Estas são pequenas histórias, contos, ou, para ser mais modesto, se quiserem, uns simples escritos, se não desabafos. Por que as designo como coisa usada, que já passou por mais de um dono? Se tiverem um tempinho para escutar, eu explico. Começou assim: há coisa de uns 30 anos eu resolvi testar minha capacidade de ir além dos textos e relatos de natureza mais técnica ou circunstancial que até então representavam quase toda a minha produção escrita e foi assim que esbarrei com um personagem de Guimarães Rosa – desde então, ou mesmo antes, meu autor referencial – presente no livro Tutaméia, chamado João Porém, ao qual se adicionava o qualificativo: o criador de perus. Era um tipo humilde, morador de grotões, meio abilolado, sem outro derivativo na vida que não fosse sua criação de tais aves. Um personagem, aliás, em sintonia com outros tipos de pessoas alheias aos padrões dito normais da sociedade, prestigiados por Rosa, entre os quais se incluem, por exemplo, os Catrumanos (de Grande Sertão Veredas); o homem que abandona sua vida normal para passar o resto de seus dias em uma canoa (A Terceira Margem do Rio); a menina que tinha visões (A menina de lá); o homem recluso conhecido como Cara de Bronze (No Urubuquaquá, no Pinhém); a filha e a mãe de Soroco (Primeiras Histórias), além de muitos outros. E foi assim que resolvi dar continuidade à saga do criador de perus, com todo respeito pelo Rosa e mais do que isso, acreditem, querendo homenageá-lo. Adicionei, então, uma companheira ao pobre peruzeiro, trazendo também mais detalhes a sua pobre vida roceira, até sua morte no final. Daí nasceu Continuação, que faz parte desta pequena coletânea, como os leitores verificarão nas páginas seguintes. O fato é que devo ter tomado gosto por tal coisa, embora a princípio não de forma assumida, até que em tempos mais recentes resolvi praticar tal arroubo como verdadeira missão, surgindo daí a dúzia de escritos que ora trago à luz.
Tem de tudo um pouco aí nessas páginas, por exemplo, a tomada de muitas liberdades com a obra de Guimarães Rosa, não só de o Grande Sertão, como de outros textos dele, culminando com uma tresloucada síntese, em menos de meia dúzia de páginas, de tal livro, não sem antes cunhar uma história inspirada nele, a de um matador de gente em sua aposentadoria, no caso sem a companhia de Diadorim, (Tiros que o senhor ouviu).
E não é que tal caminho que se abriu para mim passou a ser fonte de distração e divertimento?
E assim prossegui, trafegando por Joseph Conrad, Machado de Assis, Dostoiévski, Calderón de la Barca, Monteiro Lobato, Luís de Camões. Munchausen e até mesmo pela Bíblia Sagada e pela mitologia grega, além de um filme de Hitchcock, verdadeiro standard do cinema.
Irresponsável, eu? Acho que sim, mas pelo menos a maioria de meus textos representa um uso em segunda mão de autores que já fazem parte de um patrimônio universal, o que certamente me isentaria de pagar contas à justiça. Quanto ao possível abuso com a obra rosiana, conforme se vê num bom punhado de tais textos, não tenho como me defender (ou talvez esteja a gerar provas fatais a me incriminar): isso apenas denuncia a minha veneração por este autor.
Aqui vão meus escritos, com as respectivas referências de primeira mão.
| TÍTULO |
| ANJO DA MORTE (A história de Maria Mutema – Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa) |
| CONTA UM VELHO MANUSCRITO (A Igreja do Diabo – Machado de Assis) |
| E OS SONHOS? SONHOS SÃO… (La Vida es Sueño – Pedro Calderón de la Barca) |
| A JANELA INDISCRETA (Rear Window/A Janela Indiscreta – Filme – Alfred Hitchcock) |
| UM DIA NA VIDA DE R. ROMANOVITCH (Crime e Castigo – Fedor Mikhailovitch Dostoiévisk) |
| O APOCALIPSE SEGUNDO JB (Livro do Apocalipse – Bíblia) |
| O CRIDO E O HAVIDO (O Cara de Bronze – No Urubuquaquá, no Pinhém) – Guimarães Rosa) |
| VIAGEM INVENTADA NO FELIZ (As margens da Alegria – Primeiras Estórias – Guimarães Rosa) |
| CATRUMANOS (Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa) |
| O ENTERRO DA CIGARRA (O Camicego – Contos – Monteiro Lobato) |
| A HISTÓRIA DE JACÓ (Sete Anos de Pastor Jacó Servira – Luís de Camões) |
| CONTINUAÇÃO (João Porém, o Criador de Perus – Tutaméia – Guimarães Rosa) |
| TIROS QUE O SENHOR OUVIU (Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa) |
| OS TRABALHOS DE ÉRICLES (Mitologia Grega) |
| PROMISED LAND, NOW (No Coração das Trevas – Joseph Conrad) |
| CONTA DE MENTIROSO (As Aventuras do Barão de Munchausen) |
| O GRANDE LIVRO (EM RESUMIDAS PALAVRAS) (Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa) |
Anjo da Morte
(Maria Mutema – Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa)
– Quem, eu? Eu? Nem sei direito de quem o senhor está falando… Ah, daquele sujeito? Infelizmente, conheci. Foi meu marido sim, ou alguma coisa parecida. Foi, não é mais. Deus levou ele, ou foi o diabo, nem sei. Era mesmo uma peste de homem, pergunte por aí. Não é somente eu que digo isso. Outras mulheres que ele teve também confirmam. E mais gente, uns que trabalharam com ele, fizeram negócios, até mesmo vizinhos. Não tem um que defenda aquele um.
O que eu acho é que caí na conversa dele. Eu tinha ficado viúva, três filhos pra cuidar, uma situação danada, tudo difícil. Três anos lavando roupa pra fora. Aí ele me aparece, dando uma de bonzinho. Um saco de farinha aqui, um queijo fresquinho, umas broas que uma tia dele fazia. Nos fins de semana ficava lá no bar com aquela cara de filho que se perdeu da mãe. E eu caí na conversa, ou melhor, naquele jeito pidão de me olhar. Quando vi, me levou em casa e por lá foi ficando. Eu deixei, não devia, mas deixei. Depois mudou, bebia tanto que eu é que levava ele em casa, quase de quatro, caindo pelos cantos. Um dia até vomitou no meu ombro, o desgraçado. Mas eu, sozinha como estava, nem reclamava, queria mesmo era alguém para me esquentar nas noites, que são muito frias por aqui. E, de quebra, trazer leite e pão para os meus filhos, fazer um armazém lá uma vez ou outra. Tanta gente por aí passa por isso, não é mesmo?
Então morreu. Nessa época já nem estava mais comigo, o mais certo seria dizer é que eu já não estava mais com ele. Eu queria cair fora e até juntei meus trapos como pude, espalhei os filhos pela casa de parentes e fiquei procurando uma solução, porque a casa era minha, a única que eu tinha. Machucada do corpo e da alma. Do olho esquerdo nem enxergo mais, perdi a visão nele depois de levar um soco, ou mais de um, sei lá, aquela era minha vida, apanhar, apanhar. E não adiantava gritar, a gente não tinha vizinho nesta época, morava num fim de mundo desgracento. Ele saía para trabalhar, ou dizia que ia fazer isso, voltava bêbado da silva e a primeira coisa que fazia quando chegava em casa era me encher de pancada, com preferência de me acertar na cara, para início de conversa. Aquilo para ele era conversa, a forma dele me fazer carinho, grande filho da mãe!
Morreu, mas eu nem quis ver ele morto. Tinha minhas razões. Mas vou dizer para o senhor, muita coisa ele fez para morrer. O que eu sei é que pagou pelo muito mal que fez, a mim, aos meus filhos e a outras pessoas. A Eva, minha filha mais nova, o senhor acredita? Um dia ele tirou a roupinha dela e levou para andar até um formigueiro e deixou a menina lá. Tive até que levar no hospital depois, toda empoladinha que ela ficou. O Toninho, que é o mais velho, perguntou pra ele uma vez o que tinha dentro de uma lata velha, abandonada no quintal. E ele – por que você não experimenta para ver se é bom? E era veneno de rato ou formicida, não sei bem. Nossa cachorrinha, a Bustica, um dia saiu para passear com ele e não voltou. Encontraram ela de espinha quebrada, uns dias depois. E o maldito falou que não viu nada, mas era mentira. A Bustiquinha não desgrudava dele um minuto que fosse. Aliás, ela era a única em casa que tinha algum carinho por ele.
Mas o que o senhor quer saber mesmo? Se a morte dele não foi suspeita? Suspeita de quê? Envenenado? Deve ter gente por aí que pode ter feito isso, com gosto, pode acreditar. Mas aquele ali deve ter gastado um caminhão de formicida para bater as botas. Mas o que o senhor quer saber de mim? Não tenho nada com isso não, a gente nem morava junto mais – e já fazia uns seis meses que a gente tinha se separado. Eu até ele vinha debaixo de pancada, mas já tinha meus planos, Ah, o senhor viu um papel de laudo da polícia? O que tinha lá? Este povo especula demais… Mas acho que um sujeito como aquele merecia era morrer mesmo. Bem morrido – ou matado. Se não fosse eu, podia ser outra pessoa.
Sim, ele não aceitava de a gente se separar. Vezes sem conta, ele queria voltar a vida de antes. Não deixei. Deu de frequenta a casa de parentes meus, onde eu estava morando e por lá ficava tardes inteiras, às vezes. Nas noites mais de uma vez implorou para deixar ele ir para a cama comigo. Meu tio e padrinho, besta como ele só, achava que eu procedia mal, que afinal de contas ele era meu marido, que eu devia fazer as pazes e voltar com ele. Mas segurei firme. O pior é que ele vinha muitas vezes para passar dias inteiros, trazia presentes para mim e para as pessoas da casa, um queijo, um salame do bom, uma caixa de chocolate da cidade. Nunca comi nada. O que eu queria mesmo era me ver livre daquilo.
O tempo todo eu me lembrava das maldades dele não é possível que tivesse melhorado. Não acreditava. Aquele era ruim de nascença e haveria de morrer pior ainda do que nasceu.
Eu me lembrava das formigas picando a minha Evinha, do Toninho correndo o risco de se envenenar. O que eu queria mesmo era me vingar dele de um jeito assim. Juntar todas as formigas do mundo e botar tudo numa espécie de saco, com ele junto. E até enterrar para ele se haver com elas. E era pouco. Eu não podia juntar tanta formiga assim, mas um veneninho era coisa ao alcance da mão. Onde não tem uma boa lata de formicida Tatu de algum remédio para lagartas da lavoura? Ouvi dizer que até óleo de rícino, dependendo da quantidade, é o bastante para liquidar uma pessoa. Mas para ele eu achei que podia haver coisa melhor, por exemplo, aquele remédio para matar ratos que chamavam de chumbinho, nome apropriado, aliás, porque eram umas bolinhas rosadas, tão inofensivas na aparência
Se eu estou me sentindo bem assim, sozinha como estou? Por que o senhor indaga isso? Eu nem lhe conheço direito… Além do mais já está tomando umas liberdades, este braço em cima da minha perna, por exemplo. Chega pra lá um pouco, faz favor…
E foi então que ele deu azar. Eu tinha ida buscar água na bica, a tarde já caía, era quase noite e de repente ele me atacou na beira do caminho. Ele era forte e me dominou, me levou para o meio do mato e fez o que a cabeça dele (uma delas, pelo menos…) pedia. Mas aí se deu mal, eu já tinha um plano armado para ele. Fingi que aceitava – e até gostava. E ele se achou o dono do pedaço, queria vir pra cima de mim todo santo dia. E vinha, às vezes no mato, outras vezes na cama, em qualquer lugar que eu fosse estava o desgraçado a me atazanar. O que ele não sabia é que em cada copinho de pinga, de suco ou de água que eu trazia para ele – e mesmo numa broinha de milho vez ou outra – havia uma ou duas daquelas bolinhas cor de rosa, tão inocentes.
E assim ele foi emagrecendo, sentindo dores fortes na barriga, depois pegou a sangrar. Não podia nem escovar os dentes direito. Um dia bateu a cabeça numa trave da varanda e sangrou quase um litro. Ficou internado no hospital da cidade uns quinze dias e lá não descobriram nada, acho que nem conheciam este tipo de veneno. Aliás, por lá não curam nem uma dorzinha de barriga.
E mesmo assim voltou pra casa. Eu achei que já era demais, sujeito danado de ruim até para bater as botas… Assim engenhei outro jeito de resolver a situação. Eu tinha um pedaço de chumbo em casa, coisa que tinha pertencido ao meu pai que era encanador, daqueles do tempo antigo, que ainda lidavam com este tipo de material. Um dia, ou melhor, uma noite, derreti aquilo numa panela de ferro, daquelas de fazer angu, e quando o maldito chegou, já bêbado e baleado pelas bolinhas que eu lhe dava, derramei aquilo, com um funil, pela orelha dele a dentro. Ele deu um gemido fundo e mais nada, se foi.
No dia seguinte avisei para o compadre Noca, que cuidava dos enterros aqui na vila e mandei tocar em frente. Já naquela noite eu (e eu também) descansamos. Foi assim que não só ele, mas nós todos, descansamos.
Arrependida? Pra falar a verdade, não sei se fiquei. Aquilo era um traste. Além do mais ele bebia muito, levou doença de rua para mim, podia ter morrido por tantos outros motivos. Eu posso nem ter sido a causa, as bolinhas eram só para deixar ele mal, modo de vingança minha, aquilo que desceu pelo funil pelo canal da orelha a dentro foi uma caridade que fiz para aliviar ele mais cedo. Só isso.
Já pedi para se afastar um pouco, meu senhor, lhe peço mais uma vez. Insisto, por favor! Estou bem assim sozinha, somente com Deus ao meu lado e sem precisar de ninguém por perto, não há vaga pra homem aqui neste meu serviço.
Achei que devia contar esta história para o Pastor. E contei, por alto, falei que estive pensando nisso, mas que ele morreu antes. O danado não disse coisa com coisa, e pegou a vir conversar comigo umas coisas estanhas, se eu não estava me sentindo sozinha, etc e tal. Eu de imediato me lembrei que o vidrinho onde eu guardava as bolinhas inda tinha uma boa quantidade delas e que aquele Pastor infeliz era louco pelas broas de milho que eu fazia.
Já lhe pedi, meu senhor. Se afaste de mim um pouco mais, vá se assentar naquela outra cadeira ali em frente. E vamos mudar de assunto. – O senhor aceitaria um copo d’água? Um cafezinho? Uma broa de milho?
***
Conta um velho manuscrito
(A Igreja do Diabo – Machado de Assis)
Conta um velho manuscrito que um antigo Profeta, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Ele se sentia humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja totalmente nova e distinta da anterior não seria o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez. E pensava ele: escritura contra escritura, breviário contra breviário. Terei o meu próprio ofício, com favores distribuídos à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja, uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim nem Maomé, nem Lutero, nem algum outro Salvador. E concluiu, de modo bem filosófico: há muitos modos de afirmar, mas há só um de negar tudo.
E se pôs a trabalhar em seu projeto, dando asas à imaginação.
Muitos se ajoelham nos templos do mundo, com suas melhores roupas e perfumes, sendo sempre incapazes de contribuir comum centavo sequer para suas igrejas. Mas na minha vai ser diferente! Vou aproveitar a centelha de curiosidade e devoção com que muitos encaram a distância entre os livros santos e o bigode do pecado. Vede o ardor – a indiferença, ao menos – por exemplo, com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida… Mas não quero parecer que me detenho em cousas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito um amor falso e uma comenda idêntica… Vou a negócios mais altos…
Entrou assim a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. O novo Profeta não queria ser o apóstolo de noites sulfúreas e contos soníferos, mas sim o verdadeiro e único Paladino, o próprio gênio da natureza, gentil e airoso, o verdadeiro pai de todos, capaz de oferecer aos fiéis desiludidos tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo…
Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Profeta passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes subtil, outras, cínica e deslavada. Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram naturais e legítimas. A soberba e a luxúria, por exemplo, foram reabilitadas, e assim também uma certa forma de avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia. E que o que fosse populado que se dividisse com ele, que foi capaz de revelar aos homens uma verdade tão candente. Coisas parecidas disse da ira e da gula, aquela perfeitamente legítima se usada contra os adversários e esta outra prêmio merecido para os que adentarem na nova crença. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: “Muitos homens são canhotos, eis tudo”. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros, destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada.
E acrescentava: pois não há mulheres que vendem os cabelos? Não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? E o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Profeta não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Profeta incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de cousas, trocando a noção delas, fazendo amar as novas ideias e detestar as antigas.
E foi ainda mais longe. Achou por bem denunciar e cortar toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava a frase de um antecessor: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” Sobre o adultério, perorou, solenemente: essa espécie de amor tem a particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. Afinal, se cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns, que cada acionista cuide mais de que seus próprios dividendos, como acontece aos adúlteros – isso agrada aos olhos de Deus, do nosso Deus, pelo menos.
Ia tudo muito bem. Porém…
Um dia, longos anos depois, notou o Profeta que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito de outra religião; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Profeta. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um industrial farmacêutico, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria os filhos das vítimas. Em certa cidade deu com um ladrão de cavalos, que tapava a cara para ir aos templos, lançando-lhe em rosto o procedimento, ao que ele negou, dizendo que ia ali roubar o cavalo de um safado qualquer, apenas para dá-lo de presente a um sacristão, que rezava por ele.
Neste ponto, o tal manuscrito revelava muitas outras descobertas extraordinárias, que desorientavam totalmente o profeta. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma cousa análoga ao passado. Trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno, recorreu a Deus, que o ouviu-o com Sua infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:
– Que queres tu, meu pobre Profeta? Que queres tu? É a eterna contradição humana…
***
E os sonhos? Sonhos são…
(La Vida es Sueño – Pedro Calderón de La Barca)
Yo sueño que estoy aquí / destas prisiones cargado, / y soñé que en otro estado / más lisonjero me vi. / ¿Qué es la vida? Un frenesí. / ¿Qué es la vida? Una ilusión, / una sombra, una ficción, / y el mayor bien es pequeño: / que toda la vida es sueño, / y los sueños, sueños son. (Pedro Calderón de la Barca – La vida es Sueño)
Entre Cruz e Espada.
Cheguei de avião pela madrugada, vendo totalmente deserto o aeroporto da grande cidade. Era preciso pegar o carro que eu tinha alugado prévia e impessoalmente e não foi difícil encontrar a agência locadora, também deserta. Mas ali tudo se resolvia através de máquinas. Máquinas para identificar rostos, apresentar documentos, transferir dinheiro e até mesmo dispositivos, espécie de gavetinhas retráteis, para entrega de chaves, documentos de trânsito e regras de operação, com a devida indicação do local onde eu poderia, finalmente, assumir o controle do automóvel a mim destinado.
O certo é que não vi sequer uma pessoa, um ser humano como eu, em todo este percurso. Mas o que importaria isso se o meu objeto estava, finalmente, pulsando suavemente sob o comando de minhas mãos e meus pés, em sua morna respiração de máquina, mais uma, a me servir?
Era preciso sair dali, mas havia um dilema a ser resolvido: qual estrada tomar? Sim, porque pelo que eu já sabia a respeito daquele lugar, havia sempre mais de uma opção. Podia ser pelas grandes rodovias, padrão de um mundo rico e indiferente aos desperdícios, com largas pistas de rolamento sinalizadas, limpas, com seus parques de merenda e seus postos de pedágio. Ou, quem sabe, alguma via colateral, mais estreita, nem sempre com acesso bem sinalizado, mas sempre de boa qualidade em seu piso. Por uma destas aí, pensei, poderei encontrar o país profundo, aquele a que talvez ainda “falta cumprir-se”, conforme quis um de seus poetas. Caminhos mais interessantes de se ver e estar, desde que não se quisesse mijar ou tomar um café, eis que aquelas vias são escassas neste tipo de recurso.
Com isso em mente optei pela via indicada pelas placas, a mais larga e com certeza mais movimentada. Era de manhã, bem cedo, hora de as pessoas se dirigirem para o trabalho. Seja para lá adiante, ou para cá, muito movimento, carros passando como se andassem por si próprios, com pessoas que eu não podia avistar. Um trem de ferro, ali chamado comboio, visto ao longe, colorido, parecia ir com duvidosa pressa, do nada a lugar nenhum. A mancha urbana agora atravessada me pareceu triste, despersonalizada, quase pobre e meio suja, uma “mancha” autêntica antecedendo, sem maiores sinais diferenciais, o ambiente rural. Eu não via vinícolas ou outras plantações, nem mesmo de fazendas de gado, apenas quintais relativamente grandes, cercados, com suas construções singelas, onde apenas raros porcos e ovelhas confirmavam a existência de vida. Aqui e ali, capões de eucalipto, que embora mais modestos do que as imensas e monótonas florestas da mesma espécie que se veem por aqui, mesmo assim revelam o apagamento de uma natureza que certamente já tinha sido pródiga em carvalhos e sobreiros.
O que dominava a paisagem agora, pra valer, eram os enormes “ventiladores” das usinas eólicas, que ali se contavam às dezenas, talvez mais, assentados no alto das colinas. Para os mais puristas, isso talvez maculasse a paisagem. Mas para mim, que os via como novidade, até acrescentavam sabor ao cenário, assim tão enxutos no seu desenho exato, seu movimento suave, seu etéreo zumbido. Um Dom Quixote, aqui ressuscitado, ficaria abismado com a dimensão de tais gigantes. Mas é certo que não seria eu a enfrentá-los, por me faltar qualquer inclinação, seja a Quixote ou Sancho. A proximidade com o litoral faz com que a matéria prima deles, o vento, não falte. Haveria por ali, quem sabe, um “armazém de vento” como alguém um dia perpetrou?
Nesta parte da jornada ainda não me era possível sequer imaginar que eu chegaria, em breve, a um cenário de fortificações, igrejas, mosteiros, aldeias outros monumentos históricos, alguns até com mais de mil anos de idade. Abundantes até agora, como obra humana, além dos silenciosos moinhos de vento, era as casas claras, esparsas, convencionalmente modernas, porém com marcante aspecto de abandono ou, pelo menos, de apagamento humano, pois todas me pareciam vazias. Via-se também um ou outro arranjo de prédios de apartamentos, que talvez não passassem de habitações de se dormir, apenas, tudo bem decente e conservado, porém de janelas fechadas e nenhum movimento seja de bípedes ou quadrúpedes em seu entorno imediato. Quintais bem cercados mostravam hortas de couve e fruteiras variadas, tudo muito bem cuidado, dentro de um traçado, por assim dizer, minimalista. Mas gente, que é bom… Onde estariam as pessoas, meu Deus?
As placas já avisavam sobre a chegada à velha cidade-monumento, mas parecia incrível que uma fortaleza medieval como aquela pudesse se fazer presente dentro de um cenário tão convencional e sem mostrar qualquer anúncio de si. Eu começava a procurar, à frente, os sinais da chegada a ela, até que encimando uma colina mais adiante, me dei com a linha recortada por seteiras de uma típica muralha. Mais uma curva da estrada e então a enxerguei por inteiro, cinzenta e chamativa contra um céu azul imaculado, a acompanhar a lombada da colina, como se dela fizesse parte. Muito estrangeiro, sarraceno ou castillano, passando por ali em eras passadas, deve ter pensado duas vezes e relutado antes de enfrentar as alabardas e as balestras dos habitantes locais tão bem amuralhados.
Naquela hora bem que eu queria ver e aproveitar tudo, tendo à mão um bom vinho da terra, bem acompanhado, para que, à sombra de alguma azinheira ou plátano, pudesse gozar cada instante daquele momento. Mas por ora não havia sombra, nem vinho, um naco do queijo da Estrela ou o denso pão que ali se encontra em qualquer padaria. Melhor do que isso, entretanto, seria estar lá dentro da velha cidade, mesmo de barriga vazia. Foi o que fiz em poucos minutos.
Passado o pórtico da muralha, sobre um piso de pedras polidas ao longo de séculos pelo pisoteio de pessoas, ovelhas e muares, vinha um recesso com formidável painel de azulejos, a evocar o ornamento urbano secular daquela terra. E eu segui adiante, a percorrer as vielas da Vila milenar, com suas duas ou três ruas longitudinais e seus becos transversais, suas casas sólidas, sem deixarem a modéstia de lado, com sua pintura imaculadamente branca, com os barrados, cantoneiras, portas e janelas em azul ou amarelo.
Poucas igrejas, talvez duas, não mais. Para as rezas em favor d’El Rey e contra os mouros e castelhanos já seria o bastante. As ruazinhas, de costumeiro fervilhar, pelo menos nesta época do ano, estavam extraordinariamente vazias. Onde foram parar as cabeças louras e ruivas, o porte avantajado das pessoas que vinham do Norte, a cacofonia babélica, coisas que eu esperava encontrar por aqui? A profusão de bares, cafés, pequenos restaurantes, as lojas de souvenirs dominadas pelos indianos ou orientais, como no resto do país: tudo vazio agora. Por que seria?
Eu me detive em um banco de pedra, em frente a uma das igrejas, para contemplar o conjunto. Lembrei-me de um texto de um viajante, que eu lera alguns dias antes, falando deste mesmo local, no qual uma dama se aproxima e puxa conversa com o narrador, também acolhido em um banco de praça, como eu. O nome dela era Clarinha. Mas agora não vejo Clarinha e nem qualquer outra pessoa, homem ou mulher, velho ou jovem, bem ou mal vestido, receptiva ou hostil, naquelas ruas. Alguma coisa está acontecendo – ou deixando de acontecer ali. Há um enorme mistério naquilo.
Não seria possível falar de tal cidade sem incluir suas floradas. Disso já havia me alertado o viajante de que falei e de fato elas estavam presentes. Boa época para se estar lá seria a de agora: a primavera. Eu as vejo por todo lado, as maiúsculas Glicínias, lilases, em diferentes tons, escalando as fachadas brancas, com seu perfume suave e ubíquo. E outras plantas, também, muitas delas florais, das quais me é impossível declinar o nome, por me faltar conhecimento botânico.
Sobre um muro antigo, de pedra, um gato majestático, encimando um pedestal nodoso de glicínias, fita além muralha, dono de si mesmo. Mas, onde a gente, as pessoas, the people, os seres humanos, a malta… Onde teriam se escondido?
Melhor seguir adiante.
Há outra cidade mais à frente que me disseram valer a pena conhecer. Para chegar até ela cabe, novamente, uma aposta na sorte, pois os mapas mostram alternativas viárias múltiplas no caminho, permitindo saborear a sonoridade vernácula ou moura de alguns de seus nomes. Agora a rota não mais se fazia através de uma pista larga e ornada pelos moinhos de vento, mas pelo almejado país profundo. A minha nova meta logo se apresentou e nela adentrei por uma via ampla e moderna, atravessando conjuntos de apartamentos e casas bem construídas e modernas, como já visto antes. Mas não se via, ainda, o que me trouxera até aqui, da mesma forma que as pessoas. Eis que aqueles mil e mais anos de história, a princípio, me figuravam repousar apenas dentro de algum museu, não dentro das ruas e praças daquela cidade que também parecia dormir, com suas ausentes pessoas.
O miolo histórico legítimo acabaria surgindo, entretanto, após uma esquina, como uma extensa praça, sem jardins, mas apenas um paço de terra clara batida, árvores gigantescas, caminhos calçados em pedregulhos cúbicos de cores diferentes. E ladeando tudo isso o grande mosteiro, com sua igreja enorme. Aqui, toda hipérbole seria necessária, a começar pela magna Igreja.
Igreja na qual se fez mister conhecer o túmulo da amante do rei que ali repousa em companhia de seu monarca, talhado em mármore branco, de tal modo que o cinzel do artista parece ter antes tecido do que cortado a pedra, em verdadeiras filigranas. Pedro e Inês, com o círculo permanente de visitas curiosas em volta deles – mas não neste momento – seriam como a Mona Lisa daqui. Com horror e fascínio contemplei as cenas da punição dos assassinos da pobre mulher gravadas em mármore, dos quais foi retirada a pele, ainda vivos, como se a desvesti-los dos pés à cabeça.
A Igreja é só o começo. Por uma passagem lateral se entra no Mosteiro que lhe corresponde. Aqui, com certeza, a sobriedade não reina e a austeridade, pelo menos no sentido material, passou longe. São incontáveis salas, salões, saletas, salinhas, quartos, recessos, alcovas, capelas, oratórios, vestíbulos, jardins, repuxos. E quando se pensa que acabou, tudo começa de novo, fazendo disso ser quase impossível uma descrição minimamente coerente e fidedigna. Formidável cozinha esta, toda revestida de pedra branca e polida, onde se preparava comida para centenas de glutões. Além dela, no andar superior, um vasto dormitório em arcadas. Há séculos, talvez, não haja mais quem cozinhe ou durma em tais lugares, mas tudo continua sendo exagerado e monumental.
