Manhã de chuva, mas poderia ser também de sol forte e pleno. Lá estava ela. Na janela. O pai na roça, a mãe lavando roupa, os irmãos mais velhos na escola. Só ela em casa, triste, triste. Também, será por que dona Teresinha, a professora dos pequenos, tinha que adoecer justo agora? Nem a companhia de Malhada, a gata, era capaz de lhe trazer consolo, até porque a danada dera para namorar e mais ficava a andar por aí do que vir brincar com ela. E tudo demorava a passar, demais. A mãe queria ela quieta em casa. De outra vez tinha saído para dar uma volta e quase foi atropelada pela motoca do Zé Caxeiro. Para não dizer que não tinha nada para fazer, a mãe mandou vigiar a água na chaleira, para desligar, quando fervesse – vê se pode uma coisa assim. Ela era capaz de muito mais!
Mas de repente, barulho de carro na estrada. E não é que estão passando a porteira agora? Quem seria? Um par de pessoas, ou mais. Um carro enorme, como ainda não tinha visto igual, parecia a camionete do seu Gumercindo, mas com mais janelas, na frente e atrás. Na cacunda vão levando uma moto e mais um monte de trastes embrulhados em uma lona. Deus do céu, este povo da cidade…
Agora chegaram no limpão de frente à casa. Dois moços e uma moça. Ou melhor, com aquele cabelão nos ombros, ainda mais louro como uma espiga de milho, um daqueles moços mais parecia uma moça. Mas foi ele que veio falar com ela: – boa tarde, moça.
Moça? Ninguém nunca tinha lhe chamado assim, o costume ali era de outro tipo, garota, menina, piá, algo assim. Ou então nada, alguma coisa como oi – e ficava por isso mesmo.
– Eita, aconteceu alguma coisa com sua língua, guria? Não fala nada?
Que diabo, estava começando a ficar com vergonha. Sempre perdia o jeito quando tinha que conversar com gente da cidade, umas pessoas tão diferentes, às vezes muito chatas, metidas a não sei o quê. Balbuciou qualquer coisa, com um pequeno movimento de lábios. O que tinha a dizer o fez mais com o olhar, tentando dizer que tivessem um bom dia – mas que não a amolassem muito. O cabeludo achou graça, mas pelo menos foi legal com ela: – tudo bem com você? Como se chama? Eu sou o Ivan…
Ivan… Que nomes bonitos essas pessoas da cidade costumavam usar. Este aí até parecia ter saído de alguma novela. E ele não parava de falar, enquanto os outros ainda estavam a mexer na bagagem da camionete. – A gente quer ir na cachoeira, já falamos com o Januário lá em cima. Januário era o pai, se já tinham falado com ele, quem era ela para dizer que sim ou que não?
Finalmente conseguiu dizer alguma coisa: – podem passar, é por ali, depois de quebrar pro lado da porteira.
O tal do Ivan era metido a engraçadinho: – fique tranquila, mocinha, não vamos quebrar nada…
Mas aquele ali queria mais: – não vai contar pra gente como é o seu nome? Dessa parte ela não gostou, porque tinha vergonha daquele nome antigo e fora de moda, que ela tinha ganhado por causa de uma madrinha que ela nem conhecia: – Dolores. – Como, insistiu o outro: Maria das Dores? Aquilo só podia ser para fazer raiva nela. Devia ter percebido e ensinado o caminho errado para eles…
Mas o Ivan também sabia consertar as coisas: ah, Dolores, é o nome de uma tia minha, sabia? Uma pessoa muito legal. Aliás, pelo que vejo, você parece ser uma pessoa bem legal também. Acho que vamos ficar amigos.
Menos mal para ela, pelo menos dava para tomar pé da situação e deixar a vergonha sumir. E com o pudor posto de lado, conseguiu olhar pela primeira vez para os recém chegados. A moça era toda pintada, com uns rabiscos pretos e coloridos no pescoço, nos braços, na barriga. No ombro, tinha uma cabeça pintada, que parecia um índio, ou coisa assim. O outro, que devia ser o namorado dela, era igualmente desenhado dos pés à cabeça. Eita! Este povo da cidade… Mas Ivan, por milagre, não tinha nada pintado em si, ou melhor, depois ela viu, tinha apenas uma pombinha voando, nas costas de uma das mãos. Dolores achou aquilo bem catita, mas guardou para si tal constatação.
