Revi, por esses dias, um curioso filme que eu havia assistido anos atrás, aquele Cinema, Aspirinas e Urubus, um road-movie nacional dirigido por Marcelo Gomes. O enredo é inspirado em relatos de viagem de um antepassado dele, que em suas andanças como mascate nos sertões da Paraíba conheceu um alemão que por ali vendia medicamentos e atraía clientes exibindo filmes de divulgação, até que veio a Guerra e os negócios da companhia Bayer no Brasil foram suspensos. O filme transcorre com graça e leveza, mostrando mais uma vez uma grande interpretação do ator baiano João Miguel, que faz o papel de um carona curioso e também meio filósofo, dado a especulações metafísicas. Mas, na verdade, o que me provocou mais atenção foi a lembrança que tive de um personagem de Grande Sertão: Veredas, um alemão também perdido (ou achado) no interior do Brasil em missão comercial. É dele que quero falar: um estrangeiro perdido no Grande Sertão central do Brasil, conforme relatado pelo seu grande explorador, João Guimarães Rosa. Mas como uma coisa puxa outra, aproveitarei para falar também de alguns outros estrangeiros que andaram por aqui e que por motivos variados amaram o Brasil ou pelo menos produziram coisas importantes sobre nosso país.
Em uma das andanças dos jagunços pelo sertão são-franciscano, é assim que Riobaldo o apresenta: o Vupes! Não digo o que digo, se o do Vupes não orço ― que teve, tãomente. Esse um era estranja, alemão, o senhor sabe! clareado, constituído forte, com os olhos azuis, esporte de alto, leandrado, rosalgar ― indivíduo, mesmo. Pessoa boa. Homem sistemático, salutar na alegria séria. Seu nome é objeto de indagações ao seu interlocutor silencioso, por parte de Riobaldo: Ah, o senhor conheceu ele? 0 titiquinha de mundo! E como é mesmo que o senhor frasêia? Wusp? E. Seo Emílio Wuspes… Wúpsis… Vupses.
No sertão tumultuado por guerras entre fazendeiros o alemão não se deixava perturbar – e nem talvez tomar partido – de olho, certamente, em seus negócios de vendedor de equipamentos agrícolas – e também de outro tipo de equipamento, este voltado para a defesa e eventual ataque por parte dos fazendeiros: Hê, hê, com toda a confusão de política e brigas, por aí, e ele não somava com nenhuma coisa: viajava sensato, e ia desempenhando seu negócio dele no sertão ― que era o de trazer e vender de tudo para os fazendeiros: arados, enxadas, debulhadora, facão de aço, ferramentas rógers e roscofes, latas de formicida, arsênico e creolinas; e até papa-vento, desses moinhos-de-vento de sungar água, com torre, ele tomava empreitada de armar. E se dava ao respeito: em um estatuto tão diverso de proceder, que todos a ele respeitavam.
O alemão já conhecia o narrador desde a juventude deste, quando ainda vivia com seu padrinho (e possível pai biológico) Selorico Mendes, na vila de Curralinho. O contato entre eles, quando o alemão revelou já tê-lo visto antes, é cheio de admiração e reconhecimento por parte do então jovem sertanejo: Me reconheceu devagar, exatão. Sujeito escovado! Me olhou, me disse: ― Folgo. Senhor estar bom? Curiosamente, Riobaldo responde ao alemão cometendo o mesmo equívoco no tempo verbal e usando palavras idênticas, talvez para demonstrar intimidade ou mesmo satisfação em revê-lo, de forma civilizada, como ele mesmo assinala: Seo Vupes, eu também folgo. Senhor também estar bom? Folgo…
Riobaldo deixa explícita sua satisfação: sempre gosto de tornar a encontrar em paz qualquer velha conhecença ― consoante a pessoa se ri, a gente se acha de voltar aos passados, mas parece que escolhidas só as peripécias avaliáveis, as que agradáveis foram. E isso fez vir à tona lembranças também antigas, dado um episódio em que o Sêo Vupes também esteve presente, quando Riobaldo lançou suas redes de conquistador em cima de duas mocinhas, Miosótis e Rosauarda, filhas de um comerciante turco no Curralinho, Sêo Assis Wababa, também cliente do alemão.