Em tudo isso imperava um silêncio sepulcral, com exceção de algum arrulho de pombos, chilreio de pássaros ou zumbido de inseto. Aqui também não se via gente. Continuei sozinho em meu périplo, nesta passagem entre o território antes visto, dedicado à Espada, e este agora, consagrado à Cruz.
Lembrei-me de ter lido sobre outro sítio, não muito distante daqui, onde outra grande Igreja, inacabada, se impunha na paisagem. Decidi ir até lá, embora já antevendo a continuidade do mistério da ausência de pessoas. Foi complicado pegar o caminho para lá, pelas indicações confusas e ausência de pessoas a quem eu pudesse indagar alguma coisa que me esclarecesse. Na base de tentativas e erros, mais erros do que acertos, acabei pegando a direção que me pareceu correta.
Mas resolvi parar logo adiante, pois havia uma bica d’água à beira da estrada e o calor reinante me trazia enorme sede e desconforto. Desci do carro, molhei meu rosto e braços, tirei a camisa e fiz o mesmo em meu corpo, para melhor me refrescar. Diante do silêncio e da modorra do ambiente me deitei na relva e me pus a refletir sobre os insólitos acontecimentos que me acompanhavam desde que cheguei ao país. Eu realmente não sabia explicar nada daquilo.
No meio da estrada vi algo que me chamou a atenção: um animal atropelado. Parecia ser uma raposa, um gambá, um bicho de pequeno porte. Ainda não cheirava mal, mas os moscardos já o tinham descoberto e zumbiam com avidez em torno do cadáver. O veículo que o colhera deixou, junto a seu corpo esmagado, um rastro de alguns metros, com o sangue do bicho servindo como tinta para registro, no concreto da estrada, de um perfeito desenho das estrias dos pneus. Era finalmente um sinal de presença de viventes, humanos pelo menos, porque para aquele animal foi apenas o aviso da morte.
Ao longe, uma grossa coluna de fumaça subia. Havia lá, pelo visto, vida humana, pois não acredito nessa história de fogo espontâneo. Porém, neste momento meus devaneios foram interrompidos, devido ao ruído de uma sirene, relativamente próxima. Meu primeiro pensamento foi – é gente que chega, finalmente! Mas logo soube que estava enganado.
Só então eu percebi, embora de forma gradual, que estava sonhando e que a sirene provinha de algum veículo, fosse ambulância, polícia ou bombeiros, que passava por perto. E eu me vi em minha velha cama, no meu tão conhecido quarto, na minha casa, no meu país de sempre. Mas a nitidez daquele sonho repercutia em mim. Sou daqueles que sonham muito, mas é raro que eu me lembre do enredo sonhado com alguma capacidade de relembrá-lo de forma precisa. Aqueles cenários de cidades, por exemplo, revistos com tanto detalhe, me eram totalmente familiares. Eram as vilas portuguesas de Óbidos e Alcobaça, que eu visitara (e admirara) intensamente em uma viagem ao país alguns meses antes. Por que elas estavam ali naquele sonho, com tanta nitidez imagética, como se fosse um filme, é claro, me faltava esclarecer. Haveria alguma relação entre aqueles cenários revelados no sonho, de lugares que eu havia amado intensamente e seu marcante contraste com a estranha e agoureira situação nele presente? Qual seria o real significado daquilo? Eu de fato estava cada vez mais confuso.
Pensando assim, acabei por abrir a janela do quarto, ao ouvir mais duas ou três passagens estridentes de sirenes na minha rua. Eram os bombeiros… Como meu apartamento fica em uma via que leva aos limites da cidade, situados a poucos km de onde eu moro, pude perceber que uma coluna de fumaça se erguia em tal direção. Isso me deixou estremunhado com a dúvida se haveria relação entre o que foi sonhado por mim e a realidade que eu agora assistia e confirmava.
No meio da rua, vista com dificuldade da distância da janela onde eu estava, uma pequena massa de pelos, vísceras e um rastro de sangue, parecia confirmar a irrealidade daquilo tudo. Ou, quem sabe, eu continuava sonhando?
Sim, eu ainda estava enfrentando outro pesadelo, assim me pareceu, quando de novo acordei com o ruido de uma sirene. Mas agora eu não estava em meu quarto ou em alguma cama, mas sim deitado em uma calçada, tendo um chão sujo em torno de meu corpo e um monte de gente me espiando de cima, quase tapando a luz do sol. Em tudo um cheiro de borracha queimada e de óleo diesel. Meu peito e minhas pernas doíam muito, eu quase não conseguia respirar. Uma doutora que mais parecia uma agente de polícia – ou talvez o fosse – me colocava uma fita vermelha no pulso. Dois sujeitos também uniformizados me pegaram no chão, até com certa delicadeza, e me deitaram em uma maca, conduzida a uma ambulância. Mas o ruído daquela sirene continuou a me penetrar como um punhal, cada vez mais alto. Acho que desmaiei nesta hora.
Acordei mais tarde em um ambiente branco, cheio de luzinhas coloridas e apitos, com a sirene finalmente emudecida. Não via ninguém por perto e não aparecia qualquer pessoa por mais que eu chamasse. Até que eu percebi que eu perdera a voz, apenas mexia a boca e tentava articular a palavra, mas da minha garganta não saía qualquer som.
Daí em diante não vi e nem ouvi mais nada.
***
Uma Jornada Particular (Cinema Transcendental).
Já não sou capaz de me lembrar como cheguei até aquilo. Parecia um labirinto, mas ao mesmo tempo era possível dali ter uma ideia do todo o conjunto, aquele enorme salão, dividido em partes menores, onde coisas aconteciam e podiam ser assistidas. Parecia um teatro, aliás, múltiplos vários deles, com pequenos palcos, com cenários diferentes e personagens também. Tudo era estranho, mas ao mesmo tempo parecendo familiar, estranhas sendo as cenas que ali se mostravam. Para mim pelo menos. Eu me via como participante direto da ação, mas em outros momentos as coisas aconteciam e eu me via dentro delas, como se fosse um observador externo. De toda forma, sair daquilo eu não podia, ou não sabia como fazer. O jeito era seguir em frente. E assim o fiz, caminhando por um piso de paralelepípedos regulares, mas que se amoleciam debaixo de meus pés quando caminhava, como se fossem feitos de borracha.
Para começar, aquela festa infantil, na qual uma garota, com tranças negras, me pegava pelo braço, depois pelas mãos e dançava comigo, ainda uma criança também, completamente intimidada pela presença feminina tão próxima. Uma sanfoneira insistia, repetidas vezes, na mesma melodia habitual neste tipo de festejo. Mas tudo se dava de um jeito simples, como se não houvesse outra maneira possível de tais coisas acontecerem. Aquela cena, logo vi, tinha a ver com uma dificuldade que arrastei por anos a fio, relativa à timidez e dificuldade de comunicação que me assaltava quando havia garotas por perto. Digo garotas porque quando me tornei adulto creio que conseguir, aos poucos, mas não de forma muito competente, superar isso.
Mais tarde, eu vestido de padre, em ambiente festivo e junino. Como parte da festa, eu não rezava missa nem casava ninguém, mas andava no meio das pessoas, que eram crianças da minha idade, como um pequeno pavão, orgulhoso das minhas vestimentas eclesiásticas. Dali fui devolver a roupa à sacristia da igreja do bairro, emprestada que me fora por uma das beatas que por lá dava expediente. Na rua uma chuva se armava, mas quando começou a cair de verdade, me dei conta que que esta não chegava a me molhar, o que me fez pensar ser o protagonista de um milagre. Dei graças ao bom Deus por ter me proporcionado isso, algo que para mim seria uma indicação de que uma carreira religiosa, com a qual eu então sonhava, assim tão bem começada, de fato me cairia bem.
Depois uma viagem de ônibus, por estradas de chão, em meio a montanhas e florestas. Em algum lugar do caminho, antes de qualquer parada regular do trajeto, o veículo se detinha por alguns momentos, para que, em uma cena aparentemente habitual naquela viagem, algumas pessoas recolhiam donativos e esmolas dos passageiros. As marcas de pobreza e também de deficiência física eram evidentes, com dois ou três de seus membros, entre crianças e adultos, mostrando pernas e braços totalmente atrofiados, o que os fazia rastejar no chão ou mesmo permanecerem em cima de toscas cadeiras de rodas. Alguém comentou que era uma família na qual eram comuns os casamentos entre primos e até mesmo entre irmãos.
Em um corte súbito, agora me via dentro de uma cozinha antiga, escura, com as paredes cobertas de fuligem. Em um fogão de lenha, enorme, eram cozidos variados tipos de comida, com especial presença de uma panela de carnes, mal divisada em meio à fumaça, mas que apesar da aparência escura, cheirava de maneira atrativa. Em todo daquele fogão, cozinheiras negras se agitavam em grande azáfama, com seus aventais ensebados em perfeito acordo com o ambiente de tal cozinha.
Em momento seguinte a viagem de ônibus já chegara ao destino. Chovia muito e eu agora chegava à casa de parentes no interior. Era a primeira vez que eu estava ali e o meu contato com o ambiente externo à casa deve ter demorado alguns dias para acontecer, pois chovia sem parar, ensejando mesmo forte temos de minha parte, ao ouvir de um adulto algo como se isso não seria o fim do mundo, que se acabaria em água e não em fogo como está nas profecias. Eu não sabia de nada disso, nem de água nem de fogo, mas tais palavras me impressionavam profundamente. Quando finalmente pareou de chover fui autorizado em andar um pouco pelos arredores e no córrego em frente pude assistir pela primeira vez uma pescaria, no caso aparentemente muito bem sucedida, pela fieira de bagres gordos que um rapaz levava consigo.
Peixes, chuva, água. Deve ser por isso que logo depois eu me via em um quintal, de uma casa velha e triste. Apesar de tudo, um ambiente familiar. Uma horta de imensos pés de couves, maiores que um adulto, entre os quais galinhas passeavam e pastavam, tranquilas. Dentro de um reservatório de água, certamente utilizado para regar a horta, um objeto se via no fundo, bem parecendo um osso de galinha, porém repousando em posição perfeitamente vertical, como se estivesse fixo ali. Mas isso se desfez ao agitar da água com as mãos, com que o objeto rodopiou, ficando deitado no fundo cimentado. Em volta, o vento soprou e os pés de milho, em total apogeu de suas espigas balançaram alegremente e encheram o quintal com seus sons de palha e seu cheiro benfazejo.
Dali, não sei como, fui parar em um passeio de barco, junto com meus irmãos. Apenas a gente, mais ninguém. Eu era o mais velho e nenhum de nós sabia nadar. É bem verdade que o açude era pequeno e talvez pouco profundo, mas mesmo assim aquilo parecia assustador. Eu temia e certamente meus irmãos também a bronca que nosso pai nos aplicaria – ou bem pior do que isso. Quem nos colocara naquela situação fora meu avô, que empurrara com o pé a pequena canoa onde nos encontrávamos, e agora se ria do nosso medo na beirada. O final foi feliz, com meu pai entrando na água até acima dos joelhos e trazendo o barco até a margem. Felizmente não recebemos nenhuma zanga, da mesma forma não sendo atingido o verdadeiro autor daquela façanha estúpida.
Depois, uma família, a minha, num passeio de domingo. Estreava-se um carro novo, um daqueles automóveis americanos dos anos 50, que jocosamente era às vezes chamado der “porta-aviões”. Oldsmobile, Buick – um nome assim. Não que fôssemos ricos, o carro já teria mais de 10 anos de uso e era comum que a classe média possuísse um como aquele, em tempos que a indústria nacional ainda não tinha inventado os Fuscas e os DKW. Estacionamos em uma pequena colina às margens de uma estrada principal, aparentemente para apreciar a paisagem. Nós, crianças, descemos do carro e começamos a brincar e sondar o ambiente por ali. Nossos pais ficaram dentro do veículo, dando a perceber que havia visível tensão entre eles. De repente, minha irmã menor se pôs a chorar, dizendo estar sendo maltratada com palavras por outro irmão mais velho, um acontecimento comum entre nós. A mãe sai do carro em seu socorro, momento em que o pior acontece: nosso pai também sai, aos gritos, aplica um tapa ruidoso no mais velho, determina a todos que entrem no carro e, ainda alterado, põe o veículo em movimento pela estrada precária até o asfalto, levantando poeira e ringindo os pneus no pedregulho do caminho.
Era ainda uma cena de estrada, viajávamos ao longo de um tedioso dia, rumo a um destino longínquo. Em certo lugar da rodovia havia objetos claros, como tijolos, espalhados pelo chão. Eram barras metálicas que haviam caído de um caminhão, tombado no fundo da ribanceira ao lado. Meu pai desce para ver o que havia ali. Minha mãe nos retém dentro do carro, certamente temendo que fôssemos presenciar alguma cena forte. Em poucos minutos o pai volta, dizendo que não havia ninguém dentro do veículo, que provavelmente já tinham sido socorridos, mas que havia marcas de sangue. A mente infantil guardou aquilo como um presságio funesto.
Em uma cidade próxima paramos para almoçar. Na lanchonete ficamos sabendo que na mesma rua, logo acima, havia uma espécie de milagre acontecendo. Dali mesmo onde estávamos era possível ver um trecho de maior movimento na rua, seja de carros ou pessoas. Fomos até lá para conhecer a novidade: dentro de uma casa modesta pessoas se aglomeravam em torno a um catre antigo e desmazelado. Ali, segundo nos informaram, morrera há tempos uma mulher, entrevada durante anos, cuja vida teria sido de total santidade. E agora, ou pelo menos em tempos recentes, na parede por cima da cabeceira, um desenho se formara, como se resultasse da interação entre a caiação e a umidade, figurando a silhueta uma santa. Um simples contorno, a lembrar uma imagem com a cabeça coberta por uma túnica ou véu. Mas no lugar onde ficariam os olhos uma gota de sangue tinha também aparecido. E mais nos informaram que aquilo era recente, mas que muitas pessoas, assim como nossa família, estavam chegando até ali, às vezes até vindas de lugares remotos, até da capital. Constava também que já havia milagres acontecendo. Ainda ontem um aleijado voltara a andar.
Ainda uma cena de estrada, aparentemente não era a mesma viagem que nos trouxera a santa e o caminhão tombado. Estava toda a família junta, de novo. Paramos para apreciar a paisagem ou, como a gíria familiar considerava, para ver se o pneu de trás estaria furado, na verdade um código para resolvermos certas necessidades fisiológicas. Meninos para um lado, mãe e meninas para o outro. O pai ficava para o arremate, como um guardião da honra e da pureza de todos. Crianças, principalmente meninos, resolvem estes problemas de maneira rápida. E tendo me aliviado fui andar por ali, sem perceber que o caminho tomado na verdade me levava ao outro lado do terreno baldio. E logo ali, porém sem me ver, estava minha mãe agachada, com a saia puxada até a cintura, a se aliviar também. Aquela visão me foi extremamente perturbadora, bunda e pele tão brancas assim reveladas. Eu nunca havia visto nada como aquilo, com aquela mãe extremamente pudica, que nunca se apresentara a nós em trajes íntimos ou mesmo de maiô. Chocante, aquilo, simplesmente, a me gerar uma culpa que persistiu por dias a fio.
Depois veio a descoberta do mar. Naquela cidade grande a maior novidade tinha sido, até então, a escada rolante. Mas havia mais. Depois de rodarmos algum tempo por uma paisagem plana e repleta de prédios e fábricas, começamos, finalmente, a descer uma enorme serra. Lá no fundo apenas um nevoeiro cinzento, mas aqui e ali alguém dizia: é o mar! E logo se repetia: o mar, o mar! Mas ele ainda estava longe, tivemos que atravessar florestas e morros sem conta, depois uma feia periferia cinzenta, para encontrá-lo, finamente. E o mar não era nada que eu pensava, embora fosse uma massa impressionante de água, orlada por uma faixa de espuma amarelada. Mas onde estavam as ondas, a areia branca, os coqueiros que fatalmente eu associava como obrigatórios em seu ambiente natural? Decepção maior não poderia haver: o mar era cinza, a paisagem também, e havia em tudo uma atmosfera pesada e pegajosa, cheirando a algo que me pareceu desagradável, a que os adultos designaram como maresia.
E tudo isso ia se passando como um filme, colorido e muito nítido, alegre e ao mesmo tempo um tanto angustiante, quando de repente, uma mão fria me percorreu a nuca. Era a empregada que tínhamos em casa na infância, que tinha tal costume maldito, ao avisar a mim e a meus irmãos que era hora de ir para a escola.
Acordei.
***
A janela indiscreta
(Rear Window – Filme – Alfred Hitchcock)
Eu bem vi que o porteiro tentava me avisar de alguma coisa. Não dei muita atenção, pensei que ele falava dos pivetes que andam por ali. Com estes já estou acostumado, não levam a melhor comigo. Mas dessa vez o perigo era outro, uma calçada escorregadia. E assim eu fui parar no chão. Ato contínuo, no Pronto Socorro. E agora em casa estou eu, com a tíbia partida, mínimo vinte dias de repouso forçado, me arranjaram até uma cadeira de rodas, para me locomover pela área na qual um simples degrau se interporia como uma muralha.
Meus pensamentos iniciais foram para James Stewart, o fotógrafo acidentado no filme de Hitchcock, A Janela Indiscreta, que acaba descobrindo um crime, graças à sua observação dos vizinhos. Em sintonia com ele tenho à minha disposição apenas esta janela e uma varandinha, nos fundos de casa, pois não sou fotógrafo, muito menos profissional. Neste quesito, aliás, tenho apenas a câmera do celular, embora não chegue a dominar todos os recursos que ela me oferece. Ah, sim: me falta também uma boa Grace Kelly. Mas aí seria querer demais. Mas nesta primeira semana de prisão domiciliar comecei a praticar uma coisa que em minha vida normal não fazia. Primeiro, perceber que existem vizinhos por aqui. E também que eles têm vida e se agitam o dia inteiro. Além de começar a sentir certo prazer em bisbilhotar seus movimentos. E o melhor é que, mesmo não sendo fotógrafo, descobri que também disponho de um instrumento que faz meus dias menos monótonos. Ou seja, na falta de uma câmera e capacidade para manuseá-la, conto com um computador portátil, no qual brinco de fazer uns textinhos despretensiosos – ou nem tanto. Mas agora a ocasião se me oferece de mão cheia, e assim me inflo com a habitual veleidade de finalmente ser um quase, ou pseudo, escritor. Quem sabe também descubro algum crime por aqui como fonte de narrativa?
Esta mulher da casa do lado, por exemplo. Já vi que tem um filho, uma criança de quatro ou cinco anos. Trata-o com carinho e zelo, mas curiosamente não o tem consigo durante todo o tempo. No último final de semana, por exemplo, o garoto nem apareceu por ali. Em seu lugar um sujeito de barba e cabelo ruivos, portador do hábito de dormir e acordar tarde, fumar a toda hora alguma coisa com odor de corda queimada e tocar sanfona em altas horas. E de quebra andar pelado pela casa, aproveitando para fazer uns passos de dança em tal estado. Enquanto isso sua hospedeira passa horas e horas concentrada em seu computador, com a devoção de quem está escrevendo uma tese de doutorado ou algo assim. Há também uma faxineira que vem uma vez ou duas por semana, mas limpeza mesmo aparentemente só acontece quando ali chega uma outra mulher, esta de cabelos brancos, que tem todo o ar de mãe da dona da casa e inclusive é chamada pela criança de vovó. Parentesco esclarecido, portanto. Quando vovó está em casa, o ruivo não aparece e, portanto, não faz o habitual desfile em pelo. E vovó bem que se esmera nas tarefas de faxina, que incluem até mesmo limpar a caca do cachorro. Quem não queria ter uma mãe assim?
Do outro lado, mas ainda com visão acessível através do meu novo veículo de duas rodas paralelas, uma mulher que aparentemente também mora com um filho. Ou, pelo menos, com uma criatura de uns 40 anos, que somente aparece por lá depois de altas horas, se é que aparece. A moradora principal é da minha idade, longe de ser uma jovem, portanto. Mas trabalha como uma condenada, todo o dia. É uma casa grande, de três pavimentos e com frequência a vejo na sacada do andar de cima, na janela do que parece ser a cozinha logo abaixo, e também no quintal. Sempre com uma vassoura ou espanador na mão, chegando ao cúmulo de se apresentar com tais instrumentos às vezes por duas ou três vezes ao dia nos diferentes cômodos da casa. Isso quando não está no quintal, varrendo folhas secas ou tratando das galinhas. O filho, ou aquele sujeito que supostamente possui tal condição, raramente aparece, a não ser nos finais de semana, quando enche a casa de sons, parecendo aficionado nos standards americanos dos anos 50. Esta é a parte boa, pelo grau, digamos, democrático com que coloca botão de volume de seu aparelho de som ao alcance dos vizinhos. Mas não se pode negar, tem bom gosto na sua seleção. Gosto especialmente das faixas instrumentais com Brubeck, Duke Welington, Armstrong, BB King e outros monstros do jazz e blues. Não me incomoda, em absoluto.
Aliás, dou graças a Deus por não ter na casa ao lado um apreciador do gênero sertanejo, como é o caso do casal dos fundos.
Nos finais de semana, porém, o panorama proporcionado por tais vizinhos é outro. A eterna faxineira descansa a vassoura e o espanador, bem como da lida do galinheiro. Ali pela seis da tarde da sexta-feira aparece toda empetecada, cabelo arrumado, salto alto, lindos vestidos em cores metálicas e brilhosas. Aparentemente vai a algum lugar de pompa e circunstância. Um clube de dança, ou algo assim. Mas o pequeno volume retangular escuro que leva a tiracolo me desperta suspeitas de que talvez seja uma bíblia. Sabe-se lá. Do alto de minha cadeira de rodas é impossível descobrir. Mas me deixa curioso, sem dúvida. Após a saída da matriarca, o jazz lover entra em cena, não tão aprontado como sua suposta mãe, mas vestido mais casualmente, de camiseta e shorts, às vezes apenas de cueca. Transita entre os andares sempre com um copo na mão, sem deixar de abastecê-lo a cada aparição. Não raramente recebe convidados, sendo o mais frequente desses uma moça que chega em moto taxi. Esta, pelo visto, é a visitante preferida, pois costumeiramente atravessa a noite junto dele, escutando Glenn Miller, Ray Charles, Nat King Cole and others. Quando chega a vez de Chat Baker as luzes geralmente se apagam e isso me impede de dar notícias sobre o que mais acontece. Não sei dizer, contudo, a que horas retorna à sua morada aquela dama de salto alto e vestido metálico. Certamente estou em pleno sono quando isso acontece.
Mas eu falava de dois apreciadores de música sertaneja. Sim, porque na casa dos fundos mora um casal. Não os vejo, aliás, nunca os vi, sendo o nosso território confrontante ocupado por uma sebe de bambus bem alta, plantada por mim mesmo alguns anos atrás, exatamente com a finalidade de me oferecer isolamento, pelo menos visual. Tudo bem com relação à visão, mas infelizmente sou obrigado a ouvi-los, não só em sua impressionante seleção de fulanos & beltranos, em seus trinados chorosos, a lamentar amores perdidos e traições. Se fosse somente isso, tudo bem. Mas tem mais: brigam o tempo todo, em altos brados e em total variedade de impropérios, dirigidos não só a si mesmos, como a outras pessoas da família, a relacionamentos pretéritos e até a gerações passadas, pelo que deduzo. Outro dia creio ter ouvido homem dizer algo como: um dia acabo com você – não sabendo exatamente o que “acabar” poderia significar. A mulher não deixou por menos: pois acabe agora, se for homem. Seguiram se, porém, alguns minutos de obsequioso silêncio, interrompidos pelas vozes de uma das tais duplas preferidas deles, gemendo em glorioso falsete: – é o amooooor…
Semana passada percebi que o homem tinha ficado sozinho em casa. Como soube disso? Eu os ouvi se despedindo, ora essa! E o sujeito ficou por ali fazendo telefonemas para Deus e todo o mundo, sempre em altos brados. E ouvi que ele chamava, a plenas onze horas da noite, uma tal de Roberta – que aparentemente negava a ele algo muito desejado. E eu o ouvia argumentar, quase choramingando: deixa disso meu bem, está tudo tranquilo aqui, ela foi para a casa da mãe, só volta semana que vem, estou esperando você… E por aí a fora. De fato, ele tinha razão na sua conversa com Roberta. Depois de uma semana ela voltou. E não haviam se passado duas horas de sua chegada quando as brigas furiosas recomeçaram. E as rodadas sertanejas também.
Pois é, a vida não é nenhum filme. A comédia humana real é bem pior e nem se fazem enredos como os de antigamente. Só sei que não posso me queixar: este caldo ralo e reles de platitudes, paixões, baixarias e algum mistério que percebo através de minhas janelas deve ter me ajudado na formação do calo ósseo pelo qual minha tíbia tanto ansiava. E melhor ainda, eu finalmente encontrei um tema para desenvolver neste meu querido lap-top, que há tempos só andava em modo off.
***
Um dia na vida de R. Romanovitch
(Crime e Castigo – Fedor Mikhailovitch Dostoievski)
Muito estranhos aqueles acontecimentos. – Você é culpado – era o que uma voz lhe dizia. Ou melhor, quase gritava. Não era possível saber de onde vinha e nem mesmo quem era que assim lhe falava. Seria para ele mesmo? – se indagava, sem resposta. Aquilo era tudo realmente estranho, muito fora do normal. Ele morava em um quartinho alugado, em uma travessa de uma cidade desconhecida, na qual havia cúpulas de igreja coloridas, em forma de sorvete, além de estátuas e monumentos por todo lado. Fazia frio. Havia um grande edifício, não era possível saber se era museu, prisão ou quartel. O fato é que aquele cubículo que lhe abrigava estava distante de qualquer luxo; mais parecia um armário de que uma habitação.
Ele saíra de lá para tomar um ar e ia devagar, pois lhe doíam os calos, coisa agravada pelas botas novas que usava. Havia no caminho uma ponte e ao atravessá-la quase esbarrou com o velhote de quem era inquilino. Evitou encará-lo, pois lhe devia pelos menos uns três ou quatro meses de aluguel. Ele se sentiu um covarde, talvez apenas tímido, ou coisa pior, um cara fracassado. Era enorme o seu estado de excitação e enervamento, tudo a ver com certa hipocondria e claustrofobia que lhe eram habituais, agravados pelo aprisionamento naquele armário imundo onde vivia, isolado de todos.
O pior é que havia mais uma criatura com quem ele mais ainda temia encontrar, mais do que o próprio a dono do cubículo onde vivia. Era a mulher infame que lhe vinha emprestando uns trocados para que se pudesse se manter na cidade grande, longe da família, que lhe mandava algum dinheiro também, que nunca lhe bastava. Maldita aquela mulher! Por conta dela foi penhorando tudo o que tinha, suas roupas, seus livros, sua bicicleta, seu telefone celular e até mesmo alguma rara roupa mais elegante que possuía. E não havia qualquer chance de regatar os bens a ela entregues, pois o dinheiro lhe faltava cada vez mais e sua dependência dela só aumentava.
Foi assim que resolveu acabar com ela de vez, pensando em fazer rápida a passagem entre o pensamento e o gesto. Mas para começar, na penúria em que se encontrava, não dispunha de qualquer instrumento capaz de dar cabo àquela megera. Vagando pelos arredores, por sorte encontrou uma machadinha, abandonada em um lote vago. E foi cumprir sua decisão, com tal peça bem disfarçada dentro de uma velha bolsa, incômoda em excesso, não apenas por seu estado lamentável, também pelo peso da ferramenta, que ameaçava cair ao chão, devido ao tecido roto daquele traste. E assim subiu ao apartamento da velha usurária e quando ela abriu a porta já foi lhe aplicando uma bela machadada. Que coisa estranha, ele nunca havia matado ninguém, nem mesmo uma simples galinha! E foi tão fácil ela morrer… Recuou, célere, temendo se sujar com a mancha de sangue que de forma rápida se estendia pelo assoalho, qual uma ameba. Saiu de novo à rua e foi então que ouviu, pela primeira vez, aquele grito, que com certeza lhe era dirigido – a quem mais o seria? Você é culpado!
