Paródia inspirada em A Morte Acidental de um Anarquista, do autor italiano Dario Fo, peça de teatro que, por sua vez, parece ter sido inspirada em O Inspetor Geral, do russo Nikolai Gogol. E que os leitores perdoem tais liberdades com obras tão alheias como clássicas.
CENA 01 (Sala de espera de uma unidade típica do sistema de saúde no Brasil, com mobília barata, paredes descascadas, piso defeituoso, um único banheiro com a porta semiaberta. Nas paredes cartazes feitos à mão anunciam proibições e negativas diversas. Cinco ou seis pessoas (US) esperam, pacificamente. Uma mesinha no canto, aparentemente destinada a recepcionista ou alguém com tais funções, permanece vazia durante todo o tempo. Há um relógio na parede, de tipo comum. No canto, uma escada encostada na parede, junto a fios soltos descendo do teto. Ao fundo uma porta na qual se lê: “Entrada permitida apenas para o pessoal da Administração”. Um homem agitado (HR) anda para lá e para cá, consultando a toda hora seu relógio.)
Personagens:
- Homem reclamante (HR)
- Diretor Administrativo (DA)
- Enfermeira chefe (EC)
- Responsável de contas (RC)
- Usuários (1, 2, 3) (US)
- Moça da limpeza e cafezinho (ML)
Ambientes:
- Sala de espera
- Escritório do Hospital
HR (falando consigo mesmo, mas em voz alta): é um absurdo, estou aqui há mais de 40 minutos e anda não consegui falar com ninguém!
US1: pior comigo, estou aqui há mais de uma hora e é a terceira vez que venho para tentar conseguir uma consulta para minha filha, que está grávida, e ainda não consegui nada, nem falar com ninguém.
US2: eu só queria um atestado, para ver se o patrão não desconta meu dia hora. Com 40 graus de febre, não é para menos…
US3: tive mais sorte do que vocês, me deram esta pulseirinha (mostra um adereço amarelo) ontem e me disseram que hoje tudo daria certo, não vou perder as esperanças, mas cheguei aqui antes das sete.
HR: pois é, eu só queria saber do resultado do exame que minha namorada fez ontem, para saber se estava grávida.
US1: espero que o senhor tenha mais sorte. Minha filha de 14 anos ficou dependendo disso durante quase um mês até que a barriga dela cresceu e já ninguém duvidava do que tinha acontecido. E ela até hoje nem sabe quem é o pai. O senhor, pelo menos, é um homem que se preocupa com coisas assim… Hoje em dia isso é uma raridade verdadeira.
HR: É que isso é importante para mim, de verdade. Vejam só, não estou preparado, nem ou pouquinho, para ser pai, antes não tivesse tomado uns goles naquela festa rave de uns dias atrás. Foi aí que rolou esta confusão toda.
US2: Esta mocidade de hoje…
US1: É coisa tão fácil de resolver, será que esta turma nunca ouvir falar de camisinha?
US3: De camisinha ou de vergonha na cara?
US1: Não estou falando com o senhor, Ok? Melhor ficar quietinho aí no seu canto, garanto de que nem deve ter filha ou filhos.
US3: A senhora se engana, tenho cinco, sendo três moças. Nenhuma delas nunca precisou de passar por uma coisa assim.
US1: Mas se não me engano, tem um filho seu, um daqueles machinhos mimados, anda aprontando coisas por aí… Bem, deixa prá lá…
HR: Macho mimado não é o meu caso, me considero um cara muito responsável…
US2: Mas porque o senhor está tão nervoso? Ou, pelo menos, parece assim.
HR. Não vamos confundir as coisas. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Essa gravidez, se é que ela existe mesmo, ainda precisa ser melhor esclarecida, posso nem ser o pai, sei lá. Mas meu problema agora é que eu tenho um cliente para atender. Sou corretor de imóveis e faz várias semanas que não vendo nada, nada mesmo. Também, com esta crise…
US2: Mas crise é o que não falta por aí. Veja o meu caso, por exemplo, estou desempregada, o marido preso, um filho na viadagem.
