Adoecer e morrer no Grande Sertão

Guimarães Rosa era médico e clinicou por alguns anos, seja como clínico na Polícia Militar ou no interior do estado, em Itaguara, na região central de MG. Ser o escritor afamado é coisa que veio mais tarde, quando já havia abandonado a medicina e se tornado diplomata, por concurso, no Itamaraty. Mas a presença de doenças e doentes em sua obra é constante. Neste presente e despretensioso trabalho pretendo levantar um pouco da visão médica em suas narrativas e personagens, particularmente no Grande Sertão. A presença de gente enferma em sua obra é marcante, com ampla dominância dos portadores de doenças mentais, como é o caso de boa parte dos personagens de suas Primeiras Estórias. Ali estão, por exemplo, o homem que subiu em uma palmeira e se recusou a descer; a menina que tinha visões; o refugiado na terceira margem do rio; o dono do cavalo que bebia cerveja; o escravo que preparava o pouso de discos voadores; para não falar da pungente história do Sorôco, que vai levar sua mãe e sua filha para terrível embarque no trem que tinha um vagão destinado apenas aos condenados ao hospício de Barbacena. Narrativa especialmente saborosa, apesar de dramática – além de detalhada do ponto de vista clínico – é aquela que fala de Turíbio Todo, personagem do conto O Duelo (em Sagarana), o qual, em ímpeto vingativo, bem típico dos Sertões, acaba por matar por engano o irmão de um militar, Cassiano, que lhe cortejava a mulher e que parte para cima dele em busca de vingança. Turíbio era um papudo, ou seja, portador da hipertrofia tireoidiana por carência de iodo, coisa comum no Brasil de décadas atrás. A descrição de tal papo é um primor de observação clínica: …bilobado e pouco móvel – para cima, para baixo, para os lados. E ironiza: não o escandaloso ‘papo de bola, quando anda, pede esmola’, acrescentando:  ninguém nasce papudo ou arranja papo por gosto, recorrendo ao conhecimento vigente na época (década de 30), hoje superado, atribuindo o problema de Turíbio às tentativas que o grande percevejo do mato faz para se tornar um animal doméstico nas cafuas de beira-rio, onde há também cúmplices, camaradas do barbeiro, cinco espécies, mais ou menos, de tatus. E prossegue, falando de tal personagem, neste momento do conto mais importante do que seu próprio portador: … e tão modesto papúsculo, incapaz de tentar o bisturi de um operador, não enfeava seu proprietário; antes o fazia até simpático: forçado a usar colarinho e gravata, às vezes parecia mesmo elegante. O papo de Turíbio Todo volta à cena em outros momentos do conto, agora dominado por uma frenética perseguição ao longo dos sertões de Minas, digna de um filme de Peckinpah. Cassiano, o desafeto do tal papudo, este sim, vai se revelar vítima autêntica do grande percevejo do mato, ao falecer em estado de congestão cardíaca, em pleno périplo de perseguição ao marido ciumento. Mas nem por isso deixa de consumar a vingança pela morte do irmão. Quem quiser saber como e por quê que leia o conto – bom proveito certamente o espera. No mesmo Sagarana, o conto Sarapalha narra a história de dois primos roceiros,  derrotados pela maleita e por um amor frustrado, sobre o qual a verdade se anuncia, por descuido de um deles, durante um acesso de febre, revelando uma traição em família, que desemboca em tragédia.

Vão aqui algumas observações sobre a presença de doentes e de doenças no Grande Sertão: Veredas, aspectos que no meu entendimento nos ajudam a compreender um pouco da história nosológica e epidemiológica em nosso país, sem esquecer que a narrativa, formulada nos anos 50, deriva de um médico formado na década de 30 e se reporta a acontecimentos ficcionais datados no início do século 20. Mas, sem dúvida, tudo é fruto de pesquisa e conhecimento médico, mas principalmente de vivências do autor na sua emblemática Cordisburgo, autêntico portal para o grande norte sertanejo mineiro, na zona de transição entre as Minas e os Gerais.