E aquilo parecia reverberar: culpado, culpado, culpado! Andava por ruas desconhecidas, sem olhar para trás. Quando passou pelo posto policial que ficava próximo, sentiu um arrepio de medo, mas logo tentou se acalmar – não havia motivo para tanto temor. Afinal, ninguém havia visto ele subir ao apartamento da velha – e nem descer de lá. Estava salvo, pensava. Deu mais umas voltas pelas redondezas, comeu um cachorro-quente na esquina e finalmente se recolheu ao seu detestado armário. Mas o sono não lhe vinha. Relembrava de cada passo durante aquele dia, preocupado em saber de havia deixado alguma pista daquilo que cometera. Mas tudo parecia bem encaixado.
Até que de repente, se lembrou da machadinha. Onde a deixara, afinal? Depois de um minuto de angústia lembrou-se que ela devia estar na velha bolsa ainda e, por sorte, logo pôde confirmar que assim ocorria. Cabia atirá-la fora, mas onde? Àquela hora da noite… Enquanto isso, muito ao longe, vindo não se sabe de onde, pareceu-lhe ainda ouvir aquela ladainha dos infernos: culpado, culpado, culpado! Acabou se levantando e saindo do armário, pondo-se a vagar pela noite para se desfazer do incômodo utensílio. Optou por abandoná-lo no mesmo lote vago onde a encontrara, sem poder confirmar se foi no exato lugar; no escuro não lhe era possível certificar. Como se não bastasse tal estado de confusão, esbarrou com dois sujeitos na rua, que lhe pareciam conhecidos. Um deles, amigo no passado, de quem andava afastado há tempos, o outro um sujeito que detestava, eterno e insistente pretendente a lhe namorar a irmã, sabe-se lá com que tipo de intenções. Teve vontade de matá-lo, também, mas logo considerou que sua cota de assassinatos estava completa para o dia. Para aquele dia, pelo menos.
Culpado, eu – pensava, agora ferozmente. Lembrava de certos crimes de que ouvira falar pela imprensa. Aquele homem que matou o bandido que lhe estuprou a filha nunca foi condenado, para não falar do outro que desviou uma grana do banco onde trabalhava. E mais aquele outro que fuzilou e estuprou uns dez mil, lá nas estranjas? Mas também pensou: se quem rouba e mata outros criminosos com certeza merece perdão – por que não ele? E aquela velha era o diabo em pessoa. Se não fosse ele, certamente algum outro daria um jeito nela. E além do mais ele já havia poupado da morte o pretendente de sua irmã – e isso certamente lhe redimiria. Assim, depois de muitas voltas no escuro, ouvindo o eco daquelas acusações de culpa, retornou à sua cama no armário. Entretanto, dormiu muito mal, acordando a cada meia hora ou até com mais frequência. Logo que a manhã chegou, procurou sair para comer alguma coisa, algo que em seu armário-quarto era impossível. Na cozinha da pensão, nem pensar – ele estava proibido de entrar lá. Aliás, aquele velho miserável e explorador bem que deveria entrar para uma determinada lista, para a lista de alguém, pensou.
Na padaria da esquina, pediu a habitual média de café com leite com o pão na chapa, percebendo que de uma mesa nos fundos um indivíduo olhava para ele de modo um tanto esquisito. Viu que era aquele um, com quem havia se desentendido há tempos numa partida de bilhar, conhecido desocupado do bairro, com fama de ser alcaguete da polícia. Caramba, pronto, estou lascado, pensou: será que este estrupício estaria lhe aprontando alguma? Por sorte, o tal sujeito ficou pouco tempo por ali e ele relaxou, disposto a deixar de ser tão pessimista. Afinal – pensava – o que fizera não tinha chance de ter deixado qualquer rastro.
Voltou para casa para ver se descansava um pouco mais. Tinha a sensação de uma noite passada em claro. Ao entrar no quarto, percebeu que a velha bolsa em que abrigara a machadinha, curiosamente, não estava pendurada no gancho atrás da porta, onde pensava que a tivesse deixado, depois de seu passeio noturno. Achou estranho, mas como não tinha total certeza disso, deixou para pensar melhor, e depois. Ao deitar, percebeu que havia uma coisa volumosa debaixo do travesseiro. Não é que passara a noite inteira ali e nem tinha notado isso? Aquilo era um livro maçudo que ele andara lendo nos dias anteriores, emprestado por um colega de trabalho, antes de serem ambos despedidos. Não pôde devolvê-lo. O título daquilo era Crime e Castigo e seu personagem principal um sujeito de nome complicado, parece que era russo; um assassino, também, como ele. Começou a relembrar da história ali contada, na qual o tal sujeito havia matado uma mulher a machadadas, depois ficando alucinado. Pelo amor de Deus! Será que tudo aquilo que ele achava estar vivendo tinha sido uma história induzida pelo livro? Ou que estivesse sonhando? Tentou se convencer que tudo não passava de algum tipo de alucinação e assim conseguiu se tranquilizar por uns momentos.
Mas não durou muito. A manhã já ia alta e lhe chamaram à porta. A filha da senhoria lhe avisou que havia um sujeito na portaria, com um envelope para lhe entregar, mas que ele precisava descer para assinar. Que coisa chata, o que seria? Na entrada, um sujeito seboso, de paletó e gravata, pose de quem manda, lhe entregou um papel. E lhe avisou que cabia ele se dirigir ir a certo lugar, parece que uma delegacia, dali a sete dias. Gelou por dentro, sem conseguir encontrar alguma explicação para aquilo, que não fosse sua incriminação. De alguma forma, imaginou, seu segredo havia sido descoberto. Voltou ao quarto angustiado, curioso para descobrir no tal livro o que acontecera ao assassino da velha, pois a esta altura já se identificava com ele. Mas o livro já não estava onde eu o deixara, minutos antes. E ficou ele ali, com aquele papelucho que o seboso lhe entregara nas mãos, sem saber o que fazer. A claridade da manhã entrando pela janela, longe de aliviar, lhe revelou manchas de sangue na calça e nas botas, as quais ele não tinha se apercebido ainda.
Céus, o que era aquilo que lhe perseguia? Na rua um autofalante móvel, habitual por ali, sempre anunciando pamonhas fresquinhas, agora ecoava: culpado, culpado, culpado! Era para ele, bem o sabia. Precisava escapar. Trocou sapato e roupas, para se livrar das manchas denunciadoras, mas sem saber como, agora se via descalço e vestido com outra roupa, um macacão cáqui, duas vezes maior que o seu tamanho, com uma etiqueta numerada no bolso. Na porta, assim como na janela do cubículo, o que havia agora eram grades, e das mais grossas. Gelou, mais uma vez, tudo agora tinha a temperatura de uma câmara frigorífica. Precisava escapar, mas logo percebeu estar a porta trancada por fora. Havia a janela, mas saltar por ela, daquele terceiro andar seria morte certa. Para piorar, ouvia passos pelo corredor, como se fossem botas pesadas, pelo ruído que faziam no piso. Em uma dessas passadas por ali, tentaram abrir a porta do quarto, mas por sorte sua a fechadura parecia travada. Gritaram por alguém, que imaginou ser um chaveiro especializado em abrir portas emperradas. Como ninguém atendeu ao chamado, começaram a forçar a porta e então percebeu que não era um apenas, mas dois ou até três homens que faziam isso. O que lhe restava, agora, era mesmo a janela. Sempre se considerara covarde para um gesto extremo como aquele, mas saltou, sem titubear.
A última coisa de que se lembrava foi da gravação do carro da pamonha – mas agora a insistir: culpado, culpado, culpado. Mas logo viu que a sorte lhe sorrira: o que lhe esperava na rua não era tal veículo, mas sim uma espécie de carruagem, com belos cavalos brancos e um cocheiro muito bem-vestido. Lá dentro da boleia havia dois lindos anjos vestidos de brancos e rosa, que o confortaram e disseram que podia relaxar, que sua vida mudaria depois do resgate que lhe traziam. E seguiu com eles.
***
O Apocalipse segundo JB
(Livro do Apocalipse – Bíblia)
Bem aventurado aquele que lê, e os que ouvem as palavras desta profecia, e guardam as coisas que nela estão escritas; porque o tempo está próximo. Apocalipse 1:1-3
Caminhar pelas ruas da cidade era antigo costume de João Batista, JB para os mais íntimos. Desempregado, então, fazia daquilo quase um ofício. Andava pelos quatro cantos, procurando novidades ou coisas fora da rotina, quaisquer que fossem: construções inacabadas, praças e ruas em fase de reparos, lixo jogado em lugares inapropriados, automóveis abandonados, pneus e colchões em desuso jogados a esmo, algum vazamento de água ainda não corrigido. Em uma pequena caderneta anotava tudo, para dar parte, dizia ele, sem declarar quem seria o objeto de tal comunicação. Se houvesse alguma criança ou criação perdidas nas ruas, deixassem com ele também.
O que importava de fato era anotar, registrar, de alguma forma fazer aquilo ganhar substância. Depois haveria de procurar o que fazer de tanta acumulação. E havia muito trabalho a cumprir, naquela vila que ele via em total desmazelo, antes de um arremate de sua missão. Depois, um dia, se veria…
Passava repetidamente pelos mesmos lugares, em jornadas que apenas gradualmente se ampliavam, sem maior pressa, todavia. Era preciso prestar contas, talvez principalmente a si mesmo, de cada canto percorrido e da inspeção de cada lote vago, antes de ampliar sua exploração cotidiana.
E foi ali, debaixo do pontilhão da estrada de ferro que ele ouviu a voz pela primeira vez. E ela dizia qualquer coisa sobre um cavalo branco, cavalgado por um homem armado de arco e flecha. E mais ainda, que tinha sido dado a tal homem uma espécie de manto, para quando ele saísse vencedor de terríveis batalhas.
A voz o chamava pelo nome, mas dizendo apenas João, sem usar o Batista, nome pelo qual era mais conhecido. Ele olhou em torno, espantado. Não por ter ouvido a voz, pela qual ele afinal já esperava há tempos, mas por não imaginar que ela lhe chegaria em lugar tão estranho, com tanto lixo atirado, cheirando a esgoto, com ratos e moscas por todo lado. Mesmo assim se regozijou, pois afinal de contas algo há muito augurado lhe alcançava.
Depois de anotar as condições do local na caderneta, se assentou no chão para ouvir melhor. Sem deixar de se preocupar com as condições do local, viu que havia muito a ser compreendido naquelas longas e complicadas sentenças que a voz lhe trazia, apontando terríveis acontecimentos. A menção repetida a palavras como “revelação” e “anticristo” lhe sugeriu que aquilo tinha ligação com algo de fundo mais religioso ou espiritual. E a voz também lhe dizia, repetidamente: “são quatro, são quatro”! Quatro o quê? Indagou a si mesmo, pensando se poderiam ser quatro cantos, quatro ventos, quatro queijos. O que significaria isso, afinal?
A voz parecia se alterar, em modos de irritação e ameaça. Falou também de um cordeiro degolado, além de peste, de guerra e de fome. Aquilo fazia sentido para ele, ao lembrar daquela imagem inicial do cavaleiro armado e montado em uma mula branca. E a voz agora sussurrava: “João, atenção! Este é o que traz a peste em seu cavalo branco, a peste! Mesmo os que se cuidam não escaparão”.
JB ficou de fato perturbado, a cabeça agora lhe latejando com intensidade. Resolveu caminhar para fora daquele lugar, temendo que aquela voz cada vez mais ameaçadora se voltasse contra ele. Saiu dali a vagar fora de seu domínio habitual, até que se recostou à parede de uma oficina abandonada e adormeceu ali. Exausto.
Mas logo se viu desperto. Seus ouvidos, tão próximos àquela parede nua e fria, a ouviam de novo. E a voz agora falava em grandes acontecimentos, com o número quatro sendo substituído pelo sete: sete pragas, sete selos, sete pecados. E mais, agora chamando alguém: “Daniel, Daniel, Daniel, onde está você?” Uma coisa nova era pronunciada, lembrando mais uma vez o tom místico da conversa de antes: “um cordeiro foi morto, pode ser uma coisa assim, João? E muita guerra virá”, dizia ainda a voz.
Não saberia dizer se dormiu de novo, se vagou mais ainda pela cidade, se voltou para casa. Só se lembrava de ter estado por outros diversos lugares, agora de volta a seus percursos habituais. Passava então por uma chácara já conhecida, na periferia da vila, quando novamente ouviu: “João, meu filho… sim, você mesmo!” E aquilo parecia partir agora de dentro de um muro de pedras que cercava a propriedade.
E prosseguiu a voz, falando agora de um cavalo vermelho, cujo cavaleiro, ameaçador, armado de uma grande espada, seria capaz de extinguir toda a paz da terra, fazendo com que os homens se tornassem inimigos entre si. O tom ameaçador era cada vez mais assustador e isso o fez estremecer. Mesmo assim, ou por isso mesmo, resolveu seguir adiante.
Agora a voz parecia o perseguir, brotando de cada muro, mureta, cerca e até mesmo do chão cru. Às vezes apenas dizia seu nome, de forma ácida, se calando em seguida. E seguiu falando de um profeta que iria reunir seu rebanho e ao mesmo tempo travar batalhas contra os inimigos ameaçadores. E a alusão ao cordeiro morto voltava a ser repetida, inúmeras vezes, como se buscasse a vingança de um crime terrível. Um cavalo negro foi anunciado e galopando com ele o flagelo terrível de uma fome como nunca se viu antes. “Como nunca ninguém pode ter visto, João, em nenhum lugar deste mundo de Deus”.
Seguiu adiante, assustado, cada vez mais afastado de seu território habitual. A velha igreja, há tempos fechada por falta de padre, lhe pareceu bom lugar para repouso e distância daquilo que certamente lhe movia alguma perseguição. E ali ouviu mais, a referência a um cavalo preto, cavalgado por um homem que portava uma balança de peixeiro em uma das mãos. E a voz, sempre ameaçadora, dizendo algo ainda mais misterioso, como trocar partidas de trigo e cevada por dinheiro, com azeite e vinho como parte de tal negociação. “João, presta atenção, tudo isso é muito sério, é o Senhor que quer assim!” E ouviu chamar novos nomes, além do Daniel já citado, como Zacarias, Ezequiel e Oziel, fossem lá quem fossem. Ele realmente não sabia quem seriam e qual papel teriam naquela provação que agora lhe chegava.
Seguiu em frente, cada vez mais esbaforido. De novo no pontilhão da ferrovia julgou ser possível se proteger ali. E ali a voz, mais uma vez, cresceu em tonalidade e ameaças. O personagem equino era agora uma mula ou amarelo esverdeada. “João: este é da mesma cor de um cadáver que se decompõe!” E era o quarto e último, assegurou a voz, com tal montaria sendo portadora de morte e tragédias diversas. Talvez não fosse uma mula, mas uma égua esquálida, pela hora da morte. E seu ginete era simplesmente a Morte, com todo um cortejo de seres enviados ao inferno e destinados à extinção eterna a seguindo de perto.
A voz, cada vez mais insistente e tenebrosa dizia que aqueles quatro cavaleiros e suas montarias branca, vermelha, negra e baia, estavam chegando para anunciar o fim dos tempos. “Presta atenção, João, seu pecador infeliz!” Esses aí eram os escudeiros do Anticristo e para quem bem soubesse entender representavam Peste, Guerra, Fome e Morte. Seus ginetes não salvariam ninguém de nada, pois eram os verdadeiros e últimos carrascos a punir a humanidade em pecado.
Ele então percebeu que não seria possível alcançar salvação para ele, aliás, para ninguém, ninguém mesmo. Tinha que escapar, no mínimo para algum lugar onde não houvesse paredes ou muros, entidades que carregavam não só aquelas notícias tão más, mas junto com isso uma feroz capacidade de executá-las.
Tomou assim a estrada principal e por ela caminhou, noite adentro e também no dia seguinte, apesar do sol, da poeira, da canícula opressiva daquela época do ano. Era preciso escapar. Ele sabia que era inocente absoluto em relação a tudo o que a voz apregoava. Não! O filho de sua mãe não seria pego, com certeza.
No dia seguinte, já ao crepúsculo, alguns trabalhadores rurais o descobriram e os homens da ambulância municipal o resgataram em seguida. Estava caído numa valeta lateral da estrada, com a cara suja de lama, língua seca como uma canela de ema, olhos vidrados. E balbuciando sem parar palavras com sentido misterioso e desconhecido, como Apocalipse e Armagedon, além de outras, entre as quais a palavra Besta se destacava. Murmurava cheio de ira e ansiedade se alguém vira por ali quatro cavalos, ou mulas, cada qual de uma cor diferente. E invocava sem parar a proteção de São João, jogando nomes feios sobre uma desconhecida Salomé, jurando vinganças terríveis contra o ser que ele denominava Anticristo.
No terceiro dia sua mãe, uma humilde lavadeira que morava longe, veio visitá-lo no hospital psiquiátrico. E trouxe para o filho, um livro, a Bíblia, que ele, segundo ela, costumava ler com avidez havia meses, passando assim até noites em claro. Para a mãe, João Batista sempre fora uma pessoa calma e normal, sempre muito rigoroso e cumpridor de seus afazeres. Começou a ter mudanças de atitudes depois que perdeu o emprego de frentista em um posto de gasolina e se separou da mulher. Por causa disso começou a frequentar uma igreja evangélica, sendo acolhido como uma espécie de protegido do Pastor, que lhe influenciava naquelas leituras da Bíblia. Ela precisava comunicar a este homem sobre os acontecimentos dos dias anteriores, aquelas mudanças tão graves de comportamento do filho, quem sabe ele o ajudaria. Precisava só arranjar um dinheirinho para colocar o dízimo da igreja em dia, atrasado desde que JB perdera o emprego.
Com relação às palavras que ele repetia sem cessar, “Margedão” e “Apocalipes”, a mãe desconhecia o significado delas, mas sentia que era coisa que parecia importar muito ao filho. Ela só queria que fosse curado daquilo, precisava dele demais, não só como companhia para sua velhice, mas também pelos trocados que bem ou mal ele lhe trazia no final de cada duas semanas.
Ficou ali no hospital por alguns dias, medicado e recuperando a serenidade habitual, sendo isso percebido com alegria pela mãe. Depois da alta, entretanto, passou a se mostrar angustiado ao extremo, quando por acaso ouvisse um eventual tropel de equinos nas ruas da cidade.
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O crido e o havido
O Cara de Bronze (No Urubuquaquá, no Pinhém) – Guimarães Rosa
Do justo o certo, do certo o crido, do crido o havido. […] Pois então o senhor mesmo me diga: o que foi que ele foi fazer? Que saiu daqui, em encoberto, na vagueação, por volver meses, mas com ponto de destino…
Meu nome é Antônio, mas meu médico, não sei bem porque, resolveu me apelidar de Porfírio. Ou melhor, eu no começo nem sabia de onde vinha tal apelido, mas quando descobri, achei até bem-posto. Depois eu explico. Tudo começou há uns bons anos atrás. Eu era moço e aliás muito bem disposto para cuidar das coisas que meu pai, que Deus o tenha, me deixou. Umas terras, algum gadinho e a esperança que as coisas sempre iam melhorar, com a chuva, com a sorte, e mais o trabalho de quem nisso bota fé.
Eu tinha tudo, mas um dia me faltou o que não podia faltar: um pouco de sorte. Quem é que manda no corpo da gente? Esta máquina complicada com seus mil nervos, músculos, juntas, tripas, sangue, este sarapatel que se ajunta dentro da gente e que só os médicos – e muitas vezes nem eles – dão conta. Para não falar do que encobre tudo isso, a pele, que parece um para-raios, sempre a recolher as influências de fora e de dentro da gente. Cruzes! Mas eu dizia: eu era moço e o balaio da minha vida, com suas tantas laranjas, andava cheio até as bordas. Levantava cedo, ia para a lida no campo e voltava para casa já na boca da noite, lamentando que o dia fosse tão curto. Porque, para mim, de bom tamanho estaria até se fosse maior.
Um dia comecei a notar que a pele me ardia além da conta, parecendo que correram uma lima das grossas em cima de mim, total. Efeito do sol achei que não fosse, porque desde criancinha o que mais fazia era receber seus raios chapados nos braços, na testa, na nuca, onde quer que fosse terreno deixado a descoberto. E não parou nisso, comecei também a botar bolhas por todas essas partes. E essas não doíam, mas vazavam ao ponto de me enxarcar a camisa e fazer grude. Até eu tinha nojo. Tentei andar coberto, camisas de mangas longas, lenços no pescoço. Fiquei parecendo uma freira – ou alguma mulher das estranjas, nem sei. Mas aí o calor me matava; eu não dava conta de andar daquele jeito pelo dia a fora. O jeito era ir ao médico. E fui. Doutor Hermógenes me recebeu muito bem. Ele era especialista em doenças da pele e eu já fui direto nele, decidido a não perder tempo com intermediários. Ficou me examinando uma hora inteira, usou até uma lente para escarafunchar melhor, raspando aqui e ali com uma espécie de faquinha. Era um cara atencioso, de um tipo que é difícil se encontrar hoje em dia, principalmente entre os médicos. Pediu um tantão de exames, de sangue, de urina e até mesmo da farofinha que ele me recolheu na pele com sua raspadeira.
Quando voltei uns dias depois, para ver o resultado de tudo, ainda pediu mais um monte de testes. Eu já estava quase desistindo daquilo. Mas na terceira vez que lá fui, me disse que tinha uma boa notícia: havia um diagnóstico. Mas que eu não me animasse muito, pois havia coisa ruim também: aquilo era uma doença sem cura. – Mas sossegue, meu rapaz, você pode controlar isso aí com bons cuidados com seu corpo. E assim me explicou tudo, tim-tim por tim-tim. Era tão complicado que eu nem sei contar direito, uma doença do sangue, mas não dessas que a gente pega quando leva uma má vida, ele me tranquilizou. Havia qualquer coisa errada com a minha emo-não-sei-o-quê, que tinha uma química atrapalhada – foi o que entendi. Havia ali uma coisa alterada, parece que o ferro. Eu nunca soube que dentro da gente tinha um metal assim, cruzes! Aquilo era genético, me veio como herança de família. Miséria, pensei, nunca tive pai ou parente rico para deles herdar alguma coisa e me vem uma porqueira dessas. E mais, que aquilo me impedia de me expor ao sol e tudo o que se podia fazer era evitar isso, ao máximo. O nome da tal quizumba era porfiria. E foi assim que ele me botou o apelido de que falei antes.
Não. Não gosto de apelidos, mas aquele doutor Hermógenes era tão gente boa que acabei aceitando aquilo. E quando eu ia visitá-lo, já na porta do consultório me chamava, alto, para todo mundo ouvir: – Porfírio Belizário de Albuquerque! Eram meus sobrenomes verdadeiros – e eu bem que achava graça naquilo. Mas tinha aquela coisa ruim, que era passar o resto de minha vida coberto, como um monge – ou freira – penitente. Além de usar na pele, por obrigação, uma montoeira de cremes que iriam acabar fazendo de mim um tipo de rosca ou sonho de padaria. Mas me conformei, era o caso, de fato, de arranjar um jeito de mudar minha vida. A primeira coisa que fiz foi desistir de ser fazendeiro. Como é que eu podia olhar gado no pasto e gente no eito sem poder sair ao sol? Tive sorte, sem que eu esperasse apareceu um sujeito que me comprava tudo, por um bom preço. Depois descobri que quem levou a melhor foi ele mesmo, ou a empresa em que ele trabalhava, porque aquelas terras estavam perto demais da cidade e iam fazer ali um desses condomínios para o povo endinheirado. Mas aí já era tarde e não me chateei demais, pois precisava ajeitar minha vida também.
Foi aí que comprei uma casa na cidade e fui viver minha sina de prisioneiro, ou de pessoa temente, vejam só, não a Deus, mas aos raios do sol. Se eu insistia em sair de casa a irritação da pele e as bolhas só pioravam. Foi assim que decidi me aquietar de vez. Mas sempre me dava a sapituca de querer sempre saber notícias do mundo lá fora. Foi então que me apareceu o Ivo. Ele, nos seus dezesseis ou dezessete anos, era meu vizinho de rua, sujeito curioso, sempre dava com ele me espiando por cima do muro, mesmo eu todo o tempo dentro de casa. Um dia perguntei: – quer trabalhar para mim? Ele parecia já ter a resposta pronta. Antes que eu acabasse de perguntar já me veio com um sim de todo tamanho. Nem quis saber que tipo de tarefas eu tinha para ele. Aliás, nem eu sabia muito ao certo.
Para começar mandei ele ir até o doutor Hermógenes para ver se ele tinha alguma novidade em relação ao meu tratamento. Voltou meia hora depois: – O doutor disse que não tem nada de novo por enquanto. Mas parece que não era para o senhor o recado, falou de um tal de Porfírio. Agradeci, rindo por dentro do engano. Mas o diabo do rapaz fez um acréscimo que me fez rir mais ainda: – Mas deixa eu lhe contar uma coisa, moço. Peguei ele fazendo uma coisa esquisita. Resolvi espiar pela janela e ele estava com uma mulher, a saia dela levantada até a cintura e ele espiava as pernas dela com uma lente deste tamanho… Expliquei para ele o que era um dermatologista e como este tipo de médico trabalhava. Mas o Ivo não pareceu botar muita fé em minha conversa. Deixei para lá. A tarefa seguinte foi mandá-lo ao mercado, com uma lista de compras. O diabo parecia ter asas nos pés, voltou menos de uma hora depois, com o pacote nos ombros e mais novidades: – O senhor sabia que estão vendendo carne de cavalo por lá? Vi também umas pelancas que para mim eram de algum cachorro morto. Pois é, estão vendendo… Deus do céu. Era o caso de se botar fé naquilo?
Nos dias seguintes as novidades continuaram. Mandei-o a Prefeitura, para pegar as guias de imposto da casa: – O Prefeito vendeu o prédio e se mudou da cidade. Levou o cofre e a mulher do vereador junto. Quando passou pela porta da Igreja: – O padre não está mais lá. Largou a batina e foi casar. No Fórum, para pegar uma certidão: – O senhor sabia que agora pode casar mulher com mulher e até homem com homem? E mais: – Dizem que vai vir uma chuvarada forte, com trovoada batida e uma ventania doida, com um tanto de areia pra cima de nós. Estão falando que é o caso de nós tudo se mudar daqui. Acabei por ficar um tanto irritado com tanta imaginação. Evidentemente aquilo tudo só podia ser mentira. Mas para uma pessoa reclusa como eu, sem poder sair de casa, sem maior contato com o mundo, seria até divertido.
Aí comecei a querer que ele passasse a me trazer qualquer novidade que acontecesse nos quatro cantos da cidade. – Um homem xingou um Santo lá na vila e então se abriu debaixo dele um buracão de todo tamanho e ele agora está lá pedindo pelo amor de Deus para tirarem ele. – O ‘Ebezener’, dono da igreja dos crentes, botou fogo no salão lá deles e deu um tiro na cabeça em seguida. – A mulher do motorista do ônibus da escola ficou com ciúme e cortou os documentos dele com uma faca. Tá presa agora. – Dizem que lá na prainha agora pode nadar pelado. E tá cheio de gente para apreciar aquilo. E já deu até polícia lá para vigiar o povo. – Tem um montão de gente chegando de um lugar que eles nomeiam de Valenzuela, parece que tá todo mundo com fome, querendo tomar as coisas da gente.
Aquele ali, sem dúvida, sabia de coisas além da conta. Ouvia o galo cantar, mas não sabia aonde – e nem se era galo mesmo. E as novidades não paravam de chegar, em verdadeira enxurrada. Eu me divertindo. Um dia: – Encontrei o Doutor Hermógis na rua e ele me disse que descobriram um remédio danado de bom para o senhor. Vai lhe curar. Seria bom se fosse verdade, mas eu já estava conformado, com aquela doença e com a companhia daquele patife. Além disso, não era questão de acreditar nas lorotas que aquele sujeitinho me trazia. Era diversão mesmo, deixei correr. Afinal, mais vale uma alegria de quando em vez do que uma vida atolada em seriedade bovina. Já me basta a falta que o bom sol me faz.
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Viagem inventada no feliz
(As Margens da Alegria (Primeiras Estórias) – Guimarães Rosa)
Esta é a estória […]. Ia um menino passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos.
Naquele dia ele viajou sem seus pais pela primeira vez e se afastou da cidade onde moravam por muitos e muitos quilômetros, trazendo com isso uma sequência de acontecimentos inesquecíveis, que ainda o marcavam, entre surpresas e alegrias, muitos anos depois. Na manhã fresca de abril já se perfilavam os escoteiros na porta do colégio que abrigava a sua sede. O caminhão Chevrolet Brasil, tinindo de novo, como dizia uma gíria da época, já era diligentemente carregado pelos monitores e pelos próprios garotos ali na porta. E ali se moviam caixas e mais caixas de panelas, vasilhas diversas e mantimentos, além de barracas de lona cáqui, junto com mochilas e cobertores. Eles iam participar, simplesmente, da inauguração da cidade que oficialmente se tornaria, daí a dois ou três dias, a nova capital do país. Novacap, como então se dizia. Cumpria, além de carregar o veículo, confirmar, um no rosto do outro a surpresa, a alegria e até um pouco de medo, recebendo de pais e mães ali reunidos os derradeiros conselhos de cautela.