US3: A senhora falou o quê? Vadiagem?
US2: É viadagem mesmo, não tenho vergonha de falar. Sempre andou em más companhias. Também, com o pai que tem…
US3: Não falei? O Brasil vive uma crise moral! Coitada desta nossa pátria, de nossas famílias. Deus se esqueceu de nós…
US1: Vocês só falam de política, cruzes! Eu, por mim, não gosto de política, acho tudo uma trambicagem. Lula ou Bolsonaro, pra mim tanto faz. O que eu queria mesmo é ser atendida. E rápido. Eu tenho uma filha de 14 anos grávida em casa e já se vão três meses que tento marcar uma consulta.
US3: Se ela tivesse tido uma boa educação moral…
US1: Vai cuidar de sua vida e não me amole!
US2: Ai, já estou com calafrios e muito mal estar. E vocês com essa conversaiada fiada que não me ajuda em nada. Eu só queria um atestado, do resto eu sei me cuidar.
US3: Se apegue com Deus, com Nosso Senhor Jesus, minha filha!
US1 (olhando para o teto): Nossa! Este crente aí não perde uma oportunidade de ficar calado… Se é que não é ele mesmo uma daqueles pastores que arrancam dinheiro das pessoas.
US3: Sim, minha filha, sou Pastor da Igreja Triangular Empreste a Deus, com muita honra! A senhora tem algo a dizer ou criticar sobre isso?
ML (ao pé da escada abandonada no canto, com os fios pendentes etc. passando um pano no chão, conjecturando): gente, esta tralha está aqui há uma semana, desde aquele dia que o eletricista passou mal. Já perguntei ao chefão se posso retirar, mas ele falou que por enquanto não, porque isso aí é terceirizado, sei lá. Se fosse na minha casa já tinha saído daí.
US2: isso aqui está uma bagunça, mesmo.
US1: vocês ficaram sabendo dessa história do eletricista? Ele estava trabalhando aí e passou mal…
US3: Deve ter levado algum choque nesses fios…
US1: Nada disso, parece que teve um piripaco grave, botou a mão no peito e ficou aí estrebuchando um bom tempo, sem aparecer ninguém para ajudar. Aliás, quem deu socorro acabou sendo o povo que estava por aqui esperando atendimento mesmo. De lá de dentro não saiu ninguém. Me disseram – e eu acredito.
US2: Fiquei sabendo que ainda outro dia, lá no postinho do bairro da Cachoeira, uma mulher começou a parir de manhã e só foram dar atenção para ela no meio da tarde. A criança acabou ascendo no meio das cadeiras…
US3: Pelo menos nasceu vivo? Deus sempre está presente nessas horas.
US2: Parece que escapou, pelo menos este. Deus deve andar muito ocupado com tanta bagunça por aí, por sorte estava passando por perto bem na hora…
US3: Não se esqueça, Irmã, que Deus é onipresente…
US2: Oni… o quê?
HR: Eita, tá difícil, vou ter que tomar alguma providência… Cliente me esperando, vou acabar perdendo esta venda…
US3: Onipresente, o que significa que Deus está em toda parte, em todo momento.
US2: Como assim, essa é boa… O senhor sempre encontra ele por aí? Com certeza não estava por aqui quando o pobre do eletricista teve o tal piripaco.
US3: Irmã, tenha respeito…
[…]
HR: Gente, dou razão a vocês, é muito despautério mesmo. Queria ficar por aqui para ajudar vocês nas reclamações, mas vou fazer melhor, vou falar direto com os homens, lá em cima. Fui! Bye-bye!
US (em uníssono): Boa sorte!
(HR caminha em direção à porta nos fundos, onde está escrito “Entrada permitida apenas para o pessoal da Administração” e entra por ela. Nesse momento uma paciente idosa chega em cadeira de rodas, gemendo muito e os vários usuários se aproximam dela, para assuntar ou prestar ajuda. Corre o pano)
CENA 02
(Ambiente administrativo formal com birôs, cadeiras, computadores, ramais telefônicos, cafezinho, retrato de autoridade na parede, etc. Cinco ou seis pessoas em posição de trabalho: DA, EC, RC, entre outros BR. Ao fundo, uma porta.
