Como disse antes, citei os roteiros de Portugal e dos Gerais de Minas, como exemplos de viagens apetecíveis, mas na verdade já tinha descoberto tal filão antes. Conto algumas dessas jornadas felizes, agora em rápidas palavras. Em 1984 convidei dois casais amigos de Uberlândia, Durval Garcia e Lourdinha, José Eugênio e Virginia, para fazermos uma viagem no estilo que mais tarde se tornou predileto para mim. De passagem por BH, o casal do qual eu fazia parte, com Eliane, recolheu as nossas sogras respectivas, Favita e Maria.
E fomos em frente, primeiro para Diamantina, onde passamos três ou quatro dias, hospedados no velho casarão do Hotel Minas Gerais, onde pontificava o proprietário, o mulato Oswaldão, que já foi até personagem de Rubem Fonseca, com seu robe de seda grená e suas maneiras afetadas e aristocráticas, sem, contudo, deixar de ser um hoteleiro acolhedor. Ali passei meu aniversário de 36 anos, numa mesa em que além de tais amigos e mais o casal Ilvio e Glaucia que ali se juntaram a nós, tínhamos dois seresteiros de Diamantina. Bons tempos, ótima idade, excelentes amigos, belo aniversário!
Dali seguimos para o Serro, não sem antes nos determos em São Gonçalo do Rio das Pedras, uma joia de lugar, e Milho Verde, ambas até então desconhecidas por nós – e muito admiradas. Pela estrada de chão seguimos para Conceição do Mato Dentro e dali mudamos o rumo de última hora, para conhecer o “Mato Dentro” propriamente dito, a extensa cobertura de Mata Atlântica que se estende na vertente oriental da Serra do Espinhaço e, há tempos passados, em boa parte do Vale do Rio Doce. E fomos em frente, passando em Carmésia, Ferros, Santa Maria do Itabira, cidades que um olhar mais descuidado julgaria desnecessárias de se conhecer. Mas não o nosso, claro.
Chegamos finalmente a Itabira, minha terra, onde fizemos o circuito obrigatório drummondiano e já então me dei conta que nesta cidade tem mais gente ganhando a vida com Drummond do que propriamente lendo ou entendendo o poeta. De lá fomos visitar o Caraça e depois alcançamos BH, de onde retornamos a Uberlândia. Um giro de quase mil km. Na minha visão viageira, inesquecível. O motivo? Não sei dizer exatamente, mas se a minha descrição não for o bastante para demonstrar tal sentimento, só posso concluir que a beleza estava na minha cabeça mesmo.
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No raiar do ano 2.000 fui de BH a Brasília em tempo “recorde”: cinco dias. Em minha companhia um companheiro do qual lamento estar um pouco afastado, pelo menos para este tipo de aventura: meu irmão e amigo João Maurício. Por que tal extravagância de tempo, quando poderíamos ter feito a mesma rota em oito ou nove horas? Aí é que mora o segredo! Saímos de BH pela BR 040, a via que leva diretamente a Brasília, mas apenas até o trevo de Curvelo, a 100 km da capital. Daí, viramos à direita e seguimos para o Norte de Minas, via a própria Curvelo e Corinto. Mas “quebramos” de novo o roteiro, seguindo, a partir de Corinto o trajeto da antiga ferrovia que levava a Diamantina, passando por Santo Hipólito, onde o Rio das Velhas é transposto em um magnífico conjunto de pontes ferroviárias de aço do século XIX e daí a Monjolos, cidadezinha que dispõe do luxo natural de possuir uma bela praia fluvial. A subida da Serra do Espinhaço neste trecho é magnífica, pois nela aprendemos como os trens escalava as serras, em rampas suaves, sem pressa de alcançar o cume. Mas agora, com a ferrovia transformada em rodovia, trens, por aqui, só se forem os fantasmas das antigas composições da Central do Brasil. Mas assim como subimos, descemos, tendo como ponto de inflexão a Vila de Conselheiro Matta, já no planalto pedregoso do Distrito Diamantino.
Retomamos o caminho para o norte em Augusto de Lima, onde passamos a noite num lugar que parece ser personagem de filme ou sonho: a Fazenda Santa Bárbara. Pena que o espaço é curto para descrever tudo agora, porque valeria a pena. Daí, no dia seguinte, prosseguirmos: Joaquim Felício, Várzea da Palma e Pirapora, com direito à travessia da espetacular Serra do Cabral, um apêndice desgarrado do Espinhaço logo ali ao lado. Nosso destino final, Brasília, neste momento está cada vez mais remoto. Depois Pirapora, Ponto Chique (sim, existe uma cidade com este nome!), Cachoeira “do” Manteiga (!), São Romão, de onde abandonamos o rumo norte e “entortamos” outra vez nossa rota, agora para a esquerda, seguindo, ao revés, o belo rio Urucuia, passando por Riachinho, Arinos, Buritis, até chegarmos a Brasília, finalmente. Cinco dias vividos intensamente, inclusive com uma pane à beira da estrada, entre Manteiga e São Romão, que me deu a oportunidade de refletir profundamente sobre a vida e o destino, durante algumas horas de espera pelo socorro que João foi buscar em São Romão, em pleno crepúsculo e noite, em companhia apenas de vagalumes e sapos. Não estava no programa, claro, e poderia ter sido um desastre, mas acabou sendo também uma parte memorável da viagem.