Era um tempo de pestilências e miasmas, muito bem descritas quando ele fala do trânsito de multidões a pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam; uma gente que gritava, exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam de fé sem virtude ― requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum. Coisa de dar nojo, invenção verdadeira do demônio, ele próprio um personagem recorrente no livro. O Sertão se revela como território cheio de tais coisas, onde imperava um estatuto de misérias e enfermidades.

Isso é anunciado em certo momento do livro com tintas de tragédia grega, porém repleta de interpretação miasmática: trovoou truz, dava vento. E chuvas que minha língua lambeu. Nelas mais não falo. Mas, quando estiou o tempo, de vez, não sei se foi melhor: porque bateu de começo a fim dos Gerais um calor terrível. Aí, quem sofreu e não morreu, ainda se lembra dele. Esses meses do ar como que estavam desencontrados. Doenças e doenças! Nosso pessoal, montão deles, pegou a mazelar.

O caso do Sucruiú, um arraial devastado pela varíola é revelador, narrado em múltiplas e fortes linhas, uma tragédia anunciada: o senhor já que me ouviu até aqui, vá ouvindo. Porque está chegando hora d’eu ter que lhe contar as coisas muito estranhas. A narrativa vai além da explicação miasmática, ao falar de uma tão terrível doença, arranchada a por cima da pior miséria.

Os estranhos personagens que Rosa denomina de Catrumanos trazem mais detalhes, em seu estranho linguajar: Que estamos resguardando essas estradas… De não vir ninguém daquela banda! povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega em todos, peste de bexiga preta […] As mulheres ficaram, cuidando, cuidando… A gente vinhemos, no graminhá. Faz três dias… Cercar os caminhos. O povo do Sucruiú ― estão dizendo―! nem não estão enterrando mais os defuntos deles… Pode querer vir algum, com recado, trazendo a doença, e esta é a razão… Veio um, querendo pedir auxílios, relatar bobagens, essas mogúncias e brogúncias. Mas teve de voltar, devéras retornou, não demos passagem. Estão com a maldição, a urros. Castigo de Deus Jesus! Povo do Sucruiú, gente dura de rúim… Ossenhor utúrje, mestre: convém desemendar deste lado, não passar no Sucruiú, respraz… Bexiga da preta!… E mais acrescentam: Ossenhor utúrje, mestre… Não temos costume… Não temos costume… Ossenhor é grande chefe, dando sua placença. Ossenhor é Vossensenhoria?

E têm sua explicação para a peste: Estão com a maldição, a urros. Castigo de Deus Jesus! Povo do Sucruiú, gente dura de ruim… Ossenhor utúrje, mestre: convém desemendar deste lado, não passar no Sucruiú, respraz… Bexiga da preta!…

A narrativa se detém em esclarecer o que faziam os pobres sucruianos assolados por aquilo: o que estavam era queimando pilhas de bosta seca de vaca. O que subia, enchia, a fumaça acinzentada e esverdeada, no vagaroso. E a poeira que demos fez corpo com aquele fumegar levantante, tanto tapava, nos soturnos. Aí tossi, cuspi, no entrêcho de minhas rezas. […] Mas pessoas mor que houvesse: por trás da poeira, para lá da fumaça verdolenga se vislumbravam os vultos, e as tristes caras deles, que branqueavam, tantas máscaras. Aos homens e mulheres, apartados tão estranhos, caladamente, seriam os que estavam jogando todo o tempo mais rodelas de bosta seca nas fogueiras ― isso que deviam de ter por todo remédio. […] Sofriam a esperança de não morrer. Soubesse eu onde era que estavam gemendo os enfermos. Onde os mortos? Os mortos ficavam sendo os maus, que condenavam. A reza reganhei, com um fervor. Aquela travessia durou só um instantezinho enorme.