Vupes também se interessa pela prosa e pela companhia do jovem sertanejo, pensando talvez até em contratá-lo como seu auxiliar no comércio pelas estradas e vilas do Sertão, o que deixou Riobaldo ainda mais entusiasmado com a amizade e deferência do outro: Sei senhor homem valente, muito valente… Eu precisar de homem valente assim, viajar meu, quinze dias, sertão agora aqui muito atrapalhado, gente braba, tudo… E mais ainda se admirou dos modos do estrangeiro: para falar, nem com uma pontinha de dedo ele não bulia gesticulado. E com ele fez estrada, provisoriamente, contudo, já lhe dando proteção, por caminhos que não acabam, essas demarcas de Grão Mogol, Brejo das Almas e Brasília – sem confrontos de perturbação, frisa Riobaldo.
Vupes vira um mestre de Riobaldo, com todas as honras: com as graças, dele tendo aprendido muito, conforme declara, vendo nele alguém a dominar o regulado miúdo e para tudo tinha sangue-frio. Homem que sabia viver no ambiente do sertão, onde era capaz de formar conforto e que além disso saía arecolher ou comprar coisas de bom gosto pelas estradas, uma moranga, uns ovos, grelos de bambu, umas ervas, e mais tarde quando encontrava uma casa melhorzinha, encomendava jantar ou almoço, para o gaudio de todos os companheiros da hora, com pratos fartos e variados, que ele mesmo ensinava a preparar – tudo virava iguarias!
Vupes era também um portador das notícias que vinham da civilização, das grandes cidades, por exemplo, quando relata, na presença de Assis Wababa, que em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar até lá, o Curralinho então se destinava ser lugar comercial. Isso faz Riobaldo sonhar à solta com uma vida que de imediato não seria a sua: me alembro! eu entrei no que imaginei ― na ilusãozinha de que para mim também estava tudo assim resolvido, o progresso moderno! e que eu me representava ali rico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse verdade.
Em dado momento, contudo, Riobaldo comete um sincericídio autêntico. Diante da possibilidade de trabalhar diretamente com o alemão, protegendo-o nas estradas, se precipita, para logo se arrepender, embora já fosse tarde para isso: nem ponderei, mas disse: ― Seo Vupes, o senhor não quererá me ajustar, em seu serviço? Minha bestice. Níquites! ― conforme que o Vupes constante exclamava. Ali nem acabei de falar, e em mim eu já estava arrependido, com toda a velocidade. Ideia nova que imaginei: que, mesmo pessoa amiga e cortês, virando patrão da gente, vira mais rude e reprovante. Mordi boca, já tinha falado. Ainda quis emendar, garantindo que era por gracejo.
Outra identificação com o alemão é revelada quando lembra que ele era também versado em manejar armas, embora viajasse sem cano nenhum disponível. Para isso, o Vupes tinha esta expressão curiosa, níquites, palavra retirada do alemão nicht, que significa nada em português. Ele encheu Riobaldo de orgulho quando comentou a destreza desta com o ofício das armas: ele me viu afinar mira, uma vez, e me louvou, por eu, de nascença, saber tão bem, na horinha, segurar de não respirar. Mesmo dizia: ― Senhor atira bem, porque atira com espírito. Sempre o espírito é que acerta… Soante que dissesse: sempre o espírito é que mata.