Tudo ali era novidade e emoção. Sem deixar de lado as brincadeiras um tanto selvagens, como aplicarem uns nos outros a chamada cachuleta, uma batida forte de dedos, em leque, na bunda de quem estivesse por perto, que quando bem aplicada doía de verdade. E assim, entoando seu estranho hino, o Rataplã do Arrebol, de cujas palavras ignoravam o exato significado, se arrancaram a bordo do vistoso caminhão verde e branco, naquela manhãzinha fresca, rumo ao Planalto Central. Entre eles, os mais viajados mal haviam passado da cidade mais próxima no trajeto, ou de suas adjacências, assim mesmo em companhia dos pais. Mas agora, não. Sentiam-se como destemidos exploradores, seguindo as regras próprias do grupo, não da família. Não poderia haver nada melhor do que aquilo, por certo.
Era tudo aventura, a começar pelo vento, que já com menos de cem km rodados havia destruído o toldo de lona posto sobre o caminhão e dispersado alguns dos chapéus de feltro, o que deixou seus donos inconsoláveis. A paisagem de montanhas começou, aos poucos, a se transformar em vasta extensões de planuras e morros em forma de mesas. O verde familiar das plantas aos poucos se transformava em tons desmaiados ou até cinzentos e seus troncos perdiam a retidão, para formarem garranchos de formatos variados e casca espessa.
Quanta novidade, pensavam. No lugar onde se construía uma grande represa, mas aonde naquele momento se viam apenas grandes tratores a fuçar freneticamente a terra vermelha, quase nada de água e de barragem, o que se via era apenas um buraco enorme. Ali, parou-se para comer. Cada um com a sua marmita, pois naquele tempo não se conhecia fast-food, palavra que, aliás, soaria como um palavrão em língua gringa. Na beira da estrada apenas alguns estabelecimentos toscos, nos quais mal e mal se servia alguma cerveja quente e pacotes de bolacha. A solução eram as marmitas mesmo, daquelas de alumínio, variando apenas no formato, redondo ou retangular. Alguns, talvez, contassem com sanduíches de presunto e queijo na matula que veio de casa, mas apenas os mais afortunados. Ali o garoto constatou, com total dissabor e frustração, que a comida preparada na tal marmita, com todo o carinho da mãe, ne véspera, simplesmente azedara, irremediavelmente. Um colega caridoso lhe ofereceu uma banana, com a casca já preta, a qual comeu com gosto, apesar de tudo. O que fazer, a não ser isso?
Chegaram esbodegados à velha cidade de ruas tortas, ainda longe do destino final, mas já a tempo de dormir. Um Grupo Escolar lhes serviu de abrigo e ali o chão lhes serviu de cama, sem direito a um chuveiro. Na primeira madrugada o Planalto já lhes mostrou sua inclemência, quase lhes congelando as partes do corpo que não lhes foi possível cobrir. Mas tudo era novidade e aventura, além de juventude, embora das vantagens desta última ainda não tivessem completa consciência. Mais adiante, no dia seguinte, em paisagem agora marcada por planuras altas e pedregosas, onde ambulantes na beira da estrada vendiam cristais enormes, havia também filas de carros com os parabrisas quebrados. Alguém lhes informou que isso se dava pelo impacto dos cristais no cascalho fino que cobria o asfalto. E bem junto, vendedores de para brisas, recém descobridores daquele filão de ganhar dinheiro, coisa rara naquele tempo e naquela região. Nas suas bancas toscas de comércio ofereciam também biscoitos de polvilho e envelopes de sal de fruta, uma novidade na ocasião, além de frutas encarapinhadas e olorosas, das quais nunca tinham ouvido falar. O garoto delas se lembrou, contudo, como algo egresso de sua infância ainda mais remota, ditas como araticuns, ou algo assim, na terra do pai e como marolo, por parte da mãe.
A Nova Cidade os recebeu em torno de meio dia, num calor de rachar. A paisagem sempre dominada pelas tais árvores anãs, tortas e cascudas. O vento na carroceria do caminhão mais abrasava do que refrescava. Com os chapéus restantes e o grito escoteiro tradicional arrê, arrê, arrê, saudaram os soldados que vinham a pé do Rio de Janeiro. A estátua gigantesca e esquisita que os recebeu em algum ponto da estrada, já no território-alvo, não augurou a eles muito boa coisa.
Acamparam logo abaixo do Palácio que abrigaria os mandatários da República. Em frente um monumento com frase profética, mas apenas repleta de pretensões naquele momento: deste Planalto Central, desta solidão que em breve se povoará… A solidão era então evidente, pelo menos ao longo da estrada, mas aquela multidão que já ali se fazia presente por certo antecipava o povoamento anunciado. O tal Palácio não passava de um monumento estranho e cheio de pilastras em formato de letras “L” invertidas, colorido pela poeira vermelha, no meio da floresta curva, cinzenta e cascuda, que logo souberam chamar-se cerrado. Não havia ali banho que merecesse este nome, mas para eles isso não fazia muita diferença, mas até trazia alivio, por lhes lembrar das obrigações que lhes eram impostas em casa. Para as necessidades mais imperiosas, o hediondo WC de uma cervejaria instalada num galpão provisório, ao lado do Palácio.
Acabaram por descobrir – afinal eram destemidos pioneiros – um cano enorme, que vazava água em alto esguicho. Ao lado dele, meio atolados na lama, lavavam panelas, cuecas e o próprio corpo. No acampamento sem árvores, a não ser pelo cerrado pouco generoso, já no primeiro dia se viram à beira de uma insolação. À noite, um frio siberiano. Como se tudo isso não bastasse, se viram assolados por uma legião de carrapatos, propiciando-lhes o intenso afazer de se coçarem, dia e noite. Isso, junto à pele queimada pelo sol, para qualquer um seriam as marcas do inferno. Os sacos de dormir, preenchidos com folhas secas, logo se mostraram como cavalos de Tróia para terríveis formigas. Mas eles, que afinal eram escoteiros, valentes, exploradores, estavam sempre alertas e não temiam os perigos da vida. A segurança das saias das mães não lhes estava próxima agora, mas eles mesmo assim – e com alegria – se sentiam protegidos. Apesar do sol, dos carrapatos, da falta de banhos, das brincadeiras maldosas, das anacrônicas exortações à coragem, à macheza e ao estoicismo, próprias do movimento escoteiro.
Por muita teimosia o garoto voltou a tal paragem – e para morar – muitos anos depois. Naquele abril dos anos sessenta, entretanto, só não correram, ele e seus companheiros, de volta ao regaço materno, porque a querida cidade de origem ficava muito longe do terrível Planalto Central. Mas ficou a marca de tudo aquilo, muito mais pelo que teve de surpresa e felicidade do que o contrário. Viagem inventada no feliz, aquela, como é tão raro acontecer na vida de uma pessoa.
***
Catrumanos
(Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa)
Estavam ali no que restava de sombra no pequizeiro, defronte à pamonharia à beira da rodovia, já havia pelo menos uma hora, e a condução não aparecia. Logo naquele dia, sexta feira, em que era possível tirar uma folguinha, tomar uma cervejinha com os amigos no armazém da vila. E tirante isso, não tinham em toda a semana nadinha, uma nesguinha que fosse, de qualquer tempo livre, porque no sábado era dia de ir fazer compras, limpar o galinheiro, dar uma rastelada no quintal, que já estava até parecendo fazenda de viúva. E Nhá Sebastiana não ia deixar por menos, arreliada do jeito que era, a encher a paciência deles até ficarem cansados e, sem ter outro jeito, tocarem a fazer o serviço, sem reclamar. – O sol já vai embora e eles não aparece, disse o mais velho… – Todo dia é essa quizumba, repostou o outro.
Semana dura aquela. Aliás, todas elas, de uns tempos para cá. Estavam trabalhando para um Abrão, sujeito enrolado como o Diabo, que tinha aberto uma carvoeira num cerradão distante, para os lados de Cabeceiras. Trabalho dos piores, todo mundo sabe como é penoso mexer com lenha pra fazer carvão, coisa que além do trabalho próprio que dá ainda obriga as pessoas a fugir dos fiscais do governo, que não andavam dando sossego. Teve uma vez que até um dos camaradas quase foi preso, por desacatar o fiscal. Ele só reclamou de estar sendo impedido de fazer seu serviço, mas o danado, metido a autoridade, não perdoou. Meteu uma multa no Abrão e chegou até a ameaçar de chamar a polícia para levar o queixoso para a Delegacia. No final relaxou, mas foi um custo fazer com que o miserável abrisse mão daquilo.
Ainda hoje, com sol quente na cabeça e a boia já meio fria e quase estragada, tiveram que matar uma cascavel de metro e tanto, que por pouco acabava total com a graça deles, escondida que estava em um monte de lenha seca.
E era assim: levantavam de madrugada, mal e mal com a barriga forrada com um cafezinho ralo e biscoito de polvilho que a Tiana preparava, com a maior da má vontade, diga-se de passagem, tinham que se abreviar para pegar o caminhãozinho que o Abrão mandava para buscá-los no fundão de grota onde residiam. E naquela caranguejola troncha iam pela estrada, pegando poeira e sendo jogados de um lado para o outro na carroceria, naquele caminho desmazelado, que a Prefeitura nunca se lembrava de mandar consertar. Ainda pegavam mais dois ou três camaradas pelo caminho e antes mesmo do sol levantar de todo estavam no eito. Ali era pendurar as capangas em alguma forquilha, guardar o garrafão térmico em alguma rara sombra e tocar a trabalhar até dar nó, na barriga e no corpo, o que viesse primeiro. E se davam por satisfeitos quando o Abrão ou o safado do Tinhorão, sócio dele nas trapalhadas, não apareciam para reclamar que o serviço não andava, essas coisas.
Vida dura, bem sabiam disso aqueles urucuianos, Tonico e Zé Beto, irmãos no sangue e sócios na dureza na vida. Nessas horas dava neles uma vontade doida de fazerem igual o irmão mais velho, o Abadio, que desistira daquela vida sem futuro e partira para morar em Brasília. Ali, de novo morando em terras do Goiás, mas ainda assim a dez léguas de distância da cidade, não tinha conseguido emprego decente, se virava como servente de pedreiro, cada dia numa obra diferente, mas pelo menos não tinha uma junta de mulas como Abrão e Tinhorão a atazanar a vida deles. Já era um progresso.
Com tanta dificuldade, tudo corria até bem quando não acontecia como agora, quando já tinham terminado o serviço fazia umas duas horas, com a noite quase chegando e o filho de uma égua do Abrão não mandava a caranguejola vir buscá-los. Ainda no mês passado foram chegar em casa depois da meia noite, mesmo assim porque arranjaram uma carona de última hora com um fazendeiro que passava por lá. E ainda cobrou 20 reais pela condução… E o Abrão, do jeito malino que era, nem pediu desculpas, disse que o caminhãozinho tinha quebrado e ficou por isso mesmo.
***
Foi assim que eu os vi, o lusco fusco daquela sexta feira de agosto. Eu vinha pela estrada, depois de atender umas fazendas na região, onde dou assistência de inseminação, pois sou técnico veterinário, parei para tomar um café e comer uma pamonha. E lá estavam os dois, sujos e mal vestidos, debaixo de pequizeiro, que nem sombra lhes oferecia mais, pelo adiantado da hora.
Pra falar a verdade, nem vi os dois rapazes quando cheguei, só quando estava de saída. Foram chegando perto, bem à maneira dos roceiros, como quem não quer nada. Logo vi que queriam alguma coisa, uma carona, talvez, na melhor das hipóteses. – Moço, desculpa, o senhor vai pra onde? Resolvi atalhar logo de uma vez: – para onde vocês querem ir? Tiveram sorte, eu ia pernoitar na fazenda de um amigo e tinha que passar perto do fundão onde moravam. No dia seguinte, sábado, eu tinha marcado uma sessão de enxertos em fazendas dos arredores. E fui logo dizendo, diante da resposta deles, que saiu meio engasgada, como se sentissem culpa em serem atendidos por mim: subam! Ainda de modo bem roceiro, me indagaram, olhos postos no assoalho da camionete: quando o senhor cobra? Resolvi brincar com eles mais um pouco: vocês não darão conta de me pagar… subam logo e vamos embora, antes que escureça. Apenas balbuciaram qualquer coisa como resposta, não sei bem o quê, mas devia ser um agradecimento.
O povo da roça é assim: se ganham uma carona não se sentem na obrigação de manter alguma conversação com quem lhes atenda, pelo contrário, talvez pensem que isso é afrontoso. Mas se deram mal comigo, porque eu gosto de conversar, acho que isso ajuda a passar o tempo. Na verdade, o meu gosto é viajar com a companhia de gente que também aprecie e tenha repertório para conversas. Não era bem o caso deles, mas aos poucos consegui dobrar neles a timidez e o silêncio.
Foi assim que fiquei sabendo do Abrão e do Tinhorão, do mal afamado caminhãozinho, da carvoeira, dos fiscais do Ibama, da cascavel, da vida dura que levavam desde a infância. Nada daquilo era novidade para mim, que sabia que ali no Urucuia aconteciam coisas assim e muito piores. Aliás, por toda parte na região – e até mais além dela. Vivi por lá durante alguns anos, andava agora por ali apenas a trabalho, mas a história deles, para mim, era coisa que eu conhecia desde sempre, já nos tempos de meus avós, pelo menos, pois que passei a infância ouvindo narrativas e assistindo casos assim.
O que mais me admirava era a maneira como essas coisas eram encaradas com naturalidade por ali. Assim era entre os mais pobres, os remediados, como era o caso de minha família e de maneira ainda mais acintosa e perversa, entre os mais ricos. O mínimo que se dizia, em qualquer uma dessas situações era algo como: deviam dar graças a Deus de arranjarem quem lhes arranje trabalho e lhes pague. Não saberia dizer, realmente, se o bom Deus deveria ser reverenciado apenas por fornecer trabalho ou também pelo fato de que este fosse remunerado…
Mas eu felizmente sempre pensei diferente disso. Talvez porque meu pai fosse um homem justo, pequeno comerciante que não tinha raízes naquela terra de criadores de gado, catireiros e carvoeiros. Tinha vindo de lugar maior e mais evoluído, em terras são-franciscanas e até estudara em colégio de padres, em Januária. Não era nenhum comunista, mas sem dúvida estranhava os costumes selvagens que dominavam por ali. Para os filhos, eu e meus dois irmãos, fez tudo o que pôde para irmos estudar fora, em Brasília no meu caso e de meu outro irmão, que fez concurso para a Polícia, e até mais longe, como minha irmã, que estudou em Belorizonte e por lá se casou. Assim, as histórias que Tonico e Zé Beto me contaram não chegavam a ser novidade para mim.
Quis saber mais da vida deles. Vivam com uma tia, de nome Sebastiana e o pai, muito idoso e entrevado, quase não andava. Pelo que contaram, confirmado pelo que vi depois, a moradia era um rancho dos mais precários, quase uma tapera. Moravam naquelas terras por cortesia do dono, que mal aparecia por ali, vivendo na cidade havia muitos anos. Ali só tinham moradia mesmo, porque trabalho tinham que procurar em outros lugares. Foi assim que o irmão mais velho foi para Brasília e uma irmã não se sabe para onde, pois um dia fez as malas e nunca mais deu as caras.
Não sei bem por quê, fiquei curioso em saber mais. Disse que voltaria no sábado, depois do expediente nas fazendas, para conversar também com o pai. Queria ouvir as histórias dele, embora certamente fossem apenas confirmar assuntos dos quais eu sabia desde sempre. Esta decisão também tinha a ver com o pedido de uma amiga, a Melânia, com quem ando tendo vontades de namorar, que estuda História numa faculdade em Brasília e está interessada em saber mais sobre o povo do sertão, como ela diz, principalmente os mais velhos, que carregam conhecimento que os mais novos já deixaram escapar – ou nunca souberam.
Mas pra falar a verdade, não apenas por esta quase namorada, eu também gosto de saber de coisas assim. Os que me conhecem sabem disso e não é à toa que alguns parentes mais velhos que tenho aqui na região já me botaram o apelido de ispicula. E eu gosto!
***
– Quem, eu?
– Sim senhor, você mesmo, Seu Eufrásio!
– Não moro aqui desde sempre, mas deve ter pra mais de sessenta anos, quando meu pai trouxe a família das bandas do rio Paracatu para cá. Mas tive avô aqui e até mesmo o avô do avô dele. Meu pai saiu e depois voltou.
– Se mudou alguma coisa? Bom, seu moço, isso aqui mudou muito, virou de ponta-cabeça. Quando a gente chegou ainda era um fim de mundo desgraçado, com a maleita atacando até macaco. Meu pai mesmo adoeceu umas tantas vezes; eu e meus irmãos, do mesmo jeito. A gente era em cinco e hoje só sobrou eu e a Tiana. Teve o Derico, que foi assassinado e outros dois, já até esqueci do nome deles, que foram trabalhar na construção de Brasília e nunca mais deram notícia.
– Se eles matavam muita gente aqui? Matavam sim, morria muita gente, de todo tipo, matada ou morrida. Não passava um mês que não deixassem de existir uns dois ou três. Briga por causa de terra, quase sempre. Depois acabou. Acho que veio este povo gaúcho, comprou quase tudo que tinha pra vender por aqui e aí acabou o motivo para andarem brigando e matando tanto. Quer dizer, ainda teve uns pipocos, principalmente vitimando uns aí que não queriam vender sua terra. Isso é o que o povo diz, eu não sustento. Povo daqui é muito falador, sabe? Mas agora tudo aqui é na base do arame farpado, ou dessas cercas modernas que dão até choque na gente.
– A maleita? Graças a Deus não tem mais. Vieram os guardas da campanha e devagarzinho foram dando um jeito nela. Tinha outras doenças também, aquela do papo era uma. O que tinha de papudo aqui o senhor nem imagina, hoje não tem mais. Não sei bem por que. Eles falam que botaram um remédio no sal que a gente come, mas não acredito muito. Acho que é coisa da mudança do tempo, também. O senhor veja quanta coisa que tinha antigamente e hoje não tem mais. E o contrário também. Só a pouca-vergonha é que aumentou.
– Veja o senhor… Acho que tudo começou quando fizeram Brasília, tanto tempo atrás. Não tinha nada aqui, se um cristão adoecia e não se arranjava com umas ervas do mato, estava perdido. Em último caso levavam a pessoa para a Formosa dos Couros, mas mesmo lá era pela hora da morte. Poucos escapavam. Essa Brasília mexeu com tudo aqui. Eu mesmo cheguei a ir pra lá, mas não dei conta daquela montoeira de gente, um sistema do diabo, tão diferente das coisas que a gente sempre teve por aqui. Assim como eu, foram muitos, mas a maioria por lá ficou ou caiu no mundo. Eu voltei, porque o meu negócio sempre foi cuidar de um gadinho e além do mais tinha uma mulherzinha me esperando aqui, que Deus a tenha, já se foi. Acho que tenho a mão boa para isso de mexer com vacas e bezerros. Aí trabalhei para o dono dessas terras, pai desse homem que vai deixando eu ficar por aqui, não sei até quando. Vida de pobre, meu amigo, não tem muita coisa pra contar.
– Ah, sim, teve essa estrada também. O senhor nem imagina como era antes. Para ir na Formosa era um dia inteiro, em umas estradas amaldiçoadas de ruins. E a gente tinha que ir não só quando ficava doente. Para pegar um dinheirinho no banco, ir no Funrural, pedir aposentadoria no INPS, comprar um remédio de farmácia, remédio para formiga e carrapato do gado – tudo era lá. E a gente sempre aproveitava para fazer uma farra também, eu mesmo fiz das minhas, não nego, entornado uns bons litros de Cinquenta e Um. Mas isso passou, para mim pelo menos, para esta moçada nova que anda por aí, continua. E nem falei das casas de raparigas que tinha, nem sei se ainda tem, parece que nem isso se usa mais. Eu, pelo menos, não uso mais, nem rapariga nem cachaça, hehehe.
– Agora, se teve uma coisa que demudou total por aqui foi o movimento de gente. Nossa! Antigamente a gente passava mês e até ano sem ver uma cara nova. Era só os parentes, os vizinhos e olhe lá. Depois da estrada – e da chegada dos gaúchos – um tanto de pessoas esquisitas andam por aqui. Teve até um, de nome Quinzinho, que conheci desde menino, que tinha saído daqui homem, foi para São Paulo e quando voltou tinha virado mulher e mudou até de nome, passou a chamar Mila, ou qualquer coisa assim. E este povo trazia novidades, as maiores que tinha no mundo, coisas que eu não sabia que existiam: primeiro a televisão, depois gravador de pilha, radio que fala estrangeiro, até máquina que faz café. Agora até este aparelho novo que apareceu, dizem que é telefone, mas que até tira retrato.
– O povo antigo? Bom eu não conheci muito de perto, porque fui criado fora uma parte da vida, lá pelas bandas do Paracatu, como eu já disse. Mas meu pai falava muito neles, as histórias dessa gente, de seu avô e seus tios, que eram muitos e sempre viveram nessas bandas. Ele me disse que era um povo diferente, que não eram como os de hoje, eram mais esquentados. Sempre pobres, até mais do que hoje, viviam de criar umas vaquinhas e plantar alguma roça vasqueira por aí. Mas na entressafra apreciavam uma confusão mais grossa. Meu pai dizia que esses aí, gente de outros tempos, até tinham o costume de se alistar por conta de uns coronéis fazendeirões e lutavam por eles, chegando até na beira do São Francisco, bem armados que nem soldados a serviço deles. Mas isso é coisa pra lá de antiga, não tem mais. Nem sei onde foram parar esses valentões e os tais coronéis.
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Pronto! Seu Eufrásio não podia imaginar o presente que me dava. Primeiro porque eu também gostava de histórias assim, sempre gostei delas. Mas o mais importante nem era isso: aquilo me abria uma porta que finalmente ia trazer a Melânia, a historiadora, para perto de mim, fazendo com que eu ganhasse os beijinhos com os quais há tanto tempo sonhava.
Eu queria mais era correr para Brasília e contar tudo para ela. E fiz isso logo que pude e meu plano deu certo. Ela ficou curiosa, doida para conhecer o velho Eufrásio também. Mas isso não foi possível de imediato, pois neste tempo eu tinha arranjado trabalho do outro lado dos Goiás. E se passaram alguns meses.
Um dia, eu fui abastecer meu carro e em um posto de gasolina perto de minha casa, na Ceilândia, quem é que eu vejo: Zé Beto, o urucuiano, agora transformado em frentista. Ele não me reconheceu de imediato, mas logo que viu quem eu era e me colocou a par das novidades da terra. O velho Eufrásio tinha morrido (tive pena, por Melânia), a velha Sebastiana fora recolhida a um asilo em Formosa, o irmão Antônio tinha se mudado para o Triângulo Mineiro, para fazer não se sabia bem o quê, pois havia tempo que não chegavam mais notícias dele. O outro irmão, Abadio, andava por aí, não o via muito.
Mas que ele, José Adalberto estava bem, dando graças a Deus por ter conseguido aquele emprego de frentista e não queria mais sair de Brasília. Além disso estava pensando em casar e sua noiva estava grávida. Despedi dele com alegria, afinal de contas parecia feliz, embora eu bem soubesse das dificuldades que certamente estava enfrentando na cidade, morando longe do trabalho e ainda tendo que arcar, dentro em breve, com as obrigações de pai de família.
Lá no fundo da mente imaginei o que mandava em um destino como o dele, descendente de gente bem assentada e sossegada nos fundões do Urucuia e agora proletário, pendurado nas beiradas de uma cidade grande e hostil, sem maiores chances de fazer progresso na vida.
Lembrei-me de o que meu pai teria dito diante de algo assim: esta era a vida dada aos mais pobres, nada mais do que isso.
Melânia ficou aborrecida com a notícia da morte do velho Eufrásio, mas aquilo que eu esperava, ou seja, conquistar as graças dela, finalmente começou a acontecer. A história do velhote trouxe para ela o efeito inesperado de ter encontrado finalmente o fio da meada para seu trabalho de conclusão de curso na Faculdade de História. Ela foi atrás de livros sem conta, revirou bibliotecas e a internet, passou noites em claro e finais de semana sem poder me ver. Mas tudo valeu a pena, mais ainda porque eu próprio acabei beneficiado, tendo ela, finalmente, cedido à minha vontade do carinho dela, com todo respeito, claro.
Foi assim que, procura daqui, procura dali, Melânia achou finalmente um livro que tratava do assunto que lhe interessava tanto. Pelo que entendi era um romance no qual se narravam histórias de uma espécie de guerreiros urucuianos, pobres de dar dó, mas sobretudo muito valentes. – Mas isso é uma história inventada, ponderei. – Que mané inventada, ela retrucou, pois o Eufrásio não contou esta mesma história pra você, que ouviu do pai e do avô? Então isso só pode ter acontecido de verdade. E pelo que você fala neste Urucuia pode acontecer de tudo, até mesmo surgir pessoas como você e eu! Achei que era um elogio, pois em seguida me beijou, de leve, mas beijou. Esta é a Melânia e não é por acaso que gosto dela mesmo assim, ou, talvez, também por causa disso… Assim resolvi me calar, esta moça quando acha que está certa vira um tratorzinho que patrola todo mundo. E me trouxe o relato que vai a seguir, copiado por ela do tal livro, do qual não me lembro o nome, só sei que fala de Sertão e que o autor é um Guimarães, de primeiro nome João, se não me engano.
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<<Pelos modos, pelas roupas, aqueles eram gente do Alto Urucuia. Catrumanos dos gerais. Pobres, mas atravessados de armas, e com cheias cartucheiras.
E enxergamos um homem – no alto da virada – uns homens. Esses estavam com espingardas. Os quantos homens, de estranhoso aspecto, que agitavam manejos para voltarmos de donde estávamos.
Um eu vi, que dava ordens: um roceiro brabo, arrastando as calças e as esporas. Mas os outros, chusmote deles, eram só molambos de miséria, quase que não possuíam o respeito de roupas de vestir. Um, aos menos trapos: nem bem só o esporte de uma tanga esfarrapada, e, em lugar de camisa, a ver a espécie de colete, de couro de jaguacacaca. Eram uns dez a quinze.
Não consegui sentido no que eles ameaçavam, e vi que estavam aperrando as armas. Queriam cobrar portagem? Andavam arrumando alguma jerimbamba? Não convinha avançar assim por cima deles, logo, mas também dar recuada podia ser uma vergonha. Esbarramos, neles quase encostados. Íamos esperar o resto do pessoal. E eles, ali confrontes, não explicavam razão nenhuma. Só um disse: – “Pode não… Pode não…”
Nos tempos antigos, devia de ter sido assim. Gente tão em célebres, conforme eu nunca tinha divulgado nem ouvido dizer, na vida. O das esporas foi se amontar num jumento – esse era o único animal-de-sela que ali tinham. Acho que montou para oferecer à gente maior vulto de respeito; tocava batendo palma de mão na anca do jegue, veio vindo, para primeiro se presenciar.
Olhei para todos. Um tinha a barba muito preta, e aqueles seus olhos permeando. Um, mesmo em dia de horas tão calorosas, ele estava trajado com uma baeta vermelha, comprida, acho que por falta de outra vestimenta prestável. Ver a ver o sacerdote!
“Ih! Essa gente tem piolho e muquiranas…” – o Nélson disse, contrabaixo. Todos estavam com alguma garantia: que eram lazarinas, bocudas baludas, garruchas e bacamartes, escopetas e trabucão – peças de armas de outras idades.
Quase que cada um era escuro de feições, curtidos muito, mas um escuro com sarro ravo, amarelos de tanto comer só polpa de buriti, e fio que estavam bêbados, de beber tanta saeta.
Um, zambo, troncudo, segurava somente um calaboca, mas devia de ser de braço terrível, no manobrar aquele cacete. O quanto feioso, de dar pena, constado chato o formo do nariz, estragada a boca grande demais, em três.
Outro, que tinha uma foice encabada muito comprido, e um porongo pendurado a tiracol por uma embira, cochichava com os restantes uma séria falação: a qual uma espécie de pajelança. Artes vezes ele guinchava, feito o demônio gemedeiro. Esse, que por nome de Constantino acudia.
