Personagens: Carlos Afonso (também denominado Cento e Cinco); Percília – auxiliar de enfermagem; Rosa Emília – enfermeira chefe; Moça da limpeza; Santa Eufrásia (voz em off); Doutor Rivadávia; Agentes policiais (1 e 2).
Cenário: enfermaria de hospital, com duas camas típicas, em uma das quais está Carlos Afonso, vestindo um pijama listrado, visivelmente curto para o seu tamanho. Na cabeceira de tal móvel uma placa onde se lê 105. No alto da parede uma imagem de louça: Santa Eufrásia)
***
ATO I
– Carlos Afonso: Por favor, alguém me responda
(silêncio absoluto)
– Carlos Afonso: Hei, estou pedindo para me ajudarem! Tem alguém aí?
(silêncio absoluto)
– Carlos Afonso: Pelamordedeus! Tô com muita sede e com vontade de fazer xixi. Alguém pode me ajudar?
(um ruído de louça quebrando, ao longe)
– Carlos Afonso: pelo jeito vou ter que me virar por aqui mesmo, mijando na cama…
(no fundo ouve-se agora um rádio tocando baixinho, melodia do tipo “sertaneja”, brega e chorosa)
– Carlos Afonso: hei você, seja lá quem for! (começando a demonstrar desespero)
(Lá de fora ouve-se voz de mulher: – Hei, Percília, o cara do 105 parece estar reclamando de alguma coisa)
– Carlos Afonso: merda!
– Moça da limpeza (entrando em cena): Cruz credo, o senhor está alterado. Vou chamar alguém…
– Carlos Afonso: pode ser você mesmo, é só me trazer um objeto de que preciso muito. Sabe, aquele…
(Moça da limpeza desaparece pela porta – o paciente fica falando sozinho; entra Percília, usando jaleco curto por cima de saia idem, tudo muito justo no corpo, com um gorrinho de enfermagem onde se vê uma cruz vermelha bordada)
– Percília: eita 105, o mundo ainda não vai se acabar!
– Carlos Afonso: Este Cento e Cinco sou eu? Meu nome, por acaso, não é este, moça, e sim Carlos. Carlos Afonso!
Percília: Sr. Carlos, se eu fosse guardar o nome de tudo quanto é paciente aqui neste andar eu tinha que fazer um transplante de cérebro…
– Carlos Afonso/Cento e Cinco: tá bom mocinha, me chame do jeito que quiser, mas me traga uma daquelas vasilhas para me aliviar…
– Percília: aliviar… esta é boa. Ah, e obrigado por este “mocinha”. O senhor é muito gentil… O senhor quer se aliviar de quê, exatamente?
– Cento e Cinco: eu quero mijar, porra!
– Percília: não precisa ficar nervoso, se o senhor tivesse explicado desde o começo eu já teria lhe atendido. Não para lhe acompanhar ao banheiro, eu não estou aqui para coisas assim. Posso retirar o soro e quando voltar eu lhe pego a veia novamente.
– Cento e Cinco: você não pode me trazer o troço, aquele, como se chama mesmo? Marreco?
– Percília: o senhor chama aquilo de marreco, que engraçado… Aqui chamamos de arrastadeira. Mas infelizmente não temos, a que tinha desapareceu, até hoje não entendi como aconteceu uma coisa assim.
(Percília vai até o leito e levanta o lençol que cobre o paciente…)
– Percília: Ah, mas o senhor já fez na cama mesmo. Vou chamar alguém para trocar.
– Cento e Cinco (agora com humildade): pois é, moça nem tinha percebido, também com esta demora… Mas por favor, chame alguém logo para me livrar desse vexame….
– Percília: é bom o senhor ir se acostumando, acabou de chegar para se operar, tem alguns dias pela frente. Isso se tudo correr bem, aqui não se faz mágica.