Mas Riobaldo, como bom jagunço, era orgulhoso e autossuficiente: só o que mesmo devo de dizer, como atiro bem! que vivo ainda por encontrar quem comigo se iguale, em pontaria e gatilho. Alega que o alemão Vupes pouco lhe ensinou, pois naquele tempo, ele, Riobaldo, já era […] dono de qualquer cano de fogo! revólver, clavina, espingarda, fuzil reiúno, trabuco, clavinote ou rifle. Mas admite que não deve se honrar em tal grau, pois isso não seria mais doque um dom dado por Deus, no que seria corrigido pelo seu compadre Quelemém, que lhe esclareceu ser isso derivado de em outra vida, por certo em encarnação, ter trabalhado muito em mira em arma. E conclui: pontaria, o senhor concorde, é um talento todo, na ideia. O menos é no olho, compasso. E indaga a si mesmo: será que aquele Vupes havia profetizado algo assim?
Um outro (possível) alemão personagem de Rosa é o Sêo Olquiste, presente em o Recado do Morro, um conto de No Urubuquaquá, no Pinhém. Este, na verdade, é um provável sobrenome nórdico, Ahlqvist comum na Suécia e em outros países da região. Este, que andava pelas Minas Gerais e foi companheiro de jornada de Pedro Chambergo e outros, no périplo que se desenvolve em torno de um suposto recado do morro e provavelmente tem como referência concreta o naturalista dinamarquês Peter Lund, considerado o pai da paleontologia no Brasil, sendo o primeiro a descrever, ainda no século 19, não só o famoso Homem de Lagoa Santa como a megafauna regional do Vale do Rio das Velhas. A gruta do Maquiné, próxima da terra natal de Rosa, Cordisburgo, foi objeto de algumas das descobertas de Lund. Ele veio da Dinamarca para fugir da tuberculose, que vitimara muitos de seus parentes e amigos. Sêo Olquiste é um estrangeiro maravilhado com a riqueza da flora e da fauna tropicais, tão exuberantes em relação àquela de sua Dinamarca natal. Uma descrição do mesmo: Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem. Tomava nota, escrevia na caderneta, a caso, tirava retratos. Por exemplo: a gameleira grande está estrangulando com as raízes a paineira pequena! – ele apreciava, à exclama.
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Na verdade, estrangeiros curiosos e especuladores são comuns em nossa história, geralmente voltados para a investigação natural, como foram os casos do supra citado Lund, de Saint Hilaire, Pohl, von Martius, Spitz, Langsdorff e muitos outros. Há também os que trabalhavam como agentes estrangeiros, que mal disfarçavam seu interesse na exploração de nossos recursos e na defesa de interesses do país matriz, como Richard Burton (não o marido de Lis Taylor, mas um inglês nascido na Índia, que andou por aqui em meados do século 19). Mas este aí está perdoado de suas espionagens a favor de S. M. a Rainha Victoria, pois era um cara de façanhas geniais, como se verá em seguida.
Richard Francis Burton viveu de 1821 a 1890, tendo vivido na Índia em parte de sua vida e percorrido o Império Britânico, aquele onde o sol nunca se punha, em outra parte da mesma. Entre suas habilidades estão as de militar, escritor, tradutor, linguista, geógrafo, poeta, orientalista, espadachim, agente secreto e diplomata. Ufa! Enfim, tudo aquilo que um dia mereceu o qualificativo de polímata. Com não poucos escândalos e controvérsias a permearem sua vida agitada, Burton é sem dúvida uma das personalidades mais extraordinárias e fascinantes do século 19, sendo fluente em quase 30 idiomas e estudioso de costumes de povos asiáticos e africanos. Viajou à cidade sagrada de Meca, um feito inédito, já que a mesma era mortalmente proibida a não islâmicos. Explorou a região central dos grandes lagos africanos e ali fez descobertas geográficas importantes. Serviu como cônsul em várias partes do império britânico, até mesmo em Santos, no Brasil, país sobre o qual escreveu profusamente. Traduziu, de forma inédita, As Mil e uma Noites, além de textos eróticos diversos, entre eles o Kama Sutra (mesmo sob o risco de ser preso) e mais outros textos sagrados hindus. Sua postura ousada e seus interesses eruditos fizeram de Burton figura polêmica em seu país, despertando a fúria do puritanismo na era vitoriana. Como se não bastassem suas aventuras anteriores, percorreu, de canoa, o rio São Francisco, de Sabará, próximo à sua nascente, até sua foz no Nordeste do Brasil. Através dele, não só o estado de Minas Gerais, mas também o Brasil, agora com seus portos abertos às nações amigas, se tornaram mais conhecidos no mundo.