Todos eles, com seus saquinhos chumbeiros e surrões, e polvorinhos de corno, e armamento tão desgraçado, mesmo assim não tomavam bastante receio de nossos rifles. Para o nosso juízo, eles eram doidos. Como é que, desvalimento de gente assim, podiam escolher ofício de salteador?
Ah, mas não eram. Que o que acontecia era de serem só esses homens reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão, os catrumanos daquelas brenhas.
Que viviam tapados de Deus, assim nos ocos. Nem não saíam dos solapos, segundo refleti, dando cria feito bichos, em socavas. Mas por ali deviam de ter suas casas e suas mulheres, seus meninos pequenos. Cafuas levantadas nas burguéias, em dobras de serra ou no chão das baixadas, beira de brejo; às vezes formando mesmo arruados. Aí plantavam suas rocinhas, às vezes não tinham gordura nem sal.
Tanteei pena deles, grande pena. Como era que podiam parecer homens de exata valentia? Eles mesmos faziam preparo da pólvora de que tinham uso, ralado salitre das lapas, manipulando em panelas. Que era uma pólvora preta, fedorenta, que estrondava com espalhafato, enchendo os lugares de fumaceira. E às vezes essa pólvora bruta fazia as armas rebentarem, queimando e matando o atirador. Como era que eles podiam brigar? Conforme podiam viver? E enfim os companheiros apontaram em vinda, e subiram a primeira ladeira, aquele tropeado de guerreiros, em tão grande número numeroso.
Quase eu queria me rir, do susto então dos catrumanos. Mas foi não, porque eles não se aluíram do ponto onde estavam, só que olhavam para o chão, calados, acho que porque essa é a forma de declararem seus espantos. O do jegue, Teofrásio, que era quem capitaneava, deu alguma intimação para o da foice, esse que o Dos-Anjos se chamava, era o falador; e que foi quem veio adiante, saudar e render explicação: – “Ossenhor uturje, mestre, a gente vinhemos, no graminhá… Ossenhor uturje…”
Ossos e queixos; e aquela voz que o homem guardava nos baixos peitos, era tôo que nem de se responder em ladainha dos santos, encomendação de mortos, responsório. – “Ossenhor uturje, mestre… Não temos costume… Não temos costume… Que estamos resguardando essas estradas… De não vir ninguém daquela banda: povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega em todos…>>
***
Catrumanos, catrumanos… Palavra feia esta! Um dito assim só pode existir para menosprezar pobres coitados como aqueles, de ontem, de hoje e de sempre. Além de pobres, mais ainda feios. Aquelas conversas estranhas… quem sabe Melânia me ajudaria a entender o que queriam dizer. Nisso aí eu tinha que concordar com o Guimarães, gente pobre e esquisita é o que mais existe neste Urucuia, ainda hoje. Escapam umas mocinhas aqui e ali. Melânia, por exemplo, que nasceu em Arinos, é bem um caso desses.
Mas que história mais estranha a Melânia foi descobrir. Aliás, esperta e inteligente como ela é difícil de existir igual. Por essas e por outras que me perco por esta mulher – graças a Deus!
Mas, falando sério. Não sei de quando é esta história. De cem anos atrás? Ou mais do que isso? Uma coisa é certa, parece que as coisas pouco mudaram aqui neste vale de lágrimas e miséria. Ou melhor, se mudou foi para pior. Se naquele tempo não se tinha pra onde ir, hoje tem: para Brasília, morar em favela e trabalhar sem garantia nenhuma. Isso é melhorar de vida? Meu primo que mora em Arinos me falou: pelo menos aqui não tem favela. Respondi para ele: é claro, aqui se exporta a favela para Brasília. Ele só ficou me olhando com aquela cara de tacho que lhe é peculiar.
Catrumanos de hoje – e de sempre – essas pessoas que viviam tapados de Deus e de qualquer conforto, nos ocos do Urucuia e do mundo. Homens humanos? Nem tanto, tão pobres, miseráveis mesmo, que eram. Mais ainda do que aqueles outros da história contada pelo tal João Guimarães, esses infelizes de hoje, Zé Beto e seus irmãos Antônio e Abadio, e também aquela irmã desaparecida. Gente perdida e condenada a uma vida nas beiradas de um mundo que não lhes pertencia, em meio a pequenas esperanças, nunca realizadas, e duras frustrações. O sonho de morar em cidade grande: para quê mesmo? Melhor não seria se ficassem ali no sertão? Carecia fazer tal travessia rumo à capital do país? Difícil saber… Vida tão perigosa, besta e sem sentido a desses Catrumanos …
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O enterro da cigarra
(O Camicego – Monteiro Lobato)
Naquela noite, entre as crianças presentes na casa dos avós ninguém parecia conseguir dormir direito. Afinal havia chegado do interior, onde a família tinha raízes, trazida por um portador, uma caixa preta, de madeira envernizada, nem muito grande nem muito pequena, de misterioso conteúdo. Parecia uma daquelas caixetas de goiabada que o avô periodicamente recebia de seus parentes da terra. Mas era muito grande para tanto. Era pequena, todavia, para conter, por exemplo, um móvel ou uma ferramenta, além de leve demais para conter queijos, frutas ou mesmo livros.
Poderia ter sido um acontecimento normal a chegada de tal objeto, mas como se sabe, as crianças, assim como os animais, possuem uma espécie de sexto sentido e sensibilidade capazes de captar a natureza de acontecimentos que não se anunciam claramente à primeira vista. Além disso, puderam perceber que os adultos da casa, longe de encostarem aquilo em um canto qualquer da casa, ou o abrirem de imediato, colocaram tal objeto sobre a mesa da sala, mantendo-o fechado, em um gesto que pareceu às crianças dotado de severidade e até de inusitado cerimonial. Aquilo foi o bastante para despertar-lhes um misto de alegre curiosidade, misturada com um quase incontido temor. E assim a tal caixa escura, ficou sobre a mesa da sala, pela tarde a fora, entrando pela noite, desencadeando mudanças sensíveis no cenário.
Com efeito, o ambiente da casa, naturalmente ruidoso e alegre pela presença dos netos, de repente se demudou em silencioso respeito por parte dos adultos. E mesmo as conversas, risos e brincadeiras de pique esconde dos pequenos passaram a ser reprimidas com olhares especialmente severos e sinais admoestatórios de contenção, por parte dos avós e das tias. Havia naquilo, realmente, algo de extraordinário, estranho, quase sobrenatural, que longe de intimidar, deixava as crianças excitadas e ansiosas em desvendar a cadeia de segredos que tão de repente havia se instalado na casa. Indagar dos adultos não adiantava, muito, pois pareciam mais preocupados em esconder do que em revelar o que ali se sucedia de fato.
Armou-se, assim, um conciliábulo infantil, longe das vistas dos adultos, com opiniões frenéticas e desencontradas sobre a misteriosa caixa. Uma delas, mais afoita e otimista, augurou que ali talvez estivesse um presente para os netos, mas foi logo contestada pelas demais, mais velhas e mais sabidas, que isso seria impossível, por não ser época de Natal nem de aniversários por ali. Outra delas, uma das mais velhas, por sinal, estimou que ali talvez estivesse um penico ou outro objeto íntimo, a ser utilizado por uma tia velha que residia em um quarto anexo da casa. Mas, neste caso, por que raios não teria sido aberto e extraído da caixa logo que chegou, para continuar exposto como se fosse um obscuro troféu na mesa da sala? Houve também a hipótese de que talvez se tratasse de um instrumento destinado a um dos tios, que era topógrafo de profissão e que no momento estava em trabalho fora da cidade. Mas por que, então, não o teriam colocado no quarto do tio e sim sobre a mesa da sala, ainda mais tratado como se fosse uma peça cerimonial, que além do mais contrastava com o ambiente normalmente alegre e barulhento da casa dos avós? De fato, era tudo mistério ali.
A ideia de que havia algo de circunspecto naquilo tudo trouxe-lhes a impressão que ocorria no cenário a presença indesejada de alguma desgraça ou outro tipo de coisa realmente indesejada. Mas como conciliar isso com as dimensões de um recipiente que não chegava a ter o cumprimento de um guarda-chuva, com apenas dois palmos de largura e que poderia ser confundido facilmente com algo bem mais prosaico, como uma caixeta de goiabada, por exemplo? A ansiedade só aumentou quando as crianças viram que o telefone da casa, recém instalado, somente utilizado para chamadas muito esporádicas, apenas naquele final de tarde já tinha sido acionado, para fazer ou receber chamadas, em pelo menos uma dúzia de ocasiões. Perceberam, além disso que alguma coisa estava sendo combinada, com parentes e amigos, para a manhã do dia seguinte. Mas, o que seria?
Neste momento, o conciliábulo já determinara a um ou dois de seus pares que montassem uma espécie de vigília ao pé do telefone, para apurar informações mais detalhadas sobre o mistério que se instalara na casa. E elas não demoraram a chegar: – Ligaram para o Padre Álvaro agora. – A prima Glorinha falou em levar flores. – Um tal de Lourival disse que a mãe dele não poderia ir porque é muito impressionada com essas coisas. – Agora a vovó está ligando para alguém que vende flores e combinando uma entrega… – Entrega? Para onde? – Xi, não consegui saber, saí de lá correndo para vir contar a vocês, vou voltar para ver se pego mais alguma coisa. – Caramba, mas você é lerda mesmo…
Consultada Amélia, a velha empregada da família, que alternava junto às crianças momentos de cumplicidade e maldade, só fez piorar as coisas: – arredem de mim e deixem de ser curiosos. Não é assunto que interessa a vocês. Não percebem que na vida tem coisas que só os adultos devem saber? E que a criançada tem mais é que conhecer seu lugar? Arre! A chegada, na boca da noite, do tio Tonico, que trabalhava agora em lugar distante muitas horas de viagem, ultimamente ausente na casa, conseguiu adicionar ainda mais notas de mistério àquela novela que já era substancial, mostrando que o que se passava ali era algo muito além dos acontecimentos normais da família.
As coisas mais ainda se complicaram quando viram o avô fazê-lo experimentar camisa e gravata guardadas meticulosamente no guarda roupa do casal, apesar dos protestos do recém-chegado. Isso para não falar do telefone, que saíra de sua mudez habitual e continuava a receber e realizar incontáveis ligações. A habitual roda de rouba-monte ou de sete-e-meio, que geralmente encerrava o dia de interações entre adultos e crianças na época de férias naquela casa foi suspensa, sem maiores explicações. E a esta altura dos acontecimentos os pequenos já tinham percebido que qualquer indagação aos adultos, em busca de esclarecimentos, seria supérflua. O jeito era ir dormir. Mas surgiu um problema. Como eram cinco crianças aproveitando as férias na casa dos avós, não havia quartos nem camas para todas elas, o que fazia com que duas ou três delas dormissem em colchões espalhados no chão da sala de jantar. Tal situação era considerada uma espécie de honraria, destinada aos mais velhos e mais bem comportados, que em tal localização acabavam usufruindo de direitos especiais, por poderem conversar e até armar alguma brincadeira nova, até mais tarde. Mas com a tal caixa escura e misteriosa em cima da mesa, cheirando a crime e desgraça, quem disse que tal prerrogativa era agora disputada? Pelo contrário, o que desejavam todos era se verem longe daquilo. E assim aconteceu, malgrado das tias, que assim tiveram seus aposentos invadidos pela turba completa de sobrinhos, agora totalmente ansiosa e ainda por cima profusamente loquaz.
Na manhã seguinte havia mudanças no ambiente da casa. O avô vestia camisa social com gravata, com o correspondente paletó repousando em uma cadeira. A avó e as tias vestiam roupas de domingo, de se ir à missa. Amélia já tinha separado roupas mais formais para as crianças. A caixa escura, enquanto isso, repousava solenemente na mesa da sala. As crianças, na mesa do café, não pareciam atentas a tais acontecimentos. Maurinho, o mais novo, aparecera com uma cigarra meio morta, meio viva, recolhida no quintal, ainda molhada pela chuva da noite, tremelicando e mexendo as perninhas. A questão principal agora era se ela sobreviveria, ou não, com as apostas convergindo para a sobrevivência. Ninguém parecia mais se lembrar da caixa escura, agora totalmente ignorada na mesa da sala. Tiveram que abreviar a discussão, porque Amélia insistia em que vestissem logo as fatiotas domingueiras.
O avô finalmente interrompeu o solene conclave sobre a vida e a morte da cigarra, para pedir atenção a um comunicado importante. A custo, entre pedidos de silêncio da avó e das tias, disse aos netos que naquela caixa estavam os ossos de sua mãe, enterrada anos antes na cidade natal e que agora eram trazidos até a cidade deles para se juntarem aos restos do marido, que ali morrera anos antes. A palavra ossos provocou algum frisson e mudança na atenção dos pequenos, pouco duradouros, entretanto. Continuando, ainda de forma solene e fora do padrão habitual de sua interação com os netos, o avô avisou que toda a família iria ao cemitério onde uma pequena cerimônia aconteceria, com a presença do padre Álvaro, do filho Antônio que viera de tão longe, além de alguns parentes, para que, finalmente, o casal se reencontrasse. Os pequenos, dos quais apenas a mais velha conhecia, mesmo assim de passagem, tal tipo de logradouro, bem que se na animaram com o inusitado passeio, entendendo finalmente a determinação da avó e de Amélia para que se aprontassem.
Maurinho, o coletor de cigarras moribundas, deu o toque final e necessário àquelas horas de espera ansiosa, embora naquele momento já quase esquecidas. – Ela vai ser enterrada com cobertor? Porque acho que com esta chuva ela vai sentir muito frio. E alegremente foram vestir suas roupas de domingo, já antegozando as delícias de uma manhã tão promissora. Não sem antes o indefectível Maurinho dar o tom para a auspiciosa manhã que se augurava: – Que tal a gente levar esta cigarra para enterrar junto com a bisa?
***
A história de Jacó
(Sete Anos de Pastor Jacó Servira – Luís de Camões)
Jacó, o vaqueiro desta história. Sim, ele, Jacó da Vereda Alta, filho de Isaque e neto de Abrão Borges. Jacó gostava de Raquel, filha de Lesbão, fazendeiro assentado no Buriti Seco. Jacó não era de enxada e foice, tinha orgulho de seu trato com o gado bravo, peão corajoso, segundo todos que o conheciam, com fama assentada da Vereda Alta ao Buriti Seco e mais além.
Jacó, do alto de seus vinte anos, com efeito, não era homem de plantar milho e feijão, isso não, mas sim de laço e ferrão. Mas deu de frequentar com assiduidade os mutirões de bateção de pasto e mais o que houvesse na fazenda de Lesbão. Foi lá uma vez, duas e três, depois outras tantas. Agora, o ano já virado pela metade, aquela pastaria, de se perder de vista, precisando ser limpa antes da chuva começar, para receber o gado magro, vindo do alto sertão, que ia ganhar ali arrobas sem conta. E foi assim que ele um dia se deu conta que existia Raquel.
Raquel, aquela dos olhos verdes, pele morena, cabelo na cintura e cinturinha delgada. Raquel, que mal viu Jacó lhe dirigiu um olhar que talvez fosse o seu costumeiro, mas para ele foi como se viesse dos anjos.
– Bom dia como está o senhor? Aceita um café, umas broinhas?
Isso foi da primeira vez. Em seguida já estavam quase íntimos, o moço já vencido em sua timidez com o jeito alegre e dado da outra. As conversas já tomavam rumo mais aberto, aqui e ali até falando de flores, de guabiroba, bacupari e outras frutas da estação e de intrigas da vila, não mais do invariável assunto da falta de chuva, que dominava toda a conversa por ali, na ocasião e quase sempre. E o vaqueirinho exultava.
Nem tudo eram flores e frutas do mato, entretanto. Ia tudo muito bem entre ele e a moça, mas eis que um dia quase tudo se perde. Era hora do almoço e havia suã de porco com arroz. Jacó acocorado segurava um prato cheio até as bordas, ele se pelava por aquilo. E ali na casa de Seu Elesbão não tinha miséria, é o que todos reconheciam e agradeciam. Chegava ao ponto de até de se oferecer um copinho de boa caninha, no final do eito, para quem tivesse o costume, claro. Mas não passava disso. A garrafão logo desaparecia após uma primeira e única rodada entre os trabalhadores.
Pois bem, Jacó num canto da varanda, prato equilibrado nas coxas, assentado nos calcanhares, se deliciando com a comida, quando a moça chegou, de surpresa, e o saudou, com a aberta alegria de sempre. Ele, com boca e dedos lambuzados de gordura e molho tingido pelo urucum – quem já comeu suã sabe que é preciso enfrenta-la assim com intimidade – se sentiu pego em má situação, e tentou disfarçar escondendo o prato de folha atrás de si. Porém, cuidando de não desperdiçar o belo pedaço de osso e carne que ainda tinha nas mãos, visando voltar a atacá-lo quando o anjo completasse sua passagem por ali. Não foi este, entretanto, o entendimento de Nero, um danado cão mestiço de Fila com sei-lá-o-quê, malandro que nem ele mesmo. Aquele diabo ia passando por ali justo naquele momento e não teve dúvidas: abocanhou o belo pedaço de suã, com muita carne ainda não comida e chupada, e o levou consigo, num bote só. Não é que o dedo de Jacó estava enfiado e meio preso no buraco do osso e o puxão dado pelo cão só fez arrastar suã, dedo e dono do dedo pelo pátio a fora?
Jacó queria morrer de vergonha, mas Raquel lhe foi generosa, lhe estendeu a mão para que levantasse, perguntou se ele estava bem e chamou logo uma mulher da cozinha para que limpasse a lambança. Linda e querida como sempre, ainda emendou, apesar de rir à solta do acontecido:
– Não se preocupe, moço, isso acontece. Até meu pai já sofreu coisa parecida, com este mesmo Nero, que derrubou ele da cadeira…
Tudo está bem quando acaba bem – e a vida seguiu. Não faltou em breve oportunidade para ele estar de volta. Era festa da Santa Cruz e no Buriti Seco, como de costume, havia missa e festa. Havia muita gente por lá e ele custou a ver o objeto de seus cuidados. Estavam ela e sua irmã mais velha, Lia, que era coxa de uma perna, a comandar um batalhão de mulheres e moleques na cozinha, pois ali naquele dia comeriam mais de cem. O vaqueiro postou-se próximo à porta da cozinha, mas o máximo que recebeu da amada foi um bom dia, mesmo assim de passagem. Depois ela foi acolitar o senhor vigário.
Na despedida, algo mais animador, embora muito breve para ao desejo dele: – Volte outro dia, hoje estive tão ocupada, nem pude lhe dar atenção.
Para quê mais do que aquilo, pensou o moço, de modo a disfarçar o que em outra ocasião poderia ser apenas frustração. Mas para ele já estava de bom tamanho.
A outra ocasião não tardou. Passado um mês e meio ou dois chegou a notícia que um doutor veterinário vinha da capital para dar uma palestra à vaqueirada da zona, eis que ele muito entendia de doenças de bezerros. O moço era dali mesmo, filho de um Azevedo da beira do rio, rico que nem ele só. Ninguém fazia muita fé nele, que tinha fama de mandrião, mas ao mesmo tempo não era o caso de perder a oportunidade de se aproveitar a mesa farta de Seu Lesbão, que em ocasiões assim, não deixava por menos, às vezes até mandava comprar na Vila uma ou duas grades de cerveja.
Agora, sim, pensou Jacó – e rumou para lá. Realmente o dia estava pra peixe. Raquel, junto com a irmã, cuidava das quitandas, mas como havia um exército de mulheres na cozinha e nem tinha padre para ela se ocupar, sobrou tempo para longas conversas entre ela e Jacó, que começaram com apreciações sobre as chuvas que não vinham, passaram pelas floradas de pau de pombo, que naquele ano estavam soberbas, desaguando no enxame de moças emprenhadas e sem pai conhecido por todo lado ali na região.
Em certo momento, Raquel teve que ir à cozinha, para ver como andavam as coisas. Voltou de lá apenas alguns minutos depois, trazendo a agora a irmã coxa a reboque.
– Minha mana querida, Jacó, que cuidou de mim quando eu era criancinha e quando minha mãe se foi. E olha que eu quase morria de coqueluche e febre malina. Se não fosse por ela…
Lia tinha vergonha de todo jeito e pouco ficou com eles, numa conversa que rendeu nadinha. Pediu logo licença e voltou para a cozinha. Mas Raquel parece que tinha encontrado um novo pé de conversa:
– Não repare o modo dela, é muito acanhada. Com essa perninha seca, coitada, acha que ninguém liga pra ela. Você ainda vai conhecer ela melhor, vai gostar muito dela…
Falou mais ainda das qualidades da irmã por longos minutos, de sua mão boa como doceira e quitandeira; do auxilio que ela prestava aos filhos dos empregados, ensinando-os a ler e escrever; dos ouvidos e ombros que ela emprestava às mulheres dos pões da fazenda em suas queixas contra maridos e sogras. E ia assim por um rosário interminável. Jacó, contrariado, pois o que mais queria era voltar aos bons assuntos, à parolagem sem compromisso que vinham levando com apuro até a chegada da manquitola à conversa. Raquel pediu licença para voltar à cozinha, mas emendou:
– Você precisa conhecer ela…
A palestra do moço doutor já estava no fim. Raquel sumiu pelo casarão a dentro, até que Lia apareceu a Jacó, com um bule e uma bandeijinha na mão, não sabendo muito o que dizer:
– Um cafezinho? As broinhas foi eu mesma que fiz e assei…
Jacó era educado, aceitou. Mas não passou disso. A moça tinha pouco repertório, não era boa de prosa, como a irmã. E Jacó, pra falar a verdade, não tinha vontade nenhuma de esticar o assunto.
– Então, você me desculpe, mas tenho que pegar a estrada, antes que chova por aí.
A bem da verdade, não havia uma nuvem no céu.
Mas o moço ficou mordido atrás da orelha. – Qual é, minha Santa?
Mas não fosse por isso. Quem ali estava era Jacó, dos Borges da Vereda Alta, vaqueiro de profissão, filho de Isaque e neto de Abrão, que não era de enxada nem de foice, mas de coragens. Seu negócio era o trato com o gado bravo, sua força todos conheciam, ali e mais além. Não ia, assim, se desanimar por pouca coisa. Não seria uma dúvida por causa de mulher que o derrubaria. Resolver mandar carta, assim escrita:
– Senhorita eu queria muito ti falar umas coisa, de pessoa a outra pessoa, mas não vi oportunidade ainda. Voçê fica sabendo que estou intereçado é na sua pessoa, não em nenhuma irmã, por milhor que seja, nem que não fosse capenga. E espero resposta. Viu?
Tratou logo de arranjar um moleque para levar o bilhete, por uns poucos trocados. Deu a ele variadas recomendações, temendo, principalmente, alguma interceptação de Lesbão, por quem tinha grande temor. Mas esqueceu do principal: dar ao moleque indicações mais precisas sobre a destinatária da mensagem.
E lá se foi o mensageiro improvisado, rápido como um corisco, cumprindo rigorosamente as instruções de quem o contratou. Perdeu um pouco de tempo na chegada, por Lesbão estar por ali, em conversa com uns visitantes, bem na porta da casa, o que obrigou o moleque a esperar algum tempo junto a uma moita de bananeira. Liberada a entrada, não foi difícil encontrar a destinatária, que peneirava um polvilho numa coberta do quintal. Entregou a ela o bilhete, usando exatamente as palavras da encomenda: – Seu Jacó mandou trazer.
Saiu dali correndo, apenas a tempo de perceber, com malícia, que Seu Jacó devia estar doido de querer namoro com uma moça coxa como aquela, que andava como se tropeçasse a cada passo. Mas ele não tinha nada com isso. Estava ali só para ganhar um dinheirinho mesmo.
E Lia, sobressaltada, leu o bilhete e o guardou no decote da blusa. Mais tarde contou para o pai, com quem ela tinha grande proximidade, sendo ele o salvador dela em muitas ocasiões que recebera troças, não só dos meninos da escola e mesmo da família, pela sua condição de manquitola.
Lesbão era de boa paz e, viúvo como era, tinha imenso amor pelas filhas, especialmente por Lia, que não era bonita como a outra e ainda por cima tinha aquele problema nas pernas. Judiciosamente, mas sem deixar de lado seu carinho extremoso de pai, falou:
– Uai, minha filha. É caso de se pensar, conheço esses Borges da Vereda Alta não é de hoje. É tudo gente boa, honesta, que cumpre os prometidos. Dou apoio. Vamo cuidar disso, então!
Jacó esperou resposta uma semana, duas, um mês e mais. Já pelo décimo quinto dia começou a receber cestinhas de quitandas e docinhos, primeiro de forma totalmente anônima, depois com confeitos em forma de “L”, depois com o nome inteiro.
Até que um dia Lesbão mandou recado pela comadre Dolores que ele fosse ao Buriti Seco. E a mensageira acrescentou: – Jacozinho, bote sua melhor roupa porque você tem que se preparar para entrar para uma família de respeito.
Era o sétimo mês desde que ele começara a desenrolar seus planos de conquista de Raquel. E agora vinha aquilo… Ele não merecia. Só pensou assim: – sete meses é pouco. Eu daria sete anos, e muito mais do que isso para ficar com ela.
Mas como tudo passa, mas também o que está ruim pode ficar pior, um dia ele ficou sabendo que Raquel tinha ficado noiva do Azevedinho, o moço doutor veterinário.
***
É aí que entra na história o Doutor Luís de Camargos, filho da terra, advogado sem diploma e professor de português no ginásio da Vila, amigo da família Borges, que ao saber da triste história de Jacó, compôs para o infeliz vaqueiro o seguinte poema:
Em muito mutirão Jacó servia
A Elesbão, pai de Raquel, moça tão bela,
Mas não era pelo pai, era por ela
E dela era a mão que pretendia.
Passavam os dias e ele em agonia
Ter ela bem perto, o que mais pretenderia?
Porém Raquel, com visível felonia
Impunha ao pobre moço sua irmã Lia.
Vendo, porém, Jacó que com trapaça
Lhe era assim negado o que queria
Abrindo-lhe no peito tal ferida
Avisa a toda gente, em plena praça
Não me importa, mais ainda eu serviria
Pois por tanto amor eu daria até a vida
***
Continuação
(João Porém, o Criador de Perus (Tutameia) – Guimarães Rosa)
Não, Lindalice era a outra. Eu sou Gerismina.
Foi assim: João vivia para seus perus. Mangavam dele os amigos. dizendo que havia, nas redondezas, uma moça loura que o olhava e queria conhecer, Lindalice. Esta, de verdade, não existia. Mas João, dito Porém, que só sabia de perus, milho e terreiro, transtornava-se. Queria porque queria. Os amigos, maldosos, não lhe diziam a verdade. Pelo contrário, traziam recados, propunham respostas, ofereciam para escrever cartas de amor. João deu de gastar, perfumes, terno de brim, botinas – coisas que nunca tinha usado na vida. E queria tertúlias com a amada que não via – e nem podia ver.
Os amigos, apoiavam. Marcaram encontro, para dizer, à última hora, que Lindalice, adoecida, tivera que viajar para a cidade, atrás de doutor. João penava, queria saber quando, e se, e onde. Descuidava da criação. Uma ninhada inteira de peruzinhos, solta no terreiro em altas horas, por puro descuido do dono, sumira, devorada por algum bicho da noite. O milho para as aves, antes negociado escrupulosamente com vizinhos, já mal se via nos improvisados cochos espalhados pelo terreiro. Os perus davam de invadir os quintais vizinhos, onde se fartavam das abóboras ainda não colhidas ou maduradas. João Porém, na porta da venda provava do restilo, até então desconhecido. E não poucas vezes foi visto cambalear pelas ruas da corrutela.
Um dia, jogou pedras na janela da casa das professoras, julgando sua amada ali escondida. O cabo meteu-o no xadrez, o sujo banheiro da delegacia do vilarejo. Dalí, humilhado, foi solto ao romper do dia. Na rua, chusma de garotos gritava “João Porém, João Pooorém…” Ele, atormentado, ainda pálido e amarrotado pela carraspana, mais zarolho que nunca, corria atrás. E o escárnio se recolhia, para reaparecer adiante, atrás do muro da Igreja, de dentro das salas da Escola.
Foi aí que vieram os amigos me buscar. Que eu fosse e passasse por Lidalice, mesmo Gerismina sendo. Que Porém não me conhecia e tinha, da outra, apenas imaginada, a visão de loura cabeleira, em tranças composta. Eu, bem sarará e de bexigas, além do mais ganhando a vida do jeito que todo mundo no arraial sabia, nunca que ia enganar ninguém, mesmo um peruzeiro caolho que nem João. E eles insistiam, propondo até paga.