DA (elegante, em mangas de camisa e gravata, falando no celular, sem ocultar o teor da conversa): sim, estou sabendo… essas coisas acontecem… é muita gente para se tomar conta … já mandei apurar… mas sabe como é, esse povo do sindicato, não se pode mexer com eles que a coisa azeda.
EC (vestida de branco, muito aprumada e elegante, dirigindo-se ao DA): Senhor Belisário, o problema é que agora vão mandar um auditor, deve chegar a qualquer hora!
DA: Só faltava essa… O que a senhora conseguiu apurar até agora?
EC: Quase nada, mas estou preocupada, acho que está rolando alguma coisa por aí, ninguém quer falar nada…
RC: Se me permitem…
EC: Chegará a sua vez de opinar, meu caro, por enquanto aguarde…
DA: Mas o que já é possível saber?
EC: Muita coisa, mas sinceramente nada animador…
DA: Por exemplo?
EC: Há informação de que o cara não caiu da escada, mas sim desceu dela e então caiu, com a mão no peito e a cara contraída de dor. Pode não ter sido acidente…
DA: Mas é claro que foi acidente! O tal eletricista estava se equilibrando numa escada sem qualquer proteção. E daí veio ao chão. Simples assim!
EC: A tal escada tinha apenas 4 degraus. Será que um tombo dali daria para matar alguém – ou pelo menos deixar com lesões graves?
DA: Enfermeira Dalva, pelo amor de Deus! Gostaria de saber de que lado a senhora está…
EC: Do lado da empresa, sempre, senhor diretor, não tenha dúvidas sobre isso. Mas precisamos trabalhar com hipóteses mais plausíveis.
RC: Se me permite… (pigarreia)
DA: E o que a senhora chama de hipóteses conversíveis?
EC: Eu falei plausíveis. Argumentos que alguma sindicância não vá contestar. E não podemos esquecer que já está marcada a visita de um auditor.
DA: Não podemos esquecer que o nome do Hospital Santa Escolástica está em jogo. Isso nunca nos aconteceu antes. E além do mais temos que respeitar a memória de quem fundou isso aqui há mais de 40 anos, o honrado cidadão Gildásio Pereira.
EC: É nisso mesmo que estou pensando, sem parar.
RC (pigarreando): Não vamos nos esquecer de que…
DA: Esquecer de que, seu Arquimedes?
RC: Desculpe, mas o meu nome é Aristóteles…
EC (dirigindo-se ao RC): Seu Totó, por favor diga logo o que está querendo dizer, sem muita embromação.
RC (gaguejando): é que eu tenho aqui as listas de ponto do dia e acho que devíamos dar uma olhada nelas antes de tomarmos qualquer decisão, para cuidarmos de acusar alguém que nem estava presente.
DA: Se isso acontecer, acho é pouco. Esses terceirizados faltam ao serviço por qualquer motivo fútil. E frequentemente ainda botam outros para marcar a presença em seu lugar.
RC: Mas o doutor cardiologista, pelo menos… (ninguém mais parece dar atenção a RC).
DA: Diga, Enfermeira Dalva, como a senhora acha que podemos sair dessa?
EC: Temos que tentar tapar os buracos. A melhor versão mesmo é a de queda da escada, por falta de cuidado da empresa de manutenção, que aliás, é terceirizada e cujas ações fogem totalmente à nossa responsabilidade.
RC: Mas o contrato que temos com eles…. (ninguém parece ouvir esta frase).