Os pecados daquela gente ainda não estavam de todo pagos. Havia guerra no Sertão e se carecia de braços – e coragens. Cumpria arregimentá-los, assim foi feito: Me trouxeram, rebanhal, os todos possíveis. Do Sucruiú, uns pouquinhos ― alguns com as caras secando os brotes das bexigas, más marcas, feito mijo na areia; outros um ou outro de semblante liso fresco, esses escapos de não terem tido a doença. Os que fingiam não me temer, achavam mais favorável querer ter vindo por próprio conselho; mal-abriam boca em risos. […] Aquela gente depunha que tão aturada de todas as pobrezas e desgraças. Haviam de vir, junto, à mansa força. Isso era perversidades?

Do misticismo sertanejo, ou seja, da presença de Deus ou do Diabo entre os homens e de suas implicações na vida em geral, e também nas doenças do corpo e da alma das pessoas, a obra está repleta. Aliás, é um de seus principais fios condutores. Exemplos disso é a questão trazida por um doutor rapaz que defendia ser a vida um processo de encarnações e reencarnações, porém mediante progresso próprio, sem a intervenção de Deus. Riobaldo estremece: como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança! sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. E o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar ― é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dôr. E a vida do homem está presa encantoada ― erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos ― não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? […] O que não é Deus, é estado do demónio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver ― a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo.

E a própria vivência do narrador entra em cena, quando ele se recorda de sua infância, ao sarar de uma doença, tendo sua mãe feito promessa para ele mesmo cumprir, que era de tirar esmola, até perfazer um tanto ― metade para se pagar uma missa, em alguma igreja, metade para se pôr dentro duma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa.

Curiosamente, em um ambiente fortemente carregado de causas naturais e ambientais de adoecimento, como as doenças transmissíveis pestilenciais, para não falar nas violências e outros acometimentos à saúde por assim dizer de causação ligada ao trabalho nas rudes condições do Sertão, chama atenção a descrição de quadros de natureza psicossomática a acometer os jagunços. Riobaldo parece ser o principal acometido disso, como se vê por diversas narrativas suas. Ele mesmo admite: O senhor sabe: há coisas de medonhas demais, tem. Dor do corpo e dor da ideia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio.

E vai além. Acho que me escabreei. De sorte que tantos pensamentos tive, duma viragem, que senti foi esfriar as pontas do corpo, e me vir o peso de um sono enorme, sono de doença, de malaventurança. Que dormi. Dormi tão morto, sem estatuto, que de manhã cedo, por me acordarem, tiveram de molhar com água meus pés e minha cabeça, pensando que eu tinha pegado febre de estupor. […] Viver é muito perigoso, já disse ao senhor. No mais, mal me lembro, mas sei que, naqueles dias, eu estive muito maltrapilho. Em que era que eu podia achar graça? De manhã, quando eu acordava, sempre supria raiva. Um me disse que eu estava estando verde, má cara de doença ― e que devia de ser de fígado. Pode que seja, tenha sido. O Paspe, que cozinhava, cozinhou para mim os chás! o de macela, o de erva-dôce, o de losna. Oi. Dôr, mesmo, nenhuma eu não tinha. Somente perrengueava.

A arenga de Riobaldo a respeito de suas mazelas traz indicativos importantes sobre a percepção do sertanejo sobre seus males físicos e sobre o modo de superá-los: As doenças se curassem? Minhas dúvidas. Aí, quem não pegara a maleita padecia por outros modos ― mal-de-inchar, carregação do-peito, meias-dôres; teve até agravado de estupor. Adiantemente, me desvali. O que me coçava, que nem se eu tivesse provado lombo de capivara no cio. A ser, o fígado, que me doía; mas não me certifiquei: apalpar lugar de meu corpo, por doença, me dava um desalento pior. Raymundo Lé cozinhou para mim um chá de urumbeba.

Zé Bebelo, destemido chefe, assim como Riobaldo, em tal quesito não lhe ficava atrás: Doença, com ele? Sendo o que a um assim não podia permitido; só se perdesse de todo o siso. A não ser por essa malacafa. Ei, pois, ele estava caipora. Logo vi. […] Zé Bebelo murchava muda na cor, não existia mais em viço para desatinos, nada que falava era mais de se reproduzir, aqueles exageros bonitos e tamanhos rasgos.

