito horas da manhã. Morto, mas com uma serenidade especial, quase um sorriso nos lábios lívidos.

A esta altura eu já não morava na cidade e o acompanhava apenas de longe. Quando estive lá, alguns meses depois de sua passagem, resolvi visitá-lo no cemitério. Lá estava ele em sua habitual modéstia. Na cova singela, quase rasa, a pequena cruz de madeira crua se ornava com um ninho de pássaro. Seu construtor e morador me pareceu se espelhar no vizinho que habitava mais abaixo no local: pequeno, frágil, com a penugem clara, piando de forma discreta, pulando para lá e para cá, sempre atento a tudo que lhe rodeava.   

 ***

O Apocalipse segundo JB   

Bem aventurado aquele que lê, e os que ouvem as palavras desta profecia, e guardam as coisas que nela estão escritas; porque o tempo está próximo. Apocalipse 1:1-3

Caminhar pelas ruas da cidade era antigo costume de João Batista, JB para os mais íntimos. Desempregado, então, fazia daquilo quase um ofício. Andava pelos quatro cantos, procurando novidades ou coisas fora da rotina, quaisquer que fossem: construções inacabadas, praças e ruas em fase de reparos, lixo jogado em lugares inapropriados, automóveis abandonados, pneus e colchões em desuso jogados a esmo, algum vazamento de água ainda não corrigido. Em uma pequena caderneta anotava tudo, para dar parte, dizia ele, sem declarar quem seria o objeto de tal comunicação. Se houvesse alguma criança ou criação perdidas nas ruas, deixassem com ele também.

O que importava de fato era anotar, registrar, de alguma forma fazer aquilo ganhar substância. Depois haveria de procurar o que fazer de tanta acumulação. E havia muito trabalho a cumprir, naquela vila que ele via em total desmazelo, antes de um arremate de sua missão. Depois, um dia, se veria…

Passava repetidamente pelos mesmos lugares, em jornadas que apenas gradualmente se ampliavam, sem maior pressa, todavia. Era preciso prestar contas, talvez principalmente a si mesmo, de cada canto percorrido e da inspeção de cada lote vago, antes de ampliar sua exploração cotidiana.

E foi ali, debaixo do pontilhão da estrada de ferro que ele ouviu a voz pela primeira vez. E ela dizia qualquer coisa sobre um cavalo branco, cavalgado por um homem armado de arco e flecha. E mais ainda, que tinha sido dado a tal homem uma espécie de manto, para quando ele saísse vencedor de terríveis batalhas.

A voz o chamava pelo nome, mas dizendo apenas João, sem usar o Batista, nome pelo qual era mais conhecido. Ele olhou em torno, espantado. Não por ter ouvido a voz, pela qual ele afinal já esperava há tempos, mas por não imaginar que ela lhe chegaria em lugar tão estranho, com tanto lixo atirado, cheirando a esgoto, com ratos e moscas por todo lado. Mesmo assim se regozijou, pois afinal de contas algo há muito augurado lhe alcançava.

Depois de anotar as condições do local na caderneta, se assentou no chão para ouvir melhor. Sem deixar de se preocupar com as condições do local, viu que havia muito a ser compreendido naquelas longas e complicadas sentenças que a voz lhe trazia, apontando terríveis acontecimentos. A menção repetida a palavras como “revelação” e “anticristo” lhe sugeriu que aquilo tinha ligação com algo de fundo mais religioso ou espiritual. E a voz também lhe dizia, repetidamente: “são quatro, são quatro”! Quatro o quê? Indagou a si mesmo, pensando se poderiam ser quatro cantos, quatro ventos, quatro queijos. O que significaria isso, afinal?

A voz parecia se alterar, em modos de irritação e ameaça. Falou também de um cordeiro degolado, além de peste, de guerra e de fome. Aquilo fazia sentido para ele, ao lembrar daquela imagem inicial do cavaleiro armado e montado em uma mula branca. E a voz agora sussurrava: “João, atenção! Este é o que traz a peste em seu cavalo branco, a peste! Mesmo os que se cuidam não escaparão”.

JB ficou de fato perturbado, a cabeça agora lhe latejando com intensidade. Resolveu caminhar para fora daquele lugar, temendo que aquela voz cada vez mais ameaçadora se voltasse contra ele. Saiu dali a vagar fora de seu domínio habitual, até que se recostou à parede de uma oficina abandonada e adormeceu ali. Exausto.

Mas logo se viu desperto. Seus ouvidos, tão próximos àquela parede nua e fria, a ouviam de novo. E a voz agora falava em grandes acontecimentos, com o número quatro sendo substituído pelo sete: sete pragas, sete selos, sete pecados. E mais, agora chamando alguém: “Daniel, Daniel, Daniel, onde está você?” Uma coisa nova era pronunciada, lembrando mais uma vez o tom místico da conversa de antes: “um cordeiro foi morto, pode ser uma coisa assim, João? E muita guerra virá”, dizia ainda a voz. 

Não saberia dizer se dormiu de novo, se vagou mais ainda pela cidade, se voltou para casa. Só se lembrava de ter estado por outros diversos lugares, agora de volta a seus percursos habituais. Passava então por uma chácara já conhecida, na periferia da vila, quando novamente ouviu: “João, meu filho… sim, você mesmo!” E aquilo parecia partir agora de dentro de um muro de pedras que cercava a propriedade.

E prosseguiu a voz, falando agora de um cavalo vermelho, cujo cavaleiro, ameaçador, armado de uma grande espada, seria capaz de extinguir toda a paz da terra, fazendo com que os homens se tornassem inimigos entre si. O tom ameaçador era cada vez mais assustador e isso o fez estremecer. Mesmo assim, ou por isso mesmo, resolveu seguir adiante.

Agora a voz parecia o perseguir, brotando de cada muro, mureta, cerca e até mesmo do chão cru. Às vezes apenas dizia seu nome, de forma ácida, se calando em seguida. E seguiu falando de um profeta que iria reunir seu rebanho e ao mesmo tempo travar batalhas contra os inimigos ameaçadores. E a alusão ao cordeiro morto voltava a ser repetida, inúmeras vezes, como se buscasse a vingança de um crime terrível. Um cavalo negro foi anunciado e galopando com ele o flagelo terrível de uma fome como nunca se viu antes. “Como nunca ninguém pode ter visto, João, em nenhum lugar deste mundo de Deus”.

Seguiu adiante, assustado, cada vez mais afastado de seu território habitual. A velha igreja, há tempos fechada por falta de padre, lhe pareceu bom lugar para repouso e distância daquilo que certamente lhe movia alguma perseguição. E ali ouviu mais, a referência a um cavalo preto, cavalgado por um homem que portava uma balança de peixeiro em uma das mãos. E a voz, sempre ameaçadora, dizendo algo ainda mais misterioso, como trocar partidas de trigo e cevada por dinheiro, com azeite e vinho como parte de tal negociação. “João, presta atenção, tudo isso é muito sério, é o Senhor que quer assim!” E ouviu chamar novos nomes, além do Daniel já citado, como Zacarias, Ezequiel e Oziel, fossem lá quem fossem. Ele realmente não sabia quem seriam e qual papel teriam naquela provação que agora lhe chegava. 

Seguiu em frente, cada vez mais esbaforido. De novo no pontilhão da ferrovia julgou ser possível se proteger ali. E ali a voz, mais uma vez, cresceu em tonalidade e ameaças. O personagem equino era agora uma mula ou amarelo esverdeada. “João: este é da mesma cor de um cadáver que se decompõe!” E era o quarto e último, assegurou a voz, com tal montaria sendo portadora de morte e tragédias diversas. Talvez não fosse uma mula, mas uma égua esquálida, pela hora da morte. E seu ginete era simplesmente a Morte, com todo um cortejo de seres enviados ao inferno e destinados à extinção eterna a seguindo de perto. 

A voz, cada vez mais insistente e tenebrosa dizia que aqueles quatro cavaleiros e suas montarias branca, vermelha, negra e baia, estavam chegando para anunciar o fim dos tempos. “Presta atenção, João, seu pecador infeliz!” Esses aí eram os escudeiros do Anticristo e para quem bem soubesse entender representavam Peste, Guerra, Fome e Morte. Seus ginetes não salvariam ninguém de nada, pois eram os verdadeiros e últimos carrascos a punir a humanidade em pecado.

Ele então percebeu que não seria possível alcançar salvação para ele, aliás, para ninguém, ninguém mesmo. Tinha que escapar, no mínimo para algum lugar onde não houvesse paredes ou muros, entidades que carregavam não só aquelas notícias tão más, mas junto com isso uma feroz capacidade de executá-las. 

Tomou assim a estrada principal e por ela caminhou, noite adentro e também no dia seguinte, apesar do sol, da poeira, da canícula opressiva daquela época do ano. Era preciso escapar. Ele sabia que era inocente absoluto em relação a tudo o que a voz apregoava. Não! O filho de sua mãe não seria pego, com certeza.

No dia seguinte, já ao crepúsculo, alguns trabalhadores rurais o descobriram e os homens da ambulância municipal o resgataram em seguida. Estava caído numa valeta lateral da estrada, com a cara suja de lama, língua seca como uma canela de ema, olhos vidrados. E balbuciando sem parar palavras com sentido misterioso e desconhecido, como Apocalipse e Armagedon, além de outras, entre as quais a palavra Besta se destacava. Murmurava cheio de ira e ansiedade se alguém vira por ali quatro cavalos, ou mulas, cada qual de uma cor diferente. E invocava sem parar a proteção de São João, jogando nomes feios sobre uma desconhecida Salomé, jurando vinganças terríveis contra o ser que ele denominava Anticristo.     

No terceiro dia sua mãe, uma humilde lavadeira que morava longe, veio visitá-lo no hospital psiquiátrico. E trouxe para o filho, um livro, a Bíblia, que ele, segundo ela, costumava ler com avidez havia meses, passando assim até noites em claro. Para a mãe, João Batista sempre fora uma pessoa calma e normal, sempre muito rigoroso e cumpridor de seus afazeres. Começou a ter mudanças de atitudes depois que perdeu o emprego de frentista em um posto de gasolina e se separou da mulher. Por causa disso começou a frequentar uma igreja evangélica, sendo acolhido como uma espécie de protegido do Pastor, que lhe influenciava naquelas leituras da Bíblia. Ela precisava comunicar a este homem sobre os acontecimentos dos dias anteriores, aquelas mudanças tão graves de comportamento do filho, quem sabe ele o ajudaria. Precisava só arranjar um dinheirinho para colocar o dízimo da igreja em dia, atrasado desde que JB perdera o emprego. 

Com relação às palavras que ele repetia sem cessar, “Margedão” e “Apocalipes”, a mãe desconhecia o significado delas, mas sentia que era coisa que parecia importar muito ao filho. Ela só queria que fosse curado daquilo, precisava dele demais, não só como companhia para sua velhice, mas também pelos trocados que bem ou mal ele lhe trazia no final de cada duas semanas.  

Ficou ali no hospital por alguns dias, medicado e recuperando a serenidade habitual, sendo isso percebido com alegria pela mãe. Depois da alta, entretanto, passou a se mostrar angustiado ao extremo, quando por acaso ouvisse um eventual tropel de equinos nas ruas da cidade.