Então fui. Era de tardinha e João, sentado num toco à porta de casa, olhava para o chão. Em volta, a peruzada ciscava e gorgolejava. Mesmo dentro da cafua era uma barafunda de penas e titica. Parei ali e fiquei olhando o pobre. Ele de repente me viu, acho que contra o sol. A cara triste e amarela, de repente se iluminou. Ficou de pé e me olhava, olhava. No princípio, achei que não era pra mim, mas logo percebi que era um olho apenas. O outro, me fitava sério, úmido, amoroso, como o de um cachorrinho aos pés do dono. João me estendeu a mão, grossa, suada, fria. Puxou-me para dentro de casa. Fez café, ofereceu cadeira. Pediu pra fumar, me ofereceu o pito. Quase não falava, só olhava com um olho, o outro corria solto e conferia o mundo em volta. João, num fio de voz, disse: “a gente ficamos aqui, de romances…”. Um peru, perto, fez seu glu-glu e João nem acabou o que ia dizendo. Já escurecia. Minha mão já suava junto com a dele. Encostou a cabeça no meu ombro e uma peninha de peru me fez cócegas no nariz. Fiz força para não espirrar. Gostava daquilo. Assim vimos o dia nascer…
Hoje, ele se foi. Finou. Deu de inchar, ficou mais amarelo que o costume. O doutor, na cidade, dizem, tirou dez litros de água da barriga dele. Voltou para ser enterrado, numa rede encharcada. A saudade aperta, mas não chega a maltratar de verdade quem tem ofício de herança. João Porém quis que eu continuasse sua lida, e eu me entendo com ele e com todos os estes perus, aqui em roda, precisando de mim.
***
Tiros que o senhor ouviu
(Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa)
Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras. Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho.
Não foi nada não, lhe asseguro. Os pipocos de agora mesmo não foram de briga de homem. É coisa minha mesmo, gosto de praticar a pontaria, quase todo dia faço isso. Agora, com o preço da munição pela hora da morte – desculpe a brincadeira – está ficando mais difícil. Mesmo assim não deixo de dar meus tirinhos, sempre num barranco aqui do quintal, para não acertar ninguém – Deus me livre.
Já fiz disso profissão e acho que até criei fama. Mas agora o que me interessa são essas galinhas, essa horta de couves, algum leitão que engordo para o Natal. Armas quase não tenho mais, só uma zinha a Flobé, quase um cisco de carabina, brinquedo de menino perto do que já tive nas mãos, em tempos passados. Mas isso já acabou para mim, total: o senhor fique sabendo. Minha vida agora é outra.
Vi que o senhor arregalou o olho quando eu falei que já vivi disso. Caçador? Espere que eu conto. Reparei no susto seu quando falei de coisas minhas, antigas. Não me ofendi. Longe de mim fazer qualquer julgamento de pessoa tão educada, cidadão de verdade, como é o senhor. Não carece dizer que espero isso das outras pessoas também, e do amigo mesmo, por que não? Mas relevo seu jeito de me olhar, os costumes daqui sempre foram meio brutos mesmo. Gente que vem de fora, ainda mais se for mais fina, como o amigo, não está acostumada, e com razão até estranha. Agora está melhorando, mas tem umas coisas agarradas em demasia na cabeça das pessoas. Ou será na alma delas?
Viver de arma na mão, de tocaia, preferir um fundão de mundo para morar… Não, não era bem de caçadas que eu vivia. Ou um pouco disso, sim, dependendo do bicho em que se pense. E se eu disser para o senhor da natureza desse que eu caçava, sem penas, sem rabo, apoiando-se no chão em dois pés? Bichos falantes, parece que até pensantes, mas sempre a engenhar malfeitos por aí? Bichos-homens, claro, não faço segredo; não se assuste comigo. Mas nunca, nunquinha, bichos de saia, ou em idade de brincar. Mas aqui no fundão, o senhor sabe, se brinca muito pouco tempo na vida…
Profissão de família: avô, tios, primos. De pai, não sei, nem conheci o meu. Minha mãe me disse uma vez que ele foi morto por um primo dela, a mando de meu avô. Mas não sei muita coisa sobre isso; e para falar a verdade, prefiro nem saber. O que sei é que serviço desse tipo era demais por aqui, em antes. Esse mundão de terra era tudo de uma família só e assim o povo foi devagarzinho dando um jeito. Uns morriam de tiro, outros de facada, uns tantos de veneno, outros sumiam no mundo, de medo ou mesmo para escapar de coisa pior. Depois se arrumava o resto, papéis em cartório, certidões, registros, alvarás, essas coisas da lei. Da noite para o dia o arame farpado corria solto. Minha família era do ramo, mas não sujava as mãos nisso de papelório e fazimento de cercas na calada da noite; pegava a empreita de fazer limpeza e só. Aqui teve gente que botou fogo num cartório inteiro! Questão de honra para nós não se meter em tal tipo de empreita, dizia meu avô, que Deus o tenha. O resto era com a rabulice dos advogados e outros iguais a eles, na cidade: um povo que nunca soube o que era honra ou compromisso; umas pestes. Assim meu avô falava deles.
Era coisa organizada. Meu avô, por exemplo, é o que diz o povo ainda hoje, só pegava serviço certo, de gente que tinha dinheiro e até conta em banco. Nunca ia atrás de trabalho; os interessados é que vinham até ele. E era gente de longe, muitas vezes. Um fazendeiro, dizem, viajou mais de uma semana só para combinar serviço. Dar conta de bagrinhos era coisa que ele passava para algum filho ou à sobrinhada. Ele, não. Só pegava serviço grosso. Mas mão de obra para o ofício não faltava. E houve caso até de gente que se deu mal por tentar pegar o serviço que era para outro fazer. E assim morreu gente em dobro. Tudo como numa empresa verdadeira, dessas da capital, assim donas de meio mundo. E olha que este meu avô morreu tarde, na cama, cercado de família, mulher oficial, padre e tudo mais. Nas quermesses da igreja sempre oferecia um novilho ou uma leitoa no ponto para o leilão. E até confessava no padre…
Era assim: só iam parar na cadeia os mais sem sorte ou que queriam mudar o jeito certo de se fazer as coisas. Mas o senhor quer saber como começou isso para mim e vou contar. Só sei que um tio meu, certa vez, tinha pegado um servicinho desses, mais um na rotina dele, e adoeceu, não pôde cumprir. Aí, passou pra mim, que na verdade já andava me preparando para quando chegasse minha vez. E com facilidade e nenhum medo ou remorso despachei um sujeito ruim como quê, que devia dinheiro pra todo mundo e ainda tinha mania de se engraçar com a mulher dos outros. O mundo ficou livre desse aí, graças a mim – e este já foi tarde. Entre o contrato que me fizeram e a questão bem resolvida passou menos de uma semana e quando deram com o infeliz, os urubus já tinham feito isso antes, no fundo de uma grota.
Assim foi que criei fama e aos poucos fui vencendo na profissão. Mire e veja: só de garanhão abusado já livrei o mundo de uns cinco ou seis; de genros metidos a besta e caçadores de herança, além de outros sujeitos perdulários, outros tantos; assassinos, já perdi a conta; confrontantes renitentes, nem sei quantos, isso é o que mais dá serviço por aqui. Tinha também aqueles que queriam inverter as regras da natureza, me envergonha dizer, aqueles homens que se deitam com outros, como se fossem mulheres. Esses, não perdoava. Mas recusava certas coisas também: mulher que bota chifre em marido, por exemplo, deixava por conta dele mesmo, para criar tento. Mas se a encomenda era para dar um conserto no garanhão, era comigo mesmo. E emendava o tal sujeito para sempre, aliás. Encomenda para moleques não pegava, a não ser de uns danados aí que com quinze ou dezesseis anos já cometem coisas como se tivessem dezoito ou vinte. Um, por exemplo, nessa idade, quis se engraçar com uma mulher honesta, vinte anos mais velha do que ele, esposa de um sitiante lá adiante. Ficou nessa proeza, não foi adiante. Minha lei era a seguinte: se podem votar, também podem pagar pelas estrepolias que fazem. Ora se podem!
Teve uns casos estranhos, diferentes, também; é da profissão. Por exemplo, um que me chamou porque queria desistir de viver e não tinha coragem para fazer isso. Eu fiz para ele. Qual o problema? Acho que é tipo da questão que cabe às pessoas decidir – e só elas mesmas. Eu apenas fiz o que aquele sujeito me pedia, ou melhor, me pagava para fazer no lugar dele. Outro caso foi o daquele homem que pegou doença ruim, parece que o tal do fogo-selvagem. O corpo dele virou uma chaga só. De manhã, quando lhe abanavam o lençol, caía pra mais de meio-quilo de pele solta, em pedaços, no chão. E aquilo fedia a mijo de rato. A mulher o abandonou e os filhos foram levados pelos parentes, por caridade. E o coitado mandou me chamar. Achei que era para dar conta de algum desafeto, porque ele tinha motivos para isso, mas não: era ele mesmo que queria dar um jeito naquilo, acabando com aquela vida que para ele faltava sentido. Mas dessa vez recuei. Eu sabia de coisas que ele fazia quando estava sadio, tomando terra dos outros, emprestando dinheiro e até mesmo mandando matar quem não lhe pagasse. Achei que era de bom tamanho ele penitenciar um pouco de seus pecados, sendo queimado vivo por aquela doença maldita. Aquilo era até bem pouco para um sujeito ruim como ele.
Mas não se assuste comigo. Só lhe quero bem e fico muito aprazido com sua visita, coisa rara por aqui. Já vi que o senhor veio em tarefa de paz, para me conhecer, parece que escreve sobre a vida de pessoas assim como eu, meio diferentes das demais. É isso mesmo? Eu bem-queria ter ganhado minha vida com um trabalho de outro tipo, quem sabe como o seu, mas sou de pouca letra, mal e mal faço uma lista de armazém. Carta, nunca escrevi – e nem recebi também. Leio alguma coisa, principalmente esses almanaques de farmácia, que trazem luz para um mundo de ignorância como este aqui em que vivo. Quem bem me ilustra e esclarece é meu compadre e amigo Clemente, que lê muito e deve ter para mais de vinte livros em casa. Ele sempre me diz que eu devia me esforçar para aprender cada dia mais coisas, que a gente abre a cabeça assim. Mas aquelas letras todas juntas, uma página depois de outra e mais outra, isso costuma me dar uma dor de cabeça dos diabos e até me embaralha a vista, a ponto de me tontear. Quando vou em visita ao meu compadre ele sempre lê umas coisas nos jornais para mim. Só outro dia descobri que na verdade é coisa já acontecida, pois se os jornais saem todo dia nas cidades, aqui eles só chegam lá uma vez ou outra – o senhor sabe: lugar mais sem eira nem beira, este. Ele gosta de ler umas coisas mais espirituais, também. Eu escuto com atenção, embora nem tudo seja de meu entendimento completo. Meu compadre conhece minha história. Ele sabe que agora me retirei de tudo, cuido só aqui deste sitiozinho. Ele sempre vem com uma conversa que não existe pecado que não possa ser perdoado, coisa que acho que ele tira das leituras dele, de um tal de Cardeque. Ele insiste que preciso pedir perdão, ou, pelo menos, reconhecer o que fiz de errado.
Mas não consigo pensar, de fato, que eu tenha sido na vida um assassino criminoso, a cometer injustiças. Nunca tirei a vida de gente de bem, esses que trabalham de sol a sol, são bons pais de família, respeitam a mulher dos outros e tudo mais. Não! Isso nunca fiz e nem faço! Pelo contrário, acho que livrei o mundo de um tanto de safados, desonestos, falsos, invertidos. Acho que deviam era me agradecer, como alguém que tira o mal do mundo, mudando ele para melhor, deixando mais limpo e mais fácil de se respirar. Do que devo pedir perdão, então? Para mim, de nada, nadinha. Aí a minha conversa com Clemente empaca. Aprecio e respeito demais este meu compadre, mas acho que seu pensamento tem pouca escora. Além do mais, já fiz minha parte, mudando de vida como eu mudei. E já faz tempo.
O que me importa agora são esses leitõezinhos, esses pés de couve, essa rocinha de feijão andu – apenas disso me ocupo. Nada de contratos, nada de carabinas, de tocaias, de arrastar fardos para as grotas. Com a flobezinha apenas treino minha pontaria, pois, afinal de contas, não alcanço se ainda posso precisar dela. Não como antigamente, para ganhar a vida, mas agora só para me defender. E para caçar uma paca, de vez em quando. Sei que tem gente que me quer ver debaixo da terra, este povinho daqui é por demais vingativo, tem a alma meio suja. Para mim, meu senhor e amigo: a gente está no mundo como numa travessia. Não pode ficar parado vendo as coisas ruins acontecerem sem que se faça nada. E que me desculpe aquele meu compadre lá: pecado, para mim, é coisa bem diferente, não pode ser o que alguém faz com boa intenção. E sei que existe de verdade no mundo é a gente humana mesmo. Uns bons, outros ruins de amargar. Cada um fazendo sua parte na travessia. O resto é nada; ou o destino da gente.
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Os trabalhos de Éricles
(Os Doze Trabalhos de Hércules – Mitologia Grega)
Este nome esquisito é o meu. Ouvi dizer que foi um erro do escrevente no cartório, ignorante que só ele. Meu pai queria, na verdade, que eu me chamasse Hércules, mas como ele estava viajando quando fui registrado, ficou por isso mesmo. E a maioria me chama assim, por este nome meio fora de propósito. Pelo menos, aí não cabem apelidos. Um padre estrangeiro que reza missas aqui de vez em quando me tranquilizou, explicando que em sua terra tal nome existe de verdade e se escreve assim mesmo. Menos mal.
Mas foi por ele mesmo, este meu nome estranho, que custei a entender, mudado que foi para Eurico, que ouvi no autofalante da rodoviária, para comparecer a um ponto de encontro, porque lá uma pessoa me esperava. Só podia ser ela, Eurídice, minha cunhada, sempre atrasada, ainda mais em um momento como este, de alto significado em nossas vidas. E lá estava ela, linda como sempre, mas com um olhar de preocupação. De cara vi que tinha algo errado: ela não carregava mala ou mochila, mas apenas uma bolsinha a tiracolo, ao contrário do que tínhamos combinado. Aquilo não era bagagem para a viagem pretendida.
Eurídice é mulher de meu irmão mais velho. Aliás, meu único irmão, e só por parte de pai. Aristeu é o nome dele, somos uma família que carrega nomes esquisitos, como os primos Menelau, Heráclito e Esperidião. Meu pai tinha o nome de Anfitrião – isso mesmo, acreditem – embora não fosse muito de ser gentil com as pessoas e ter pouca simpatia por qualquer tipo de visita. Pior era o nome de meu avô, que se chamava Zeus… Vejo que estou exagerando nos detalhes. Melhor retomar o caminho mais reto.
Meu pai ficou viúvo em seu primeiro casamento, tendo com sua mulher Espéria só um filho, esse Aristeu de quem falei. Daí, casou-se de novo, desta vez com Ismênia, que é minha mãe. Fomos criados juntos, Aristeu e eu, ele meia dúzia de anos mais velho do que eu. Para dizer a verdade, não chego a me lembrar de um só momento que tenhamos convivido com harmonia na nossa infância e juventude. Aristeu frequentemente me batia, tomava meus brinquedos e ainda tinha o costume de me denunciar a nosso pai por malfeitos meus, inventados por ele com frequência. Minha mãe bem que tentava me defender, mas quem disse que aquele velho turrão, o terrível e mal nomeado Anfitrião, acreditava em mim ou nela? Meu pai faleceu faz muitos anos. Ismena sobreviveu a ele e vive comigo e meu irmão em nosso sítio, onde plantamos hortaliças, tocamos uma rocinha de milho, criamos umas vaquinhas e uns porquinhos. Aristeu pouco se importa com minha mãe, que afinal não é dele também, ao contrário de mim, que tenho por ela um grande amor, procurando confortar e proteger esta pobre criatura, sempre.
Voltando a falar desta Eurídice, Aristeu a conheceu numa feira de gado ou algo parecido, e veio a se casar com ela depois de poucos meses de namoro. Mas mesmo casado com uma criatura doce, continuou sendo o mesmo Aristeu de sempre: turrão, grosseiro, desconfiado, ruim de conversa como ele só. Puxou em tudo o velho Anfitrião. Logo vi que Eurídice, tão formosa e delicada, tinha pouco a ver com ele, numa relação quase incompatível, para dizer pouco. Não sei realmente como ela foi cair em tal armadilha. Aristeu se considera o verdadeiro dono da propriedade em que vivemos. Ele tem certa razão, porque quando o velho Anfitrião se casou com sua mãe Espéria, o sítio pertencia à família dela, de longa data. E meu pai nunca fez questão de deixar isso acertado em qualquer cartório. De modo que sou tratado aqui não como parte da família, mas como um empregado comum. Aliás, devo dizer, há outros serviçais aqui que são mais bem tratados e respeitados do que eu.
Nas tarefas do sítio, sempre fico com a pior parte. As bicheiras do gado, por exemplo, quem cura sou eu. Buscar a Estrela, aquela mula desgraçada que morde e dá coices, além de se esconder nas grotas e capoeiras, de madrugada ou debaixo de chuva, também sempre fica a meu encargo. Uma cobra aparece dentro do curral ou no paiol, é a mim que recorrem. A roda d’água mostra algum enguiço – chamem o Éricles, é o que sabem dizer. E ainda me fazem ficar de tocaia quando por acaso um bando de ciganos aparece por aqui, e para isso não me cedem nem mesmo a cartucheira de meu irmão, mas apenas uma garrucha velha e enferrujada, que nem sei se atira de verdade. O cachorro do Juca, um outro agregado, ficou louco, babando feito uma vaca e querendo morder todo mundo. Quem foi chamado para dar conta dele? Eu, claro. Com uma boa paulada mandei o dito cujo para o quinto dos infernos – o que mais poderia fazer?
Outro dia me incumbiram de limpar sozinho o chiqueiro dos porcos. Aquilo estava sem nenhum cuidado há meses e meses, numa fedentina de dar medo. O Quinzinho, o camarada que cuidava de lá, tinha ido visitar a mãe fora da cidade e nunca mais voltou. Acho que o monte de esterco da porcada já chegava a uns dois palmos. Fui fazendo aquilo quase a vomitar com a catinga aumentada pelo calor do dia, atazanado por mil e uma moscas. Num canto havia uma cascavel bruta, erada, e ela quase me atacou. Se não fosse aquele chocalho acho que nem estaria aqui uma hora dessas. Mas eu que não sou bobo nem nada, dei conta do recado. Desviei o rego d’água, que passava ao lado, para dentro do chiqueirão e deu até gosto de ver aquele bosteiro todo rolar por água abaixo, para finalmente se soverter no corguinho. Aristeu veio conferir o serviço e ao invés de me elogiar, ainda disse que de um troço mal-feito como aquele só eu mesmo seria capaz.
Meu irmão a cada dia inventa serviço novo para mim. Agora, por exemplo, me pôs para vender alfaces e rabanetes na estrada. Passei o dia no sol e na poeira, sem comida e no final ainda tive que ouvir que não me esforço o bastante. Ele não percebe que o povo daqui não come essas coisas de rabanete e verduras, muito menos alface. O pessoal gosta mesmo é de suã de porco no arroz, bem untado de preferência. Ali na estrada não tive nem mesmo uma água fresca para beber… ou melhor, Eurídice ficou com pena de mim e apareceu por lá com uma bilha d’água. E ainda esticou a conversa, dizendo que não concordava com os modos de Aristeu comigo, pois achava que eu não merecia coisas assim. Ganhei meu dia. Ah esta Eurídice! Que pessoa especial, completamente diferente da peste do marido. Ela me trata muito bem, tem simpatia mesmo por mim. E de minha parte é assim também. A gente às vezes pega de conversa, por horas a fio.
A derradeira tarefa que Aristeu me arranjou foi a de vigiar o primo Menelau, que segundo ele, andava roubando coisas aqui no Sítio. Um colar de sua esposa havia desaparecido e ele suspeitava desse primo. Duvidei. Ando muito com Menelau e nunca o vi fazer uma coisa dessas. Como Eurídice agora ficou bem amiga minha, comentei com ela o acontecido, e vi que ela ficou meio transtornada, querendo saber detalhes de tal assunto. Eu só sabia daquilo por alto, pelo tipo de ordem que Aristeu me dera, mas prometi procurar mais informações. Eurídice mais tarde me procurou para fazer revelações estranhas, mas que na verdade combinavam bem com o temperamento de Aristeu. Ela me falou do desaparecimento do colar, mas passados alguns dias, ao guardar umas roupas lavadas do marido, descobriu a peça na gaveta da cômoda onde ele punha as cuecas. Para ela havia maldade nisso, vontade de envolver o primo em alguma intriga. De passagem, me disse ainda que apreciava muito a pessoa de Menelau e que detestava vê-lo ameaçado pelo marido, e que procurava uma solução para protegê-lo. Me contou também que sua vida com Aristeu estava pela hora da morte e isso a fazia sofrer muito, tendo ele recentemente sido violento com ela, sem entrar em detalhes. Sobre Menelau, disse que nem que lhe custasse o próprio casamento, no qual já havia perdido as esperanças, iria tentar salvá-lo das garras de Aristeu. Isso me pegou de surpresa, não por me fazer confirmar a ruindade de meu irmão, que não era dirigida somente a mim, pelo visto, mas também porque nos últimos dias eu e Eurídice tínhamos nos aproximado muito e eu até começava a achar que estava surgindo algo fora do normal entre nós. Alguma coisa bem proibida e que me matava de medo, por causa de Aristeu, mas ao mesmo tempo me enchia o peito e me tirava o fôlego.
É que eu estava sob o impacto de um fato acontecido alguns dias antes, quando depois de uma longa conversa comigo, Eurídice se despediu com um ligeiro beijo no rosto – e isso me deixou transtornado. O coração acelerou e eu nem consegui olhar para ela, muito menos retribuir o gesto. Era uma coisa doida. Por um lado, uma sensação de aleluia, forte demais, como nunca havia sentido. Mas por outro, o medo de que meu irmão viesse para cima de mim insinuando coisas. Nada foi como antes depois disso entre eu e ela, pelo menos de minha parte, esta é a verdade. Eu tinha agora um grande dilema nas mãos, que situação! Dar conta daquele frio na barriga e no descompasso do coração. Ao mesmo tempo avisar Menelau que havia desconfianças de Aristeu com relação a ele. Mas também desejava vê-lo longe de mim e de Eurídice, pois eu suspeitava que houvesse entre os dois alguma coisa especial e diferente, pois as reações de minha cunhada me pareceram suspeitas, mais fortes do que uma simples amizade poderia gerar. Acho que eu queria isso só para mim… E eu, como ficava nessa história? E assim aconselhei o primo que desaparecesse por algum tempo, até que Aristeu mudasse de atitude – se é que ele faria isso. Mas deixei claro que meu irmão parecia disposto a tudo. Em se tratando de um sujeito de maus bofes como ele talvez até cogitasse de mandar matá-lo. Menelau me disse que já era sua intenção se afastar e que faria isso no máximo em um ou dois dias, tendo até conseguido um serviço na fazenda de um tio, que morava a um dia de viagem de nós. E me disse mais: sabia que Aristeu tinha desconfianças dele com relação a Eurídice. Ele já os tinha visto conversando a sós por duas ou três vezes e ficara enciumado com isso, chegando até a dar uns tapas na esposa. Me abismei, pois Eurídice que parecia tão próxima a mim agora não me falara sobre isso, a não ser de maneira vaga. Acho que a esta altura eu já estava era com ciúmes.
O ponto mais delicado de minha conversa com Menelau foi quando ele me disse que de fato amava secretamente minha cunhada e que já tinha até conversado com ela sobre isso, inclusive propondo fugirem juntos dali. Ela ficou de pensar, sem negar de todo tal possibilidade, mas ele achava que mais dia menos dia poderia acontecer. Deus do céu, era tudo o que eu não queria ouvir! Eu me via como um bobo apaixonado, totalmente sem chance de ser feliz com a mulher que já sentia amar, quase perdidamente. Logo eu, que também ansiava por não só proteger Eurídice, mas sobretudo ficarmos juntos. Foi quando Aristeu me chamou para redobrar a vigilância em Menelau, pois desconfiava que ele ia fugir. Me disse que agora tinha outros planos para ele e que por isso era preciso mantê-lo sob vigilância permanente. Isso só confirmou minha suspeita de que tramasse um assassinato. E eu, inocente, no meio daquela confusão toda.
Resolvi procurar Eurídice, para dizer a ela que desse um jeito escapar também, mas não para o lugar onde estava Menelau, mas sim para a casa de uns parentes, em outra banda, onde ela estaria mais bem protegida, enquanto não encontrava uma boa maneira de deixá-la segura. Viagem em minha companhia, claro. Ela aceitou, sem saber exatamente que meus planos eram favoráveis a mim mesmo, pois minha intenção era de me declarar a ela no decorrer da fuga, além de tentar convencê-la que juntos eu poderia protegê-la melhor. E juntos, para mim, significava exatamente isso: juntos, de corpo e alma. Mas quantas voltas a vida dá… Marquei com ela, um tanto às pressas, aquele encontro na rodoviária, para que pegássemos um ônibus e fugíssemos, simplesmente, para ficarmos longe das garras de Aristeu. Quase caí para trás quando Eurídice veio me dizer que havia desistido da viagem. E me ofereceu o veneno em dose dupla, pois na sequência, depois de alguns minutos, me confessou que Menelau fizera contato com ela e assim combinaram que ele iria esperá-la em outro lugar, para que dali caíssem no mundo. E no dia seguinte ela daria início ao plano. Foi como se eu tivesse caído de um edifício de trinta andares. Fiquei sem fôlego e sem palavras. E o que é pior, tinha que admitir que toda minha conversa com ela tinha sido apressada pelo sufoco dos acontecimentos, e que talvez grande parte das decisões que julgava serem minhas e dela, estavam apenas na minha cabeça. Afinal, ela havia concordado que eu a ajudaria a escapar de Aristeu, mas ficar comigo era certamente outra história. Lembrei de uma música, que fala de um desejo de morte e de dor…
Da rodoviária voltei para meu quarto enlouquecido, não sem antes passar na venda e comprar uma garrafa de rum e um litro de Coca-Cola. Fui aos infernos. Na minha cabeça só passavam intenções malévolas. Eliminar aquele diabo do Menelau não seria a solução? Colocar veneno de rato na comida do Aristeu? Cair no mundo, desaparecer? Atazanar a vida no novo casal até quem sabe, encontrar um jeito de fazer Eurídice cometer adultério? Mas o que fazer com minha mãezinha? Só ideias tronchas me vinham à mente. Acordei tarde, no dia seguinte, com um tremendo gosto de corrimão na boca. Aristeu batia na porta do quarto, vociferando sobre meu atraso para as tarefas do dia. Avisou, de passagem, que iria à cidade “tomar umas providências” – e eu bem imaginei quais seriam. Fui começar meu trabalho, resignado, mas o que me ocupava de verdade a mente nesse momento era outra coisa, a vingança. Não sabia como, mas ela aconteceria. Nem que me custasse outra dúzia de tarefas ainda maiores do que aquelas que eu cumprira até agora.
Vencer serpentes e cães loucos, domar uma mula renitente, remover uma tonelada de bosta tudo isso era apenas um tira-gosto para o que me aguardava de agora em diante. O mundo ia ver, sim: eu iria à luta! Enquanto eu matutava em tais coisas, Aristeu topou com uma jararacuçu de dois metros e foi picado por ela. Eu fui o primeiro a ser avisado e providenciei a charrete para levá-lo ao hospital. Ali penou por uma semana, à espera da chegada do soro. Acabou não resistindo, formando uma ferida brava que levou à amputação do pé e infecção generalizada. Ajudei a providenciar o enterro. Só me falta agora resolver o problema chamado Melenau.
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Promised Land, now!
(Coração das Trevas – Joseph Conrad)
Aqueles eram demônios fortes, viris, de olhos avermelhados, demônios que dominavam e instigavam homens… homens, estou lhes dizendo! Porém, de pé naquela encosta, tive a premonição de que, na luminosidade ofuscante daquela terra, conheceria um demônio flácido, dissimulado, de olhar débil, o demônio de uma loucura voraz e impiedosa.
