Matéria médica

Oh cousas todas vãs, todas mudáveis, qual é tal coração que em vós confia? Est’água que d‘alto cai, acordar-me-ia, do sono não, mas de cuidados graves. (Sá de Miranda). Enquanto espero a chegada deste voo várias horas atrasado, minha mulher fazendo suas eternas compras, por que é mesmo que me lembrei deste verso antigo, que me acompanha desde o colégio, graças àquela professora que gostava de autores portugueses? Sim! Já sei, são as coisas sempre mudáveis na vida da gente, além dos cuidados graves, dos quais, nesta fase da vida, bem passado como estou dos setenta anos, é difícil se livrar.

Esta festa de 50 anos de formado, da qual acabo de me livrar, coisa de médicos, que se acham seres privilegiados na humanidade e comemoram até seus fracassos, estes sujeitos carecas e barrigudos, outrora verdadeiros galãs, alguns com processos nas costas, próteses diversas pelo corpo, outros já na terceira geração – de casamento. Fora os que não vieram; e fora mais ainda os que já morreram, pobres coitados que ninguém lembra deles. Quem será o próximo? Não posso negar, sou um candidato forte – ou fraco – a isso.

E assim vou gravando estes desabafos no celular, esperando que algum dos meus filhos esteja disposto a me ajudar e me ensine a mexer nesses programas de computador que – ouvi dizer – transformam gravações em texto, para que eu possa, quem sabe um dia, incluir esses pensamentos nas possíveis memórias que ainda hei de escrever.

A verdade, devo admitir, é que me formei em medicina sem ter certeza de ser esta a minha vocação real. Eu tinha tudo para evitar tal opção, pois desde pequeno chegava a desmaiar quando via ou sentia o cheiro de sangue, até mesmo de uma galinha sacrificada no terreiro de casa. Acho que me resolvi a enfrentar o terrível vestibular para a federal para mostrar à minha família, meu pai principalmente, que queria que eu fosse bancário, que que eu era realmente capaz, depois de uma descuidada trajetória como estudante. E cheguei lá, apesar de meu pobre prontuário estudantil…

Agora, de volta desta comemoração que os “colegas” (como os médicos enchem a boca para falar esta palavra, que poderia até ser traduzida como Vossa Sumidade…) organizaram para festejar os cinquenta anos de formatura, à qual compareci a contragosto, a bem dizer apenas para satisfazer minha mulher, (primeira e única, além de última!), uma das tais “colegas”, que acredita estar eu deprimido e precisando de distração. Que nada! Minha sensação é de que realmente deveria ter ficado em casa, com meu chinelo, minha calça de flanela, minhas dores no quadril, meu copinho de uísque, sem me ver obrigado a compartilhar essa falsa euforia, em ambiente onde mal se disfarçava a senectude de uns e a ausência de outros – além da caretice política e existencial da maioria.

Ah, minha vida… Foram muitos anos de consultório e emprego público, além de, em uma única ocasião, ser capturado por cargo de confiança no serviço público. Me pergunto: que coisas importantes terei realizado neste meio século em que vesti um jaleco ou um paletó de burocrata? Depois de tantos anos, confesso, me sinto frustrado pelo que considero uma enorme incapacidade de vencer algumas dificuldades que se enfrenta na medicina. Isso até mesmo para coisas simples, como fazer diagnósticos mais ou menos precisos ou encontrar soluções reais para os problemas de muitos pacientes, privados ou públicos. O que ouvi de muitos deles foram muitas vezes queixas vagas, muitas vezes sem sentido, com os exames que eu pedia absolutamente normais. Nada enfim, que se espelhasse naqueles livros de medicina dos tempos da faculdade ou mesmo nos pacientes com que eu convivi mais diretamente nos hospitais, os quais, para mim, deveriam ser lugares onde realmente estaria gente adoecida de fato, ou pelo menos onde seria possível exercer a arte dos diagnósticos, com exames positivos e coerentes, finalmente. Mas nem sempre foi assim, para meu desgosto. Nos ambulatórios, chegava a ser ainda pior, pois se ali há de tudo, apenas uma pequena parcela é portadora de sintomas que levem a alguma conclusão precisa. A clínica é soberana, diziam alguns dos meus professores, mas ali naqueles ambientes, para mim, ela não passava de uma plebeia sem maior qualificação.