  *** 

Apenas uma mulher…

A moça nasceu e cresceu na pequena cidade, ainda uma vila, que só ganharia estatuto municipal bem mais tarde. Igualmente originários dali pai, mãe, avós e não se sabe quantos antepassados mais. Parece que o lugar já tinha começado com sua família, ali presente desde sempre. Um possível antepassado entrou para a história da pátria, por ter guiado as tropas nacionais na fuga dos ferozes paraguaios. Mas isso era apenas assunto sem confirmação, amplificado pela gente daquele lugar pacato onde nada acontecia, salvo a repetição das histórias do passado, verdadeiras ou não.

O moço que chegou de fora, para comprar uns novilhos do pai, botou nela uns olhos que a incomodaram de início, mas depois lhe abriram uma vaga esperança de que, aos dezesseis anos, quando muitas dali já se casavam ou de alguma forma arranjavam marido, talvez houvesse chegado a sua vez. E podia ser o caso. As conversas do moço com o pai lhe pareceram significativas.

A mãe chamou-a mais tarde, lhe fez vestir uma roupa nova, calçar sapatos, e participar da conversa noturna, na pequena varanda da entrada. O moço apenas a olhava, não lhe dirigiu palavra. Ela, com os olhos no chão, tentava entender o que acontecia ao seu redor, mas só soube com certeza no dia seguinte, quando a mãe lhe revelou que o recém-chegado havia proposto ao pai que desse a ele sua mão. Um casamento! Entre assustada e feliz ela tentou entender. Negar, nem pensar, era a vontade do pai e quem era ela para dele discordar, nem que fosse por um átimo de tempo? Mesmo os irmãos, homens e mais velhos, não ousariam tal coisa, quanto mais ela.

E assim se fez. Como mais dois meses o moço apareceu de novo e aproveitando a rara presença do padre, celebrou-se o casamento. Na mesma noite partiram, ela e ele, em lombo de mulas, para uma vida nova e totalmente desconhecida. Será que serei feliz? – pensava ela com esperança, mas sem poder afastar uma sombra de preocupação. Afinal, deixaria ali os irmãos mais novos, de quem cuidava com o carinho de uma segunda mãe, as amigas da escola, a professora a quem ela se apegara tanto. Mas a vida é assim, lhe disse uma comadre da mãe, a mais chegada, por sinal, cabia seguir tal sina. Quem seria capaz de negar o que seria o real destino de uma pessoa?  

A mula a carregou para outras paragens, uma terra estranha, com pessoas pouco dispostas a conversar e dar atenção a quem viesse de fora, como era o caso dela. Lá o moço era popular, cumprimentava a todos na rua. Ela na mula, de olhos baixos, mal se dava conta do ambiente que agora seria o seu. A ninguém lhe foi dada a gentileza de ser apresentada como esposa. Quase um ser invisível. A mula recém adquirida lhe pareceu ter mais valor do que ela própria, tendo merecido elogios de seu porte e elegância por parte de homens que proseavam na sombra de um abacateiro, rodeados por suas montarias. Estes nem olharam para ela, por respeito temeroso, talvez.  

Mas nem era bem ali naquele povoado que estava o seu destino. O moço, quase todo o tempo silencioso, custou a lhe revelar que na verdade tinham ainda que viajar algumas léguas, para chegar à fazenda herdada de seu pai, onde ele morava e tocava a vida.

A moça não teve em outros tempos casa ampla ou confortável, de família apenas remediada que era. Mas as acomodações que o marido dispunha para viver eram diferentes – para bem pior – daquelas a que estava acostumada. Uma mesa de pés bambos, três ou quatro cadeiras, um catre que mal cabia uma pessoa, destinado agora a abrigar um casal – era tudo que havia ali. E, de quebra, uma cozinha minúscula e imunda, na qual o picumã acumulado talvez por décadas descia do telhado em negras volutas. O homem apenas lhe indicou com um gesto mudo que poderia pendurar suas escassas roupas em forquilhas rústicas colocadas nas paredes.

Ela então percebeu o quanto sua vida já mudara e continuaria a mudar dali para frente.

Suas noites eram aterrorizantes, com aquele ser bruto, suarento e cheirando a fumo por cima dela, sem trocar palavra, resfolegando como um cavalo. E ele vinha sem nada lhe indagar, nenhum cuidado com suas dores de virgem. E acabado o ato, virava-se na cama para roncar placidamente, enquanto ela fitando o teto começava a se perguntar se aquilo lhe tinha sido realmente uma boa escolha. Mas era tarde para se arrepender.

Salvou-a do desalento total a boa figura da mulher do vaqueiro, que morava próximo, em cafua ainda mais pobre e desmazelada, mas que se aproximou dela, indagando se precisava de alguma coisa, se podia ajudar. Ela agradeceu, mas logo percebeu que o maior auxílio que poderia desejar seria ter alguém que conversasse com ela, porque o marido era de um mutismo de pedra. O casal tinha dois filhos, tão pretos quanto eles e aquelas presenças lhe trouxeram lembrança dos irmãos, da vida em família que tivera, que mesmo modesta era bem mais interessante do que estar enfurnada naquelas brenhas.

O resultado das investidas noturnas do marido logo se fez notar, com a parada das regras e a previsível prenhez. Um ano depois naquele exilio, sem tornar a ver o pai, a mãe e os irmãos, viu que havia chegado a hora de entregar sua contribuição ao povoamento daquele mundo. Na madrugada começou a sentir as dores e avisou ao marido. Este já estava de saída para a habitual ronda do gado e avisou à preta que viesse acolher a mulher.

Contorceu-se por horas a fio, com a vizinha atarantada ao lado dela, pouco mais podendo fazer que aquecer uns panos para colocar sobre o ventre, àquela altura duro como pedra. Pela noite o marido apareceu, mas mal se interessou pelo andamento do parto. Na manhã seguinte levou-a, finalmente, à cidade, mas lá o que se pôde fazer foi induzir a expulsão de um natimorto.

Na volta ao lar, teve por parte da preta um desvelo de mãe. Acolheu-a, lavou suas roupas e lençóis, matou a galinha mais gorda para lhe preparar uma canja. Esteve ao lado dela por horas seguidas, dias a fio, até que a amiga e protegida, finalmente, começou a dar conta de suas tarefas. O marido, a esta altura, saíra de casa para mais uma viagem de compra de gado, com duração de dias sem conta.   

E os dias se seguiram imutáveis. Veio a chuva e a cafua principal, cheia de goteiras e com o chão de terra batida, só não se transformou em um brejo porque o preto fez nela alguns reparos, por espontânea vontade, não porque o patrão assim o decidira. Na volta do marido, nem bem passadas duas ou três semanas, os assédios noturnos prosseguiram e logo o resultado deles se fez novamente sentir.

Desta vez, porém, conseguiu que o homem permitisse a vinda da mãe e alugou uma casinha na cidade, na qual ela passou as últimas semanas antes do parto. Desta vez veio um menino, dos mais saudáveis, por sinal. E este ainda nem começara a firmar a cabeça quando ela percebeu de novo a parada das regras. Mais alguns meses e um novo ser era trazido ao mundo, outro menino. O marido olhava os rebentos sem maiores comentários, incapaz de lhes fazer algum carinho ou mesmo um leve toque no macio dos cabelos.

E assim foi pelos anos a fora. Um filho por ano. Doze no total, dos quais pelos menos três nasceram mortos ou não sobreviveram ao primeiro ano de vida. O marido, sem proferir palavra, como sempre, resolveu aumentar a casa, acrescentando dois quartos toscos ao conjunto existente, sem maior cuidado com sua pintura ou conforto interno. Um tempo depois, concordou que fossem todos morar na cidade, não exatamente para maior conforto dos filhos, apesar de terem chegado à idade escolar, mas porque resolvera abrir um negócio na rua, deixando na fazenda o preto cuidando da engorda anual de bezerros.

Pouco tempo depois chega em casa e anuncia a ela: prepara as coisas que amanhã vamos nos mudar. Para onde, ela quis saber. E ele:

negócios meus, pra melhorar de vida, você só me traz filhos, todo ano… Foram para uma cidade maior, ele abriu um armazém e sucessivamente mudou de ramo, com açougue, padaria, quitanda. Mudando de casa a cada ano ou menos, sem perder o costume de avisar da mudança apenas na véspera, a mesma frase exaustivamente repetida: prepara as coisas para amanhã…     

Ele era bruto, mas também trabalhador. Anos depois, com alguns filhos já emancipados, teve a gentileza de comunicar a ela com uma semana de antecedência: vamos nos mudar; agora é para a Capital. Ela nem perguntou sobre o que iriam fazer lá. Não teria resposta mesmo. Desta vez a mudança foi dentro de malas, apenas as roupas e mesmo assim as melhores. Afinal ele tinha amealhado dinheiro bastante para comprar mobília, alfaias e panelas novas. Pela primeira vez em muitos anos ela se sentiu prestigiada. 

Na cidade grande o homem montou seu comércio de compra e venda de cereais. Viajava sozinho ou por intermédio dos filhos maiores para regiões agrícolas, dali trazendo feijão, milho e arroz para lucrativa revenda na capital. Dos cereais passou aos porcos e destes ao empréstimo de dinheiro a juros, agiotagem pura e simples. Sua ousadia e inquietação acabou por levá-lo a um ramo no qual não tinha nenhuma experiência, uma pequena empresa de transporte, juntando o capital de que alguns dos filhos homens já tinham posse, transformando-os em sócios do empreendimento. Não ficaram ricos, mas puderam levar uma vida mais confortável. O casal passou a morar em casas melhores, embora de aluguel, pois aquele homem apreciava mudar sempre, por força dos negócios ou por força de antiga compulsão. A mulher continuava a ser avisada dos novos planos do marido na véspera, mas nunca reclamava, por costume ou temor – ela já nem sabia mais o motivo.   

Passaram-se os anos. Antes que completasse os cinquenta, a sucessão de partos conduzidos de forma precária, as longas jornadas de trabalho pesado com a casa, acrescidos do resultado das investidas de certo percevejo do mato, migrado para a cafua onde habitaram no passado, lhe afetaram as batidas do coração e mesmo o corpo como um todo. Em poucos anos estava inutilizada e não chegou a completar as cinco décadas de vida.

Em seu velório, a penca de filhos se retorcia em dor e desespero. No quintal, o filho mais novo, temporão, mal saído da adolescência, mordia, nervoso a bainha da camisa, num choro crispado, embora sem lágrimas. Assim levaram-na ao cemitério, em um cortejo com poucos amigos.

Sobreviveram todos, o filho mais novo também. O viúvo usou uma tarja preta no paletó por algumas semanas. Mas um ano depois já tinha se enrabichado de uma turca solteirona e celebrou, alegre e agora mais comunicativo, um novo casamento, ao qual a maioria dos filhos compareceu e festejou. 

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Um Jardineiro 

O jardineiro desta história não sou eu. Sou livreiro, dono de uma pequena livraria, quase falida. Como as vendas andam poucas e os credores numerosos, gasto meu tempo em leituras com a porta fechada e às vezes em andanças pelas imediações, atrás de novidades interessantes e pegando conversas aqui e ali. É que de tanto ler e trabalhar com livros, fico caçando histórias e às vezes me dá vontade de escrever também, como, aliás, faço agora. Assim foi que dias atrás, andando aqui pelo pedaço, escutei conversas que me deixaram curioso. Os frentistas do posto de gasolina e a velhinha de aventalzinho xadrez pareciam bem preocupados com um meio mendigo, morador de rua esfarrapado e sujo, que aparecera por aqui. O cujo insistia em medir, sinalizar e escavacar o gramado defronte ao condomínio de apartamentos do outro lado da rua. 