Homens tão valentes, dispostos a enfrentar tantos perigos físicos reais, se mostravam, entretanto, bastante vulneráveis à ansiedade e à tensão que a vida de jagunços lhes impunha. E caíam, inermes, em estado de caiporismo e perrengues que advinham de tal tipo de vida. Aqui, sem dúvida, se antecipa uma discussão um tanto inesperada para o contexto do Sertão, mas que hoje faz parte do universo dos estudos na sociologia da saúde e da doença, qual seja o padrão de determinação social de tal processo.  

As páginas do Grande Sertão: Veredas trazem ainda uma curiosa sucessão de verdadeiros casos clínicos, conforme se retrata a seguir.

Um casal de primos carnais, que geraram nada menos do que quatro filhos homens, com a pior transformação que há! Casos de focomelia, a lembrar o que veio a ser mais tarde o efeito da talidomida: sem braços e sem pernas, só os tocos. Riobaldo, um homem que se mostra sensível, reage: arre, nem posso figurar minha ideia nisso.

A moça do Barreiro-Novo, que desistiu de comer, apenas bebendo por dia três gotas de água de pia benta, promovendo a seu redor milagres, logo interrompidos, entretanto, por obra da polícia, que determinou o desbando do povo, baldeando a moça para o hospício de doidos, na capital. Riobaldo considera: Tinham o direito? Estava certo? Meio modo, acho foi bom. Aquilo não era o que em minha crença eu prezava.

O caso de Firmiano, por alcunha Piolho de-Cobra, que se lazarou com a perna desconforme engrossada, dessa doença que não se cura. E que além disso ficou cego, com o branquiço nos olhos, das cataratas. Viu-se obrigado a renunciar à profissão de jagunço, sem fazer o mesmo, contudo, em relação a certas essências da mesma, por exemplo, de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola, com faca cega… Mas, primeiro, castrar.

Medeiro Vaz, o grande chefe, o Rei dos Gerais, portador em seu tempo de doença a quase acabadano peso do fôlego e no desmancho dos traços, ficando amarelo almecegado, curvando-se mesmo sem querer, gemendo no ato de urinar.

O estranho caso do Padre Ponte, que de dia em dia, emagrecia, amofinava o modo, tinha dores, e em fim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho, até morrer triste, por obra do assédio de uma mulher, Maria Mutema, que conforme mais tarde se viu, matara também o marido, vertendo-lhe no ouvido, enquanto dormia, chumbo derretido. E que depois do caso do padre nunca mais voltou à igreja. E ninguém não alcançou de saber por que lei ela procedia e pensava […] coisas que são, filosofa o narrador.

Os estranhos ataques de um Zé Vital, sujeito sacramentado de feioso, principiando depois que ele se queixava de sentir o nariz quente, emitindo na sequência um terrível grito de porco com frio, caindo estatelado no chão, duro como um cano de arma, batendo braços e pernas, ansiando por coisa ou criatura em que se pudesse agarrar, com a boca aspumada, escumando. Alguém disse ser aquilo doença velha pertencida e não um fato de guerra… Para Riobaldo, as moscas que logo pretejaram a casa naquilo presumiam o sujo, ou seja, talvez anunciassem castigo merecido

Tem também a história de um Aleixo, homem de maiores ruindades calmas. De repente seus quatro filhos adoeceram com um andaço de sarampão, e disso nunca saravam. Até que os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga rebelde, e assim restaram cegos, sem remissão dum favinho de luz. O pai não perdeu o juízo, demudando por completo, buscando o mérito de ser bom e caridoso.

Pedro Pindó, um vizinho de Riobaldo, considerado homem de bem, com um filho de dez anos, o Valtêi, o qual desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Projeta sua maldade em todo bicho ou criação e até babeja quando vê sangrar galinha ou porco. Eu gosto de matar… ― uma ocasião ele pequenino me disse. Os pais, para corrigir isso castigam o menino, deixando-o sem comer ou amarrado em árvores no terreiro, ele nú nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura. Pindó e a mulher se habituaram de bater na criança e foram achando nisso um prazer feio de diversão, regulando as sovas com horas marcadas e até chamando outros para lhes ver dar tal exemplo. Arremata o narrador: Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem.

