Caramelo
– Sim, passou por aqui. Ficou assentado ali naquele canto, pediu uma cerveja, abriu o celular e logo desistiu dele, já que aqui não tem sinal e ficou durante uma hora por aí, aparentemente sem ter muita coisa a fazer. Ou melhor, foi ter com a cachorrada. Aqui geralmente se reúnem uns dez ou mais desses, vivem todos soltos por aí, os donos não cuidam, sabe como é. Tem uns mais ariscos, mas aquele grandão lá, o Caramelo, sem vergonha como ele só, logo se faz chegado a todo mundo que passa por aqui. Parece até que já nasceu junto com a pessoa, na casa dela, criado ali no angu de cada dia. Com este sujeito aí, a amizade parece que nasceu de imediato. O sujeito ficou agachado ali na beira do rio e logo o rodearam uns quatro ou cinco cachorros. No final ficou só ele com o Caramelo e ali estiveram por um bom par de horas, ele jogando pauzinhos para o danado do cachorro buscar, o bicho correspondendo. Pareciam de fato velhos amigos. Dali foi fazer uma caminhada e lá foi o Caramelo atrás dele. Deve ter dado uma volta grande, pois demorou bem mais de uma hora para aparecer de novo. O Caramelo sempre com ele, sem desgrudar. Voltou aqui e comprou um pacote de biscoitos de polvilho. Comeram juntos, ele e o cachorro. No final, dividia cada biscoito em dois e comia um pedaço e oferecia ao Caramelo a outra metade. A esta altura já tinha até botado um apelido nele, que o bicho aceitou como se já tivesse nascido com tal nome. Voltou à brincadeira dos pauzinhos, mas a esta altura o cão já queria outra coisa, parece que descansar, nada mais. Deitaram-se, então, na sombra daquela ingazeira e ali ficaram por mais de uma hora, num sono daqueles. Fiquei impressionado, o Caramelo é dado a intimidades com todo mundo que passa por aqui, mas daquele jeito eu nunca tinha visto. Quando desceu para conversar com as lavadeiras, lá foi o Caramelo atrás dele. Aquilo era amizade pra vida toda, parece. Deve ser um cara legal, acho que quem trata os bichos daquele jeito só pode ser gente boa.
***
Lavadeiras
– Cara engraçado, aquele. Chegou aqui com cara de quem não queria nada e ficou de papo com a gente por mais de uma hora.
– Achei até que era um parente ou coisa assim do velho Olegário, já que apareceu aqui em companhia do cachorro dele, o tal de Caramelo.
– Curioso como quê, perguntou pra mim até a marca do sabão que a gente usa para lavar roupa aqui no rio. Expliquei que a gente mesmo faz o sabão e ele quis saber da receita, vê se pode.
– Aí fui eu que perguntei coisas pra ele. Por exemplo, o que estava fazendo por aqui.
– É mesmo? O que ele disse?
– Ele é do tipo que quer saber de tudo, espicula como ele só. Chegou a indagar sobre se a gente era casada ou solteira…
– Eu, hein…
– Não. Não acho que estava de conversa mole, de paquera, essas coisas. Acho que não leva jeito para isso.
– Mas, e aí? O que será que trouxe ele até aqui.
– Me disse que estava correndo mundo, para ver as coisas. Desceu do ônibus na cidade e veio até aqui espiar o rio, que não conhecia ainda. Disse que era o terceiro rio que ele atravessava em um mês de viagem e que queria atravessar outros tantos…
– Um rio igual a este deve ter tantos por aí…. Que bobagem!
– Disse também que ouvir dizer que estavam contratando gente na mineração, lá adiante, e que talvez tentasse arrumar um emprego por lá, pra passar uns tempos, conhecer mais gente e lugares diferentes. Perguntou se a gente que lava roupa aqui ainda não tinha pensado em fazer uma cooperativa e assim ganhar dinheiro com o movimento de gente que anda por aqui.
– Comigo falou que já havia vivido num lugar de padres, um convento, uma coisa assim, mas que acabou saindo por achar tudo lá muito devagar e cheio de regras, disse também que achava que mundo todo andava mito devagar e que era preciso fazer as coisas mudarem.