Gente tão aparentemente normal, como aquele grupo que eu assistia a conversar, talvez até tivesse razão em não entender o que via. Mesmo para mim, que gosto de ler e estou acostumado com tipos estranhos, nos livros pelo menos, achei aquelas conversas um tanto curiosas, ao tratarem de um tipo tão estranho. Vejam só…

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  • Viu só a pinta do cara que agora faz ponto ali no gramado?
  • Não tinha visto ainda. Fala daquele deitado na sombra do jamelão?  
  • Sim, aquele mesmo, sujo e mal arrumado como ele só – e fedido…
  • Cruzes! De onde será que aparecem umas figuras assim? Será que caem de algum caminhão de lixo? 
  • Faz duas semanas que está aí. Não tem cara de fazer mal a ninguém. Mas tem um jeito estranho. 
  • É esquisitão mesmo, ainda mais com este cheiro e estas roupas esfarrapadas.
  • Sei lá o que é isso… O sujeito passa o dia tomando medidas com um bastão e um pedaço de corda. Anda pra lá e pra cá, como se fosse um mestre de obras ou coisa assim. E vai fincando aqui e ali uns pauzinhos.
  • É cada um que aparece… Lembra daquele que ficou ali mesmo por uns tempos, com uns vinte cachorros ao redor dele? Até chamaram a assistência social. Porque a cachorrada encheu isso aqui de pulgas e um vira-lata andou mordendo gente. Depois disso veio a carrocinha – e fui um fuzuê de primeira. 
  • Espia agora, arranjou uma enxada velha e começou a fazer buracos. Desde ontem começou com isso.
  • Dá licença, moço… Vai completar o tanque freguês, quer que olhe a frente?
  • Ok, beleza, até mais!

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  • Meu filho, inda que mal lhe pergunte: o que você está fazendo aí?
  • Não quer responder? Melhor que você me esclareça… Faço parte da administração daqui da quadra e sei que não é permitido gente dormindo debaixo das árvores e ainda mais fazendo buracos na grama. Melhor você explicar para mim antes que…
  • Não quer falar nada e ainda vai me dando as costas… Olha que você vai se arrepender!
  • Jardim. Um jardinzinho só…
  • Você está querendo dizer que vai fazer um jardim aqui?
  • Vou sim.
  • Olha meu filho: este gramado faz parte de um projeto paisagístico, entende? E para todos os efeitos é um jardim; já está pronto! 
  • Inhora?
  • Vou te explicar melhor: não precisa de ninguém vir fazer jardim aqui, entendeu?
  • Mas carece…
  • Precisa o quê meu filho? Você parece não entender bem as coisas.

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Afinal, como é que podia um indivíduo como aquele, vindo do andar de baixo da sociedade, parar ali para simplesmente cuidar de paisagismo, pensei eu. Ainda mais em uma cidade que é considerada exemplo mundial em tal assunto?

Eu já havia observado o personagem por algumas vezes e depois de ouvir tais conversas resolvi acompanhá-lo mais de perto, como novidade em um cenário de poucos acontecimentos, entre os quais meus escassos fregueses na livraria. Quem sabe aquele ali não seria portador de algum segredo, que me caberia revelar ou quem sabe descrever, para fazer justiça às minhas pretensões intelectuais, bebidas em Margareth Mead e Agatha Christie. Um modo de curiosidade quase antropológico, diria eu. E assim me pus em estado crescente e irrevogável de curiosidade, coisa humana em demasia, a la Nietzsche. 

Pensei, para início de conversa (ou como ideia guia de uma tese antropológica, sei lá…): o que estaria fazendo ali tal sujeito, que sentimentos ou desejos de fato o moviam, de onde vinha e para onde iria uma vez completada sua obra? Se é que tinha um real projeto em mente. Ele já se revelara, nas minhas primeiras aproximações, como indivíduo capaz de demoradas e refletidas observações das coisas que o rodeavam, sendo capaz de ficar longos minutos à sombra de uma espirradeira, para finalmente decidir onde fincaria sua próxima estaca. E cada buraco que cavava era medido e definido como se fosse passar por ali uma estrada, sabe-se lá para onde. Saberia ele, aquele aparente homem comum, porém um intelectual de alguma engenharia, na acepção gramsciana? Ou, quem sabe, alguém dado a considerações graves, como é próprio de deuses e poetas, ou como se cada pedra fosse todo o universo, conforme Fernando Pessoa?

Era o caso de esclarecer aquilo melhor e logo comecei a aproveitar, para fazer investigações, os momentos em que não havia clientes na livraria – coisa bastante frequente, para meu desgosto. Em tais ocasiões, ficava olhando de longe o personagem, o que me exigia muita paciência, porque ele era de fato pouco dado a circunvagar. Um dia eu o peguei na porta da padaria, onde o proprietário bancava um programa informal de distribuição gratuita de pão dormido. Ali pude ver que esperava calma e resignadamente a sua vez, levando uma latinha de goiabada que lhe servia de prato, na qual recolhia seu pedaço de pão, além de alguma broinha ou pão de queijo, ou o que mais houvesse. Saiu de lá carregando um pacote de leite já previamente avariado, deixando pingar o líquido pelo chão, sem se abalar. Rumou então para seu cantinho, na sombra de um jamelão e ali comeu sua porção, mastigando com delicadeza e sem nenhuma pressa, como se aqueles restos amealhados na padaria fossem manjares formidáveis. E de costas para passantes, fazendo do ato de se alimentar um ritual exclusivo e vedado aos demais. Uma vez alimentado voltou ao seu mister: observar, medir, estaquear, observar, fazer buracos, observar, estaquear…

Minha curiosidade dava saltos ao ver os buracos feitos laboriosamente por ele, que me pareceram, em um primeiro momento, ter destino ocioso. Mas não era bem assim, pude perceber em seguida. Ele fazia incursões em terrenos vizinhos, ou mesmo mais remotos, de lá trazendo ramos diversos, que ia fincando na terra solta dos buracos, com precisão e método, pois frequentemente se detinha a observar longamente, cobrindo os olhos dos raios do sol, o alinhamento ou a estética do que acabara de plantar. Sim, porque aquilo tinha todo o jeito de um plantio, embora eu tivesse dúvidas se toda aquela ramagem colhida a esmo, seria de fato viável para brotar no terreno seco. Para completar, trazia pedras, cacos de tijolos ou pedaços mais grossos de madeira, para delimitar cada uma de suas covas, construindo montinhos desorganizados aqui e ali. Não contente, ainda fincava umas varetas adicionais, às vezes até pedaços de móveis velhos e barras de ferro enferrujadas e quebradas, achadas no lixo, ao que parece tentando criar uma barreira de proteção para suas plantas.             

Em um sábado resolvi não abrir a livraria, para segui-lo mais de perto. Por azar, ele não apareceu, nem no jamelão, na espirradeira ou alguma de suas sombras habituais. Na padaria também não estava, mas dei de cara com a senhorinha, com a qual eu tinha presenciado aquela conversa meio ameaçadora uns dias antes. Eu a conhecia superficialmente, talvez de alguma passagem dela pela livraria ou mesmo dali da padaria mesmo, onde eu costumava tomar um café antes de abrir meu boteco livreiro. Resolvi abordá-la, falando do personagem e inquirindo-a sobre sua impressão sobre ele, como se eu também estivesse desconfiado de seu comportamento. Fiz isso para deixar a mulher à vontade, e parece que funcionou, pois ela me despejou uma longa arenga sobre o que considerava como uma invasão da nossa cidade e particularmente de nosso bairro por parte do que denominava de “uma horda de gente desqualificada”, lamentando que o governo ou a polícia não tomassem providências quanto a isso.

Eu nem argumentei. Aliás, não encontrei o que dizer a ela e, além do mais, aquilo não aliviava em nada a minha curiosidade de antropólogo amador, apenas adicionava ingredientes ao cenário de preconceitos e senso comum com qual eu já estava acostumado a conviver, na família, entre alguns dos clientes da livraria e mesmo por parte de alguns amigos menos próximos.

Pensei comigo: quem sabe os frentistas do posto de gasolina teriam alguma informação adicional sobre o misterioso jardineiro? Eu já conhecia a turma dali, por abastecer meu Fusca semanalmente e até por trocar com eles, lá uma vez ou outra, informações sobre futebol e outras banalidades.  

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  • Vocês viram o jardineiro do gramado ali de frente por aí hoje?
  • Jardineiro? Tá falando daquele mendigo que fica por aqui?
  • Sim ele mesmo.
  • Eu não vi, doutor. Você viu Severino?
  • Parece que sumiu por esses dias, às vezes faz isso. Costuma ficar até quatro ou cinco dias fora daqui, mas sempre volta.
  • O que vocês sabem sobre ele?
  • Ah quase nada… O cara parece meio misterioso…  
  • Ele já conversou com vocês?
  • A bem dizer, não. Fala umas coisas que ninguém entende.
  • Mas mudo ele não é…
  • Não é mudo não. Eu já vi ele falando com árvore e até com as curicacas que chegam até aqui no final da tarde. E olha que parece que sabe conversar também como gente normal. Como se perguntasse e respondesse ao mesmo tempo, como já vi ele fazer também.
  • Ele veio aqui no posto alguma vez?
  • Muito raro… Já veio para usar o banheiro um par de vezes, mas o gerente proibiu de entrar. Disse que pegava mal para a empresa. Mas a gente já viu, de madrugada, ele tomar banho numa mangueira que fica aí à disposição dos motoristas. Esses banhos não adiantam nada, porque ele veste sempre a mesma roupa, encardida e fedorenta que só.
  • E amigos, visitas… Alguém com jeito disso por aqui?
  • Gente e suja e esfarrapada como ele não, com certeza. O cara é muito solitário.
  • Nada mesmo?
  • Ah, tem a mulher que vem de vez em quando, pela noite.
  • Contem! como é isso! 
  • É tipo madame, vem de carrão, até com motorista. Chama ele, acho que é Alberto o nome, e ele custa a aparecer, parece que tem má vontade com ela, mas acaba vindo. Às vezes o motorista vai atrás e traz ele, na base do convencimento.
  • Que história hein, conta mais…
  • Não acontece nada de especial. Ela traz uns pacotes, parece que de comida. Ele come um pouquinho e dá o resto pros pombos. Roupas também, mas isso aí, se ele usa não sabemos. Ou então amarrota, rasga e suja bastante antes de vestir. O bicho é doidão demais, doutor…
  • Legal! Completem o tanque. O troco fica pra vocês!

 Caramba, aquilo era um caso e tanto!