Dramática, também, em sintonia com aquela época de pestilências, é a história de Sô Candelário, um dos jagunços antigos do bando, que tinha enorme medo de pegar lepra, que já acometia grande parte da sua família. Lepra ― mais não se diz: aí é que o homem lambe a maldição de castigo. Mas tal homem não atinava o motivo de estar sendo castigado e por isso vivia revoltado, em fogo de ideia, sabendo que tal doença é lenta para aparecer, mas que de repente brota. Assim, pegou a mania de arregaçar as mangas camisa para poder observar amiúde seus braços, carregando um espelhinho no qual sempre se olhava, compulsivamente. Riobaldo, o narrador, filosofa, mais uma vez: ele perseguia o morrer, por conta futura da lepra; e, no mesmo do tempo, do mesmo jeito, forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só dava resultado que mandava mortes, e matava […] aquele homem, eu estimava. Porque, ao menos, ele, possuía o sabido motivo.

Em certo momento, a narrativa faz verdadeiro inventário das causas de mortalidade na época, entre tal grupo humano, pelo menos.  De um Pitoló, por disparo involuntário de arma, caso muito acontecível; de um Freitas Macho, por dores intensas e inexplicadas no vão da barriga, no qual remédios e chás não produziram qualquer efeito; de um Alaripe, que teve uma carregação-dos-olhos; de um Conceiço, que tendo o braço destroncado, deu trabalho e dores para se repor no lugar. Ao que Riobaldo considera, de forma fatalista: dessas passagens assim não lhe vinha minuciando, e que elas corretamente sempre se dão; mas que eram somente as mortes sérias serenas, doutras desgraças diversas, ou doenças para molestar.

Passagem extremamente dramática e de justiçamento selvagem e impiedoso é aquela em que o chefe Medeiro Vaz avista um leproso a lamber goiabas maduras em um pomar, buscando com certeza passar o mal para outras pessoas. Tal chefe, considerado justo e prestimoso, acaba, no ato, com a vida dele, com um tido de garrucha. Mais uma vez se impõe a violenta ética sertaneja, na voz de Riobaldo: o lázaro devia de feder; onde estivesse, adonde fosse, lambuzava pior do que lesma grande, e tudo empestava da doença amaldita. Arte de que as goiabas de todo goiabal viravam fruta peçonhenta […] lei leal essa, de Medeiro Vaz.

 ***

Mais ou menos na época em que é ambientada a saga dos jagunços no Grande Sertão, ou seja, início do século 20, encontrei um relatório médico, este não ficcional, que trata da questão sanitária em tal território. Trata-se da Missão Cruls, encarregada de fazer as primeiras demarcações do DF, na última década do século 19. O documento assim produzido, denominado Relatório Cruls, representa uma completa reportagem sobre o Planalto Central, abrangendo aspectos físicos, climáticos, históricos, sanitários e culturais diversos. Seu coordenador, Louis Cruls (1848-1905), era um engenheiro e geógrafo belga, homem de ciência no velho estilo, que veio para o Brasil em meados do século XIX, exercendo, entre outras tarefas, a direção do Observatório Imperial do Rio de Janeiro, trazendo importante contribuição ao desenvolvimento da cartografia e da astronomia no País. A finalidade da expedição não era simplesmente a demarcação de uma área, mas a produção de um diagnóstico científico da região que deveria abrigar a futura capital.  Em meados de 1892 a expedição partiu do Rio de Janeiro, primeiro de trem e depois a cavalo, numa viagem que durou, no total, cerca de nove meses. As informações sobre saúde estão no anexo IV de tal documento, intitulado Do Planalto Central do Brasil, de autoria de certo Dr. Antonio Pimentel, médico hygienista da comissão. 

Antes de mais nada é preciso reconhecer que a ciência da época era outra. Embora Pimentel pudesse se valer de teorias pasteurianas, já vigentes à época, ainda existem no texto não poucas referências baseadas nas teorias miasmáticas, por exemplo, quando fala do paludismo, como era conhecida a malária na ocasião, embora seu agente etiológico e seus mecanismos de transmissão tenham sido descritos na mesma época, mas provavelmente ainda não conhecidos pelo autor.