– Quando abriu a carteira para me mostrar uma foto da mãe dele, que ele disse que se parecia comigo, vi que tinha lá um retrato de mulher mais jovem, muito bonita por sinal. Não perguntei, mas acho que era algum caso dele.
– Pois comigo mal trocou duas palavras, mas quando subiu de volta a barranca me ofereceu biscoito de polvilho, de um saco que levava com ele.
– O que eu sei, ou deduzi, que é uma pessoa de tipo diferente. Bem diferente, aliás, desses tipos ordinários que a gente tem por aqui. Aliás, falou que queria voltar para conversar mais com a gente
-Já eu, gostei foi do cheiro dele, um perfume assim quase-nada, parecendo de um bebê acabado de sair do banho. E uns olhos fundos, sei lá… Um tipo de homem que minha vó ia chamar de perigoso.
– Eita, minha filha: se apaixonou?
***
Roda de truco
– Eliseu, o cara do balcão, me falou que o senhor chegou da cidade e está dando umas voltas por aí…
– Quer jogar truco mais nós, fique à vontade. Não joga? Nós ensina… Mas pode sapear também, não paga nada pra fazer isso.
– Parece que o senhor está apreciando o lugar aqui, né? Pobrezinho, mas cheio de gente boa e honesta.
– Os que não prestam a gente afogou no rio, hehehe.
– Quem dá as cartas agora?
– Pois é, aqui era raro aparecer gente de fora, agora mudou. Mas ainda assim a gente logo fica cheio de curiosidade, não repare, moço.
– É seis, seu safado!
– Não se assuste, seu moço, essa gritaria faz parte do jogo do truco, não é nada contra o senhor.
– Tá bom, vamos tratar o senhor por você… É o costume daqui, quando a pessoa é de fora, mesmo sendo tão moço assim.
– Como? Quer saber como é a vida aqui? Nossa! Acho que ninguém nunca chegou para perguntar uma coisa dessas…
– Quer saber mesmo? De verdade? É uma vida danada de besta. Um mandiocal na várzea, uma vaquinha para dar leite pras crianças, uns servicinhos porqueiras por aí, com as diárias pela hora da morte. Quando dá uma folga a gente vem jogar este truquinho sem-vergonha aqui, que ninguém é de ferro. Mas agora dizem que vai mudar…
-Peixe? Quase não tem mais. O tempo dos dourados e dos matrinchãs acabou. Traíras agora é só uma outra. Só aparece o tal do tucunaré, que parece ter comido os outros peixes todos.
– Truco!
– Inda que mal lhe pergunte, vejo que você é bom de conversa, vá lá, pergunto: o que veio fazer neste fim de mundo?
– Quer saber de tanta coisa, um sujeito curioso hein…
– Cuma? Tá pagando uma cervejinha? A gente aceita. Somos pobres sim, mas não somos orgulhosos, hehehe.
– Sobre esta mineração? É o assunto do dia. Dizem que é pra mandar as pedrinhas para a China. O povo aqui é muito falador, mas corre a notícia que estão contratando gente sem conta. Até para varrer chão tem vaga. Dinamiteiro, tratorista, almoxarife, cozinheiro, datilógrafo, enfermeiro, operador disso e daquilo, apontador – o diabo a quatro. Ainda não fui lá ver, mas acho que vou acabar indo!
– Já para mim essas novidades não interessam. Fico aqui na minha rocinha mesmo.
– Mas o amigo parece que ficou incomodado com a minha pergunta sobre sua tarefa aqui no meio da gente… Não repare!
– Ah, entendo, quer conhecer gente. E lugares diferentes. Aqui é não é muito bom pra isso. Um cerrado que é a mesma coisa em toda parte e uma gente quase sem repertório. E este rio que entra ano, sai ano, corre na mesma direção, ora cheio, ora vazio. Mas seja feliz! Maltratado você não será.
– Como eu já disse, quem não presta a gente afoga no rio, hehehe.
– Já vai embora? É cedo!