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Ainda no ano 2.000 perfiz um roteiro goiano, desta vez com companhias em penca. Vieram de BH meu irmão Eugênio e minha cunhada Lucia, seus filhos Fernando e Maira, com seu futuro marido Alex, mais duas amigas deles, além de meu irmão João, velho companheiro desse tipo de jornada e dois dos filhos dele. Turma de qualidade, para ninguém botar defeito. O destino final era o meu sítio Macaúbas, na Chapada dos Veadeiros, mas para não perder o costume tomamos rumo diferente, em direção a Pirenópolis, que fica a oeste do DF e não a nordeste, que é a direção da Chapada. Pirenópolis sempre rende uma boa estadia, principalmente para pessoas, como todas na expedição, exceto eu, que não conheciam esta maravilha do barroco tropical. Aprimoramos a jornada deixando a estrada asfaltada em Cocalzinho para seguir pelo alto da serra que circunda a cidade e que leva seu nome, rodeada por belas paisagens onde se alternam o cerrado puro, onde abundam os cajueiros nativos e os campos de altitude, com as também muito típicas canelas de ema. Por este caminho se chega a Pirenópolis pelo alto, descortinando uma bela vista da cidade.
A poesia já nos encontrou na chegada ao hotel: Pousada Matutina Meiapontense, em referência ao antigo nome da cidade. Dali fomos a Vila Propício, rodeando a mesma serra pelas suas faces oeste e norte, à procura de uma lagoa misteriosa, supostamente “sem fundo”, conforme citado nos guias turísticos, mas que não foi encontrada – ninguém ali sabia dela. E daí tomamos a rodovia em direção ao norte, Niquelândia sendo o primeiro destino. Nada de notável nesta cidade, embora em suas entranhas resida uma variedade extraordinária de minerais que, para o bem e para o mal, transformam a região numa buraqueira sem tamanho, mas onde o dinheiro sem dúvida circula.
Adiante, já na direção da Chapada, ao leste, passamos pela entrada de um lugar chamado Moquém, onde uma famosa romaria anual atrai milhares de pessoas, numa barafunda de dar medo, segundo nos informaram. Mas por ali passamos direto, pois ninguém queria rezar, e fomos dar em Colinas, já na Chapada. Mais adiante, não perdemos a oportunidade de tomar um banho de água quente num lugar chamado, muito apropriadamente aliás, de Éden – na verdade um pequeno paraíso tosco, bem no estilo goiano. No cair da noite alcançamos nosso alvo, o Sítio Macaúbas, no povoado do Moinho, Alto Paraiso. Os duzentos km regulamentares se transformaram em quase quinhentos. Mas quem é que vai se queixar disso?
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Em 2005 fomos, João Mauricio e eu, visitar nosso tio Roberto, em Novo Cruzeiro, na confluência dos vales do Jequitinhonha e do Mucuri, Nordeste de Minas. Escolha apropriada das estradas, ou seja, não necessariamente aquelas que encurtassem a distância, que no total é de cerca de setecentos km de BH. Saindo da Capital, já evitando o asfalto (e a muvuca rodoviária das vias habituais que demandam o Leste e o Nordeste de MG), tomamos o rumo da Serra do Cipó, e ainda assim por caminhos caprichosos. Passamos por Santa Luzia, dedicando um olhar carinhoso ao Mosteiro das Macaúbas que fica logo após a cidade, e seguimos para Jaboticatubas e Cardeal Mota, já no pé da Serra. Ali aproveitamos para degustar um franguinho com ora-pro-nobis, que nos soube muito bem. Viagem sem pressa, pois era importante admirar as belas paisagens alterosas que viriam em seguida, tanto à direita como à esquerda. Elevados campos e algumas escarpas, principalmente do lado direito, onde nascem e correm para o vale alguns tributários do rio Doce. A ver[1]tente são-franciscana só pode ser apreciada na subida da serra, logo depois de Cardeal Mota, e é digna de nota também, com suas miríades de coqueiros macaúbas.
A próxima cidade é Conceição do Mato Dentro, lugar meio sonolento, pelo menos naquela ocasião, mas hoje em dia pasto de mineradoras nacionais e estrangeiras. Berço de cidadãos influentes na política mineira, mas nem assim conseguindo progredir –portadora, talvez, de uma espécie de “síndrome do Maranhão”. Adiante, Serro e depois Milho Verde, onde pernoitamos e tivemos que escapar pela janela para apreciar a noite, eis que a dona do estabelecimento nos fez a gentileza de trancar a porta principal, antes do ir ao sono dos justos. Depois Diamantina, desta vez apenas de passagem, e assim mesmo na rodovia de contorno.
Adentrando o Vale do Jequitinhonha passamos Mendanha, Couto de Magalhães, São Gonçalo do Rio Preto, Senador Modestino Gonçalves e Itacambira. Sinceramente, lugares feios e sem atrativos, pode ser que se houvesse mais tempo fosse possível mudar de opinião, mas duvido. Em Itacambira erramos o caminho e fomos dar em plagas remotas, com estradas que se dissolviam na chuva forte que começou a cair. Só Deus sabe como chegamos a Capelinha, já noite feita. Algumas atoladas pelo caminho; no dia seguinte seriam outras mais, antes de conseguirmos ver nosso tio. A viagem valeu pela companhia de João, os bons papos e afinidades que temos. Mas do ponto de vista do objeto principal, nosso tio Roberto, voltamos entristecidos, pois ele já não era o mesmo. Estava em prolongada convalescença de uma fratura da cabeça do fêmur, já não andava mais, perdera o bom humor e a verve que sempre o acompanharam. Entregara os pontos, enfim.
Foi com essas imagens sombrias que pegamos o caminho de volta alguns dias depois, agora por outros caminhos: Araçuaí, Coronel Murta, Turmalina, Caçaratiba, Itacambira. Montes Claros, Pirapora – rumo a Brasília. Nada era como antes…