E aí me pergunto: por que não abandonei tudo aquilo enquanto ainda era jovem e tinha reservas de energia para tanto? Indagação antiga, aliás. E sou obrigado a admitir que não o fiz por puro medo, seja da reação da família; do afastamento da namorada que era colega de faculdade; de uma falta intrínseca de coragem (admito); pela frustração que causaria em mim mesmo acima de tudo, o primeiro de toda a família a cursar faculdade, ainda mais de Medicina. Sofri com isso – e ainda sofro – e já se vão muitos anos, acreditando que o melhor para mim, mesmo de forma tardia, teria sido a migração para outra área, ou mesmo para algum lugar ou especialidade totalmente fora da medicina, no qual minha vida profissional não fosse tão repleta de desgosto e frustração.

Mas foi só muitos anos depois é que pude entender que a grande questão que mobiliza gente supostamente doente, em toda parte, não seria simplesmente a de ter males diagnosticáveis – e tratáveis. Para esses infelizes, tudo se resumiria a sofrimento, apenas isso, seja como derivação da pobreza, de relações familiares corrompidas, de falta de sentido da vida, coisas tão antigas quanto a própria humanidade. E eu como médico, investido da tarefa de curar, via tudo aquilo, como algo fluido, vago, impreciso, não quantificável e nem mesmo diagnosticável ou classificável em taxonomias. Há muito comecei a perceber essas coisas, que eu, simplesmente, não me via preparado para enfrentar. Mas não era só eu, para meu consolo, pois via que muitos poucos profissionais, meus colegas, seriam capazes de dar conta de lidar com tais questões, nem para si próprios, muito menos em relação a outros, embora poucos admitissem isso. E assim se produzia e se produz, e acho que sempre se produzirá, a grande fila em direção a tantas vias de escape, como os medicamentos para os nervos, os hospitais, as emergências, as relações perniciosas e tóxicas, as igrejas pentecostais.

Deixo claro que se enquadro em tal categoria boa parte de meus colegas, não deixo de reconhecer nisso certa projeção de um mal-estar que talvez seja um problema restrito à minha pessoa. O fato é que ao mirar no espelho de minha formação médica, percebo que nela imperou uma fórmula mágica, repassada geração após geração, repetida como um mantra desde os primeiros dias de faculdade: primeiro diagnosticar com precisão e só então tratar. Tudo bem! Perfeito! Melhor do que isso só se fosse verdade, porém. No final das contas, como fazer acontecer a tal precisão diagnóstica e a definição de tratamentos adequados? Seria realmente possível que todas as queixas e sintomas daquelas pessoas que recorriam a mim devessem ser “tratadas” daquela forma tradicional que a faculdade me ensinou, incluindo sempre medicamentos, intervenções ou, na melhor das hipóteses, terapias mentais?

Lembro-me sempre das muitas vezes que ouvi a palavra “casuística”, muito apreciada pelos médicos, sempre prontos a demonstrar sabedoria e, principalmente, exibir uma trajetória profissional marcada pela experiência, inflando o peito ao pronunciá-la. Para rebater tal coisa, quando eu ainda tinha paciência e energia para tanto, cheguei até a fazer consultas em dicionários e tratados, constatando ser este um termo com fundamento nos campos da ética, da religião e da teologia, o que me confirmou que eles estivessem usando o termo sem as devidas licenças. Na verdade, achei que o melhor seria aceitar tal epíteto apenas como um recurso usado por vaidosos e pretensiosos de diversas naturezas. Aliás, a esta altura, minha implicância com a tal “casuística” médica se azedou ainda mais quando recorri a algumas noções de estatística e lógica, depois de um curso que fiz, ao ser informado que generalizações a partir de dados isolados ou não controlados formalmente são fonte de enganos, muito mais do que de certezas. Bem ao contrário, pelo visto, das afirmativas dos egrégios “casuístas”.