Com as bênçãos do Senhor, aquele parecia ser um dia igual a qualquer outro. Não fazia frio nem calor, passarinhos cantavam, cães latiam, as irmãs da limpeza já começavam suas tarefas, entoando salmos e hinos conhecidos. Eu tinha aberto minha Bíblia e meditava um pouco sobre algo que disse Isaías, como faço diariamente, variando apenas de Profeta. Ainda me lembro muito bem, Isaías falava que a terra de seu povo viria a ser assolada, suas cidades abrasadas por pragas e invadidas por estranhos. Hoje me penitencio por ter faltado fé verdadeira em mim, pois vejo que ali havia mensagens às quais não prestei a devida atenção, que diziam respeito, sem dúvida, ao que eu iria vivenciar em mais adiante. Ah, aquelas palavras falavam de gente estranha; de turvação nos corações; de devastação e traições; de conflitos e vinganças; de um Deus onipotente, porém ausente! Saber que também existiria por ali uma senda santificada, pela qual não passariam os imundos, ainda que aberta aos loucos e doentes, não me dava alívio.
A verdade é que fui pego de surpresa. Foi assim: mal me levantara e me dirigia ao refeitório, Sigrid, a secretária do Doutor Wilhelm, me avisou que ele queria falar comigo. Logo de cara percebi que devia ser coisa séria, pois Sua Excelência raramente dava tal honra aos mortais comuns. Devia haver algo de grave naquilo, que me afetava diretamente, sem que eu soubesse o motivo. Alguma coisa realmente estranha se armava, só não sabia ainda por que envolvia a minha pessoa. Wilhelm na verdade era além de Doutor, Pastor. Ele era filho de uma família brasileira descendente de pomeranos e havia feito sua preparação religiosa na Alemanha, lá recebendo tal título formal, pelo qual gostava de ser tratado. Dirigia aquela escola de formação religiosa luterana, o Diaconato Lutherhaus, com rigidez e devoção extremas. Ele me tratava de forma severa e com intimidade zero, aliás, como à maioria dos alunos, funcionários e demais pessoas que por ali andavam e trabalhavam. Mas encarei com coragem, embora um tanto ressabiado, o mal-estar de começar o dia com uma entrevista como aquela.
Para encurtar minha narrativa, em certo momento da conversa o Doutor me perguntou sobre Karsten Freitag, se eu o via com frequência, que tipo de contato tinha com ele nos últimos tempos. Karsten era um cara da minha terra, que anos antes havia me ajudado a desviar do trauma que eu tinha com o catolicismo, por conta de um padre de má fé que era próximo de minha mãe e que, só mais tarde me dei conta, tentara me assediar sexualmente na infância e na adolescência. Karsten pertencia a uma família de crentes e foi meu vizinho na infância. Quando um dia confessei a ele o mal-estar que eu sentia com os contatos forçados que eu me vi obrigado a ter com o padre Carlos, ele prontamente se ofereceu para me ajudar, fazendo com que eu me aproximasse de pessoas de sua confiança na Igreja Luterana da cidade, de cujo rebanho ele e sua família faziam parte. De fato, fui bem acolhido ali e como sempre tive uma inclinação espiritual, deixei-me levar pelos ritos protestantes e em pouco tempo me tornei um deles.
Karsten era quatro ou cinco anos mais velho do que eu e extremamente interessado e versado em assuntos religiosos. Tinha sempre uma bíblia no bolso e uma memória fabulosa, sendo capaz de recitar trechos inteiros do Antigo Testamento, trazendo muitas vezes a conversas banais citações apropriadas de salmos. Seu tio era pastor em uma cidade próxima à nossa e Karsten foi morar com a família dele quando terminou o ensino médio. Eu ainda era ginasiano, de maneira que praticamente nos separamos desde então, com encontros apenas ocasionais, nas férias minhas ou dele. Quando estive com ele, certa vez, me disse que tinha se decidido a virar pastor, assim como o tio, que lhe dera grande apoio e mesmo o encaminhara à sede da Confissão Luterana na capital. A partir daí continuamos a nos encontrar apenas por cartas e numa dessas ocasiões confessei a ele meu desejo de também me aproximar da vida religiosa, tendo ele me recomendado, e ato contínuo me indicado à tal formação de diácono, justamente na Lutherhaus, onde tiveram início os fatos que narro agora.
Ao terminar meu curso por lá, entretanto, Doutor Wilhelm, o diretor, por algum motivo, achou que eu não deveria ser pastor, mas sim me voltar ao ensino religioso formal, em alguma escola ligada à Confissão Luterana. À espera de que isso acontecesse, já fazia bem uns seis meses, é que me levantei naquela manhã primaveril com o aviso que o Doutor me esperava para uma conversa. Wilhelm tanto tinha de rigoroso e severo como de experiente no trato com as pessoas, mesmo subalternas, como eu. Foi logo me deixando à vontade. Perguntou se eu estava satisfeito com o curso, com os aposentos, com a comida, com os professores e demais encarregados; me ofereceu uma limonada. Tudo bem, tudo bem, eu repetia meio infantilmente, tentando entender o que viria depois. E o que veio depois demorou mais de meia hora para ser finalmente revelado – e envolvia diretamente o meu velho amigo Karsten Freitag. O Doutor insistia em me indagar se eu recebera notícias recentes dele. Fazia pelo menos um ano que não nos víamos e nem trocávamos telefonemas ou mensagens. Eu o sabia baseado em algum lugar da Amazônia, com passagem por Santarém, ao que parece. Recebera a missão de evangelizar as comunidades ribeirinhas no Tapajós, que tinham sido deixadas à mingua da Palavra algum tempo antes, por falecimento de um veterano pastor batista norte-americano, que cuidara delas por décadas a fio. E o mais era apenas por ouvir dizer.
– Ouvir dizer o quê, inquiriu o Doutor. Ele queria saber mais, por exemplo, se eu percebera algo diferente ou mesmo estranho no comportamento de meu amigo. A princípio neguei, mas depois resolvi abrir o jogo, pois na verdade um dos motivos do meu afastamento de Karsten era por percebê-lo um tanto heterodoxo com relação a certas tradições luteranas. Por exemplo, pelo uso repetido de palavrões nas conversas ou por algumas vezes ter me dito, como despedida, que ia beber umas em minha homenagem. Em uma ocasião me disse que a mulherada do lugar era infernal, expressões exatas dele, que eu sabia serem muito estranhas a um protestante, ainda mais em se tratando de um pastor luterano. Acabei por revelar, ao longo da conversa com o diretor, que tinha sido na verdade o próprio Karsten que deixara de me procurar a este tempo, antes de que eu fizesse o mesmo com ele.
– Era tudo o que eu tinha a dizer, Doutor… Wilhelm me olhou de um jeito que me pareceu ser de confiança em mim e eu percebi que o pior já tinha passado – ou nem mesmo se ameaçara de verdade. Mas eu estava enganado. Ele agora me confessava sua preocupação com Karsten, pois já sabia das coisas que eu lhe contara e, pior, tinha muito mais a acrescentar. O que acontecera com o aquele pastor, agora perdido, seja em meio à floresta amazônica, em termos geográficos ou em outros sentidos da palavra, era estarrecedor. Primeiro parara de dar notícias a seus superiores em Belém, depois se negara a prestar contas do dízimo recebido dos fiéis e de outros valores que lhe eram enviados pela Igreja. O material de divulgação que vinha da matriz em Porto Alegre começou a ser simplesmente devolvido, por falta de quem lhe procurasse no correio. Um diácono que passara pela comunidade onde Karsten era ministro, tivera apenas notícias vagas dele. Por exemplo, que abandonara a sua esposa legal, uma galega de Passo Fundo e agora vivia amancebado com uma cabocla, que havia transformado seu salão de orações em local para festas estranhas. Tinha ouvido dizer ainda, que ele pregava o amor livre, dizendo que isso era bom aos olhos de Deus, por se dar sem vínculos egoístas ou sentimentos de possessividade em relação a esposas e maridos. Não bastasse, dera para andar todo o tempo de calção e camiseta regata, como a maioria dos ribeirinhos, destoando completamente das normas luteranas do recato, aceitando também que em sua igreja os fiéis assim se vestissem. Convocado repetidas vezes pelos superiores em Belém e mesmo no Sul, ignorava solenemente os chamados.
A esta altura eu voltei a ficar preocupado. Afinal, o que poderia querer de mim o Doutor Wilhelm, diante de uma situação tão escabrosa, que ele próprio parecia se considerar impotente para enfrentar? Ele logo me esclareceu. Queria que eu fosse ao local dos acontecimentos para confirmar se e até que ponto eram verídicos. Disse-me também que havia um plano para resgatar o pobre Karsten (qualificativo posto por ele) e reconduzi-lo à boa razão do espírito. E mais: que isso seria confiado a mim, que afinal de contas era uma pessoa que o conhecia desde a infância. – Como? Eu quis saber, sem obter resposta no momento, já bastante temeroso com tais responsabilidades e com minhas preocupações acrescidas em várias oitavas. Passei o resto do dia em estado de alerta, com um olho em Isaías e o outro, ou melhor, o ouvido, na campainha de meu quarto de diácono. No dia seguinte, Sua Excelência não me convocou. Pior, veio falar comigo pessoalmente, me convidando para uma conversa debaixo das mangueiras do quintal. Por dentro eu tremia, claro. Desta vez não me fez prolegômenos, indo direto ao assunto. A Congregação pagaria minha passagem até Santarém e de lá forneceria o que fosse necessário para eu chegar a cidade de Belterra, onde Karsten agora estava praticamente homiziado. E deixou bem claro que a minha missão não era simplesmente de reconhecimento do terreno ou de apuração do comportamento do personagem. Bem mais do que isso, cabia trazer o trânsfuga (palavra dele) de volta, custasse o que custasse e para tanto havia sido preparada uma estratégia, que me foi logo apresentada: uma caixinha de metal com seringa e ampola de medicamento. E mais um recado claro: se Karsten resistisse à persuasão, que eu desse um jeito de pegá-lo à força e aplicar nele o conteúdo da seringa. Isso o tornaria dócil com um cordeirinho, me garantiu o doutor, aceitando me acompanhar até onde eu impusesse. Não havia urgência, entretanto, dada uma seca muito forte em toda a região do Tapajós, com o rio baixo e a navegação impedida. Dentro de dois ou três meses, com certeza, haveria condições para a execução do plano. Enquanto isso poderíamos caprichar no planejamento, para o que também contava com a minha ajuda. E antes que eu dissesse pau ou pedra me alertou: – que isso fique somente entre nós. E mais: na volta e diante do sucesso da minha intervenção uma vaga estaria garantida para mim no principal colégio da Congregação. – Uma posição muito disputada – completou.
Era setembro. Passou um mês, e depois, quase dois. No final de outubro o rio voltou a fluir e eu peguei o avião para Santarém, com escala em Belém. Na capital fui recebido pela própria esposa do maioral de lá, que disfarçou, mal e mal, que não sabia da missão que me fora confiada – apenas que era algo muito importante para a Igreja e que seu resultado faria de mim uma pessoa abençoada. Abençoado ou não, eu, um pobre diácono, aquilo era para mim missão a cumprir. No final do arco-íris havia um emprego, que era o meu sonho real naquele momento, pois queria me casar e ganhar independência total do regime que me era imposto em Lutherhaus. Fui para o sacrifício me consolando com a ideia – sem qualquer fundamento concreto até então – de que talvez as coisas não fossem tão difíceis como eu pensava. Desci do avião em Santarém ainda com tais pensamentos otimistas, mas o próximo passo, o embarque para Belterra já começou a me mostrar que o pior ainda estava por acontecer. No velho porto sujo e cheirando a peixe e esgoto, sobrevoado por uma multidão de urubus, havia várias embarcações, de tamanhos variados aguardando passageiros. Não havia hora marcada para sair, pois isso só acontecia quando a lotação estivesse completada. O conceito de lotação significava ali, pelo que pude ver, pelo menos o dobro da capacidade recomendada, em termos de pessoas embarcadas e carga. O barco que me era destinado se chamava Tucuxi, o que me pareceu um nome em sintonia com a missão que me fora destinada pela Igreja. A partida ainda iria demorar, pois apenas uma pequena parte das redes abertas no convés superior estava ocupada. Não precisei comprar uma para mim, pois tal peça fazia parte do pacote da viagem, como se fossem as poltronas de um ônibus ou avião. Me acomodei naquele pano sujo como pude, procurando me abstrair do cheiro de corpos e sei lá o quê mais que dali se exalava. Cheguei no porto por volta das cinco da tarde e pouco depois da meia noite a viagem começou.
Lentamente vadeamos e eu me distraí vendo as luzes fugindo em ambas as margens. Com menos de uma hora de viagem, o barco estacionou para pegar passageiros e entre encostar, aportar, acolher gente e carga, vadear de novo, havia transcorrido mais outra hora inteira. Tentei dormir, mas o calor e o barulho das conversas era tanto que isso me pareceu totalmente impossível. Além do mais, nunca consegui dormir em rede. Assim me resignei a passar uma noite em claro. Os passageiros nas redes ao redor de mim eram incansáveis em conversar, cantarolar, dar risadas, contar piadas, sem parar de comer seus quitutes oleosos e cheirando a peixe. Aqui um cristão paga todos os seus pecados, pensei. Aliás, por falar nisso, logo percebi que boa parte da gente que viajava comigo eram mulheres com saias no meio da canela, tanto elas como os homens vestindo camisetas em que frases bíblicas se repetiam, geralmente com erros de sintaxe e baixa sintonia com a realidade. – Oh Deus, perdoai-os…
Lembrei-me nesta hora de meu bom Isaías: anunciai-nos as coisas que ainda hão de vir, para que saibamos; ou fazei bem, ou fazei mal, para que nos assombremos, e juntamente o vejamos. Ajudai-me, meu Profeta, o que eu não daria para saber o que essa aventura me traria e se eu escaparia são e salvo dela… E aquela viagem estava apenas começando…
Logo que escolhi minha rede, vi que a dois metros dela estava uma senhorinha que não parecia muito bem. A filha, que a acompanhava, explicava para quem quisesse ouvir, que a mãe voltava para casa depois de algumas semanas internada na cidade, desenganada pelos médicos. Ela me pareceu estar, na verdade, agonizando, bem ali naquela rede, quase a meu lado. A filha, pródiga em detalhes, acrescentava que a mãe era uma “pinhoneira” na região, pois tinha vindo do Ceará ainda menina e havia trabalhado, como babá, para uma família de americanos da Companhia Ford na grande plantação de borracha, muitos anos antes. Depois tudo acabou, explicava, e sua mãe, que dera à luz a ela própria, a narradora, com assistência direta de médicos gringos, agora tinha que ir a Santarém mesmo para pequenas consultas médicas. – Este lugar só piora, suspirava. Em estado de piora mesmo, e a olhos vistos, estava a velhinha. Ela mantinha os olhos fechados, sem se comunicar com a filha ou com qualquer outra pessoa, respirando com algum ruído. Lá pela meia noite pareceu sair de sua letargia, abriu os olhos, tentou se levantar na rede, balbuciou qualquer coisa e tombou inerte. Estava morta. Isso desencadeou um movimento previsível na vizinhança, apinhada de redes e curiosos. Ninguém sabia ao certo o que fazer. O Imediato foi chamado e disse que a chegada a Belterra estava prevista para quatro da tarde do dia seguinte, mas só se corresse tudo bem, alertou. Um curioso disse que o melhor era desembarcar o corpo, pois transportar defuntos era contra as leis, e além do mais poderia dar azar. Este logo se calou porque a filha da falecida lhe advertiu que se intencionava fazer isso, que fosse com a própria mãe dele, não com a dela.
Dois dos expectadores, em momento diferentes, se aproximaram e segredaram alguma coisa à filha. O primeiro deles puxou da mochila uma Bíblia e começou a ler algum versículo, atropeladamente e ignorando totalmente vírgulas, pontos e parágrafos. E ia alterando a voz, chegando quase aos gritos, como se estivesse num púlpito de sua congregação pentecostal. O outro esperou a arenga terminar e de certa forma a repetiu, com um pouco mais de cerimônia, contenção verbal e letramento. Enquanto isso, a velha defunta, na sua rede, tomava parte em tudo, com a serenidade dos mortos. Findo o tumultuado ofício, vi que os dois pastores se dirigiram à proa do barco e ali começaram a conversar; logo percebi que era um diálogo um tanto acalorado. Em poucos minutos chegaram às vias de fato, com o mais alto deles tentando jogar o oponente dentro do rio. Armou-se o deixa-disso, mas a participação de dois tripulantes deixou os ânimos aparentemente domados. – O que seria aquilo? Indaguei da minha vizinha da direita. Briga antiga, ela me esclareceu. Há muito viviam às turras, cada um acusando o outro de estar roubando fiéis de suas respectivas igrejas de periferia. Outra mulher acrescentou: – que nada, tem rabo de saia no meio disso! Segundo ela, o baixinho também era acusado pelo outro de ter lhe roubado uma fiel especial, a mulher com quem ele mantinha um romance. Será que Isaías, que viveu em uma época de muito tumulto e disputas, teria presenciado alguma cena como aquela?
Nisso um baque surdo se ouve, o motor se silencia e na sequência o barco estaca, em uma curva do rio, longe das duas margens. Um alarme soa. Alguém fala em incêndio e muitos se agitam em suas redes. De uma fileira de luzes na margem esquerda chega o som de uma lambada, além de vozes e gritos frenéticos, de homens e mulheres. Me envergonha repetir o que se cantava, mas o faço por fidelidade ao momento: – chega aqui meu benzinho, vem sentir o meu quentinho, o meu carinho. Quanto mais se sofre aqui, mais se esbalda – pensei. Durante uma ou duas horas, sem outra explicação que não fosse a especulação dos passageiros, depois de ruídos de quem bate um martelo, o Tucuxi retoma a marcha, embora agora parecesse mais fatigado, pela mudança do barulho que o motor produzia abaixo de nós.
Mal retomada a viagem, um empurra-empurra domina o convés. Era uma confusão entre duas mulheres, que logo se engalfinharam, bem no estilo dos dois pastores. Eu tinha visto que o filho de uma delas era autista ou algo parecido, pois gritava de tempos em tempos, por nenhum estímulo. Apenas berrava, de forma dolorosa e sem sentido. Uma delas, pelo que percebi, reclamara da mãe, que incontinente partiu em defesa do filho, atacando a ofensora. Esta não se deu por vencida e rebateu a outra, dizendo que aquele devia ser um filho que a infeliz tivera com o Diabo, um castigo de Deus. A turma do deixa-disso parecia estar em plantão permanente, pois logo apareceram dois ou três para acalmar os ânimos. Daí em diante eu só ouvi os gritos da pobre criança, cada vez mais rouca, cada vez mais espaçados. Parece que finalmente conseguira adormecer. Numa breve parada, em um lugar sem nome e sem maiores predicados, em plena madrugada, uma família sobe a bordo: pai, mãe e dois filhos já quase adultos. Novo rebuliço no convés. Da rede vizinha ouço o comentário que são leprosos e por isso todo mundo quer fugir deles. A sequência de perigos e emoções parece nunca terminar a bordo do Tucuxi.
Logo em seguida uma voadeira rodeia o barco e tenta abordá-lo. Dois homens gritam que é um assalto e que todos deveriam mostrar o que tinham nas bolsas e sacolas. São interrompidos, entretanto, pelo Imediato acompanhado de dois dos marinheiros, que os expulsam com um bastão de choque elétrico, reforçado por enérgicos golpes de remo. Um dos assaltantes fica ferido e grita palavrões. Fogem. Uma mulher obesa tenta atravessar o emaranhado de redes para ir ao banheiro e é hostilizada pelos demais passageiros, que reclamam que seu corpanzil perturbava a imobilidade das redes. Chegam a dizer para ela até mesmo que gente com aquela bunda toda deveria ficar em casa, ao invés de perturbar a paz dos outros. Surgem risadas e vaias, entremeadas por palavrões. A ofendida ao mesmo tempo que responde às agressões com nomes sujos, empurra alguns dos que reclamavam dela. Naquele momento cheguei a imaginar que a pancadaria iria rolar solta, mas tudo terminou em risadas, e depois silêncio, eis que a manhã já se anunciava no horizonte da margem esquerda do Tapajós e o sono parecia, finalmente, ter tomado conta de todos.
Manhã chegada, topamos com duas ou três canoas que atravessavam o rio com imagens de santos e bandeiras e gente além da sua capacidade de carga. Alguém comentou que era dia de finados e que aquelas pessoas, de filiação católica, iam reverenciar seus mortos em um cemitério que ficava do outro lado do rio. Novo agito no convés, com um outro grito do tipo vão enterrar o Papa e chega de idolatria, com gestos de mão pouco lisonjeiros. Uma mulher, de saias incrivelmente curtas, decote profundo, peitos gelatinosos, pernas grossas e pintura carregada na cara, que até então permanecera quieta, resolveu intervir e passar, aos gritos, uma lição de moral nos demais, dizendo que a religião dos outros deveria ser respeitada. Gritos e vaias ecoaram das fileiras de redes mais distantes e alguém acrescentou: – logo você para dizer isso? Essa é boa… Lembrei-me novamente de Isaías. Impossível não recordar dele a cada momento desta travessia. Ele deve ter dito alguma coisa apropriada a momentos com estes que vivi no Tapajós.
Em certo momento pude ouvir alguém falar de um pastor chamado Carste e sua seita “PLN”, ou algo assim. Apurei os ouvidos. A narrativa, entre divertida e escandalosa, falava em sessões públicas marcadas por grande agitação, com promessas de liberdade e cura, mas também seduções e até sexo com menores. Haveria também certas experimentações com ervas nativas capazes de produzir estados alterados na mente das pessoas. Era só o que faltava no cenário e isso me fez atinar realmente com a grossa confusão em que havia me metido. Mas tudo bem, se no final eu fosse pelo menos recompensado com um bom emprego ou quem sabe até um cargo na hierarquia administrativa da Igreja. O fato é que o ponto de possível retorno já havia sido ultrapassado, mesmo antes de eu pegar o avião em São Paulo. Aquela viagem parecia que nunca ia terminar, mas finalmente desembarcamos em Belterra. Depois de me equilibrar perigosamente na pinguela que conduzia os passageiros do barco à terra firme e tendo escapado de um banho nas águas lodosas, fedidas e repletas de detritos do porto, alcancei o alto da barranca para procurar um merecido pouso, com um mínimo de conforto, quem sabe um banho e cama com lençóis limpos. Na escalada vi meio enterrado na lama um barco pequeno, que aqui chamam baleeira, que tinha escrita na lateral a mesma sigla que ouvira na conversa alheia, um pouco antes, ainda a bordo do Boto Tucuxi: PLN. Tudo indicava que o foco da minha procura finalmente seria alcançado. Restava saber o que significavam aquelas letras.
Mas pelo menos eu agora já sabia que o tal do “Carste” era a pessoa que eu procurava.
Fui atrás de um hotel decente, mas o que encontrei foi uma pensão que não chegava perto disso, muito antes pelo contrário. Fazer o quê? Fiquei por ali mesmo. As paredes de madeira deixavam o quarto em calor insuportável, embora já fosse quase noite. Um velho ventilador fazia mais ruído do que propriamente produzia vento. Um cartaz advertia ser proibida nos quartos do estabelecimento a “entrada de pessoas prosaicas”, fosse lá o que isso significasse. Fui dar uma volta pela cidade e depois de perguntar aqui e ali sobre o Carste, descobri que ele agora morava numa vila rural, distante uns poucos quilômetros da sede, mas que sua igreja ainda existia não ficava longe de onde eu estava. Fui até lá, apenas para constatar o abandono de um prédio que mais seria adequado a uma oficina mecânica, mas que pelo menos em uma de suas paredes, um letreiro tosco, já esmaecido pelo tempo, esclarecia o significado da misteriosa sigla PLN: Promised Land Now. Mas porque em inglês, meu Deus?
A cidade ainda guardava vestígios de sua época de ouro com a presença dos norte-americanos, com algumas moradias no padrão daquelas que a gente vê em filmes made in USA, com jardins, ausência de muros, telas mosquiteiras, vidraças quadriculadas, alpendres. Mas havia, naqueles restos do sonho insano de Mister Ford, a marca do tempo, do descuido amazônico e do clima úmido dos trópicos. Aquilo tinha a ver com o slogan ali colocado por Karsten? Será que ele andava a prometer a seus fiéis as benesses de um paraíso imediato, na próxima curva do rio? A volta a um passado glorioso que fora varrido pela floresta e pelas doenças? Mas por que em outra língua? Aquilo realmente não fazia sentido para mim… As pessoas com quem eu conversei me indicaram que o homem que eu procurava estava por perto, no povoado de São Gabriel, cerca de 20 km floresta adentro. O encontro com Karsten era agora questão de tempo, cada vez mais curto, aliás, pois queria alcançar o homem antes que o Tucuxi voltasse rio abaixo, dentro de três a cinco dias.
Uma nova viagem precisava ser feita, entretanto, felizmente bem mais curta. E lá fui eu corcoveando pela floresta, em um caminhãozinho Toyota, na carroceria transformada em lotação, entre porcos, galinhas, sacos de mantimentos e adubo, latões de querosene, mais algumas pessoas, inclusive a mulher que eu já vira no barco, aquela defensora dos católicos, com suas pernas maciças, lábios pintados e tudo mais. E ela, não sei por que, não tirava os olhos de mim. A vila de São Gabriel, meu destino final – assim eu esperava – era um lugar desolado, perdido mesmo naquele fim de mundo, com restos de floresta, cães, porcos, ratos e lixo – muito lixo por toda parte. Achei estranho ver as ruas desertas, da mesma forma que em Belterra, na véspera. Logo, porém, caiu uma chuva e tudo se encheu de gente. Imaginei que assim fizessem as pessoas para se refrescar. E pude então apreciar a fauna humana local, mulheres e meninas em camisetas e shortinhos, com as roupas molhadas mostrando-lhes os corpos ou pelo menos mamilos em quase total transparência. Para os homens o obrigatório par formado por bermudões e camisetas regata. E pareciam todos felizes assim, quem era eu para desdizê-los? Aliás, começava a achar tudo normal ali.
Lembrei-me da frase daquela canção que fala sobre não existir pecado ao sul do Equador – principalmente no meio dele, pelo visto. De fato, era pouca coisa que ainda me poderia surpreender por ali, pois no aeroporto de Santarém já havia visto um cartaz que anunciava um concurso chamado Miss Camiseta Molhada, com fotos sugestivas, revelando, sem qualquer pudor, mamilos, umbigos e curvas femininas, além de reentrâncias diversas. Dose cavalar para um protestante como eu. Logo na chegada a São Gabriel a dona dos atributos físicos já descritos me perguntou se eu não pagaria uma cerveja para ela. – Não bebo, eu disse, mas quero sim conversar com você. Nada de intenções pecaminosas, claro, pois luteranamente aprendi a ser resistente aos vícios não só do álcool como da carne, mas pensei que talvez aquela criatura pudesse me dar informações sobre o objeto de minha viagem até ali. Ela de fato conhecia o Carste, aliás de longa data, mas não ia com a cara dele, primeiro por ser católica (não das mais praticantes, claro), depois porque achava aquela história de PLN uma babaquice (palavra dela) sem muito sentido, por ali se misturar religião e pouca-vergonha de diversas qualidades. De fato, eu percebi que ela dominava o assunto, quando enumerou algumas das tais sem-vergonhices. Aproveitou para me contar um pouco de sua história, sem que eu perguntasse por isso. Ela fora criada pela avó ali em São Gabriel, mas que vivia em Santarém há tempos, onde trabalhou de doméstica e babá, mas que agora havia feito um curso de massagista. E que se chamava Genitália, porque a mãe, Geni, era fã de um jogador de futebol italiano.
Eu lhe atalhei a conversa, porque tinha pressa e além do mais só tinha um interesse agora, o Karsten – e a Toyota voltaria a Belterra antes do final da tarde. Com o beiço estendido Genitália me mostrou lá adiante um prédio rosa-choque, a sede da tal seita. De fato, no frontão havia um anúncio em neon, apagado àquela hora do dia, mas que logo pude ler de perto: “Promised Land, Now: aqui você se salvará”. Era uma construção inacabada, na qual havia um salão sem reboco ou caiação, com alguns bancos e uma espécie de púlpito ao fundo. Estava deserto naquele momento, mas quando rodeei o terreno para ver se dava com alguém, me apareceu, surgido do nada, um sujeito baixinho, bem do tipo originário, perguntando o que eu desejava. Uma figura que minha mãe rotularia de cara-lambida, moreno, imberbe, com os cabelos, umedecidos pelo suor, caindo pelo rosto e pela nuca. Indaguei do Carste e ele fez um sinal com a mão, como me pedisse para esperar, o que me deixou animado. O tal sujeito convidou-me a sentar dentro do “templo” e lá se apresentou como Epotamênides Good, fazendo questão de acentuar o sobrenome em inglês (não é Gud nem God: é Good, com dois ‘o’!), que significava bom ou bacana, segundo ele. Quanto ao primeiro nome, que tive que anotar em seguida para não esquecer, atribuiu ao seu pai judeu, ele próprio seguindo tal credo até certo tempo atrás, abandonando-o por ter se convertido à fé verdadeira cristã. O sobrenome inglês tinha sido adotado por ele, depois que conhecera um missionário batista norte-americano, chamado Calvin, que passara por sua terra. Me disse ainda que era o secretário da PLN e que ajudava o reverendo em suas tarefas, até que ele adoecera e teve que se afastar dos cultos. Ele falava de Karsten, claro, tratando-o de Reverendo. No mais, me disse que era um estudioso da Bíblia, especialista em Velho Testamento. E num gesto que me pareceu magnânimo, aquiesceu que eu poderia tratá-lo como Popó, simplesmente. Pelo visto ali as pessoas gostavam de falar de si mesmas – eu não havia perguntado a ele nada, ainda. Sobre o nome Promised Land me garantiu que fora ele que tinha sugerido a Karsten, que logo o aprovou, acrescentado depois vírgula Now. E que isso era resultado das conversas que teve com Calvin, que lhe revelou ser membro de uma igreja com igual denominação em Louisiana, nos Estados Unidos.