Passados uns dias, ao chegar na livraria, pude vê-lo novamente. Parei bruscamente o Fusca, quase o deixando no meio da rua e me aproximei dele. Andrajoso como sempre, mas com a diferença agora de que usava uma espécie de jaqueta militar, pois o tempo andava frio. Até parecia elegante, não fossem os farrapos sujos por baixo do casaco e aquela gaforinha mal penteada e mal lavada. Saudei-o; não respondeu. Perguntei se gostaria de conversar comigo um pouco. Redarguiu com um muxoxo de indiferença. Quis saber de seu nome e nada me disse. Acompanhei-o até o jamelão, em cuja sombra ele havia guardado alguns ramos recém-colhidos e a ferramenta de trabalho, nada mais que uma simples enxadinha. Acompanhei-o, agora em obsequioso silêncio, mas o que ele fez foi afastar-me com as mãos, em gesto impaciente de quem não queria conversa.

  • Melhor deixar para outro momento – pensei – não deve estar de boa veneta hoje.

Não houve outro momento. Deixei de vê-lo por ali vários dias até que percebi uma movimentação diferente no seu território de ação. Havia homens uniformizados, com um pequeno trator e ferramentas de mão. Pelo uniforme, vi que eram empregados do condomínio. Boa parte dos montículos com suas pedras, entulhos e gravetos já havia sido aplanada e ajuntada para remoção. As árvores em que ele costumava se abrigar e onde mantinha guardados alguns trapos e utensílios tinham passado por uma poda e limpeza radical do chão em sua sombra. Um dos montículos da remoção mostrava algumas das peças assim recolhidas, com roupas, latas, garrafas, além da enxadinha. Nenhum sinal da pessoa do jardineiro, a não ser por tais despojos recolhidos no terreno.

Certamente ele voltará – pensei. Mas isso não ocorreu depois de muitos dias de espreita minha. Os frentistas, indagados, disseram tê-lo visto de relance, andando de um lado para o outro, coçando a cabeça. Depois, sumiu.

O síndico do condomínio foi ágil em sua missão. Demolidos os montículos, mandou podar a grama bem rente e a replantar nos lugares de que tinha sido retirada pela plantação infrutífera. E tudo voltou ao normal de sempre naquele terreno, agora liso e sem imprevistos. Assim como tudo o mais por ali.

E ele, o jardineiro persistente e dedicado, por onde andaria? Teria ido procurar outros lugares com pessoas mais receptivas? Ou menos curiosas? Mudou de cidade por rejeitar aquela gente indiferente, que não soube lhe reconhecer o esforço e as qualidades de paisagista? Teria finalmente se rendido à vida que aquela mulher bem vestida talvez lhe proporcionasse? Ou, quem sabe, resolveu se dedicar a outra profissão?

Jamais pude responder essas questões. Minha tese antropológica parou por aí. Além do mais, tive que fechar a livraria e entregar o ponto. Parei de frequentar o pedaço e não tive mais notícias daquele homem, mas sempre que passo por um terreno descampado dou uma conferida para ver se o vejo. Em vão. 

Uma história sem nexo, esta – eu acho. Mas o certo é que a cada dia que passa vejo que o caldo da vida também não tem muito sentido. Aliás, isso nada mais é do que uma mixórdia de mistérios, incompreensões, frustrações, derrotas. No meio de tudo isso uma gente ignorante, jejuna de leituras e de humanidade, mas também, algumas vezes, indefesa e incompreendida. O pouco que soube deste pobre homem me permite colocá-lo em um cruzamento no qual a miséria e a incompreensão são redimidas por de uma cada vez mais rara sensibilidade. Um diamante em meio ao cascalho bruto.   

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Uma vida   

O pai não era pobre, pertencente que era, de nascença, à vasta categoria dos remediados, como de resto toda a sua família. A mãe, esta sim, vinha de um clã que se situava alguns andares acima. Como o pai tinha tino para negócios, logo se emancipou da família matriz, daquela vidinha rasteira de criadores de vaquinhas, bezerros e muares, que o acompanhava por várias gerações. Logo buscou o rumo do horizonte vasto que havia para além do paredão de montanhas de sua terra, arranjou algum dinheiro emprestado para se lançar na vida e saiu a negócios pelo mundo.

Começou comprando bestas de carga, para aprumá-las e vender com lucros, para em seguida tornar-se ele próprio um pequeno – depois médio e até robusto – agente autônomo do comércio, com mercadorias buscadas nos centros mais pujantes, além das montanhas, até no litoral. 

O velho não estudara muito, sabendo apenas ler, escrever e, principalmente, fazer contas. Dotado deste último atributo é que, certamente, se deu bem nos negócios. Com menos de 40 anos de vida, já tinha fazendas, incontáveis semoventes, apólices em bancos, casas na cidade e até mesmo na Capital. Aos filhos augurava que vencessem na vida, com perseverança e honestidade, como ele próprio, mas preferia não vê-los a tomar chuva e sol nas estradas, levar coices de mulas, perseguir bons preços no mundo áspero e cheio de matreirices do comércio e muito menos correr atrás de devedores relapsos e contumazes. 

– Os senhores terão tudo o que quiserem de minha parte, desde que estudem e se preparem para uma vida prestante – é o que sempre dizia aos três filhos homens. Para as duas filhas bastaria que arranjassem bons casamentos, para o que ele, com os cuidados atentos de pai, certamente agiria conforme os costumes. Em outras palavras, mediante vigilância estreita sobre quem viesse cantar serenatas a tais donzelas, sob as janelas do sobrado na rua mais nobre da cidade.     

Cumpridos os ritos escolares, escassos naquela cidade, pouco mais que uma vila perdida no Mato Dentro, fronteira com o território Botocudo, e sendo ele, o Moço dessa história, filho mais velho, o pai, com poucas palavras, como de costume, indicou-lhe o rumo da cidade grande, para que avançasse nos estudos e se formasse em alguma profissão de brilho. Queria-o médico ou advogado, foi bem claro. Para os filhos homens mais novos, pelo menos a formação em farmácia, magistério, seminário de padres. Para as filhas mulheres, já se sabe.

E assim cabia fazer. Ordens de tal origem não se podia contrariar. Na capital do estado, cidade recém-criada, ainda não havia tais facilidades, ou o que havia não era considerado apropriado. E lá foi o Moço para o Rio de Janeiro, em longa viagem, de muitas baldeações. Na capital ficou por dois ou três dias hospedado em pensão familiar, indicada por um tio que ali já morava há algum tempo. A acolhida lhe foi generosa, seja por parte da proprietária do estabelecimento ou de sua filha, moçoila de seus 15 anos, que ficava rubra quando o Moço por acaso lhe dirigia palavra. Ele, também, com seu tanto de timidez, acabava evitando interagir com ela, por percebê-la um pouco avexada com aquilo. Mas alguma coisa, talvez alguns olhares fugidios, já se fazia presente nos corredores da pensão, para logo se perder entre as mangueiras do quintal. 

Havia uma missão a cumprir, bem o determinara o pai e ele seguiu adiante. Mais um dia inteiro no trem de ferro, roupa e corpo cobertos de fuligem, ele desembarcou na capital do país à beira do mar, que ele viu pela primeira vez. Nem teve tempo de se espantar com tanta gente nas ruas, tantas carroças, a novidade dos automóveis, o cheiro de maresia, o calor. E mais aquela gente estranha, de olhar desabrido e fala sibilante. Carregando a própria mala, atravessou uma fieira de vielas, pulando as poças d’água e de imundícies, para finalmente chegar ao endereço que os amigos do pai na cidade, haviam indicado para colhê-lo durante seu período de estudos.

Rua Uruguaiana. Com tal nome já se mostravam os costumes diferentes de sua cidade, onde as ruas sem exceção, se nomeavam apenas como homenagem a pessoas gradas do local, no máximo um figurão do Império ou da jovem República. Nada de guerras além-fronteiras, de batalhas esquecidas. Logo achou a pensão que lhe fora indicada. A dona desta, ao contrário da anterior, não tinha filhas, era viúva e só tinha por companhia um casal de gatos. Mas o ambiente era familiar, com a presença de outros estudantes, como o Moço, vindos de várias partes do país. 

Para ele não foi difícil se aclimatar, mas aquela cidade tão grande e tão diferente nos modos de se viver, na temperatura e nos odores, volta e meia lhe apresentava surpresas. Quando ele chegou a terrível Espanhola havia cedido, mas era rara a família que não contasse um punhado de mortos entre os seus.  A moda era criar ratos em gaiolas, porque o governo pagava às pessoas por cada exemplar capturado. Depois vieram conflitos pela desocupação das pessoas que habitavam velhos pardieiros na região central, com mortos e feridos sem conta. Tudo culminou com grandes distúrbios nas ruas, com mais feridos e muitos mortos, em revolta contra a obrigatoriedade de se tomar vacinas. Tudo tão diferente de seu Mato Dentro natal.  

E no meio de tudo isso o carnaval, aquela orgia de gente se borrifando nas ruas com água e outros líquidos menos recomendáveis, as mulheres de braços nus e pernas quase totalmente descobertas, a profusão de máscaras, atrás das quais as pessoas faziam o que queriam, sem temor de serem identificadas. O Rio de Janeiro abrigava em si Sodoma e Gomorra, ao mesmo tempo. 

Começou o curso preparatório para a Faculdade de Medicina. Já na primeira semana de aula ao ser levado para conhecer o anfiteatro de anatomia, teve um baque que o afastou da profissão de forma inexorável. Um corpo exangue e formolizado, ao qual, para horror maior daquele projeto de médico, faltava uma das pernas, lhe tornou a vista escura de repente e quando (não) deu por si estava no chão – desmaiado. Com a risada geral dos colegas e os bons conselhos do professor resolveu, ali mesmo, procurar outra carreira, a de advogado, no que também contava com a simpatia do pai. 

No ano seguinte já estava matriculado na velha faculdade e durante o curso chegou mesmo a ser admirado pelos colegas e até louvado por um e outro professor, dada a acuidade de suas análises, traduzidas em textos vazados com estilo e pertinácia. O trato com os textos vetustos e embolorados, o hermetismo da linguagem jurídica, as decisões lentas e sempre sujeitas a contestação, não o desapontaram, pelo contrário, logo se sentiu como que nascido para aquilo. 

Ao pai prestava contas semestrais de seus progressos, sempre incluindo nas cartas trocadas com ele, informações sobre seus boletins de aproveitamento. E com isso, sem usufruir de nenhum luxo ostensivo, tinha seu dinheiro certo chegando mensalmente para as despesas normais de um estudante na capital da República, onde a vida era, naturalmente, mais dispendiosa que em seu berço natal. 

Com os irmãos tinha contatos protocolares, ficando sem ver pessoalmente a maioria deles, principalmente as mulheres, durante todo o seu tempo no Rio de Janeiro. Exceção feita ao mais novo, especialmente afeiçoado a ele, para o qual enviava de vez em quando livros e almanaques, chamando a atenção do mesmo para autores e obras que considerava importantes.

Os anos, então, se passaram depressa, apesar de sua vontade de logo retornar ao convívio familiar, o que fazia o tempo escorrer de forma lenta para ele. Mas a severidade do pai marcava o tempo: venha para casa apenas quando se formar – e ponto final. 

Contudo havia férias, e em tal momento não poderia ser pecado, mesmo aos olhos severos do pai, as idas a um lugar que lhe era especial, em julho e dezembro. Não havia na antiga hospedaria uma moça que tinha um olhar terno para ele? E assim com algum tempo se deu entre eles aquilo que a humanidade conhece desde o início dos tempos. A Moça, agora, já o esperava uma ou duas idas anuais dele à cidade. Passaram a trocar cartas, a princípio tímidas, depois cada vez mais declaradoras de fortes sentimentos. 