Mas nem tudo foi angústia e frustração na minha vida de médico, devo admitir. Meu trabalho na Saúde Pública, em uma repartição onde me cabia organizar a coleta de informações sobre as doenças de notificação obrigatória legal, me deu algum alento, pois me cabiam tarefas que até então ali ninguém havia realizado. De posse de tais dados, ainda muito precários e pouco valorizados pelos médicos em geral, eu os organizava em gráficos e tabelas e então, orgulhoso daquilo, fui mostrar tal troféu a homens de branco nos hospitais, convidados pela minha repartição explicitamente para tanto. Estes aí, de maneira geral, me cumprimentavam e elogiavam, porém, sem deixar de me olhar como se eu fosse um ser de outro planeta, portador de ideias estranhas e pouco práticas. Na ocasião, ouvi um sujeito da clínica privada dizer que aqueles casos de difteria apontados em um gráfico não deveriam ser verdadeiros, pois “a casuística” dele indicava que tal doença havia desaparecido da cidade havia décadas. Tive que me calar, porque os dados eram pouco confiáveis mesmo, mas a palavrinha continuou a me provocar pruridos até que um dia ela me surgiu de novo. Fui incumbido de explicar um novo calendário de vacina aos pediatras da cidade e então um deles, famoso pelo seu pedantismo e elitismo, me sapecou a pérola de que sua “casuística” lhe indicava que tal mudança no calendário de vacinas seria desnecessária.

Considerei, então, que tudo que eu dispunha em minha vida de médico não era, definitivamente, qualquer tipo de “casuística”, em qualquer das conotações que tal termo possuía nos tratados e dicionários, ou mesmo aquela vulgarizada pelos médicos. O máximo que eu poderia ostentar seria uma “causuística”, uma coleção de achados, vivências, reflexões, impressões, incertezas, sacadas. Apenas “causos”, coisas que a vida me mostrava, ora com dor, ora com alguma nobreza, nem sempre submissíveis a explicações e que chegaram até a mim desde criança, depois como estudante, médico, ou homem que apenas observa o mundo, com a devida humildade.

Me perdoem tamanhas digressões, mas acontece que o meu estado de espírito, na modorra e no tédio deste aeroporto calorento e lotado, na volta para casa depois das tais festividades cinquentenárias, não me conduz a coisa diferente. Pior ainda, um atraso de pelo menos duas horas, no voo já anunciado pelo barulhento autofalante bem acima da minha cabeça (que deveria ser chamado de alto-falante, com “l” no lugar do “u”) me obriga a aceitar tal sofrimento. Mas, pelo menos, minha mulher, a Elsa, consumidora e curiosa voraz, entretanto boa pessoa, está aproveitando a oportunidade, ara ela benfazeja, para entrar e sair alegremente de quantas lojas houvesse por aqui e assim me deixa  entregue a esses devaneios que vou gravando.

Fico pensando muito em meus feitos médicos… Será que eles existiram de verdade, produziram algo para alguém? Às vezes tenho sinceras dúvidas. Tento enumerá-los, mas quase sempre abandono a tarefa pelo meio, mas aprecio buscar na memória que ainda mantenho (até quando?) alguns pacientes que me foram marcantes, embora no fundo desconfie que meu sucesso com eles possa ter sido um tanto irrisório. O que tenho a contar, na verdade, são apenas alguns “causos” (aspas) que assisti como expectador privilegiado, embora duvidando, insisto, de ter sido de fato realmente capaz de melhorar a existência daquelas pessoas que precisaram de mim, no limite, quem diria, para salvar suas vidas.

Não me esqueço, por exemplo, de certa mulher que um dia me procurou cheia de queixas, coisa que, aliás, faz parte indissociável do acervo de qualquer clínico. Aquela era jovem, de uns trinta anos, de muito boa aparência e aparentemente portadora de uma vida bem estruturada, com marido, casa, filhos, emprego, conforto material. A cada dia que ela vinha até o consultório, trazia sintomas novos, porém com exames diretos ou laboratoriais sempre negativos. E um cortejo de dores mutáveis, de impreciso mal estar, de febre que não chegava a ser registrada no termômetro, desmaios, calafrios, tonteiras. Um belo dia, o marido também apareceu na consulta, um homem corpulento, bem vestido, ao que parece pequeno empresário, confirmando a aparência de vida bem arrumada. Neste dia só ele falou. A mulher, tão loquaz habitualmente, não conseguiu proferir uma frase inteira. O marido, mesmo de forma cortês, a interrompia a cada meia dúzia de palavras para lhe passar sua própria versão das moléstias da esposa. E ela, conformando-se a ficar quieta em um canto na maior parte da consulta.