Dito assim, parece ter sido uma conversa simples e rápida, mas sei eu o quanto me custou. Popó era completamente gago e transformava cada sílaba em três, quatro ou mais, lembrando uma metralhadora ou um motor avariado de baleeira, sei lá. Naquela terra, realmente, tudo era possível: de Genitália a Epotamênides, tudo em uma única manhã. Sobre ela, Popó me disse que havia visto nós dois conversando e que eu não deveria acreditar muito nas coisas que ela tenha me dito, pois aquela mulher era intrigante como quê. Ela fora discípula da PLN e mesmo usufruíra da intimidade de Karsten, mas que haviam se separado por excesso de ambição dela. Insisti que queria ver o reverendo e ele aquiesceu. Me guiou por um caminho no mato, que dava acesso a uma espécie de barracão, no fundo do terreno da igreja. Entrei no ambiente escuro e pude ver, finalmente, em um catre no fundo do cômodo, a pessoa que eu procurava. Mas não era o mesmo filho de alemães que eu conhecera em minha cidade, sacudido e saudável. Karsten Freitag era agora apenas uma sombra do outro. Muito magro, esquálido mesmo, com a barba de muitos dias, olhos injetados de amarelo e sangue, bafejando um hálito terrível. Saudei-o e ele mal respondeu. Disse a ele a que vim e quem me mandou buscá-lo e ele reagiu com um gesto resignado de concordância, inclusive aceitando partir comigo ainda naquele mesmo dia. Aquela seringa e a ampola de remédio não seriam necessários, felizmente. Daí a prepará-lo para entrar na Toyota foi um átimo. Bagagem sua era apenas uma malinha de mão, tão leve que parecia estar vazia. Popó me ajudou levá-lo até a parada e lá tivemos praticamente que carregar seu corpo inerte para instalá-lo num dos bancos da carroceria. E assim fomos pela floresta a fora, cada solavanco recebido com um esgar de dor e mal-estar por parte do resgatado.
Ele volta e meia se manifestava com palavras, que me eram quase incompreensíveis. Mas consegui entender bem o que me soava lugubremente como uma ladainha: horror, horror, horror. Muito apropriado… Meu mal-estar com tudo aquilo ainda estava longe de acabar. A volta do Tucuxi estava prevista para daí a cinco dias. Pelo menos agora eu conseguira vaga em um hotelzinho simplório em Belterra, mas pelo menos equipado com um ventilador que fazia jus ao nome. Tive que pegar um quarto com duas camas, uma para mim, outra para Karsten, que piorava cada vez mais. Em alguns momentos se retirava para um mundo de sombras, onde passava horas inteiras. Às vezes, no meio da madrugada, tinha ondas de lucidez. Numa delas me falou de Leatriz, Beatriz ou um nome assim, que eu entendi ser uma pessoa muito importante para ele, talvez a galeguinha de Passo Fundo, de quem eu já havia ouvido falar. Na ocasião, pediu que eu lhe trouxesse a mochila ensebada e de lá retirou o único volume, um envelope cinzento grosso, que parecia cheio de papéis, talvez fotos e cartas. Pediu que eu fizesse chegar às mãos dela – e eu prometi que o faria, embora não tivesse a mínima ideia de como e onde encontrar tal pessoa. Tive que me aproximar de seu rosto para poder ouvi-lo e confesso que o hálito de alguém nunca me pareceu tão desagradável. Vi nele a materialização de uma frase de um livro que eu havia lido certa vez, que falava de um homem portador de uma loucura voraz e impiedosa, possuído por algum demônio dissimulado, de olhar débil.
Três dias depois, depois de ter passado uma manhã e tarde ofegante e nauseado, recitando ainda a sua ladainha, percebi que Karsten se calara na cama ao lado, no meio da noite. Estava morto. Esperei o dia amanhecer e fui tomar as providências cabíveis. Por sorte, pelos préstimos do porteiro do hotel, que parecia estar acostumado a situações como aquela, havia uma funerária disponível na cidade, que me atendeu prontamente, cuidando do atestado de óbito e de outras providências burocráticas. Com o saldo que ainda havia na conta que Wilhelm abrira em meu nome, encomendei para ele um enterro sem maiores honras, a ser realizado naquele mesmo dia. Acompanhei o caixão coberto de pano de chita roxo ao pobre cemitério de Belterra, que sem dúvida não pertencia à era fordiana, e na companhia de um cão sarnento e solitário que por lá apareceu – ou ali habitava – prestei a Karsten Freitag as despedidas possíveis, em uma cova rasa. Não havia tempo para mais do que isso.
Assim voltei a Lutherhaus. Quando lá cheguei me informaram que Wilhelm tinha viajado para a Alemanha, onde passaria alguns meses. Quis saber se havia deixado algo para mim, mas nada havia. Sigrid, a velha secretária dele, apenas me disse que o Doutor entraria em contato comigo tão logo retornasse. Falei a ela da encomenda para Beatriz, nome que ela corrigiu para Leatrice, dizendo saber quem era e que faria contato com ela. Assim se passaram mais de dois meses. Um dia recebi um telefonema de alguém, em nome de Wilhelm. Era uma enfermeira, ou alguém com tal função, que trabalhava em uma instituição para idosos pobres e abandonados, mantida pela Congregação Luterana no sul do país. Ela me disse que havia uma vaga para assessor no tal asilo, mas quando lhe perguntei para qual função exatamente foi evasiva, falando apenas de prestar assistência espiritual aos internados, fazer contato com as famílias deles, resolver burocracias, coisas assim. Sobre o salário, foi ainda mais vaga, me dizendo apenas que eu teria ali cama e comida de graça. Agradeci, aquilo estava longe de ser aquela tarefa apostólica que o Doutor me prometera. Como eu insistisse na questão do vencimento, a mulher falou de uma quantia que era pouco mais do que um salário-mínimo, de maneira que recusei enfaticamente, avisando que iria procurar outro tipo de oportunidade.
Poucos dias depois Sigrid me avisou que eu podia levar a encomenda do Karsten até Lutherhaus, porque a destinatária estaria por lá às tantas horas. Lá fui apresentado a uma mulher mais ou menos de minha idade, loura e muito pálida, com longas tranças e vestida como uma crente tradicional, que esboçou o que me pareceu ser uma contração de desgosto na face quando lhe falei do envelope cinzento. Mas pegou-o de minha mão, sem qualquer entusiasmo e eu me despedi dela e da velhota de forma ainda mais contrafeita. Passei pela tesouraria da Congregação para receber umas diferenças das despesas da viagem que ainda me eram devidas, fui à cozinha beber um cafezinho e rever algumas das minhas irmãs de fé que lá trabalhavam e desci à rua.
De repente, vi atirado na lata de lixo da portaria da Lutherhaus, sem sequer ter sido aberto, o envelope que Karsten parecia especialmente Não sei se isso chegou a me surpreender, mas realmente esive empenhado em que fosse entregue a Leatrice. Em todo caso, resolvi recolhê-lo, não sei bem por que, talvez para dar àquilo um destino mais digno. Isso adiantou pouco, pois na mesma noite, voltado para casa, fui assaltado a caminho da rodoviária e me levaram a mochila onde tinha guardado o tal pacote. De toda forma, não tive mais notícias de Leatrice, mas na conversa com a velha secretária da Luther tiver certeza que era ela, de fato, a galeguinha de Passo Fundo, de quem eu ouvira falar antes.
E assim se encerra esta história? Não totalmente. Eu retomara minha vida, arranjara um emprego de conferente de cargas em uma empresa de construções e já me conformava com esta nova situação, longe da hierarquia religiosa e sem grandes chances de crescimento profissional.
Um dia me chegou uma carta, de ninguém menos que Popó, que agora estava em Roraima, pelo que vi no carimbo dos Correios. O gaguinho me surpreendeu pela fluidez de sua escrita. Ele se mostrava até competente naquilo, o oposto verdadeiro de sua comunicação pela palavra falada. Sobre o Reverendo Karsten, me contou que providenciara para ele um túmulo mais digno do que aquela cova rasa. Disse que resolvera “adotar” a minha já conhecida Genitália, para fazer com que ela levasse uma vida menos ou nada pecaminosa e que viviam juntos agora. Deu notícias gerais de sua nova vida e finalmente chegou ao ponto culminante: um convite para que eu e ele criássemos uma Igreja lá no lugar em que agora vivia, onde havia, segundo ele, não só muito dinheiro circulando como também muita gente, principalmente venezuelanos, precisando de assistência espiritual. E mais, que eu era talhado para aquilo, pois conhecia bem a Bíblia e tinha o dom da palavra. Já ele, que não tinha tais atributos, poderia cuidar da parte administrativa e “comercial”, acrescentando que Genitália já dava mostras de recuperação espiritual e estava se revelando uma discípula fiel e compreensiva a respeito dos ideais de uma empreitada como aquela, se destacando em arrebanhar novos fiéis. Ela poderia ser muito útil em tal sociedade.
Ele tinha até um nome em vista para tal empreendimento, Missão Sagrada do Gozo e da Alegria, adicionando à carta um versículo de Isaías onde tal expressão aparecia – pelo menos agora em português: os resgatados do Senhor voltarão e virão a Sião com júbilo; alegria eterna se derramará sobre suas cabeças; gozo e alegria os alcançarão e deles fugirão a tristeza e o gemido.
Fiquei pensando, de mim comigo mesmo, se isso não poderia ser uma proposta a considerar… A vida anda tão difícil.
***
Conta de mentiroso
(As Aventuras do Barão de Munchausen)
Não sei porque, tenho uma queda por histórias de mentirosos. Não que eu seja um desses. Longe de mim, minto apenas o bastante para me manter vivo e safo; seguramente não o faço mais do que o comum das pessoas. Aliás, aprecio muito a expressão, se não me engano, de Manuel de Barros: só vinte por cento do que eu falo é mentira; o resto é inventado mesmo.
Potocas. Era assim que as mentiras, particularmente aquelas inocentes, eram chamadas em minha infância. E nesta época conheci e me tomei de amores pelas histórias de um certo Karl Friedrich Hieronymus, autor (ou precursor) das famosas histórias do Barão de Munchausen. Eu gostava muito de ler e já naquela ocasião me deliciava com um exemplar deste livro, que me foi dado por um tio. Ele, o Barão, nasceu no início do século 18, no que é hoje a Alemanha e fez carreira militar. Depois de se retirar, passou o resto da vida em sua aldeia, onde não perdia uma oportunidade de seduzir os camponeses e outros vizinhos com a narrativa de suas façanhas, sempre com muito exagero, mas sem perder a naturalidade. Mentiroso? Vá lá, mas não de um tipo vulgar. Consta que nem todas as histórias atribuídas ao tal barão foram contadas na vida real por Karl Friedrich, mas por certo Rudolf Raspe, um amigo dele, que não só reproduziu como criou novas anedotas atribuídas ao Barão.
Pensando bem, na verdade este é um tema comum na literatura de diversas origens, haja vista, por exemplo, o personagem Alexandre (e outros heróis), de Graciliano Ramos, mais tarde incorporado por Chico Anysio como Pantaleão, aquele do clássico bordão “é mentira, Terta?”, com suas histórias mirabolantes, curiosamente desmentidas por um “bobo” (aparentemente), Pedro Bó (na novela de Graciliano por um cego, Firmino), que assim se revelavam mais espertos do que os demais basbaques reunidos em torno do mentiroso. E Alexandre não perdia oportunidade de desqualificar seu detrator: cala a boca, você não é cego?
No bairro onde morei na infância e juventude havia um tipo assim, conhecido como Alaerte, fazendeiro rico, um barão a seu modo, que passou a vida encantando os roceiros, amigos e mais quem se aproximasse com histórias igualmente saborosas e inofensivas. Isso me lembra um outro mentiroso, embora não honrando tão nobres companhias, como o Barão, Pantaleão, Alexandre e Alaerte. Falo de Dejair, também conhecido como Capitão, talvez por ter sido durante algum tempo militar da ativa. Quando o conheci ele não tinha posto ou patente, mas era dotado de uma enorme vontade de mandar em tudo e em todos, atributos que ele se julgava detentor e multiplicador, como síndico do condomínio onde eu morava na ocasião. E exercia sempre suas pretensas prerrogativas à custa de muita mentira.
Voltando ao Barão, uma das histórias dele é que teria cavalgado durante uma batalha em um cavalo cortado ao meio. Em outra, foi lançado contra uma cidade sitiada montado em uma bala de canhão, ocasião em que passou raspando pela lua. De outra feita, retirou a si próprio e a seu cavalo de um pântano puxando-se pelos cabelos. Este mesmo cavalo, certa noite, foi amarrado em uma cruz à beira do caminho tomado pela neve e, na manhã seguinte, quando a mesma derreteu, o Barão percebeu que o que prendia o animal era a cruz que encimava a torre de uma igreja, com o pobre cavalo amarado lá nas alturas. E por aí vai.
Já o nosso Pantaleão perdeu um olho quando campeava uma rês na caatinga, mas na manhã seguinte conseguiu reavê-lo enganchado num espinheiro. Ato contínuo, colocou o olho na órbita vazia, mas para surpresa sua, percebeu que o mesmo lhe permitia agora perscrutar a própria mente, pois estava virado para dentro. Alaerte, por sua vez, contava que viajou à Europa e voltou encantado com um novo carro lançado por lá pela Mercedes Benz, no qual, para se andar à ré, bastava deslocar o volante, encaixá-lo junto à parte traseira e girar o banco do motorista para trás. Em outra ocasião, ao lançar seu anzol nágua, com a noite já feita, percebeu que o mesmo não fazia aquele tibum característico e, ao contrário, passou a girar sobre sua cabeça. Foi quando acendeu a lanterna e viu que havia laçado um morcego em pleno voo.
O Barão, Alexandre e Alaerte mostram, assim, exemplos notáveis da arte de distrair as pessoas através da mentira e do exagero – sem lhes fazer nenhum, mal, diga-se de passagem. E o capitão Dejair? Na falta de neve, guerras, cavalgadas, aventuras, trabalho pesado na caatinga ou mesmo capacidade de invenção e observação do mundo de forma inteligente, bem como por suas evidentes limitações de vocabulário, ele nem assim deixava por menos e não se pejava em divulgar, a cada dia e com notável persistência, o que um biógrafo ocioso poderia denominar de Mentiras do Capitão. Vamos a algumas delas: as mulheres devem ganhar menos porque engravidam; no Nordeste do Brasil as pessoas produzem pouco e por isso a região deveria ter menos recursos do Governo do que realmente tem; pode-se curar a gripe e muitas outras doenças com remédios para matar bernes do gado; aquele Coronel torturador, seu amigo, foi um herói da pátria; nós militares, por natureza, somos pessoas habilitadas a governar não apenas essa p* de condomínio aqui, mas também o país todo. E assim por diante.
Se houvesse no mundo uma espécie de anti-prêmio para a mentira encoberta de empáfia, o Capitão, sem dúvida, ganharia meu voto. Neste aspecto, se o comparo ao nobre Barão de Munchausen, este tinha, pelo menos, uma sinceridade que falta aos mentirosos vulgares, particularmente a tal troglodita. Dizia ele que suas aventuras poderiam despertar em alguns a sensação do que teria visto muito mais do que a realidade de fato mostrava e assim duvidarem de suas palavras, mas avisava aos circunstantes que se houvesse alguém com tal disposição ali, ele, o Barão, ficaria profundamente magoado, neste caso ameaçando despedir-se-ia de imediato. E para arrematar, que isso levaria prejuízos a todos, pois suas aventuras marítimas, ainda não reveladas até então, seriam muito mais maravilhosas do que aquelas já narradas por ele, embora não menos autênticas.
Voltando, desgraçadamente, ao Capitão: numa roda de botequim em que ele propagava suas mentiras, dava também detalhes escabrosos sobre a história de um homem que matou seu melhor amigo por ter suspeitado de um relacionamento dele com a esposa. E o Capitão não deixava por menos: tem que ser assim mesmo! Eis que um daqueles Cegos Firminos que assistia a conversa, pessoa que ele nem conhecida, o inquiriu se o narrador agiria de igual forma, se tal caso acontecesse com ele. O tiranossauro, talvez por ter algo a lhe coçar na fronte, saiu de súbito da roda, foi até em casa e voltou armado de uma pistola Gluck zero ponto nove, e pespegou no desavisado inquiridor três tiros, que lhe atingiram crâneo e tórax, tirando-lhe a vida instantaneamente.
Moral da história: Munchausen. Alexandre, Pantaleão, Alaerte nunca fizeram mal a ninguém. Já do famigerado Capitão, e de outros tipos assim, não se poderia dizer a mesma coisa.
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O Grande Livro – (Em Resumidas Palavras)
Um homem recebe um visitante para uma longa conversa. Deste último, nada se saberá, exceto que vem da cidade, enquanto o anfitrião, também narrador, mora na roça. Mas se aquele se trata de pessoa letrada, com certeza interessada na longa conversa de que participa como bom ouvinte, pois não proferirá palavra, o anfitrião tem prosa rústica, porém articulada e fluida. Ele começa falando de generalidades, como de uns tiros que o visitante teria ouvido um pouco antes de chegar e aproveita para declarar seu gosto pelas armas, mas só para treinar a pontaria, pelo menos nos últimos tempos, pelo que se depreende. Fala das pessoas que lhe são vizinhas, da simplicidade e do modo tosco destas em relação às coisas do mundo; de um compadre que mora distante e que lhe traz inspiração espiritual, em relação à qual é muito respeitoso; de mulheres que ele paga para rezar para ele. Por que este homem precisaria de tantas orações assim? Já nesse momento o leitor começa a penetrar no universo denso e profundo da longa história que se desenrolará. Aqui e ali, já de início, o narrador coloca em pauta algumas dúvidas que tem, por exemplo, da presença de Deus na vida dos homens e também da contrapartida oferecida aos viventes por ninguém menos que o Diabo. Será que este de verdade existe, indaga repetidamente? Deixa no ar, em certo momento, uma frase que repetirá em vários momentos da conversa, a ser esclarecida só ao final: o diabo, na rua, no meio do redemunho.
Aos poucos revela passagens de sua infância. Fala da figura esmaecida de sua mãe; de um padrinho que lhe criou, ao qual não parece prestar grandes homenagens; de homens notáveis, com os quais ele teve oportunidade de conviver, com destaque especial, neste momento, para um cidadão chamado Medeiro Vaz. Uma outra pessoa marcante em sua vida também é lembrada: Diadorim; logo adiante se vai esclarecer de quem se trata. Neste momento, o anfitrião-narrador já se apresentou, sendo Riobaldo o seu nome. A entrada em cena de Medeiro Vaz traz uma primeira luz sobre o passado daquele homem que aprecia armas e tiros, mas se diz pacífico: ele militou em jagunçagens. O território da ação é o Norte do estado de Minas Gerais, mais exatamente no grande vale formado pelo rio São Francisco e seus afluentes, principalmente na margem esquerda. Aos poucos, informações sobre o mister de se ser jagunço aparecem, com foco nas relações de compadrio entre os chefes de bando, latifundiários, lideranças políticas e chefias de menor calibre. O bando de Medeiro Vaz percorre o sertão em missão de ajuste de contas, não se sabe ainda com ou contra quem. Para surpreender um adversário é preciso que o grupo realize uma travessia por demais arriscada, a do Liso do Suçuarão, um lugar que é o mais longe – pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. O bando esbarra, a duras penas, na natureza de tal lugar e recua; Riobaldo é enviado por Medeiro Vaz em busca de socorro de outros chefes distantes. Neste ínterim, o Chefe sucumbe, de morte morrida. A este tempo, uma nova saga de jagunços se menciona, de passagem, a se desenrolar em tempo futuro, sob a chefia de um outro personagem notável, Zé Bebelo (José Rebelo Adro Antunes), de quem muito ainda se falará.
Neste momento, há uma pausa para o narrador falar de sua vida pregressa, de onde foi criado, da morte de sua mãe, de sua vida com seu Padrinho Selorico que o criou, de suas andanças e amores. Entre outras lembranças, revive um encontro remoto, na beira do rio São Francisco, com um menino de sua idade – fato que, dá a entender, lhe marcará profundamente depois. Um outro homem notável é apresentado: Joca Ramiro, também chefe de jagunços no mesmo Norte de Minas. Com ele o jovem Riobaldo fica vivamente impressionado, já ansiando por uma vida de aventuras sob o comando de alguém assim, longe do rame-rame sem horizontes daquele Curralinho onde fora criado. Como era relativamente letrado, pelo menos para os padrões sertanejos, Riobaldo vai então em busca de outros ares, para se tornar mestre-escola em lugar distante da fazenda de seu padrinho. Lá descobre que, na verdade, o fazendeiro local que o tinha contratado, buscara seus serviços não exatamente para ministrar aulas para crianças, mas sim para si próprio, eis que este tinha grande sede de saber. Assim retorna à história aquele mesmo Zé Bebelo, o fazendeiro que prezava as letras, que depois chefiará uma expedição de vingança que tem significado especial na obra. Mas neste momento Bebelo joga do lado da Lei – aquela lei dos Homens do Estado, da Política, da Polícia – contra a jagunçada que Riobaldo começava a prezar e ele, por não gostar do papel que lhe é oferecido, foge.
Depois de peripécias diversas Riobaldo revê aquele Menino da beira do São Francisco – e este é Diadorim – agora fazendo parte de um bando de jagunços chefiado por um Hermógenes, ao qual o narrador se incorpora. Diadorim é conhecido no bando como Reinaldo, a razão disso se descobrirá depois. Em momento seguinte, é apresentada de passagem outra personagem central da obra, Otacília, residente na Fazenda Santa Catarina, nos longes do Urucuia, por quem Riobaldo se apaixona, mas de quem se mantem separado, dado seu oficio de jagunço. Na sequência este bando dos Hermógenes, com Riobaldo e Diadorim/Reinaldo já irmãos em armas e lutando juntos, dá combate aos Bebelos, na região da Jaíba. Diadorim revela ser filho de Joca Ramiro, o chefe maior. Aqui entra como aposto o lúgubre e extraordinário caso de Maria Mutema, passado no Sertão Jequitinhão, estranha mulher que seduziu um padre e matou de forma totalmente inusitada seu marido. Entra em cena agora Joca Ramiro, a quem Riobaldo já conhecia.
Em combate, Zé Bebelo é capturado em seguida e vai a julgamento comandado por Joca Ramiro em pleno sertão, na Fazenda Sempre Verde, sendo absolvido pelo chefe máximo, desde que se afastasse do cenário são-franciscano. Hermógenes e Ricardão, dois de seus lugar-tenentes, discordam de tal decisão e, ato contínuo, mandam matar Ramiro. A guerra agora assume outra feição, tendo foco no combate aos assassinos, agora denominados de Os Judas. Na confusão que se segue, Riobaldo descobre algo de que já se suspeitava: Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – na hora. Mas não era momento para amores: quem estava no encalço deles agora, desfalcados daqueles que preferiram aderir aos Judas, era a própria Polícia do Governo. Zé Bebelo então volta, de forma épica, vindo numa jangada pelo rio Paracatu, para vingar a morte de Joca Ramiro, a quem ele devia a vida. Surgem notícias breves de Otacília. A guerra contra os Judas empurra o bando para a Fazenda dos Tucanos, onde um cerco feroz se instaura, custando muitas vidas e o doloroso fuzilamento dos cavalos, por parte dos façanhosos Hermógenes. Daqui para frente, a narrativa seguirá ordem cronológica. No cerco, Zé Bebelo desenvolve uma estratégia arriscada, de mandar um portador às próprias autoridades, denunciando o bando agressor e Riobaldo, mesmo desconfiando fortemente de tal situação, é encarregado de redigir a petição, que dois ou três companheiros levam para fora do cerco. Mas o fato é que tal estratagema dá certo e eles escapam enquanto os Judas se avêm com a soldadesca.
Na busca de um refrigério onde pudessem recuperar as perdas sofridas, seja de homens ou de animais, encontram um grupo curioso de pessoas, seres de grotesca aparência e muito estranho linguajar, aqueles homens reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão, os catrumanos daquelas brenhas. Nesta quadra, Zé Bebelo se vê desacreditado e Riobaldo assume o comando. Passam por outra experiência desagradável, a chegada a um lugarejo devastado pela varíola, o Sucruiú. Seu Habão, um fazendeiro da região, lhes dá apoio, inclusive material, não propriamente por caridade, mas por provável espírito de obter lucro posteriormente. Nas Veredas-Mortas, Riobaldo, o novo chefe, se vê impelido a procurar ajuda do Além – e se torna (duvidando disso, por vezes, posteriormente) pactuário com o Demo, fato que o marcará até a velhice e do qual pretende se livrar com seus questionamentos sobre a existência real do Diabo, presentes desde o início da narrativa. Riobaldo, assumindo sua bizarria de chefe adora o sobrenome de Tatarana – Lagarta de Fogo – e incorpora ao bando duas figuras inesperadas: o cego Borromeu e o menino Guirigó. A narrativa segue em direção aos embates antevistos desde o princípio da narrativa e logo se verá o significado daquele enunciado relativo ao diabo na rua no meio do redemunho. Pequenos acontecimentos se anunciam: Diadorim manda um recado misterioso por portadores tropeiros ocasionais; há uma carta para Otacília, entretanto só entregue muitos anos depois; Riobaldo se vê tentado pelo Tinhoso e quase mata um homem inocente e um leproso escapa por pouco de morrer pelas mãos dele; os urucuianos que haviam se juntado ao bando desertam da luta. No calor de tais acontecimentos, Riobaldo, atormentado pela culpa e pelo desejo: De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a culpa? Diadorim revela algo muito importante: … quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você.
Na sequência, o Liso do Suçuarão é atravessado pela segunda vez, agora com sucesso. O objetivo é acossar o Hermógenes, de surpresa, em sua fazenda às margens do rio Carinhanha, já em terras da Bahia. Na empreitada é feita prisioneira sua mulher, que passa ter um papel importante na história. Aquela mulher sabia dureza; riscava. Ela discordava de todo destino. Inicia-se uma grande marcha, por sertões de Bahia, Minas e Goiás e a ação se acelera. Riobaldo surpreende uma conversa misteriosa entre Diadorim e a mulher do Hermógenes, parecendo haver nela mais simpatia do que ira ou desprezo. Notícias chegam, informando sobre a vinda do Hermógenes, em obra de vingança e resgate da mulher. São apresentados os baixios do Tamanduá-Tão, de provável localização no município de Buritizeiros-MG, onde também se situa a vila do Paredão, cenário de coisas pavorosas que acontecerão em breve. O cenário da guerra que se aproxima é traçado como se fosse um capítulo de estratégia militar. Um dos Judas, Ricardão, é logo encontrado, cercado e fuzilado no ato por Riobaldo.
Riobaldo percebe, na ocasião: a guerra descambava, fora do meu poder. Não morri e matei. E vi tudo pendurado para o fim. No avanço final, no corpo a corpo, ele vê o que não queria: Diadorim a vir – do topo da rua, punhal em mão, avançar – correndo amouco…[…] Trecheio, aquilo rodou, encarniçados, roldão de tal, dobravam para fora e para dentro, com braços e pernas rodejando, como quem corre, nas entortações. … O diabo na rua, no meio do redemunho… Sangue. Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco sapecado e rapado… Sofri rezar, e não podia, num cambaleio. Ao ferreio, as facas, vermelhas, no embrulhável. A faca a faca, eles se cortaram até os suspensórios. … O diabo na rua, no meio do redemunho… Assim, ah – mirei e vi – o claro claramente: ai Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes…
O resultado são os dois mortos. Aqui a história se acabou, acabada. Diadorim, na verdade, Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor. E encerando a saga: Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.
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