A mãe da Moça e dona da pensão, ele soube depois, vinha do sul do estado, onde seu marido fora promotor de Justiça. Entretanto, este havia adoecido gravemente, cardíaco. Um médico foi preciso no prognóstico: senhora, seu marido viverá por no máximo seis meses. E assim aconteceu. A recém viúva fez a trouxa e carregou os cinco filhos para a capital, onde já viviam algumas pessoas de sua família. Para sobreviver em tal condição, alugou uma casa e abriu pensão, passando também a fabricar petiscos para festas, numa vida não chegou a lhe trazer fortuna, mas sim algo mais essencial: boas amizades. 

A filha, a tal Moça dos olhos calorosos, foi estudar interna em tradicional colégio da cidade e ali, para ficar dispensada de pagamento dos estudos, ajudava as freiras a tomar conta das demais internas, tendo que se submeter, ainda, a trabalhos pouco adequados para sua idade, como acordar toda a turma às cinco horas da manhã, para o terço matinal. Assim, aos 15 anos, quando o Moço a conheceu, era uma menina apenas na idade, mas já uma mulher com responsabilidades plenas perante a vida, ajudando a mãe, junto com sua irmã, nos trabalhos de arrumadeira na pensão.

E depois de férias repetidas, quem um dia chegou à pensão, em caráter definitivo e com outras responsabilidades, não era mais o estudante em férias, mas o jovem advogado, em busca dos primeiros passos em uma carreira, sem saber ainda onde e como cumpriria tal missão. Mas o pai se adiantara, para comunicar a ele que devia chegar logo à terra natal, para cuidar dos vários negócios da família, que incluíam, naturalmente, passagens profissionais pelo Fórum da cidade. 

O pedido de casamento com a Moça da pensão logo aconteceu e foi aceito, por ela e sua mãe. Uma vez casado, dois meses depois, com presença já reclamada pelo pai, com insistência e autoridade, rumou para sua terra, onde certamente ganhar o pão de cada dia era mais fácil, ainda mais diante de sua nova situação de homem casado.

Uma viagem se fez então, a cavalo, o Moço e a Moça, que pela primeira vez em sua vida usava tal meio de transporte. Daí pra frente tudo seria diferente para ela. As madrugadas no colégio de freiras seriam como um refresco diante de uma sequência de gravidezes e partos, cuidados com filhos, empregados, casas, moléstias e principalmente modos estranhos de se levar a vida que até então eram novidades para ela. 

O pai, tendo-o agora presente na cidade, procurou se afastar da vida agitada e dura que levara até então. Entregou ao segundo filho a gestão de suas terras, vendeu as mulas e transferiu a um primo a boa carteira de comerciantes que eram seus clientes, em vastas extensões da região do Mato Dentro. E o Moço, filho mais velho, procurou se ajeitar em suas tarefas de causídico, livre, para seu contentamento, das tarefas comerciais e agrícolas que fizeram a riqueza do pai, agora destinadas a um irmão um pouco mais novo. Ali na cidade natal, sua vida se dividiu entre a advocacia, o magistério, a política e aquilo que viria a ser sua maior paixão: o trato com as plantas, os bichos e a natureza. Mas apenas depois de mais de duas décadas defendendo e acusando gente, sempre em torno de pequenas transgressões, é verdade, porque ali ninguém se atrevia a maiores barbaridades, salvo nas disputas por herança, assunto em que o Moço se tornou uma referência que ultrapassaria os limites locais, dada sua habilidade em negociar e fazer ajustes entre as partes.  

A esta altura, o Pai que antes relutara em se aposentar, mudou de ideia e se transferiu, junto com a Mãe, que andava muito doente, para a capital. Zeloso das formalidades de sua vida de negociante, reteve para si o cabedal indispensável para continuar vivendo, junto com a mulher, confortavelmente, graças às ações de banco e outros investimentos que acumulara com sabedoria ao longo da vida. Além das terras entregues aos filhos homens e os negócios comerciais a um parente, às mulheres destinou boa soma de dinheiro, além de papéis, que lhes garantissem um dote significativo diante dos pretendentes eventuais.

O Moço herdou do pai uma fazenda, de todas a mais próxima da cidade, talvez em respeito a seu hábito urbano de advogado. Junto consigo na herança o irmão mais moço, aquele ao qual presenteava livros. Este, agora, vivia na cidade grande, começando a se realizar como jornalista e aprendiz de escritor, longe, portanto das mulas, das terras e do escambo familiar e também de lides jurídicas.  

Com o sócio morando tão longe, coube ao Moço – agora já não tão moço – tocar a fazenda.  Assumiu sua administração e aos poucos fez com que a antiga propriedade, meio abandonada, se transformasse gradualmente em verdadeira fazenda-modelo, com maquinário tradicional movido a força de gravidade sobre a água e repleta de fruteiras raras, inclusive videiras das quais se chegou a produzir bom vinho, com terras sabiamente aproveitadas e seu notável casarão sempre muito bem conservado. Plantou café, aos milhares de pés, mas antes mesmo de que colhesse a primeira safra a grande crise internacional paralisou este tipo de negócio, culminando com a queima obrigatória das plantações, a ser ressarcida, de acordo com promessa do governo, entretanto jamais cumprida. Teve boas ofertas para dispor da parte de mata que era abrigada na fazenda, para dali se retirar madeiras de lei ou carvão, mas recusou-as todas, por não ver sentido em entregar uma obra secular da natureza à sanha predadora de alguns.   

Deixou marcas na cidade, fundador que foi, junto com outros ilustres conterrâneos, de um educandário misto, novidade em sua época, e também de uma Associação Comercial, honrando as raízes que recebera do pai.

Enquanto isso a Moça vivia com o Moço um casamento que poderia ser chamado de feliz, com suas grandezas e misérias, como o da maioria das pessoas. Ou talvez fosse melhor que a média, pois afinal ele, apesar de seu jeito seco, era cuidadoso e até carinhoso com ela. Jamais lhe levantaria a voz e em toda a vida juntos jamais foram dormir agastados um com o outro. Os filhos vieram em sequência, dez ao todo, com apenas uma perda, pela moléstia então denominada de colerina, distinguindo a família das demais da época, quando perdas numerosas eram quase obrigatórias 

Assim com a prole crescendo, ganharam mais liberdade e quando os mais novos já frequentavam a escola acharam por bem se mudar para a capital, onde a sogra e mãe, de dona de pensão passara a quituteira, das mais afamadas, por sinal. O Moço também não vinha se sentido bem, atribuindo seus males ao permanente clima úmido da cidade natal. O médico da família, seu colega de infância, suspeitou de uma tísica e assim endossou sua vontade de mudar de ares. Também auguravam maiores oportunidades para os filhos. 

Na capital, contudo, a tuberculose não foi confirmada e o Moço, que ali tinha bons amigos, acrescidos daqueles que o irmão mais novo lhe deixara, em sua mudança para o Rio de Janeiro, encontrou nova atividade profissional, como redator de um jornal, cargo anteriormente ocupado pelo caçula da família. 

Não deixava de ser uma vida tranquila, embora nada ociosa. A faina de sobreviver e cuidar da família impunha sacrifícios em relação a qualquer tipo de luxo. Filhos em colégio interno, sempre em número de dois ou mais, representavam fonte permanente de despesas. A tensão da grande guerra na Europa repercutia no dia a dia de qualquer família nos trópicos, ainda mais quando havia filhos moços correndo o risco de serem convocados, como aconteceu com o mais velho de sua prole, liberado à última hora, dado o encerramento do conflito.       

Mesmo com tudo isso, o ímã da política, da terra e das amizades, em poucos anos o atrairia de volta à terra onde nascera. Ali na velha cidade a política o atraiu com maior intensidade do que antes, com as mudanças generalizadas derivadas dos anos de guerra, além da opressão da ditadura de 15 anos. Por este tempo, ao discursar numa cerimônia de recepção ao ditador, que fora até a terra lançar a pedra fundamental da grande companhia mineradora, fez um discurso histórico, que sem deixar de ser elegante, insistiu em cobrar a redemocratização do país. Com tal perfil intelectual e militante, era amigo pessoal de líderes da oposição ao governo ditatorial, sendo alguns deles colegas de faculdade no Rio, que viriam a constituir um famoso partido político que tinha como lema o preço da liberdade é a eterna vigilância, embora o seu perfil fosse mais inclinado à liberdade do que a vigiar os outros. Sem dúvida comungava com eles os ideais de moralização, modernização e anseio pelo progresso material do país, além de alguma elitização da política, também.

A cidade já não era a mesma. A Companhia, onipresente, estendia seu poderio sobre quase tudo ali, comprando, esburacando, demolindo, corrompendo, contagiando através de seus milhares de operários, chegados de todas as partes do país, os costumes tradicionais, sob o olhar assustado dos moradores.   

Com mais alguns anos, família criada e o nascimento recente de uma filha caçula, numa gravidez em total situação de risco dada a idade da mulher, resolve se mudar, agora definitivamente, para a capital. Adquire então uma chácara, retomando ali a obra interrompida na fazenda, agora vendida à Companhia. O trato com a chácara e os netos que passam a nascer em sequência anual, são agora seus principais derivativos. A política e a advocacia se transformariam, então, em páginas viradas. Foi assim a vida que teve durante dez anos, até que faleceu, cercado pela família e pela legião de amigos.

Ele foi um homem de seu tempo, acima de tudo. A literatura lhe fez tentações, que afinal cederam, mas que vigoraram o bastante para contagiar o irmão mais novo, que atribuía a ele, sete anos mais velho, sua iniciação literária, inclusive graças a livros que lhe enviava do Rio de Janeiro, nos tempos de estudante. Pouca coisa, entretanto, restou de sua lavra. Andou de namoro com o movimento dos chamados simbolistas e até mesmo publicou um estranha “Baladilha”, vazada em tal estilo, cheia de reticências, e no português esquisito da época, na qual se destacavam frases como: Imagino-te fria, esgalga, velada em mortalha … Faces engelhadas, o corpo escarnado num elance juncal, cabelos limalhados de nimbus argenteos: na fronte – um mysterio de brumas cinereas, nos labios – um rictus funebre de caveira nova. E mais: […] Julgo-te moça, creio-te octogenaria… Idealizo-te uma virgem, nublada num véo d’espumas de luar, pallida, expectral… a beijar na noite esponsalicia o cadaver do noivo, na alcova de lyrios, no thalamo de núpcias. 

Entretanto ele, ao que parece, fez desaparecer todos os testemunhos materiais de tal aventura literária, pois nunca mencionava isso aos que o rodeavam. Seu próprio modo de levar a vida, aliás, não combinava com expressões como esponsalícia, esgalga, elance e outras.

Uma boa síntese dessa vida simples, mas de forte grandeza humana e cidadã, foi traduzida pelo irmão caçula, ao qual ele iniciou nas letras e que acabou se transformando em escritor, sem dúvida dos mais aclamados: 

Anos e anos escoados na cidadezinha natal, entre problemas pequenos e grandes que nunca se resolviam. Tentou ajudar a resolvê-los na oposição. No governo era impossível; não tinha paixão bastante para ser injusto ou odioso. Outros disputassem esse ou aquele posto importante, ele nem vereador quis ser. Mudou de terra e de vida. No fim, espectador enjoado, dizia aos políticos: seria melhor que fizessem como eu, indo plantar, tirar formiga, limpar galinheiro.