– Cento e Cinco: operar? Eu vim aqui devido a uma cólica de rim… Acho que não é caso de operação. A senhora sabe? Pago um plano de saúde e…
– Percília: Sim! Eu sei que o senhor paga um plano de saúde que custa uma grana. E está aqui por conta dele. Mas por aqui coisas assim são rotina. Alguns até falam que está pior que o SUS, mas eu sei que é diferente. Tenho uma prima que trabalha em hospital público e ela me garante que por lá as coisas estão bem melhores, apesar de uns probleminhas. Aliás, onde não tem problemas? Até no Vaticano…
– Cento e Cinco: é horrível, não dá para acreditar…
– Percília: Pois é, acredite… O hospital foi vendido para outra empresa e de lá para cá as coisas só pioraram. Só para o senhor ter uma ideia, outro dia tivemos que fazer curativo com fita crepe. E mesmo assim a diaba da Rosa Emília ainda pediu para economizarmos o rolo. Vê se pode…
(A luz se apaga e torna a acender depois de alguns momentos, repetidos, para indicar a passagem do tempo. Quando volta a claridade, o leito está vazio e duas figuras estão em cena: a mesma Percília e outra, em uniforme de pessoa graduada, com uma enorme penca de chaves na cintura: é Rosa Emília, a enfermeira-chefe).
– Percília: não sei bem o que pode ter acontecido, o homem estava aqui ontem à noite…
– Rosa Emília: mas você não me disse que ontem não foi plantão seu? Aliás, também na véspera você não estava, pois estava de atestado. Era sábado e você deve lembrar que não pode estar de serviço aos sábados que arranja logo um atestado. Te conheço muito bem!
– Percília: a senhora parece não se lembrar que tenho problemas na família…
– Rosa Emília: Sei muito bem e preferia que você resolvesse isso sozinha, sem me envolver. Aliás, cada dia tem um problema diferente. Mas vamos ao que interessa: quando é que viu este homem do leito 105 pela última vez?
– Percília: deixa eu ver… Na sexta ele estava aqui, ou melhor, acho que na quinta. Não me lembro mais.
– Rosa Emília: que maravilha! Um paciente simplesmente desaparece e a enfermagem não sabe dizer o que aconteceu com ele. Será que o bicho papão andou por aqui?
– Moça da limpeza (enfiando a cara na porta, visivelmente intimidada): desculpem as senhoras, mas na quinta ele já não estava mais aqui. Lembro bem…
– Rosa Emília e Percília (em uníssono): COOOOMO???
– Moça da limpeza: sim, é isso mesmo! Aliás, eu vi ele no ponto de ônibus quando cheguei para trabalhar, de manhã…
– Rosa Emília e Percília (em uníssono): NA PARADA DE ÔNIBUS?!
– Rosa Emília: Tinha alguém com ele?
– Moça da limpeza: estava sozinho, vestido de pijama…
– Rosa Emília: de pijama? E o quê mais? E o soro?
– Moça da limpeza: disso eu tenho certeza, ele não estava mais carregando o soro. Isso não! Mas levava uma sacolinha junto à barriga. Acho que estava com uma sonda…
(Entra em cena Rivadávia, homem de meia idade, de jaleco branco sobre um terno jaquetão, ar de autoridade, fumando)
– Rivadávia: bom dia. Vocês têm algum indicativo sobre para onde o 105 foi removido?
(Rosa e Percília se olham, abismadas…)
– Rosa Emília (balbucia): estamos justamente à procura dele…
– Rivadávia: ok, quando descobrirem me avisem, tenho que ajustar uns trâmites e recolher um documento com ele.
– Rosa Emília (se animando): documento??? Que tipo de documento?
– Rivadávia: assunto particular entre a minha pessoa e a parte. Por favor, fique fora disso, senhora enfermeira Ritamélia…
– Rosa Emília: meu nome é Rosa Emília…
– Rivadávia: vou me lembrar disso, mas por enquanto não se esqueça do que realmente importa – é assunto particular entre o senhor Carlos Eduardo e a minha pessoa…
– Percília: o nome dele é Carlos Afonso…
(Rivadávia encara Percília em um olhar fulminante, mas não diz nada, ou melhor, emite apenas um grunhido de desaprovação e em seguida abandona o recinto).
– Rosa Emília: quem é este sujeito, você conhece Percília?