Tenho a acrescentar a tudo o que estou falando uma frase: se não me falha a memória… Já começo a achar que essas lembranças talvez não sejam dela mesmo, da mulher oprimida por um marido sem noção. Foram tantas pessoas, geralmente mulheres, com problemas bem assim que eu atendia… Quanto a tal marido não tenho dúvidas, se não foi ele foi outro, bem parecido: um tipo hiperativo, incapaz de um minuto de silêncio e disposto a preencher todo espaço vazio nas conversações, emitindo opiniões que abrangiam não só o campo pessoal, mas também, com o avançar da comunicação, sobre política, futebol, religião, vida social etc. Sem dúvida, um ogro absolutamente dominador em relação àquela pobre criatura que ele chamava de esposinha. Tentei explicar a ele que realmente eu estava tendo dificuldade em encontrar um diagnóstico preciso para sua mulher, mas que ia continuar tentando. Mas a vinda daquele homem acabou por me abrir portas para entender um pouco melhor a situação. Pude perceber que, longe de ser uma solução, aquele marido era um problema para ela. Ao término da consulta, já saindo, num gesto meio teatral, ele voltou um passo atrás, fechou a porta da salinha de atendimento, mantendo a esposa do lado de fora e pediu um minuto em particular comigo, para enfim revelar seu dilema em relação à esposinha, concentrando-se especialmente no total desinteresse que ela já há alguns anos tinha por qualquer atividade sexual, pelo menos que o envolvesse também. E ato contínuo me mostrou fotos do quarto do casal, que havia mandado reformar, de modo a incluir cama redonda, ar condicionado, banheira de hidromassagem, TV na parede, teto e paredes espelhadas, luzes estrategicamente distribuídas e outros ingredientes de sensualidade e erotismo. – Espia só, doutor, o que mais posso fazer? Tudo era em vão, lamentava o frustrado sátiro, pois para piorar ainda mais as coisas, a mulher agora simplesmente se recusava a dormir em tal aposento.

Tentei confortá-lo e pedi paciência, argumentando que talvez fosse necessário dar um tempo para a coitada, mas ele mal lhe ouvia. Insistiu ainda, meio segredando, que eu tentasse, em próxima ocasião, convencer a mulher a se utilizar das benesses que tal alcova lhe facultava. Daí a alguns dias, ela retornou a mim, desta vez desacompanhada. Tentei abordar, com muita cautela, a questão do sexo e ela nem me deixou prosseguir. Falou das tais iniciativas sensuais do marido sem que eu lhe perguntasse e que não entraria naquele quarto definitivamente, porque ele lhe era infiel, tinha muitos casos fora do casamento, inclusive com amigas dela e, além do mais, copiara aquele projeto de quarto de um motel que frequentava com as amantes. E foi a vez dela me pedir que fizesse o maridão desistir da ideia de obrigá-la a frequentar tal aposento.

Meu Deus do Céu, Virgem Santíssima: como é que eu, um simples médico, poderia resolver ou dar ajuda em uma coisa assim? A solução para ela não seria a de ela desistir de tal marido? Acho que daria mais certo.

A esta altura, fico em dúvida sobe a cronologia das minhas lembranças. Aquele homem repleto de testosterona e adúltero compulsivo seria o mesmo que um dia me prometeu uma vaca de presente? E aquela mulher me lembrava – e me confundia – com uma outra que um dia me surpreendeu tirando toda a roupa, inclusive íntima, quando eu lhe pedi que apenas levantasse a blusa para que lhe auscultar o coração. Nossa! Que desordem! Era assim que eu, nos últimos tempos, via minhas lembranças começando a se acumular e se acavalar umas às outras.

