Um dia desses, confesso, por me faltar alguma coisa mais significativa, ou útil, para fazer, passeando pela internet, como acontece em ocasiões assim, me dei com um vídeo antigo, em preto e branco e cheio de chuvisco (do tempo que isso se chamava vídeo-tape, com hífen e tudo) no qual Juca Chaves cantava um antigo sucesso dele, nos anos 60. Chamava-se, tal peça, autorreferente, Meu Nariz ou Meu Nasal (ou algo assim) e eu mais uma vez – e tantos anos depois – achei graça na verve deste antigo menestrel, que anda sumido ou, quem sabe, já morreu. Aliás, fico às vezes espantado com a quantidade de gente da minha geração que anda morrendo por aí. Faz parte, pelo menos ainda tenho mortes a lamentar. Pode ser que algum dia, nem isso me servirá de consolo. Mas para quem não conhece, vejam só a graça que o Juca tem (ou tinha…): nasal, ah meu nasal / como falam mal deste nasal, que é tão normal / diz o mundo imundo e essa gente infeliz / que o meu nariz, é maior que a miséria do país / maior que o busto da Lolô / maior ainda, que o sorriso do Nonô…
Pois bem, para quem é mais jovem torna-se necessário contextualizar. O “sorriso do Nonô” refere-se à proverbial bonomia de que era dotado Juscelino Kubistchek, Presidente da República à época. Já o “busto da Lolô” se referia a certos predicados anatômicos de Gina Lolobrigida, estrela do cinema italiano na ocasião, especialista em filmes românticos até certo ponto inocentes, mas que não deixavam de mostrá-la em poses generosas, com destaque para os melões opulentos de que era muito bem dotada.
Essa conversa a respeito de mamas, ops, melhor dizendo, de narizes, me traz à memória a presença deste outro apêndice corporal na literatura e até mesmo uma memória pessoal minha, dos meus tempos de médico e certamente menos agradável e pitoresca que as demais.
O grande nariz literário certamente é o de Hector Savinien de Cyrano de Bergerac, que eu pensava ser apenas um personagem de romance, mas que existiu de verdade, em carne, osso e… nariz. Ele viveu em Paris, entre 1619 e 1655 e apesar de sua vida curta (embora normal para a época, em termos de longevidade) deixou marcas importantes. Ele foi um escritor e aventureiro, famoso, ente outros motivos pelos duelos em que se meteu. Ficou mais conhecido pelos textos ficcionais de terceiros, que o trazem como personagem, nos quais ele costumava ser retratado com um grande nariz, especialmente em uma peça de teatro de Edmond Rostand sobre sua vida. Curiosidade: Bergerac, o autor, não o personagem, fez de certa feita uma incursão na literatura de ficção científica, através da descrição de uma espécie de máquina destinada a viagens siderais. O cara era bem versátil, pelo visto
Outro nariz notório nas letras é aquele persente em um conto satírico do escritor russo Nikolai Gogol, que também inspirou o compositor Dmitri Shostakovich a compor uma obra sobre o mesmo tema. Escrito por volta de 1835, O Nariz refere-se à história de um oficial de São Petersburgo cujo apêndice nasal lhe abandona o rosto e parte para uma vida independente. Trata-se de uma narrativa absurda, típica do universo temático de Gogol, na qual um fato trivial é apenas aparente, com o autor fazendo o invulgar passar a ser algo estranhamente verosímil, dentro de uma lógica ilógica, um absurdo total, de realidade subvertida. Não é que se apele a alguma força sobrenatural, em O Nariz o que denomina é uma espécie de manipulação estética, da qual o autor, um verdadeiro mestre na prestidigitação literária, tira hilariante proveito. Como está na Wikipedia:
O que caracteriza esta obra é a forma especial em não encontrarmos um ambiente enigmático: o que supúnhamos sobre a magia de um nariz desaparecido como causa que se abateu sobre o major Kovaliov é imediatamente rejeitada pela manipulação estética do autor em torno do acontecimento, como se de algum modo a absurda ausência do nariz não fosse mais magia, mas um facto consumado.
Vamos agora à minha história nasal. Acreditem, eu já fui médico, acompanhei pacientes, me vesti de branco, cumpri plantões. Acho que não fiz má figura, mas sinceramente hoje vejo até com alívio que tal tempo já passou para mim. Aliás, passou há muitos anos.