– Percília: Eu? Acho que nunca vi por aqui. Ia justamente perguntar para você…
– Rosa Emília: essa é boa. Desaparece um paciente e aparece uma pessoa que ninguém sabe quem é… Acho melhor você dar conta de explicar, afinal a enfermaria está sob a sua responsabilidade…
– Percília: (embargada, tenta dizer alguma coisa e finalmente diz para si mesma): bem que minha mãe dizia que eu tinha que ser enfermeira, não uma reles auxiliar, que acaba levando a culpa de tudo o que acontece de ruim num hospital.
– Rosa Emília: quanto a mim, minha mamãe dizia que meu negócio era outro, devia ter feito vestibular para medicina, isso sim é que é profissão. Não sei porque resolvi estudar enfermagem, esta porcaria de profissão cuja missão é resolver pepinos e estar submetida aos médicos… E aproveito para lhe advertir Percília: suas intimidades com este médico jovenzinho que apareceu por aqui já são notadas por todo mundo, ouviu?
– Percília (resmungando): olha só quem está falando… O que me diz dessas caronas com o diretor nos horários de almoço, além da volta lá pelas quartro horas com os cabelos molhados?
(Rosa Emília finge não ter ouvido o comentário de Percília e em um canto do cenário fica sob um holofote. Ela atende o celular)
– Rosa Emília: O queeeeê?! Não brinca comigo! Este silicone que vocês estão entregando não presta! A aplicação que fizemos outro dia em uma paciente foi um desastre. A bunda daquela mulher quase foi parar no calcanhar! Não posso admitir uma coisa dessas. Sou a responsável pela clínica e vou zelar pelo meu nome. Danem-se vocês!
– Moça da limpeza (chegando na porta se dirige à plateia, com as duas outras personagens na penumbra): Não tenho nada com isso, mas sei que este Ribamar, Rivadávia, alguma coisa assim, sei lá, é um tipo que aparece por aqui de vez em quando, mas fica lá pela portaria conversando com quem entra e sai, principalmente com quem está de alta…
(As luzes se apagam)
– Santa Eufrásia (agora tendo sobre si um foco forte de luz, com o restante do ambiente escuro – voz em off): essa gente não tem jeito mesmo, cada um pior que o outro. No que depender de mim este camarada deveria procurar a solução para seus problemas em outro lugar. E não precisa ser Santa nem estar em algum altar para perceber que este Rivadávia não é médico e não passa de um picareta dos mais vulgares. Só os idiotas não veem isso.
***
ATO II
(A luz se mantém apagada por alguns segundos e quando acende o ambiente é outro: um quarto de dormir residencial normal, com uma cama ao centro, na qual está instalado Carlos Afonso, visivelmente contrafeito, ainda de pijama e segurando um urinol tipo marreco, dentro do qual emerge um tubo, que lhe vai até a braguilha das calças. Ao seu lado Rivadávia, agora de terno e gravata, sem jaleco).
– Rivadávia: que história é essa, Cento e Cinco? Eu não falei para você ficar bem quieto lá?
– Cento e Cinco: meu nome é Carlos Afonso! Voltou a ser…
– Rivadávia: isso é apenas um detalhe irrelevante e decididamente inconspícuo. Nada acrescenta aos autos. Vamos lá, esclareça solerte os acontecimentos dos últimos dias!
– Carlos Afonso: cacete, é que me cansei…
– Rivadávia: Olha o linguajar! Ah, cansou… é? Parece que você se cansa com muita facilidade.
– Carlos Afonso: uma semana esperando que você aparecesse ou que alguma outra coisa acontecesse. Fiquei lá com a veia espetada, sem poder me levantar e tendo que pedir pelamordedeus para ir ao banheiro. Para não falar na miserável dieta que me impuseram, tive até que roubar comida na enfermaria ao lado. E nem falo do canudo que me enfiaram no pinto nos últimos momentos que estive lá.
– Rivadávia: talvez por ser tão jovem e imaturo você não tenha tido a capacidade de entender a extensão e a sabedoria do plano que tracei para que você se saísse bem nessa empreitada. Uma coisa com começo, meio e fim, requerendo apenas uma pequena dose de paciência. Mas contrário a tudo, você pôs tudo a perder.
– Carlos Afonso: e mais aquelas duas enfermeiras incompetentes me buzinando nos ouvidos por todo o dia…
– Rivadávia: você, pelo visto, é do tipo que deseja que as coisas lhe caiam dos céus, sem precisar de qualquer esforço… Além do mais, vive apegado a detalhes. Será que não percebeu que é este meu plano para você é de grande impacto, que vai fazer você se dar bem e mudar sua vida?