– […]
– Sujeito estranho, este, amigado com cachorro. Vem aqui, conversa com as lavadeiras; depois assunta, assunta com a gente, paga uma cerveja, mas não bebe e do mesmo jeito que chega vai embora. Olha lá, agora está de papo com a molecada.
– Parece que vai procurar emprego na mineração.
– Sei não, acho que o negócio dele não é pegar no pesado, mas somente especular da vida das pessoas. Será que é da polícia?
– Pode ser da política. Logo aparecerá por aqui pedindo votos pra alguém. Aliás, veio com uma conversa de sindicato. Falei pra ele que aqui a gente não usa disso. É coisa de gente sem que fazer.
– Seria um dos tais comunistas?
– Já pra mim parece mais um cara da religião, algum pastor ou aprendiz de padre. Aquela cruzinha no pescoço não me engana.
– Já eu achei o jeito dele meio suspeito. Aquela mãozinha meio caída… Pode ser daqueles que corta igual gilete: dos dois lados…
– Eita povo de boca suja!
– Espia lá, foi se meter no meio da criançada agora…
– É truco, seu filho de uma égua!
– Quem corta agora? É a minha vez de dar cartas.
***
As crianças
– Homem perguntador que só, veio me indagar que tipo de jogo é este, o nosso. Será que não conhece? Expliquei pra ele: um joga a bola, outro rebate e tem que ficar esperto para correr até a base, antes que alguém desmanche ela.
– Será que na terra dele é diferente? Não jogam bete por lá?
– Pra mim perguntou se vou na escola. Falei pra ele que já faz uma semana ou mais que não tem aula, que a professora mudou pra cidade, não vem mais aqui.
– Mudou nada! Mandaram ela embora, tava é namorando com aquele vereador que é inimigo do prefeito.
– Acreditam que ele me disse que na terra dele se um garoto não vai pra escola o pai ou a mãe podem até ser presos?
– Não acredito numa coisa dessas!
– E pelo jeito ele acha que deve ser assim mesmo…
– Eita que maluco!
– Para mim, perguntou se meu pai me batia.
– Ainda bem que não me perguntou uma coisa assim. Eu ia ter que falar de todas as surras que levo lá em casa…
– E as que leva na rua também!
– Falando sério, o que este cara anda querendo por aqui? Desde a manhã anda para lá e para cá. Já vi ele no bar, no meio das mulheres na beira do rio, na roda de truco… Parece meio maluco, isso sim.
– Disse também que a gente devia fazer uma turma para ir reclamar sobre a escola, na porta da prefeitura, juntar com o pessoal da beira de lá do rio e fazer barulho, muito barulho.
– Até que ia ser divertido, uma coisa assim!
– Tá maluco, pra voltar a ter escola? Do jeito que tá, tá bom… Deixa a professorinha namorar à vontade…
– Pena que foi embora, por mim ficava aqui, a prosa dele até que é diferente, divertida.
– Cadê ele?
– Sei não. Parece que tá andando por aí. O Caramelo junto…
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Anotações do DP da Mineração Flor de Lítio S. A.
Luis Vaz de Miranda. Solteiro. 27 anos. Candidato a apontador de horas. Sem experiencia prévia no assunto. Formação: escolaridade superior incompleta, na área de “Humanas”. Informa que já foi seminarista e trabalhou como voluntário em instituição sindical. Já atuou também como vigia ou bedel em uma escola, sendo demitido, sem esclarecer os motivos. Na entrevista revelou-se atento e focado, mas sua procura não parece compatível com o que a empresa tem a oferecer. Pleiteia a vaga de apontador por motivo da facilidade, segundo ele, com registros e anotações de dados e fatos (seja lá o que isso for). Aceitaria também tarefas de escritório, mas não tem familiaridade com informática. Foi-lhe oferecida vaga na área de serviços gerais (coleta de lixo), para daqui a um mês, ficou de pensar na possibilidade, pedindo três dias para responder se aceita. Declarou-se interessado em trabalhar com educação, sendo informado que a empresa não tem este tipo de serviço a oferecer. Não se interessou em receber passagem e ajuda de custo para ser devolvido à origem. Arquive-se.