O mesmo irmão escritor o definira antes, em poucas e acertadas palavras, como o doutor e bacharel da família, cujas melhores letras foram aquelas escritas no sangue e na casca das árvores; alguém que sabia o nome de flores e frutas, especialista em casamentos genéticos. Enfim um ser nostálgico, cidadão urbano que não perdia o ar agreste, ao mesmo tempo letrado e camponês, transformado pela vida em autêntico patriarca. 

Não foi uma vida qualquer, em meio ao torvelinho das muitas mudanças nas quais o país rural e agrícola de sua juventude, voltado para si mesmo, seguiu em direção à miscelânea urbana e industrial, perseguindo, com tormento e esperança, um lugar no comcerto  da cultura e da economia mundial. 

 ***

Um moço de fora  

Naqueles tempos, tudo começava a ser diferente de antes, no país e no mundo. Havia na Europa aquela guerra monumental, que cobrava preço alto em vidas e destruição. Do lado de cá as coisas bem ou mal se moviam. A grande Nação do Norte tinha abandonado seu afastamento dos conflitos, depois dos ataques dos Orientais ao Porto das Pérolas e se lançava, finalmente, à maratona que iria mudar de vez o mundo. Ou, pelo menos, apressar tais mudanças. O País, entre a contingência de ficar recostado a seu berço esplêndido ou entrar de vez naquela peleja que alteraria a ordem até então posta, optou por esta última, não sem antes cobrar seu preço em moeda forte, em cessão de território, em ruptura com o Eixo, na abertura a negócios lícitos e ilícitos em borracha e minério. 

Antes é preciso dizer que já em décadas anteriores à Grande Guerra, o berço esplêndido era sacudido pelo cataclismo da modernidade, com cada vez mais gente nas cidades, a fumaça das indústrias por toda parte, o advento de novas máquinas para tudo. Entre outras aplicações destas últimas, as máquinas de plantar e fazer a terra produzir. 

E a história do personagem passa por aí também, dado que o Moço que depois de criado em roças remotas, teve a chance, improvável em outras circunstâncias, de ir estudar na cidade que se muito destacava, àquela altura, nas novas tecnologias da agricultura. Ali teve portas abertas por parte de um conterrâneo, pertencente a um estrato mais bem situado naquela sua aldeia pobre e esquecida, mas que galgara degraus na escada social, virando professor e especialista nas novas técnicas agrícolas. Naquela cidade marcada pelo saber agrícola tudo resultava de influência política, não tanto da pujança local ou regional na arte de plantar e colher. Mas não seria sempre este o modo das coisas acontecerem no país? 

Se fosse para contemplar uma região de real vocação agrícola, esta seria formada pelos vales e vertentes de onde nascera o Moço desta história, com sua terra calcária e seu cerrado frondoso, verdadeiro padrão nacional em matéria de terras férteis e de produtividade, em que o milho era colhido à razão de cem por um. Mas tudo isso ocorreu no país em que, se tudo estava mudando, muita coisa se transformava apenas para tudo continuar como dantes, conforme o dito da literatura.  

E assim o Moço filho daquela terra fértil, completada sua formação técnica, indicado pelo mesmo conterrâneo que o encaminhara para estudar agronomia, vai buscar emprego, na grande empresa mineradora recém fundada, dita A Companhia, empreendimento escorado pelo “esforço de guerra”, articulado entre a Grande Nação do Norte e a ditadura nativa. N’A Companhia ele foi atendido pelo diretor geral em pessoa, que em rito deveras sumário, quis saber se ele tinha experiência em horticultura, pois o projeto das instalações de mineração incluía a produção de verduras para alimentação dos operários, que já então eram contratados aos milhares, vindos de todas as partes da nação. Ele mal teve tempo de digerir a pergunta, balbuciou um “sim” intimidado e afobado, saindo dali contratado. 

Poucos dias depois o Moço pegava o trem rumo ao desconhecido e de uma estação remota, em carona por caminhão, acabaria por chegar ao lugar onde iria produzir benfazejas verduras para alimentação de tantos peões.  Susto maior ele não poderia sofrer. Ao invés dos campos espraiados de seu Oeste natal, o que ele via ali era uma sucessão de montanhas encavaladas, encostas cobertas por uma mata escura e tão diferente daquele cerrado que lhe era tão familiar. Ali havia frio, chuva, além de nevoeiro, que duravam dias e até semanas. Tudo muito diferente do que ele até então conhecera. Só não voltou para a casa do Pai porque já não cabia, nem um quarto ou cama tinha ali para ele. Enquanto estivera fora nasceram mais dois ou três irmãos. 

Com tudo o Homem se acostuma, entretanto – e o moço não fugiu à regra. Principalmente por lhe pingar no bolso, ao final de cada mês, o sagrado dinheirinho do salário, coisa até então praticamente inédita para ele. De tal forma que do azedo fruto que encontrou na chegada àquela paisagem de montanhas e matas, talvez não tenha sido difícil fazer um bom refresco. Melhor ainda que naquele ambiente de forasteiros não parecia difícil fazer amizades, pois todos talvez aspirassem um mínimo de camaradagem para suportarem aquele exílio no meio de muita poeira, frio e trabalho pesado. 

E assim o Moço, que de casmurro não tinha nada, acabou por se aproximar de pessoas da terra. Mesmo que por parte desses nativos houvesse razões, facilmente confirmáveis, aliás, para se desconfiar e até rejeitar os adventícios. Coisa boa, entretanto, ele fez talvez não de forma pensada, indo morar em uma pensão improvisada em casa de família legítima da terra. Isso, aliás, seria um caso rotineiro na vida daquela cidade fria e pouco acostumada a novidades e oportunidades de faturar algum dinheiro extra. O Moço, um tanto tímido, sem deixar de ter um temperamento se não comunicativo pelo menos curioso, acabou vendo lhe abrirem portas amigáveis entre aquela gente de aparência tão fechada. E assim, através de filhos coetâneos daquela família, o Moço acabou se aproximando e ampliando suas amizades com a rapaziada nativa. E, é claro, com abertura também para as primeiras insinuações de namoro, que mesmo vistas com desconfiança pelas famílias dali, representavam algo novo e tentador para as mocinhas, certamente enfastiadas com o ambiente endogâmico e repressivo que dominava o cenário local. 

E assim ele foi sendo deglutido, mas também incorporando os hábitos da cidade, os quais, com o passar do tempo, já lhe pareciam familiares, como se deles fosse partícipe desde sempre. Não era tarefa difícil, feita afinal por costumes comuns ao pequeno (e ao mesmo tempo vasto) mundo do País interiorano. Entre tais hábitos comuns certamente estava o footing das noites em finais de semana. E a chegada das levas de rapazes propiciada pela Companhia certamente deve ter trazido variedade e densidade àquela atividade tão celebrada e, por que não dizer, tão necessária à boa vida social das comunidades humanas. 

Diferença possível é que enquanto em sua terra as ruas e praças eram mais amplas para a passeata da moçada, a exiguidade montanhosa de da nova cidade fazia com que isso se desse ao longo de uma única rua, estreita por sinal, exigindo dos praticantes não mais um percurso em largos “círculos” (ou retângulos), como nas praças interioranas a que o Moço estava costumado, mas agora linear e curto, com pontos convencionados de meia volta-volver. E assim, do Largo até o Clube Atlético, numa extensão que talvez não chegasse a 300 metros, entre casarões centenários, nas tortas ruas calçadas em minério de ferro, dentro da neblina das noites brancas e sem horizontes que então escondiam o finado Pico onde a Companhia travava sua enorme exploração, a mocidade local, fosse nativa ou adventícia, perfazia o ritual do caminhar noturno aos sábados e domingos, com as devidas restrições, não apenas as geográficas e peculiares à cidade, mas também as derivadas da vigilância estreita das famílias, principalmente em relação à moralidade das suas estimadas donzelas. 

Eis que numa dessas jornadas, olhares se cruzaram e o ferro das calçadas não empatou, botou ferrugem ou bloqueou a curiosidade, talvez simpatia, depois amor, a acometer mais de um forasteiro e uma nativa. Nesta ocasião o Moço já estava enturmado e um de seus melhores amigos era H., membro de tradicionalíssima família que representava um dos reservatórios morais e intelectuais da cidade, na qual, em verdade, do ponto de vista material e financeiro, a posse de numerário em dinheiro e bens já estivesse em outras mãos, totalmente estranhas ou estrangeiras. Num daqueles cruzamentos fugidios de olhares, ele resolveu consultar se grande amigo H. sobre quem era a dona daqueles olhos tímidos, mas sem dúvida promissores. A resposta surpreendeu ao Moço: é minha irmã, fique longe dela, não é pra você! E nisso se demonstrava não haver qualquer receptividade. 

Afinal, companheiros de farra que eram, o provável é que tivessem intimidade suficiente para que soubessem de trampolinagens impublicáveis recíprocas. Coisa mais ou menos do tipo: este serve para ser meu bom amigo, mas para cunhado são outros quinhentos. Assim, certa etiqueta de bas-fond deve ter prevalecido e o Moço decidiu não insistir. Por enquanto, pelo menos. Ou talvez fosse hora de exibir algumas qualidades das quais o amigo H. até então não havia se apercebido. Sair melhor na foto, pensou ele, deveria ser o primeiro passo, o resto se veria depois. 

Como nada resiste a um pouco de paciência e calma, tudo se acertou em seguida, sem muita conversa, mas com algumas atitudes, como convinha à boa índole daquela gente montanhosa e manhosa. O fato é que com algumas intermediações de amigos, talvez até com a participação do próprio amigo H. foi possível encetar o namoro, com todo respeito e sempre de acordo com os costumes. O Pai, Doutor e herdeiro do que havia de mais tradicional na terra, pelo menos antes da mineração começar, deve ter sido o último a saber, mas não chegou a causar problemas ao pretendente, pois ele não era disso e certamente deve ter estimado haver boas intenções no forasteiro. 

Com a Mãe da Moça, entretanto, teve menos sorte. Quando já havia se tornado mais íntimo da família, na era do noivado, foi buscá-la na fazenda da família, em sua camionete de funcionário da Companhia. Um pouco por estar prestando atenção na estrada, mas talvez também por lhe faltar assunto, embargado pela timidez, se distraiu da presença da futura sogra na boleia e quando se deu por achado, simplesmente reparou que ela não estava mais ali e que a porta da direita do veículo abria e fechava no vazio. A pequena roceira que vinha de carona no assento ao lado murmurava, assustada: seu Moço, a Patroa caiu lá atrás… Pelo retrovisor pôde enxergar a enrascada em que estava metido. Lá longe, a senhora futura sogra sacudia a poeira e já vinha caminhando, claudicante e contrafeita, em direção ao carro. Mas se raiva houve, foi só no momento, acabou logo. E tudo não passou de um susto. Mais do que isso, rendeu boas risadas na família por muitos anos. 

Aos poucos, assim, acabou o Moço muito bem assimilado pela família, seja por H., pelo Pai Doutor, pela Senhora Sogra, demais irmãos – e naturalmente também pela Moça que fora objeto de sua corte. Assim, nada mais natural, interromperam-se os estudos da moça, antes mesmo dos 18 anos e foram, a mãe e ela, nesta ordem, cuidar do enxoval. 