EC: Me escutem – a melhor justificativa continua sendo a do acidente, vamos apurar se o rapaz não teve outros acontecimentos semelhantes em outros locais onde prestou serviços. Pode ser um caso de descuido repetido. Isso é tão comum por aí… Vocês sabem, os trabalhadores aqui no Brasil costumam ser descuidados e irresponsáveis. Já estou coletando informações e tenho tudo aqui registado nesta pasta (mostra uma pasta de plástico de cor de rosa)
DA: E quase sempre fazem isso para ganhar uns dias de licença. Não tem aquele caso famoso do sujeito que deixou que o torno mecânico lhe arrancasse um dedo, para poder se dedicar a perseguir os patrões no sindicato? Virou até presidente…
EC: Acho que seria o caso de levantarmos de uma vez quem estava de plantão naquele dia, principalmente na cardiologia. Se quierem, eu tenho a folha do dia aqui….
DA: Precisamos ver se o ortopedista que veio ver o caso não poderia quem sabe, mudar seu depoimento, pois pelo que sei não viu sinais de lesão no paciente, digo, no acidentado.
EC: Já conversei com ele. Diz que está meio pê da vida com a administração da empresa, que se recusa a pagar horas extras a que ele tem direito.
DA: Se o problema é só este, não está difícil resolver.
EC: Ele tem também aquela pendência relativa à dentista sua esposa, que foi demitida por justa causa no ano passado.
DA: Isso também se resolve. Conheço bem o caso e sei muito bem o que ela quer. (dirigindo-se a RC): Arquimedes, levante a lista de médicos que estavam de plantão no dia. Aliás de médicos, de enfermeiros, de todo mundo!
(O telefone toca, EC atende)
EC: Cruzes, é o Superintendente! Está convocando a gente urgente para subir e falar com ele. Todo mundo!
(Saem todos, em fila, a sala fica vazia, passam alguns minutos, entra ML com seu equipamento de limpeza, trabalhando com afinco, cantarolando a canção sertaneja “Evidências”)
ML (falando sozinha): Ai, eu merecia um lugar melhor para trabalhar, isso aqui é uma bagunça, uma perseguição atrás de outra. Este Belisário não pode me ver que quer me passar a mão na bunda. Esta dona Dalva agora anda me encantoando porque vi ela saindo com o cara da farmácia em plena hora de trabalho – e só voltou duas horas e tanto depois… e eu não tenho nada com isso, só cuido da minha vida.
CENA 03
(De repente, a porta dos fundos se abre e entra por ela, meio esbaforido, HR)
HR: Bom dia moça, onde está o pessoal que trabalha aqui? Queria falar com alguém da direção.
ML: chegou na hora errada, tá todo mundo em reunião.
HR: vão demorar?
ML: o senhor está perguntando pra pessoa errada. Sou a que menos sabe das coisas aqui. Mas parece que o chefão lá em cima, chamou eles pra uma conversa séria. Mas se eu fosse o senhor sentava aí e esperava um pouquinho. Quer um café?
HR: sim, aceito.
(HR se assenta num pequeno sofá disponível, enquanto o relógio na parede gira meia hora)
HR (mostrando ar de enfado): hei moça, você parece preocupada…
ML (trazendo um copo com café para HR): não é nada não… Mas o senhor é que parece preocupado, pra falar a verdade.
HR: estou aqui para fazer uma queixa, mas estou quase desistindo, tanto demora.
ML: aqui tem que ter paciência…
HR: por que? Muita coisa atrapalhada aqui neste hospital? Vai, me conta…
ML: quase tudo…
HR: lá em baixo me falaram de um cara que morreu na fila de espera…
ML: deve ser o tal eletricista…
HR: ele mesmo! O que você sabe sobre isso?
ML: eu não sei de nada, mas desconfio de muita coisa…
HR: por exemplo?
ML: eles estão querendo culpar a escada pela morte do rapaz, mas eu vi e sei que não foi nada disso…
HR (mostrando-se interessado): eita, como é isso, me conta!
ML: é isso mesmo que eu acabei de falar…
HR: como assim?
ML: o cara não caiu da escada, mas sim desceu dela com uma cara de quem ia morrer, com a mão no peito, e ficou no chão gemendo sem parar… e estava lá e vi…
HR: e depois? E agora, porque está todo mundo fora da sala, visitando o diretor, tem alguma coisa a ver com esta história da escada?