Uma estatística pathologica revelada ao final do texto mostra que os problemas de saúde mais frequentemente encontrados na região, segundo observações diretas do autor, feitas e a partir de uma centena e meia de pacientes que examinou, eram dyspepsia, bouba, neurastehenia, bronchite, syphilis, leucorrhéa, paludysmo e hypohemia intertropical. Alguns desses problemas, como é o caso desta última condição, já não é possível saber exatamente do que se trata e para a maioria deles os termos são um tanto imprecisos, misturando meros sintomas com doenças de etiologia já então conhecida, ou ainda não.

Por falar em etiologia, além do desconhecimento desta em relação à malária, verifica-se que o mesmo acontece em relação ao à maioria das condições assinaladas. O bócio, por exemplo, que não comparece entre os problemas mais frequentes é ainda considerado de causa obscura, sendo mais tarde, após os trabalhos de Carlos Chagas, no século XX, atribuído erroneamente ao T. cruzi. O que o autor chama de dyspepsia, por exemplo, é atribuído vagamente a problemas alimentares, sem que se avance qualquer conclusão em relação à possível participação de agentes etiológicos já conhecidos na época e que poderiam perfeitamente justificar tal quadro, ou seja, as infestações por vermes nematelmintos e platelmintos, além de outros agentes biológicos, de alta incidência nos brasileiros de então.Mesmo sem identificar ainda a natureza nutricional do bócio, refletindo os parcos conhecimentos da época, o autor confere grande valor ao fator nutricional como causa de variadas doenças. Assim coloca tal fator como desencadeante ou agravante de uma série de condições, tais como as dispepsias, a neurastenia, o artritismo, a anemia, clorose e até mesmo a dismenorreia feminina. Mas não fala da possibilidade de associação etiológica das tais dyspepsias com os vermes intestinais. Ainda desenvolvendo tais teorias de fundo nutricional, atribui como fatores de agressão ao organismo a condimentação exagerada das comidas por parte da gente do sertão, o pouco cuidado com a água de beber, além da falta de noções elementares de higiene. São reflexos das teorias higienistas de então, que inclusive qualificam o cargo que tal médico redator tinha na Missão Cruls.

Ainda sobre o bócio, reconhecidamente um flagelo histórico no Brasil Central, só revertido com a iodetação compulsória do sal de cozinha, na década de 50 do último século, o autor o trata quase como um fenômeno natural, dada a grande quantidade de papudos que observou na região. Não faz menção direta, contudo, aos portadores do cretinismo, a não ser que assim consideremos os casos de idiotia que enumera em sua estatística. Tentando uma aproximação etiológica identifica como prováveis causas do problema uma série de eventos de natureza miasmática: intempéries, águas, alimentos. Faz o curioso relato de um paciente de Pirenópolis que viu seu papo reduzido e mesmo se tornado assintomático quando passou algumas semanas fora de seu ambiente habitual, indo para Goiás Velho.    

O autor dá grande destaque à sífilis e às doenças venéreas, sem fazer ilações moralistas. Descreve alguns casos de sífilis, principalmente formas avançadas da mesma, com possíveis acometimentos cardiológicos e cerebrais. Como provavelmente seus diagnósticos eram eminentemente clínicos, é de se supor que algumas formas cardíacas da Doença de Chagas, na época ainda desconhecida, tenham sido equivocadamente atribuídas à sífilis. Ainda neste quesito, o autor faz referência a dois casos que pôde tratar, tendo observado melhoras nos mesmos no decorrer de poucos dias. É de se desconfiar, contudo, da total veracidade de tais observações, pois as formas crônicas de tal doença não cederiam tão rapidamente a tratamentos e além do mais, à época, a utilização dos sais mercuriais certamente provocaria reações colaterais que não seriam condizentes com um sucesso tão grande. 