Na hora pedí-la em casamento ao Pai, imperou a formalidade da época e quem na verdade representou o Moço foi um terceiro, o respeitado Tio Pedrico, amigo do futuro sogro e conhecido também – além de simpatizante – do Moço forasteiro. Em outubro de certo ano, no pós guerra, casaram-se na Igreja Matriz e em julho do ano seguinte, dentro da marca regulamentar dos nove meses – nunca menos do que isso! – nasceu-lhes o primeiro filho.

A vida da nova família ali, contudo, durou pouco. O Moço era herdeiro de uma sanha negocista de família, com seu Pai na dianteira, especialistas em fazer barganhas, com certo desapreço pelo trabalho assalariado comum. Assim, o Moço e a Moça, mais o primogênito com pouco mais de um ano e um segundo filho prestes a sair da barriga da Mãe, se mudaram para a Capital, cumprindo a sina genética de fazer negócios. Por algum tempo foram barganhas de compra e venda de cereais e porcos vivos, trazidos das regiões produtoras do Norte do Estado, com entrega aos mercados consumidores da Capital e cidades maiores. Ao Moço coube pilotar um destemido caminhão Chevrolet, recebendo uma percentagem nos negócios realizados. Como tudo devia mudar, sempre, veio depois a fase do transporte urbano, na qual se envolveram além do Pai e alguns de seus filhos, incluindo o próprio Moço. Trabalharam assim como mouros, até mesmo saindo da cama às cinco da manhã muitas vezes para pegarem, diretamente, o volante dos coletivos. Já o Moço e seu Pai logo se enjoaram daquilo – ou acharam demasiadamente trabalhoso – e foram tentar outras atividades. Mas ninguém nunca enriqueceu de verdade, de uma forma ou de outra. 

E assim se encerra esta história, feita de alegrias e sustos; glorias e misérias; vitórias e derrotas; sonhos e frustrações; perdas e ganhos. Como acontece na vida de todo mundo. Não há muito a acrescentar a isso. 

 ***

Uns Alves, da Beira do Mato   

Antônio Alves, conhecido também como Tonhalves, muito prazer. Sim, somos daqui da Beira do Mato, lugarzinho pobre, porém honesto. Todos que eu digo é minha família e eu, fora uns que mudaram para cidades maiores, para a capital e outros lugares. Mas a maioria sempre ficou é por aqui mesmo. A gente é apegado que só. 

Como chegaram aqui esses Alves, não sei ao certo. Conto o que o meu avô, o finado Sinfrônio Alves, dizia, aliás, por ter ouvido do avô dele, porque é coisa de muitos anos atrás, mais de cem. No começo, era um povo que cavoucava ouro e diamantes, na outra banda do estado. Quando as catas de lá deram pra trás, tiveram que arranjar um jeito de se arrumar na vida, pra não morrer de fome. E assim vieram para estes oestes.

Na subida da serra meu avô contava que chegou a haver engarrafamento de carros de bois, tudo com gente fugindo da miséria. E naquelas tranqueiras iam crianças, mulheres, panelas, balaios, galinhas, cachorros e uns tarecos mais – o que havia de útil. A questão era começar vida nova, onde não havia nada, a não ser a malária e um ou outro índio mais assustado do que capaz de ameaçar alguém. 

Chegaram, botaram roças, construíram igreja, escola, delegacia, motor de energia elétrica. O comércio e a lei dependiam da cidade de Dores do Cedro, também conhecida na época como Coité, dez léguas daqui. Segundo meu avô, seu povo veio nesta primeira leva. Junto estava o velho Sigismundo Cessim Alves, avô dele. Este era lavrador de profissão, mas também sabia os ofícios de barbeiro, farmacêutico, benzedor e até juiz, se fosse o caso. Era apurado na benzedura de mordida de cobra e bicheiras, com ele todos ofendidos escapavam com vida e saúde até melhorada – dizia o velho Sinfrônio.

E os Alves foram ficando por aqui. Os filhos e netos daquele lavrador barbeiro, botaram roça e comércio, coisa que se tornou comum na família, teve quem virasse professora, outros foram padres, um outro tabelião. Farmacêutico e benzedor não apareceu nenhum, deve ser pra’mor de não fazer concorrência com o consagrado Sinfrônio. 

Porém uns e outros, nesta e na geração seguinte, apareceram com outra marca da família: a música. Eram afinados na viola e nos sopros, trazendo de fora as primeiras violas, bombardinos e trombones que apareceram por aqui. Daí a fundar banda de música foi um pulo. E mesmo com alguns no comércio, nas roças, na batina e na escola, estes aí foram o que criaram mais fama.

Por este caminho vai uma das manhas que acho que estes meus Alves e mais ninguém possuem, a de fazer as coisas de um jeito que é só deles. Dois primos de meu avô por exemplo, um deles eu cheguei a conhecer, eram tão bons na viola e no saxofone, que resolveram largar da enxada e do balcão de venda, para viver de música na capital. Contra as disposições do pai deles e do resto da família foram embora, passaram anos sem que se tivesse notícias deles, até que o mais novo voltou, apenas para contar que haviam ganhado muito dinheiro, tendo tocado, junto com o irmão, em orquestras até no Rio de Janeiro, mas que perdeu tudo com a bebida, com o mulherio e a roleta. Aliás, mais velho perdera a vida também, por ter contraído uma tísica galopante, que liquidou com ele em poucos meses, não havendo doutor ou sanatório que desse um jeito naquilo. 

O resultado foi terrível para os demais músicos da família, que àquela altura tinham se multiplicado. Alguns que queriam sair para ganhar a vida fora, com música, foram embargados. Teve até um primo do meu pai que tocou fogo em duas violas e amassou para valer um trombone e uma tuba, pra ninguém mais de sua família botar mão ou boca nelas.

Pouco adiantaram essas barbaridades, pois justamente dois dos filhos de tal homem continuaram ligados à música, só que agora tocando em instrumentos emprestados e longe das vistas do velho. 

Outro desses primos, este de um ramo mais pobre da família – não que houvesse algum ramo rico total – resolveu sua fome musical criando instrumentos, ficando famosos os caixotes com tábuas soltas que mais figuravam uma bateria inteira em desfile, não um simples homem assentado numa caixa. Dizem que inventou também um instrumento de uma corda só, feita de arame, que ele tocava com um dedo, fazendo um calço deslizar por baixo e ao longo de um pedaço de madeira com mais de um metro de cumprimento – e que ele tirava música daquilo, nem sei como.

Se gostavam de música, esses Alves não tinham o mesmo gosto pela religião. Nenhum apreciava Igreja, fosse católica ou outra. Quando o povo da Bíblia chegou aqui, arrastando boa parte da gente para suas igrejas, nenhum Alves levou aquilo a sério. Continuaram hereges como sempre foram, agora em duas religiões diferentes. Parece que tudo começou quando um padreco católico, recém-chegado na terra, muitos anos atrás, acabou seduzindo e engravidando uma Sinhaninha Alves, que de santa não tinha nada, mas foi o pobre padre que levou toda a culpa. Daí pra frente ninguém mais viu um Alves na igreja, nem para ser encomendado e enterrado.

Ah, aquela mania de fazer as coisas só do jeito Alves…

Nesta história de religião o melhor ainda não falei de coisa que meu avô contava, dando boas gargalhadas. Dois primos dele resolveram comemorar a Sexta Feira da Paixão à maneira deles. Foram se arranchar na escadaria da Igreja, em plenas três horas da tarde, levando um farnel de carne de porco, farofa e cerveja. Não satisfeitos, quando a procissão do Enterro de Cristo vinha subindo a rua, fizeram o percurso contrário, passando de entremeio a ela, assoprando farinha pelas fuças e roendo gostosamente uns restos de suã. E um primo que os acompanhava de longe ainda soltou meia dúzia de rojões. Estes, entretanto, pagaram caro pela ousadia, pois foram presos pelo Sargento do destacamento, passaram uma semana a pão e água e um deles, o fogueteiro, que era zelador da Prefeitura, perdeu o emprego.

Mas não criaram juízo. No ano seguinte circulou a notícia que armariam outra presepada, mas desta vez o Sargento lhes avisou que se tentassem algo parecido seriam presos, desta vez preventivamente, já que mandaria vigiá-los desde a véspera.   

Além de pecadores, os Alves têm fama de pescadores, também. E também de mentirosos, o que vem a dar no mesmo. Tem um Maneco Alves, irmão de Sinfrônio, que parece ter sido mestre em tais ofícios. Ficou famoso por aqui pelas mil e uma histórias absolutamente estapafúrdias que contava – ou inventava – sobre suas pescarias, mas a verdade é que se a metade não acreditava nelas, cem por cento achava graça, ao ponto de repetirem aquelas histórias dizendo-se, cada um deles, o verdadeiro personagem das mesmas. Era famosa a sua prosa que numa pescaria noturna, ele jogou a linha para alcançar o meio do açude e que ao invés do escutar o esperado tibum da chumbada batendo na água lá adiante, percebeu que a linha se mantinha elevada e que, além do mais, movia-se para lá e para cá. Ao sacar sua lanterna para checar o acontecido, percebeu que havia laçado um morcego em pleno ar. E arrematava: deu um trabalho danado desembaraçar aquilo…

De outra feita, numa pescaria com companheiros, afastou-se do grupo para tentar a sorte em outro ponto do rio. No caminho, já escuro, deu com um tamanduá-bandeira enorme, que queria por toda força abraçá-lo. Livrou-se do bicho com uma paulada e resolveu pregar uma peça na companheirada, amarrando-o com a linha de pesca e jogando na água. Isso feito, correu ao ponto onde estavam os amigos e afoitamente comunicou a eles que havia pescado um peixe muito grande, cuja força ele nunca tinha visto igual e que precisava deles para retirá-lo da água. Puxa daqui, puxa dali ele mesmo começou a desconfiar que havia algo estranho ali, talvez um engastalho no fundo do leito. Até que a situação se explicou quando retiraram da água o tal tamanduá, que não havia morrido com a paulada, mas agora estava abraçado a um surubim de quase quarenta quilos. 

Ti’Maneco tinha outra área na qual se destacava: a política. Foi prefeito de Dores duas vezes e Presidente da Câmara outras duas. Além disso, era fundador do Rotary Clube e da Maçonaria. Só não entrava mesmo era na igreja, de qualquer tipo, nem para angariar votos. História boa que contam dele foi a da inauguração da piscina pública na cidade, construída com um dinheiro conseguido do governo por um deputado da Região. Ele, como Prefeito na ocasião, foi convidado a dar o mergulho inaugural, mas se recusou terminantemente. E não era por medo de água, pois sabia nadar muito bem, afeito a isso por força das pescarias que sempre fazia. Seu argumento era outro, e acabou revelado publicamente, com microfones ligados e tudo mais, com toda sua costumeira verve: lugar onde os outros botam a bunda eu não meto a minha cara. 

Esses Alves são realmente bons de treta, mas é tudo gente boa, isso eu posso garantir.