– Mas pode me chamar de Lorinha, como é o jeito que o povo daqui me trata… Ela já não sabia de onde tinha tirado a coragem de falar uma coisa como aquela, ainda mais para gente que ela acabava de conhecer. Ivan não perdeu a oportunidade: ah, assim fica mais bonito mesmo. E combina com você!
Ela agora se sentiu encorajada em espiar melhor aquelas pessoas. Ou melhor, olhar direto para Ivan, porque os outros dois estavam dando nela uma certa gastura, com a pele do corpo tão rabiscada daquele jeito. Meu Deus, como ele era bonito! Até parecia um santo que ela tinha visto na capela, com o corpo todo espetado por flechas. Nem na televisão ela tinha visto alguém assim. Aquele cabelo longo, parecendo de milho, a lhe descer pelos ombros, cruzes, ela não sabia que podia existir uma coisa assim tão perfeita, de verdade, e bem ali na sua frente. E agora podia lhe ver os olhos e eles eram azuis, como duas bolinhas de gude, não das comuns, mas daquelas especiais, tão difíceis de encontrar!
Era a sensação que lhe dominava: aquilo que agora ela via à sua frente, aquele moço, era coisa realmente difícil de se ver por aí, em qualquer lugar, aliás. Ela, pelo menos, nunca tinha vista alguém assim.
Nisto lembrou-se da chaleira, da recomendação da mãe. Deu-lhes as costas, sem avisar nada e quando finalmente voltou à janela, teve o dissabor de perceber que eles já tinham tomado o caminho da cachoeira.
Seu dia, entretanto, já não era o mesmo. Não estava mais preocupada com dona Teresinha, com Malhada, com a mãe, o pai ou os irmãos, nem com nenhuma chaleira, fosse lá o que fosse. Ela só queria ver o Ivan de novo, pelo menos mais uma vez. Olhar dentro daqueles olhos de bola de gude, que pareciam ter um furinho escuro no meio, e mais aqueles cabelos de milho, escutar a voz dele dizer de novo: – Lorinha é mais bonito; combina melhor com você.
E na janela ficou, por horas seguidas, a olhar para os lados da porteira do quintal. Nunca antes tinha ficado tanto tempo assim. Foi retirada de tal vigília pela chegada da mãe, que ia preparar o almoço da família e a enchia de ordens, de buscar água, apanhar umas folhas de couve na horta, pegar o alho na despensa, essas coisas. Ela fez tudo sem reclamar, mas sem prestar qualquer atenção nos afazeres; ter ido à bica, por exemplo, para voltar com a vasilha seca. Ao ponto de a mãe ter ralhado com ela, que deixasse de ser sonsa.
No final da tarde, finalmente o movimento tão esperado aconteceu. Vinha o casal na frente e mais atrás o santo do altar de Dorinha. Os rabiscados passaram sem qualquer manifestação ou gesto amigável, mas Ivan – este não – fez questão de parar e chamar – Lorinha! Ela veio, nem sabia como conseguia respirar, muito menos se precisasse dizer alguma coisa. E ele: trouxe uma coisa para você, desculpe, ficou meio amassado. Era um bombom, realmente meio amarrotado, mas pulsante e lindo em sua embalagem redonda e vermelha, onde estava escrito o que ela leu com a dificuldade de recém alfabetizada: Sonho de Valsa.
– Até qualquer dia, Lorinha, disse Ivan, já entrando na camionete.
Ela talvez não tivesse, até aquele momento de sua vida, a percepção clara de uma sensação tão forte como aquela. Seria aquilo – coisa mais feliz – de que ela se lembraria mais tarde uma espécie de amor, ou encantamento. Naquele momento, coisas assim com certeza estiveram bem ali com ela, em modo tão forte, claro e luminoso como dois olhos azuis, como aquela voz cristalina a lhe dizer coisas que era tudo o que ela queria ouvir. Não de maneira tão evidente, mas o bastante para que ela se lembrasse disso por muito, muito tempo, levando-a ansiar pela possibilidade de sua repetição em alguma outra chance que a vida lhe oferecesse. Talvez não tivesse entendido, ainda, que a tal felicidade fosse apenas uma sensação, que só se apresentaria às gentes daquela forma, como um raio, um olhar, uma chuva de verão, um bombom oferecido a partir do nada, não como quem chega para ficar.
Mas ali na janela ela sentiu, embora não tenha compreendido de fato, o significado disso, de verdade.
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