Não nos esqueçamos do padre jesuíta italiano Antonio Andreoni, conhecido como Antonil, que foi um dos viajantes insignes pelo Brasil colonial na virada do século 17 para 18. Ele morreu em Salvador, no ano de 1716, tendo sido trazido ao Brasil em 1681 pelo padre Antônio Vieira, seu colega na Companhia de Jesus, que o admirava. Antonil era um observador atento da vida colonial, particularmente das relações econômicas aqui vigentes, analisando com profundidade e erudição sobre tal assunto, em temas tão variados como cultura do açúcar e do tabaco, criação de gado e mineração, de quebra comentando as condições de trabalho, sociais e políticas. Sua obra, para além das controvérsias a respeito, foi censurada em Portugal, acusada de que o livro poderia ser uma grande fonte de informações para os inimigos da Coroa.
O barão Georg Heinrich von Langsdorff, também nascido em 1774 na atual Alemanha, assim como o Vupes, graduou-se em medicina, inicialmente, trabalhando em Portugal como médico da marinha. Neste país, entre outros feitos, foi um pioneiro introdutor da vacinação. Tinha notável interesse autodidático em história natural e chegou mesmo a participar de uma expedição científica russa que realizou a circum-navegação terrestre. Em 1803 esteve no litoral de Santa Catarina, colecionar espécies e estudar a natureza local. Mais tarde foi nomeado cônsul do império russo no Rio de Janeiro, onde manteve seus estudos sobre a história natural, inclusive acompanhando um desses cientistas estrangeiros eméritos, o francês Auguste de Saint-Hilaire, em uma viagem pelas Minas Gerais. Viajou também pelas regiões centrais do Brasil, enfrentando inúmeras adversidades, culminando com a sua total perda da memória. Langsdorff demonstrava amar o Brasil e planejava viver no país o restante de sua existência, segundo ele “para deixar esta vida de cigano e viver e morrer em paz”. Nos arredores do Rio de Janeiro criou e manteve a famosa Fazenda da Mandioca, na qual tecnologias agrícolas mais avançadas de todo o mundo e nem sonhadas por aqui e eram utilizadas.
Mas não só nas ciências naturais ou na preocupação com a economia viajavam esses estrangeiros. Por exemplo, o alemão Curt Unckel (1883 – 1945), que recebeu dos indígenas guaranis brasileiros o apelido carinhoso de Nimuendajú (o que veio para ficar entre nós, em tradução aproximada) realizou por aqui estudos etnográficos por mais de quarenta anos, de diversas naturezas. Lamentavelmente, entretanto, uma parte de seus trabalhos foi destruída no incêndio do Museu Nacional, em 2018
Há outros, muitos outros, claro. A relação acima mostra apenas alguns mais notáveis, em áreas diversificadas. Uma coisa é certa, mesmo quando representavam interesses estratégicos e comerciais, como no caso de Burton, deixaram contribuições que hoje nos ajudam a compreender melhor o país que temos, bem como fornecer informações e análises importantes para o entendimento da natureza, dos recursos, da cultura e do povo do Brasil junto aos estrangeiros.
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NOTA: A foto que ilustra esta matéria é do dinamarquês Peter W. Lund, o qual, mesmo não sendo alemão, representa muito bem o tipo ideal (Alemão no Sertão) aqui tratado.