Para começar, lembro que cliniquei por alguns anos, até que a mosca azul (ou cinzenta, não sei bem) da saúde pública me picou e me deixou tifoso para sempre. É que eu tinha alguma formação naquilo que se chamava na época de “medicina tropical”. A chegada da AIDS, nos anos 80, subverteu tudo… Já não era só uma questão de “medicina” e muito menos “tropical”. O que estava em jogo, agora, eram questões ligadas aos modos de viver, aos comportamentos, às relações sociais (não apenas as “sexuais), coisas assim. Em todos os paralelos e meridianos, não apenas nos famosos e tristes “trópicos”. Bactérias e vírus presentes, sim, mas apenas como variáveis de uma equação muito mais complexa. Nada, enfim, que o arsenal médico tradicional fosse capaz de dar conta, com suas vacinas, antibióticos e outras balas milagrosas e equipamentos, além da empáfia profissional.
Nesta ocasião caiu em minhas mãos, no Hospital de Clínicas da Escola de Medicina de Uberlândia, onde eu trabalhava, uma pequena dependência com três ou quatro leitos, para acolher tal tipo de paciente, e ali se colocavam-se casos de tétano, por exemplo, doença não contagiosa, mas que exige ambiente de muita calma, obscuridade e silêncio, para não estimular sensorialmente os pobres pacientes, cujas terminações neuromusculares ficam impregnadas da toxina da respectiva bactéria causal. Péssima iniciativa, logo revertida, pois o tal isolamento ficava no andar térreo do Hospital de Clínicas e logo ali ao lado estacionavam carros de entrega, inclusive de cilindros de oxigênio (que ao serem movidos fazem uma zoada dos diabos) e trafegavam muitas pessoas, inclusive alunos, com a bulício característico da juventude. No mais, apenas se via por ali um ou outro caso de meningite, porque aquelas doenças típicas do famoso livro do Veronesi na verdade eram raras. E a AIDS ainda nem era conhecida, não havia ainda feito sua estreia no cenário.
Assim, o tal isolamento, mesmo pequeno, logo ficou ocioso, passando a abrigar não apenas os contagiosos da vez, mas toda uma penca de pacientes em condições inusitadas, tendo como fundamento da decisão de metê-los ali o simples fato de serem indesejados em outros lugares. Por exemplo, por falta de asseio, agitação incontrolável por medicamentos, aspecto repugnante ou mesmo, na melhor das hipóteses, falta de vaga… Em tal contexto, um dia chegou a mim o Sêo Antônio, que tinha um nariz enorme, inchado, vermelho, suculento, lembrando um Cyrano de Bergerac, mas bem pouco agradável. O tal nasal parecia uma fruta madura, mas isso não o isentava de se mostrar também repugnante, pois tal pomo minava secreção copiosa e, além do mais, perdoem-me a franqueza que certamente ofenderá aos mais fracos: fedia. E o fazia como a evocar um dito de minha avó, certamente herdado de seu pai português: fedia a cães mortos! E o pobre homem mal tinha quem se encorajasse a se aproximar dele, figurava um daqueles leprosos medievais. A suspeita era de blastomicose, uma doença fúngica que costuma acometer as transições cutaneomucosas. Eu havia lido no Veronesi que o apêndice nasal podia ser acometido e se apresentar com um aspecto como aquele, de pepino ou pimentão passado. A história clínica era compatível, dado a visível higiene precária do personagem e sua origem rural, além do curso insidioso. Eu já havia visto, em minha residência médica, no Hospital das Clínicas da UFMG, casos cutâneos e pulmonares, mas nada como aquilo.
Examina daqui, examina dali, colhe-se material, esperam-se resultados. E o tempo vai passando. Até que um dia o diagnóstico se fez sozinho. O pobre Antônio começa a eliminar pelas narinas – agora tirem as crianças e as pessoas sensíveis da sala – nada mais nada menos do que uma legião de larvas de mosca de berne. Eca! A esta altura, a higiene local com líquido de Dakin, nome sofisticado da popular água sanitária, além da aplicação de compressas de vaselina, que sufoca as tais larvas e as faz cair fora, resolveram a questão em poucos dias. Inclusive a fedentina cedeu.
Esta história só não tem um final realmente feliz porque Antônio era pobre, muito pobre, e vivia sozinho, quase abandonado. Seus hábitos higiênicos eram dignos de um vivente medieval, fosse servo ou senhor. E tendo recebido alta, voltou para sua vida de sempre. Não retornou ao HC, creio, nem para o controle que lhe foi agendado. Nunca mais o vi. Toda essa história, entre o dramático e o escatológico, é trazida aqui por um aspecto curioso, que reproduzo com todo respeito, esperando dar aos leitores um pouco mais de compreensão entre o que é estar doente, na visão dos próprios pacientes, versus a maneira distante e técnica como os veem os médicos e outros membros da equipe de saúde, que apenas perseguem diagnósticos.
Assim, eu indaguei a ele: Sêo Antônio do céu, me diga: como isso pôde acontecer com o senhor? E ele, acanhado, meio se desculpando: pois é seu dotô, não sei não; é que às veiz a gente distrai, até do nariz…