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Boletim de Ocorrência. 27ª. Delegacia de Polícia de Mato da Lenha
Luis Vaz de Miranda, elemento preso às 03 horas da madrugada de hoje, em atitude suspeita, tentando invadir um galpão da empresa Flor de Lítio, no distrito de Espoca Bode, conforme denúncia do setor de vigilância respectivo. Segundo ele tentava tomar um banho e dormir, não queria subtrair nada. Porta documentos, mas são praticamente ilegíveis, por conservação inadequada e provável ação de intempéries. Não conduz qualquer quantia em dinheiro, mas sim alguns objetos: uma carteira de couro (vazia), um caderno de anotações e um livro, que a Inspetora Ana Amélia, que é professora de português no Ginásio, identificou como de poesia e não como literatura subversiva, além de uma mochila com algumas peças de roupa bastante sujas e inservíveis. Alega estar procurando emprego, mas que não obteve sucesso junto à empresa. Pretende permanecer na região à espera de que lhe surgisse outra oportunidade, que entretanto não soube dizer qual. Por determinação do senhor sub-delegado fica detido no xadrez desta unidade até decisão superior.
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Anotações de um diário
Ando por aí. Tanto sol. Essa passarinhada cantando por toda parte. Faz frio, faz calor? Nem sei. Mas esta aguazinha caindo alto me põe vivo e me estimula. Me acorda. Tenho sono agora, mas o que vejo mais são essas sombras que tapam o que se passa aqui ao redor de mim, neste fim-de-mundo beira-rio. Será que alguma coisa tem jeito neste mundo torto, nesta vida a esmo? Sei é que tudo muda, mas o paradoxo maior é que por essas bandas nada melhora. Essas mulheres… Para elas o mundo é esta trouxa de roupa de cada dia. Esses homens e sua roda de truco, esta é a vida deles. Uma cervejinha no meio da tarde e está tudo bem, o mundo passa a fazer sentido. Essas crianças sem escola, preferindo a vida assim, no regozijo de uma vida vazia. É duro ver tudo isso sem poder fazer nada. Quem poderia fazer alguma coisa diante de um mundo tão vão e vazio? Tudo se transforma e se altera, mas apenas para que tudo fique do mesmo feitio, ou pior. Como fica o coração de quem busca o sentido de um mundo assim? Em que ou em quem poderia alguém confiar? Tudo flui, num arrasto: passam as nuvens, passa o tempo, passam estas garças, passam os barcos pelo rio, passam os dias. Tudo tão incerto, coisas ao vento ou soltas na correnteza do rio. Já se viu por aqui tantas coisas, tanta luz, tanta sombra, flores, água e verdura. Aves que cantavam seus amores agora estão mudas. Tudo é seco e mudo agora. Mudei eu, mudou tudo, tudo se renova, tudo fenece. Haveria cura para isso? Ai, como mudam-se os tempos e mesmo as vontades da gente. A cada hora já não somos os mesmos, a confiança que temos nisso ou naquilo também se transforma. Todo o mundo, afinal, é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. Novidades, novidades: é o que não falta no mundo, mas diferentes em tudo cada uma. O mal sempre espreita, com seu rastro de mágoas na lembrança da gente. O bem, será que houve algum? Se veio, foi só para deixar saudades. Vejo este chão que hoje é verde, mas já foi apenas mato seco – e então? Se ontem cantei contente, hoje apenas sei chorar, assim é a vida. E como esta muda, muda sempre, mudando até em sua maneira se transformar. Queria escrever por mim mesmo, mas só consigo isso por inspiração de terceiros. Obrigado, meu bom Sá de Miranda, meu excelente Luis Vaz, meus espíritos inspiradores!

FLAVITO, gostei muito desse conto, revela o contraste da vida como ela é e a possibilidade de refletir sobre o sentido dela.
Voce consegui, atraves do protagonista, falar de forma simples, da alma do cotidiano, das trouxas de roupas, peso da vida, nos jogos das crianças e das dores enebriadas dos apostadores. O que muda ? O rio, as esperanças ou as ilusoes de um filosofo a procura de sentido?