Esta tarde modorrenta e tediosa, esta espera debaixo de uma barulheira infernal, não sei porque, me traz também à memória aquele menino, quase rapaz, que chegara de algum lugar dos sertões do Norte, na época os grandes armazéns fornecedores de doentes para o hospital público onde eu trabalhava. Que doença tinha o tal rapaz? Parecia que simplesmente todas! Seu coração era uma bola, embora jovem, já devastado possivelmente pelas insidiosas incursões do barbeiro; o esôfago lhe fazia às vezes de estômago, pela sua dilatação e relativa imobilidade. Como se não bastasse tinha ainda um sopro cardíaco provavelmente associado a uma doença reumática não tratada. Ah, sim, e só ia à privada à custa de lavagens, além de exibir uma anemia intratável. Com mais de dezoito anos, ou não sei quantos mais, seu corpo era ainda o de uma criança e desafiava a medicina com seu acúmulo de problemas e, principalmente, com a evolução tão grave dos mesmos. O moço estava internado ali há muitos meses, coisa de hospital público, mas de toda forma, que benditos sejam. Seu prontuário já não mais cabia naquelas pastas metálicas, com presilhas flexíveis, que eram típicas dos hospitais da época, mas ocupava, além disso, mais de uma caixa daquelas normalmente usadas para arquivar papéis mortos. Rever seu prontuário já era coisa quase impossível. O que havia nas tais caixas de arquivo era uma maçaroca de papéis, sem qualquer ordem, seja cronológica ou simplesmente lógica.

Mas eu era, na época, um jovem cheio de empatia e fibra, e diante de tal paciente resolvi lutar, inovar, buscar todos os recursos possíveis, mesmo fora do que era padronizado nos protocolos, utilizando as boas graças dos propagandistas de laboratório e o mais que fosse possível. Vieram drogas novas e elas foram se sucedendo e se alternando, sem resultado, mais uma vez. Nisso, algumas das funções vitais dele começaram a degringolar, embora a regra médica de que é melhor explicar tudo com um único diagnóstico, nele fosse definitivamente subvertida.

Aos poucos, contudo, como geralmente acontece, principalmente com os mais pobres, aquele moço foi sendo incorporado à paisagem. Em conversa comigo, ele, que era de pouquíssimas palavras, disse que não tinha nenhum interesse em voltar para casa. Vinha de uma família miserável que não tinha como cuidar dele e que ali no hospital estava melhor do que em sua casa, tendo comida, roupa lavada, amigos e até mesmo alguma valorização, como eu e os pressurosos residentes bem ou mal lhe ofereciam. E assim o coitado foi ficando. Completou um ano de internação e possivelmente ficou ali muito mais, com escassas chances de sobrevivência, dono que era de um organismo tão comprometido. Depois, fui transferido para os ambulatórios e não tive mais notícias dele.

Em suma, o que a vida médica me deu certeza é de que algumas doenças não têm tratamento mesmo. Para aquele pobre coitado dos sertões do Norte, a tecnologia moderna talvez até pudesse oferecer uma vida mais confortável, talvez um pouco mais longa, sem, contudo, lhe acrescentar a dignidade de que tanto carecia.

Em minhas lembranças desfilam outros pacientes igualmente pobres, igualmente roceiros, de diagnósticos também incertos. Um deles era exímio em tocar sanfona e esteve internado por meses a fio. Seria este mesmo indiagnosticado? Na minha cabeça começa a ficar impossível diferenciar aquele ali de outros que me vêm à memória.

Neste vai e vem e lembranças, me chega de volta algo que vem de meu primeiro emprego depois de terminar a residência médica. Lá fui eu para os fundões do país, onde se construía uma grande usina hidrelétrica e se pagava muito bem aos médicos. Mais do que aos engenheiros, por sinal. Era meu plantão inaugural e minha competência se atinha à clínica de adultos, mas apenas formalmente, pois já sabia, de antemão, que nem sempre havia possibilidade de escolhas peremptórias neste sentido. Como companheiros de trabalho naquele dia, dois “enfermeiros”, com as aspas devidas, que fa­ziam de tudo um pouco no pequeno hospital da companhia, pouco mais do que duas casas conjugadas, já que o hospital definitivo ainda não estava pronto. Ca­ras simpáticos, típicas pessoas do interior do Brasil, talvez fossem paulistas, pois muita gente que ali fazia o trecho, vindos do interior de São Paulo, onde havia obras semelhantes. Naquele tempo, as obras públicas tinham começo, meio e fim… Como mui­tos outros ali, aqueles dois rapazes talvez tivessem começado a vida profissional na enxada, depois ascendendo à colher de pedreiro até que progrediram e se transfor­maram em “enfermeiros”. Quando eu disse “faziam de tudo”, era a pura verdade, pois a equi­pe de enfermagem do improvisado hospital não tinha mais do que uns gatos pingados, uma única enfermeira de nível superior, cuja real diplomação em faculdade era objeto de dúvidas. Assim, em plantões cheios de percalços, cabia a sempre minúscula equipe ministrar medicamentos, trocar pacientes, dar-lhes banho, medir sinais vitais etc. Mas eu não podia imaginar, à primeira vista, que este tudo era quase sem limite…