O que o autor denomina de neurastenia é um dos tópicos dominantes de suas reflexões. Como em outras situações, não se aventura a definir para a mesma quaisquer hipóteses etiológicas. Mas a identifica com um cortejo de sintomas bem conhecidos, inclusive nos dias de hoje: melancolia, tristeza, hipocondria e também indecisão. Relata, inclusive, curioso caso observado em Formosa-GO, em que um desses ditos neurastênicos padecia de tal grau de indecisão em suas atitudes mesmo cotidianas que teve que adiar sucessivamente uma viagem, por não conseguir marcar seu dia ou mesmo iniciá-la de fato, ao ponto de ter combinado com amigos que o levassem à estrada, mesmo contra sua própria vontade.

Sobre o paludismo, que vem a ser a malária atual, em determinado ponto de sua narrativa, reputa-a como muito rara na região, embora a mesma compareça em sua estatística com um total de quatro casos, número superior ao de outras moléstias relatadas. Professa, em relação à mesma, certo grau de determinismo geográfico ou mesmo miasmático, ao localizá-la em algumas regiões “boreais”, numa faixa correspondente ao chamado “mato grosso” de Goiás, de Pirenópolis a à Cidade de Goiás. Embora desconheça (ou omita) o conhecimento de sua etiologia, entretanto já definida à época, preconiza medidas de saúde pública corretas e que considera factíveis para sua erradicação, tais como a drenagem de pântanos e lagoas, afirmando mesmo que a presença de tal doença na região não deveria ser considerada como empecilho para a eventual localização da futura capital. Aponta ainda como focos da mesma na ocasião as regiões do Vão do Paranã, Mestre D’Armas (no município de Formosa, atual Planaltina) e também no Rio Corumbá. 

A saúde feminina também faz parte das preocupações de Pimentel, mas sem qualquer palavra sobre as condições da gravidez e do parto, do puerpério e do período neonatal. Foca sua análise nos casos de leucorreia e dismenorreia que examinou, onze em 150, colocando-os como prioridade. Ele as separa nas categorias de “congestiva’ e “nevrálgica”, seja lá o que isso for. Mais uma vez correlaciona tais condições com a má alimentação e também com “sedentarismo”, o que é um tanto duvidoso, pois se tratavam de mulheres pobres que certamente tinham um cotidiano de dura lida.

A estatística apresentada pelo autor sem dúvida apresenta algumas curiosidades, por exemplo, ao arrolar, embora em pequeno número, casos de “facada”, “tiro de garrucha”, mordedura (sic) de cobra, senectude, “hystero-epilepesia” e onanismo (!). Ele cita também três casos de “idiotia”, que podem bem ser derivados da insuficiência de iodo na gestação, como já comentado acima. E as verminoses aparecem agora, mas apenas com o registro de um único caso.

Questão não abordada é a da assistência médica disponível naquele momento, mas que podemos supor ter sido muito precária, naturalmente. Perscrutando mais profundamente tal assunto nos registros históricos das cidades mais antigas da região, tais como Luziânia, Cristalina, Planaltina e outras, tal assunto poderá ser esclarecido. Entretanto, me faltou fôlego para tanto, mas encontrei no magnífico livro de Paulo Bertran (ver citação abaixo) um texto que certamente joga luz sobre a questão, embora com foco em Paracatu, cidade que se diferenças tem em relação a suas irmãs mais ao Norte, certamente seriam para melhor, mas mesmo lá, como se verá a seguir, a situação era bastante precária. O relato abaixo, citado por Bertran, é do médico e naturalista europeu Johann Emmanuel Pohl, que percorreu a região ainda na primeira metade do século XIX. Vejam o que ele disse:

Quanto à assistência médica os habitantes dessa cidade são dignos de dó. Não possuem médico nem farmácia. Os comerciantes vendem a alto preço alguns remédios simples, estragados, de jalapa, ipecacuanha, ruibarbo, quina de má qualidade, ópio, cânfora, mercuriais e outros. Quem tem a infelicidade de adoecer não pode contar uma possível assistência. Os remédios domésticos usuais são tomados em tal quantidade que só podem apressar a morte.

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