– Carlos Afonso: poxa, eu…
– Rivadávia: fica calado um pouco, por favor… Ou melhor, chega de ficar falando besteira.
– Carlos Afonso: eu só queria me livrar desta sonda que me botaram na uretra, que me obriga a andar com este penico, como se fosse um santo de estimação, por todo lado que vou.
– Rivadávia (falando consigo mesmo, entre dentes): aceita ficar num hospital para resolver certos problemas que apenas e tão somente lhe dizem respeito e agora reclama até de uma simples sonda… Este é do tipo que se tivesse de encarar uma sentença braba de algum juiz maluco, se suicidava… Eu sei bem o que é isso.
– Carlos Afonso: Você poderia explicar as coisas com mais clareza, Riva…
– Rivadávia: Olha que vou lhe explicar, bem explicadinho, mais uma vez. Bolei um plano infalível para você se dar bem. Você se interna, faz um monte de exames e no final vamos processar esta porcaria de plano de saúde por não lhe aplicar o tratamento necessário. Movi meus pauzinhos em toda parte: na administração, no laboratório e até mesmo um atestado médico consegui, além de uma ressonância magnética em seu nome. Acha que é pouco? E o que pior, em algum desses momentos tive que me fazer passar por médico – e você sabe que eu sou advogado – a d v o g a d o! Corro o grande risco de ser pego por falsa identidade. Tudo para você se dar bem. Não seja assim tão ingrato, isso até me ofende!
– Carlos Afonso: você não deve estar esquecendo que na nossa combinação 50% é para você…
– Rivadávia: ora essa, então venha fazer tudo no meu lugar, pra ver se você consegue.
(De novo a luz se apaga por alguns segundos e a cena retorna ao mesmo cenário, com Carlos Afonso deitado na cama, ainda de pijama, agora sozinho. Batidas se ouvem e ele vai atender, quando abre a porta estão lá um homem e uma mulher de coletes pretos, crachás dourados e um papel nas mãos)
– Agente 01: Bom dia. Carlos Afonso Rodrigues é o senhor?
– Carlos Afonso: sim, sou eu mesmo. O que desejam?
– Agente 02: temos aqui um mandado contra o senhor. Deve nos acompanhar à delegacia.
– Carlos Afonso: mas por quê? Eu não fiz nada…
– Agente 01: isso o senhor vai explicar para o delegado Cabrera.
– Carlos Afonso: acho que o melhor seria eu me acompanhar do Doutor Rivadávia Gusmão…
– Agentes 01 e 02: quem???
– Carlos Afonso: Rivadávia Gusmão, meu advogado!
– Agente 01: não se preocupe. Ele já está lá desde ontem à noite, preso também. E pra seu governo, o nome verdadeiro dele é Ribamar Peixoto e não é a primeira vez que ele se mete em confusão e acaba preso, por estelionato. Vista sua roupa e nos acompanhe, mas seja rápido, temos outro mandado a cumprir.
– Carlos Afonso (suspirando e encarando os agentes): mas o que eu faço com este marreco e esta sonda atravessada em mim?
– Agente 02: isso não é problema nosso…
– Santa Eufrásia (de novo, tendo sobre si um foco forte de luz, com o restante do ambiente escuro – voz em off): gente desclassificada, cada um pior que o outro! Se pelo menos me ouvissem… Malandro quando que ser malandro demais acaba dando nó nas próprias pernas; ou na própria língua, sei lá. Agora está sendo revelada a verdade, mas não é de hoje que eu sei disso. Como já disse antes, não precisa ser Santa para perceber que aquele sujeito não tem o nome com que se apresenta, não é médico, tem ficha suja na polícia, já aprontou muito rolo por aí. Só os idiotas não veem isso, mas o mundo parece estar coalhado deste tipo de gente que quer levar vantagem em tudo. Co’os diabos, com perdão da má palavra!
(Pano rápido…Ao fundo cresce o som do conhecido samba: Se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão).
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Com as bênçãos de Santa Eufrásia, amém.