Logo que cheguei ao hospital para atender aquele chamado percebi que havia coisa que não era tão simples como dizia o re­cado que recebi. Numa maca, um garoto gemia de dor, com o diagnóstico já evidente, um antebraço fraturado que havia se do­brado, bem ao meio, em ângulo quase reto. Na janela, que servia de visor de RX, uma radiografia confirmava: radio e ulna fraturados e até separados, com alguns fragmentos de osso, avulsos, comple­tando o quadro. O danado caíra de uma goiabeira, de um telhado, ou algo parecido. Mediquei para dor – até aí tudo bem – e em seguida fui atrás do ortopedis­ta, que supostamente deveria estar em casa. Naquele tempo, é bom lembrar, não existia celular, de forma que peguei meu Fusca e saí em busca do salvador, primeiro em sua casa, depois em pontos onde ele poderia estar, na beira do rio, pois aquele adorava pescar. Mas nada. Acabei me conformando em requisitar uma ambulância para enviar o menino à cidade mais próxima, distante mais de 100 km e razoavelmente bem servida por hospitais, atendendo também emergências como aquela. É claro que me senti frustrado, mas a verdade é que não sabia lidar com aquilo e, além do mais, a redução da fratura dependia de anestesia. Voltei para o hospital, tentando me resignar com a minha im­potência em resolver casos assim.

Porém, ai porém… Quando entrei na sala, uma hora depois, surpresa, o garoto dormia profundamente, tinha o braço engessado e o “janeloscópio” mos­trava dois ossos perfeitamente alinhados e retificados. Os quase noventa graus tinham se convertido em cento e oitenta, como con­vêm aos ossos do antebraço. Que coisa boa, pensei, o ortopedista apareceu e salvou a situação. Mas qual, minha alegria durou pouco! Logo me surgem na sala os dois artistas já mencionados, que com a cara mais limpa do mundo me disseram: já resolvemos tudo, doutor. Gostou do serviço?

Antes de prosseguir, uma informação farmacológica, sobre o Inoval, instrumento de tal milagre. É o nome comercial de uma combinação de drogas potentes com atuação no sistema nervoso central, que podem produzir uma série de problemas, no limite, até mesmo a morte. O que fazer? Em princípio, regozijar, pois em uma coisa os caríssimos “enfermeiros” estavam cobertos de razão: tinha dado tudo certo. A fa­mília, ali fora, logo veio me agradecer a atenção e o sucesso do procedimento que a “equipe” do hospital tinha oferecido ao filho traumatizado. E em tal “equipe” eu estava incluído, vejam só…

O que eu poderia ou deveria fazer: chamar a polícia? Denunciar o fato ao CRM? Re­pudiar minha formação médica que não me ensinou coisas simples como aquela? Confesso que não fiz nada disso. Recolhi-me, apenas, à minha per­plexidade, se não à minha incipiência e segui em frente.

E nessa toada de lembranças, me vem outra, de alguns anos depois, tendo como personagem um Sêo Joaquim, de quase 80 anos, corpulento, jovial, de cabeça bem conformada, cujos cabelos brancos me lembraram Dorival Caymmi. Não fazia má figura, realmente. Era um daqueles pacientes colaborativos, que acreditam nos médicos e tudo fazem para atender as recomendações dos doutores, as minhas, no caso, especialmente, pois tudo que queria era pressa em receber alta logo e voltar a seus afazeres. O problema era o coração, que lhe batia sem pressa alguma, trinta e oito, no máximo quarenta vezes por minuto. Tudo por obra e graça do terrível protozoário caudado e seu agente contumaz, o inseto rajado. A solução para ele era bem simples: um marca-passo. Mas ao mesmo tempo quase irrealizável naqueles tempos, com as pessoas divididas entre as que tinham a “carteirinha” do INPS e as que não a possuíam. E Joaquim era do segundo grupo. Conseguir o tal aparelho era verdadeira façanha, que dependia da autorização de uma penca de burocratas, e assim a espera de Joaquim se arrastava, por meses a fio. Ele insistia, com doçura, que seu sonho era voltar logo para casa, reencontrar sua jovem mulherzinha, que às vezes aparecia para vê-lo; rever seu burrinho; botar de novo sua carroça para andar e ganhar a vida com algum frete.

