Conta um velho manuscrito…

Conta um velho manuscrito que um antigo Profeta, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Ele se sentia humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja totalmente nova e distinta da anterior não seria o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez. E pensava ele: escritura contra escritura, breviário contra breviário. Terei o meu próprio ofício, com favores distribuídos à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja, uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim nem Maomé, nem Lutero, nem algum outro Salvador. E concluiu, de modo bem filosófico:  há muitos modos de afirmar, mas há só um de negar tudo.

E se pôs a trabalhar em seu projeto, dando asas à imaginação.

Muitos se ajoelham nos templos do mundo, com suas melhores roupas e perfumes, sendo sempre incapazes de contribuir comum centavo sequer para suas igrejas. Mas na minha vai ser diferente! Vou aproveitar a centelha de curiosidade e devoção com que muitos encaram a distância entre os livros santos e o bigode do pecado. Vede o ardor – a indiferença, ao menos – por exemplo, com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida… Mas não quero parecer que me detenho em cousas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito um amor falso e uma comenda idêntica… Vou a negócios mais altos…

Entrou assim a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. O novo Profeta não queria ser o apóstolo de noites sulfúreas e contos soníferos, mas sim o verdadeiro e único Paladino, o próprio gênio da natureza, gentil e airoso, o verdadeiro pai de todos, capaz de oferecer aos fiéis desiludidos tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo…

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Profeta passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes subtil, outras, cínica e deslavada. Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram naturais e legítimas. A soberba e a luxúria, por exemplo, foram reabilitadas, e assim também uma certa forma de avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia. E que o que fosse populado que se dividisse com ele, que foi capaz de revelar aos homens uma verdade tão candente. Coisas parecidas disse da ira e da gula, aquela perfeitamente legítima se usada contra os adversários e esta outra prêmio merecido para os que adentarem na nova crença. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: “Muitos homens são canhotos, eis tudo”. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros, destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada.

E acrescentava: pois não há mulheres que vendem os cabelos? Não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? E o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Profeta não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.

E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Profeta incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de cousas, trocando a noção delas, fazendo amar as novas ideias e detestar as antigas.

E foi ainda mais longe. Achou por bem denunciar e cortar toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava a frase de um antecessor: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” Sobre o adultério, perorou, solenemente: essa espécie de amor tem a particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. Afinal, se cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns, que cada acionista cuide mais de que seus próprios dividendos, como acontece aos adúlteros – isso agrada aos olhos de Deus, do nosso Deus, pelo menos.

Ia tudo muito bem. Porém…

Um dia, longos anos depois, notou o Profeta que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito de outra religião; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Profeta. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um industrial farmacêutico, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria os filhos das vítimas. Em certa cidade deu com um ladrão de cavalos, que tapava a cara para ir aos templos, lançando-lhe em rosto o procedimento, ao que ele negou, dizendo que ia ali roubar o cavalo de um safado qualquer, apenas para dá-lo de presente a um sacristão, que rezava por ele.

Neste ponto, o tal manuscrito revelava muitas outras descobertas extraordinárias, que desorientavam totalmente o profeta. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma cousa análoga ao passado. Trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno, recorreu a Deus, que o ouviu-o com Sua infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:

– Que queres tu, meu pobre Profeta? Que queres tu? É a eterna contradição humana…

 ***

ANTES QUE ME ACUSEM DE PLÁGIO: Este texto não é meu, mas sim uma adaptação de um conto de Machado de Assis: A Igreja do Diabo. Aqui no meu texto, onde se lê Profeta, Machado escreveu Diabo. Moral da História: Malafaias, Felicianos, Valdomiros, Macedos e demais mercadores da fé e exploradores das contradições humanas: se cuidem!

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