ML: o senhor está muito curioso… olha lá que depois vai sair por aí dizendo que eu ando fazendo fofoca… Pra falar a verdade acho que tem a ver sim. Ouvi dizer que vem aí um fiscal ou coisa assim, para fazer uma investigação. Eles estão se borrando de medo. E eu não tô nem aí.
HR: deixa disso, pode confiar em mim. O caro que vai chegar é da Polícia?
ML: isso eu não sei… É um inspetor, auditor, supervisor, uma coisa assim. A notícia dessa visita acabou de chegar. Só sei que se assustaram. Acho pouco, aqui quem tem medo são só os debaixo, os de cima estão sempre tranquilos.
HR: Nossa! Este lugar é da pesada. Como acontecem coisas por aqui! O que você sabe mais sobre o tal do eletricista?
ML: tive que fazer meu serviço em outro lugar e saí logo de lá, mas me contaram que ele ficou ali no chão estatelado por um bom par de horas. Quem tentou dar ajuda pra ele foram as pessoas que estavam ali esperando atendimento. Parece que uma hora depois é que apareceu alguém. Aí o coitado já tinha batido as botas… Agora o senhor me dá licença que eu tenho que fazer a limpeza na outra ala. Mas olha lá, se falar que fui eu que contei, vou falar que é pura mentira.
HR: fique tranquila… como é o seu nome mesmo?
ML: cruzes! Para que o senhor quer saber. Deixa pra lá… Que sujeito mais curioso!
(ML se retira e HR fica sozinho na sala. Detém-se na cadeira por alguns momentos, mas logo se põe de pé a passa a analisar documentos deixados pelos funcionários em cima das mesas de trabalho, dedicando especial atenção ao conteúdo da pasta cor de rosa, já mencionada por EC; pega alguns papéis de tal pasta e alguns outros e fotografa com seu celular; na mesa de RC examina com curiosidade uma outra pilha de papéis; percebe-se que está encontrando algo de muito interesse, talvez inesperado; o relógio gira por mais meia hora).
CENA 04
(Do mesmo modo que saíram, os funcionários da administração, todos eles, retornam, como se fosse numa fila. Em um canto da sala, na cadeira a ele destinada está HR, com ar inocente, como se nada tivesse acontecido na ausência do pessoal da sala).
DA: boa tarde, meu senhor, perdeu alguma coisa por aqui? Ou melhor, deseja algo?
EC (murmurando para DA, com a fisionomia preocupada): acho que é ele, o tal Auditor…
RC (fala baixinho para EC e DA): é ele mesmo, com certeza!
DA (após um momento de vacilo): diga, meu senhor, em que podemos servi-lo?
HR: tenho realmente algumas perguntas a fazer…
EC: somos todos ouvidos! Aqui nosso hábito é dizer a verdade. Sempre!
HR: é bom que digam a verdade mesmo. Tenho que fazer um relatório disso.
DA: Pode ter certeza que será assim, senhor auditor!
RC (ecoando as palavras de DA): pode ter certeza…
HR: primeira coisa… é comum atrasarem entrega de exames por aqui? Por exemplo, mais de 24 horas para um teste de gravidez?
DA: pode acreditar, a gente faz o que pode, mas sabe como é, esses serviços terceirizados…
HR: o que mais terceirizam aqui? Vigilância, comida, limpeza?
EC (sem muita ênfase nas palavras): quase tudo. Hoje em dia o senhor sabe como é… Uma questão de custo e benefício…
HR: plantões médicos, por exemplo, são terceirizados também?
(Neste momento DA e EC trocam olhares preocupados…)
EC e DA (quase em uníssono): sim, plantões médicos também, mas não para pessoas físicas e sim para uma espécie de cooperativa deles, dos médicos.