***

Senhorinha da Sanfona 

Eu gostava de andar pelas ruas do bairro, não raro me afastando por até por alguns quilômetros de meu canto de rua. Aposentado e sentindo o corpo meio travado, fazia isso principalmente para desenferrujar as juntas e dar força aos músculos, mas gostava também de fazer algo que tinha aprendido com meu avô, um caminhador contumaz, que sempre dizia que seus périplos lhe permitiam uma atividade muito desejada e valorizada: apreciar as novidades. E as novidades, no meu caso, iam desde as novas construções, cada vez mais raras já havia tempo, eis que já eram poucos os lotes vagos disponíveis naquele bairro um tanto antigo, passando pelo surgimento de novos comércios e chegando, principalmente nas mudanças que a natureza apresentava, com suas floradas, frutificações, além de um ou outro ninho de passarinho ou casa de João de Barro. Preciso dizer que em um dos lados do meu caminho habitual havia uma pequena área de mata, relativamente bem preservada. 

Em uma dessas ocasiões vi uma cena inusitada. Em um pequeno prédio de apartamentos havia como uma festa. Alguém tocava sanfona e havia pessoas reunidas em torno, em ambiente de animada confraternização, aparentemente em família, com crianças dançando em roda. Assim de passagem não percebi outros detalhes do acontecimento. Mas em uma segunda passada, alguns dias depois, também em um sábado à tarde, pude assistir à mesma cena, mas agora podendo ver que havia ali uma sanfoneira. Era uma senhora idosa de uns setenta anos ou mais, magra, cabecinha branca, vestimenta modesta de chita, instalada em uma cadeira de rodas. E mais: faltavalhe uma perna. 

Senti-me tomado de ternura por aquilo, pois visivelmente era uma cena de congraçamento e afeto, com pessoas que não só usufruíam de um momento musical, como concediam à artista carinhos calorosos, se revezando ao seu redor em tal atitude. E a sanfoneira de fato parecia feliz. 

Já nesta ocasião eu me via, forçado pela aposentadoria, a procurar afazeres, já tendo encontrado aquelas caminhadas como parte bastante prazerosa, sem dúvida, de tal tarefa. Mas eu queria mais, por exemplo, começar a escrever sobre o que eu chamava de fatos da vida, sem saber identificar, com precisão, se isso se daria sob a forma de conto, crônica, romance ou poesia. Sabia que talvez fosse pretencioso de minha parte, mas carregava uma observação que os professores do ginásio já me haviam feito, há tantos anos e que não raro eram reforçadas por amigos, familiares e colegas de trabalho: você tem jeito para escrever. 

E ali estava um fato da vida altamente significativo. Aliás, se aquilo não fosse tal coisa, o que mais o seria? Ao longo da vida eu, volta e meia, fazia alguma tentativa de registrar coisas por escrito, mas acabava desistindo pela força de um sentimento contrário ao anterior, que me fazia acreditar era preciso não confundir literatura com desabafo, conforme também ouvi de um antigo professor no colégio. Aquilo, confesso, me fazia desanimar. Mas o caso da velhinha me fez criar coragem e quem sabe registrar a emoção que aquela cena me trazia, fosse no papel, ou na tela do computador. 

Mas eu precisava de mais informações sobre o acontecido naquelas tardes de sábado. Por umas tantas vezes passei pelo endereço que me chamara tanto a atenção, inclusive em finais de semana, mas não tive a sorte de assistir novamente as cenas que me foram tão inspiradoras. Até que um dia resolvi parar e perguntar a um homem que fazia a limpeza do prédio se ele dispunha de alguma informação sobre aquilo que me movia na ocasião: quem era aquela mulher, qual era a sua história, se eu conseguiria conversar com ela. Ele pareceu compreender e sintonizar com a minha afeição pelo caso e me revelou, um tanto entristecido, que Dona Senhorinha – era o nome da sanfoneira – tinha falecido e que a filha, com que ela morava tinha se mudado dali, fazia pelo menos dois meses. Não, ele não sabia o endereço para onde ela fora e nem conhecia ninguém que pudesse informar. Só acrescentou: elas são da Bahia. 

Meu primeiro pensamento foi de desistir de registar tal fato da vida, por insuficiência de informações, confesso. Alguma coisa eu sabia da personagem, que era da Bahia e que tinha um nome curioso, mas era muito pouco. Assim me recolhi a outras elocubrações, chegando a me interessar por captar a história de um mendigo que morava dentro de um carro abandonado, também dentro de meu trajeto habitual, mas que abordado por mim só me deu informações confusas, que acabaram desandando em agressividade. Mas eu queria saber mesmo era da história daquela Senhorinha da sanfona. 

Um dia me vi diante de uma pista: eu passava por uma loja de móveis usados no bairro e julguei ver lá dentro a cadeira de rodas. Era um tipo comum, mas um enfeite nas rodas, feito com fitas coloridas me pareceu estar presente também na cadeira que eu tinha visto apenas uma vez, tendo assentada nela a sanfoneira. O dono ou gerente da loja me disse que aquilo estava ali há algumas semanas, sem aparecer comprador, mas nada sabia sobre a pessoa que lhe vendera a peça. Se eu me interessasse pelo objeto faria um desconto do mais de cinquenta por cento. Não era o caso, claro. 

De repente me dei conta que com as informações que eu tinha talvez já houvesse um início de história. Uma baiana, de nome Senhorinha, sanfoneira… Sua pele morena, de mulata clara mesmo, seu modo singelo de vestir, sua cadeira de rodas meio avariada, o prédio de apartamentos de classe média baixa em que ela morava, certamente traduziriam uma pessoa modesta de posses. A procedência baiana reforçava tal impressão, porque ali na cidade havia muitas pessoas que chegavam de um vasto interior, em busca de melhores condições de vida e de trabalho. 

E mais, sua provável origem seria rural. Senhorinha, nome de uma santa muito venerada em Portugal, cuja devoção certamente deve ter chegado ao Brasil através de imigrantes lusos, seria condizente com a forte tradição católica de todo o interior do país. Havia uma filha na história. Portanto deveria ser ou ter sido casada e quem sabe, ter tido e criado outros filhos, ou quem sabe, muitos deles, conforme o estatuto vigente nos sertões do país. Se é que não havia perdido outros tantos. Pobre, cheia de filhos e roceira… Deve ter sido empregada em fazenda, quem sabe boia-fria em plantações de soja, café ou milho. Trabalhou, certamente, de sol a sol, por anos a fio, em condições as mais difíceis possíveis. Direitos trabalhistas ou de cidadã, quase nenhum. Uma perna amputada… Seria um acidente de trabalho, vítima de máquinas que além de roubarem o trabalho das pessoas as aleijavam ou matavam? Perfeitamente cabível. 

Mas havia também a possibilidade de que fosse uma doença de vasos sanguíneos, uma diabetes, por exemplo, da qual não pôde se tratar por absoluta ausência de recursos de saúde onde ela morava, da mesma forma que na educação ou na assistência social. Portanto, tinha tudo para ser, além de pobre e desvalida, analfabeta. Mas era sanfoneira. Pode ter sido uma daquelas crianças que nascem com um dom para música e que de tanto procurar acabam achando um instrumento musical em que podem se exercitar. Seria o mais provável, dado que uma menina ou moça pobre, roceira e analfabeta, como ela, dificilmente poderia ter frequentado uma escola de música. Quem teria colocado aquele instrumento ao seu alcance? Pai, padrasto, avô, padrinho? Uma galeria masculina como essa certamente também lhe traria riscos, não apenas benefícios, como o de uma sanfona. É impossível deixar de pensar em violações e assédios de diversas naturezas, afinal de contas tão comuns, mesmo em famílias abonadas. Imagine-se entre os mais pobres e indefesos. 

E assim uma história se compôs em minha cabeça, a seguinte. 

Assim pobre, analfabeta, trabalhadora na enxada, mas dotada de talento musical, Senhorinha foi levando sua vida. Com menos de 15 anos já tinha rapazes da fazenda onde morava cobiçando sua cintura jeitosa, seus modos de mulher. E a cada sábado de quermesse, casamento ou comemorações de santo, a sanfoneirinha era chamada a se exibir e essas paixões só aumentavam. Por causa disso, teve gente que rolou na poeira do chão e puxou faca para alguém que até agora mesmo era amigo. Até que um Izé, levou a melhor. Não ao ponto de marcar casamento para quando seu Vigário viesse para a bênção anual, mas do jeito atabalhoado que se usava ali, com o sexo descuidado e sem maior culpa, praticado às claras sobre o capim dos pastos, ou oculto nas capoeiras de mato, mas logo sucedido pela parada das regras. E mais, em seguida, pelo aparecimento um buchudinho, mais um, num lugar onde eles eram legião. Ninguém se espantava, era coisa natural; depois de uma certa idade, pessoas e criações pareciam mesmo fadadas a tal destino. Depois, era ocupar uma das casas que o fazendeiro mantinha para os empregados ditos “casados” e prestarem ambos, eles agora marido e mulher, as tarefas na enxada e na foice que deles se exigia, enquanto vivessem, como sempre fora e deveria continuar a ser. E os buchudinhos machos e fêmeas iam surgindo, ano sim, outro também. Só não se podia garantir é que todos conseguissem superar a barreira do primeiro ano de vida. E no final, o marido se engraçou com outra, mudou de ares e ela ficou sozinha com meia dúzia de seres a choramingar na barra de sua saia. A duras penas, a todos criou, o mais das vezes sem leite farto, mas com o cuidado que lhe era possível oferecer. Todos na enxada, desde quando conseguissem sustentar o peso da ferramenta. Um dia tropeçou no que lhe pareceu ser um toco no chão, mas era a lâmina de um enxadão velho, meio enterrado. Em sete dias estava mal, com a perna inflamada de maneira perniciosa, sem remédio por ali. Quando foi levada, tardiamente, ao médico da vila, a solução já era amputar. E voltou para casa para cuidar dos filhos, uma parte deles já crescidos – menos mal – apoiada agora em muletas de guatambu. O pau que lhe dera sustento como cabo de enxada era o mesmo que agora lhe dava apoio para andar a si e a suas coisas. Mas afinal, quem precisa de perna, ainda mais pela metade, para tocar sanfona? E foi o que ela fez por muitos anos, conseguindo juntar aos trocados que os filhos mais taludinhos ganhavam na enxada as gorjetas que o gerente, o padre ou algum empregado mais generoso lhe dava, quando tocava nas festas da fazenda. A filha mais velha se destacou na escola e foi levada pela professora para morar com ela na cidade. Na verdade, como empregada da mestra. Mas essa tinha tino e foi em frente: concluiu os estudos possíveis por ali e foi para lugar maior ainda, fez concurso para professora, arranjou marido formal e legal, teve seus filhos e logo que pôde levou a mãe, já velha e muito alquebrada, para morar com ela na cidade. Ali deu a Senhorinha talvez as maiores alegrias de sua vida, bem alimentada a tempo e a hora, dormindo em cama macia, tendo banheiro e água limpa dentro de casa, roupas limpas para vestir. E ainda podendo mostrar sua arte de sanfoneira àquelas pessoas tão finas e distintas, vizinhos naquela pilha de casas onde a filha morava. Nada mal.

Senhorinha de fato estava bem feliz agora, como, aliás, nunca experimentara antes e nem imaginara conseguir. 

Mas isso é apenas uma história inventada. A vida real, certamente, não deve ter sido tão benfazeja à pobre sanfoneira.

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