HR: hummmm, cooperativas… Depois vamos ver isso com mais calma. Tenho informações de que no dia em que aconteceu o problema, o tal “acidente” com o eletricista (faz um gesto com as mãos, simulando aspas), talvez a equipe médica não estivesse completa…
EC: era um funcionário terceirizado…
HR (interrompendo): aqui pelo visto é tudo terceirizado, né? Até as mães do diretor e de vocês, pelo visto…
DA: o senhor sabe como é, tendência moderna na administração…
HR: sim, tendências modernas (faz um ar de deboche). Pois bem, gostara de ter acesso aos cartões de ponto dos médicos ou equivalentes naquele dia do “acidente” (faz o gesto de novo).
RC: para os médicos temos apenas um livro de ponto, que eles assinam na entrada e na saída. O sindicato não permite cartões eletrônicos para eles.
HR: providencie este livro então, por favor, gostaria de vê-lo.
RC: sim senhor.
HR: qual é a norma do hospital relativa à previsão de tempo de atendimento para emergências.
DA (constrangido e cabisbaixo): não temos normas específicas…
HR (postura magistral): ah, não têm normas…
EC: mas temos uma comissão tratando disso, eu mesmo faço parte, só não temos nos reunido porque há duas ou três pessoas de férias, no momento.
HR (postura magistral): ah, de férias… Quanto reuniões já fizeram?
EC: na verdade a comissão foi constituída recentemente, ainda não pudemos nos reunir.
HR (postura magistral, apenas fita inquisitorialmente EC e DA, que se retraem, aparentemente envergonhados). Mas voltemos ao caso do eletricista…
DA: que eletricista?
EC (olhando para DA com ar crítico): o acidentado…
HR: sim, o pobre do eletricista. O que vocês têm a dizer sobre o caso dele?
DA: era terceirizado…
HR: disso eu já sei, quero saber do resto.
DA: foi atendido pelo doutor – como era mesmo o nome dele, aquele ortopedista? – que logo constatou não ser caso de sua competência; Posso garantir que veio rapidinho. Mas há algumas controvérsias sobre ele. Este médico tem nos causado problemas.
HR: mas depois disso, o que aconteceu? Porque sei que nos depoimentos alguém informou que o paciente ficou estendido no chão da sala de espera, ao lado de sua escada – escada esta que não passava de 4 degraus, por sinal – por pelo menos 3 horas. E esta escada não me parece capaz de matar alguém.
EC: entramos em contato com o cardiologista de plantão…
HR: e aí…
EC: o senhor sabe como é … (tenta explicar, gagueja)
HR: já sei, a tal terceirização…
DA: parece que neste dia o trânsito ficou travado em toda parte…
HR: o senhor tem provas de que o tal cardiologista estava no trânsito? Estamos falando de acontecimentos das 11 horas da manhã e o horário da entrada do plantonista geralmente é entre sete e oito da matina…
DA: bem, tudo indicava que tinha sido apenas um acidente…
HR: “apenas” um acidente… Mas este homem agora está morto! E o ortopedista que a senhora diz que é problemático não relata lesões. Expliquem, por favor: o que mais foi feito?
EC: Desculpe, mas não havia nada mais a fazer: como o senhor mesmo diz, o homem estava morto!
HR: tudo aconteceu por volta de 8 horas da manhã… A que horas a senhor acredita que ele tenha morrido?
EC: isso é quase impossível determinar, a esta altura dos acontecimentos.
HR: na presente “altura dos acontecimentos”, sim. Mas o que dizem do momento em que aconteceram os fatos, deve haver um prontuário de atendimento por aí, que registre as ocorrências e respectivos horários.
EC: o senhor desculpe, mas estamos justamente dentro de um processo de mudanças em nossos sistemas de informação. E aí…
HR: já sei, vão terceirizar…
(EC, HR e DA mostram-se temerosos, trocam olhares significativos ente si, demonstrando certo temor com as intervenções de HR.)
HR: e tem mais, muito mais! Já apurei muita coisa aqui, vocês nem imaginam o recheio que vai ter este pastel! Já descobri que os plantões raramente são totalmente cobertos. Que há estudantes trabalhando como se fossem formados. Que na farmácia e no almoxarifado o que existe é uma zorra total. Que ambulâncias levam compras de supermercado opara residências de diretores – de vocês mesmo. Que há saídas “misteriosas” de pessoas aqui (faz o gesto correspondente) no meio da tarde. Que exames de urgência somente são entregues depois de 24 horas. Que existe um banco de horas que não é cumprido por ninguém. Para não falar de uma comissão de fundamental importância para a organização do atendimento, mas que nunca se reuniu E por aí vai. Enfim, meus amigos: se cuidem!
CENA 05
(HR está sentado num banquinho, na frente do palco, iluminado por um holofote acima de sua cabeça. Sua fala é dirigida à plateia)
HR: Este hospital é o fim da linha! Duvido muito que essas pessoas, os que mandavam e desmandavam aqui, traziam seus familiares para serem cuidados em tal ambiente… Tudo fora de lugar. Bem, pelo menos o exame de gravidez da moça foi expedido. Negativo. Mas ela me explicou que mandou apenas uma amostra de água em vez de urina, pois já sabia que estava grávida de verdade, só que o filho não era meu, vê se pode. Mas ela pelo menos foi leal comigo. Gente assim tá difícil de encontrar hoje em dia. Fiquei até emocionado. Mas sobre aquele lance que vocês assistiram, eu me fazendo passar por auditor, ou algo assim, devo dizer que até eu mesmo me surpreendi. Dizem que os corretores de imóveis, como é o meu caso, são mestres em enganar os outros. Pode ser, mas naquele momento eu não queria enganar ninguém. Ou melhor, só queria que a maldade de algumas pessoas não prevalecesse. Acho que consegui, mas confesso que saí dali um pouco aliviado, mas também assustado, pensando que haveria consequências para mim. Mas tudo que falei não foi inventado, salvo uma ou outra coisinha, que deduzi a partir do que era pura realidade. Aquela pasta de plástico cor de rosa trazia todas aquelas informações. Se algum mérito eu tive, foi o de ter boa memória. Aliás, desde garoto me exercito nesses jogos de memória. Nos quais uma série de objetos são expostos e depois tapados, devendo a pessoa se lembrar deles. Sempre fui craque nisso, ganhava de todos os garotos da minha escola e da minha rua. Mas pensando bem, para mim o pior mesmo é ver a maldade acontecer. Aí eu fico furioso e não aprendi isso com algum tipo de jogo, acho que já nasci assim. O fato é que alguns dias depois dos acontecimentos que vocês acabaram de assistir, fui chamado à sala do Superintendente da empresa hospitalar, um senhor muito distinto – distinto até demais da conta – que disse que queria me cumprimentar pela minha atuação. E eu com medo de ele me processor por falsa identidade. Me falou ainda que haviam demitido a enfermeira chefe e o diretor administrativo, para dar exemplo aos demais. Lamentei, intimamente, porque na minha opinião eles devem ter feito aquelas trapalhadas por muito tempo. A questão verdadeira é que ninguém, até então, havia descoberto e agido contra aquilo, como eu fiz. Não acho que foi mérito meu, pois eu estava inspirado por uma experiência que tive anos atrás, com um teatro na escola. Não passou muito tempo deu nos jornais que a empresa Saúde-Perfeita, dona de toda uma rede de hospitais e de um plano de saúde de abrangência nacional abriu falência e milhares de pessoas foram lesadas. Isso me deu certeza que fiz a minha parte. E não tenho dúvidas que faria de novo. Mas se querem saber a verdade, fiz tudo aquilo – e faria de novo – não só por amor à verdade ou vontade ser honesto. É porque aquilo também me divertiu muito. Até hoje me lembro das caras e bocas que o diretor administrativo fazia, da maquiagem da enfermeira chefe se derretendo com o suor no rosto dela, do pobre assessor que só fazia gaguejar. E, principalmente, da empáfia daquele superintendente, com seu terno de grife e sua conversa empostada, incapaz de adivinhar que iria para a prisão poucos dias depois. Alguns amigos meio medrosos me disserem que eu poderia me arrepender de tudo, mas eu não tô nem aí… Agora me deem licença, que tem um cliente me esperando para ver um apartamento que ele quer comprar. Fui!