Diabo de memória! Mas a mulherzinha jovem que vinha visitar o Joaquim não seria a mesma que o marido me trouxe um dia para que lhe fizesse um “traçado” da cabeça, pois que era muito atacada dos nervos, com crises de agitação e agressividade? Joaquim tinha uma esposa jovem também, mas com certeza aquela era outra. A cabeça continua a me embaralhar as lembranças e eu já não sei direito quando ou com quem aconteceram certas coisas. O tal “traçado” era o eletrocardiograma, que aquele homem, em sua ingenuidade, pensava ser aplicável ao cérebro também.

Espera aí… Joaquim não era o homem que um dia me apareceu, com um problema no nariz, que ficou do exato tamanho de uma beringela? Não este era Antônio. Minha cabeça, de novo, é total nebulosidade, talvez por efeito desses terríveis autofalantes ou, quem sabe, desse cheiro de querosene que empesta o ar aqui no aeroporto. Mas, pensando bem, essas horas de espera até que não me trazem assim tanto desconforto; não deixa de ser apenas um modo de descanso na vida, um jeito de esquecer, de parar de lembrar. Esquecer para descansar.

Ah, sim, o homem chamado Joaquim. Ele me volta com força à memória. Conversa vai, conversa vem, eu e os colegas conseguimos para ele a promessa de um fabricante de equipamentos que ele seria atendido em no máximo quarenta dias com o tal marcapasso tão necessário. Simples a solução, então: era dar alta e pedir que o homem voltasse algumas semanas depois. Mas cabia dar a notícia a ele, cujo coração corria o risco de parar de bater se ele porventura ficasse ansioso, ou de alguma forma com os nervos sob ataque, que aqueles trinta e poucos batimentos se reduzissem a zero. E coube a mim dar a notícia ao carroceiro, depois de muitos rodeios, que ele deveria ir para casa, para ser convocado depois, pelo Serviço Social, quando o precioso equipamento estivesse disponível. Joaquim sorriu amarelo, mas resignou-se. A frequência cardíaca manteve-se ritmada, ainda abaixo dos quarenta batimentos regulamentares, mas sem quaisquer sintomas ou sinais preocupantes. Eu então lhe fiz as prescrições e recomendações regulamentares, entre elas que não fizesse esforços e evitasse contratempos, se isso lhe fosse possível.

Duas ou três semanas depois da alta, de forma inesperada, Joaquim estava de volta, mais magro, um pouco abatido, com um enorme curativo na fronte, tendo todo o crânio rodeado por uma faixa de atadura, na qual ainda havia manchas de sangue. E foi logo explicando o acontecimento: voltara para casa e chegando lá encontrou a mulherzinha nos braços de outro, que lhe havia também subtraído, para vender, aquele querido burro e a respectiva carroça. Ainda por cima lhe veio com ameaças. Ele correu atrás do Dom Juan com um porrete, mas o mesmo sacou de um revólver e atirou nele, tendo uma das balas lhe alcançado a cabeça. E ele ainda detalhou que a bala lhe entrara na parte da frente e saíra pela de trás, sem bulir com os miôlo.

A história de Joaquim me trouxe Antônio, o homem do nariz de beringela. Aquilo era um nariz enorme, inchado, vermelho, suculento. Seria um Cyrano de Bergerac, porém bem menos agradável. O apêndice, que parecia ter vida própria naquele rosto castigado, era como uma fruta ou legume maduro, mas isso não o isentava de se mostrar também repugnante, pois dele minava secreção copiosa e fétida. O pobre homem mal tinha quem se encorajasse a se aproximar dele, figurando um daqueles leprosos medievais. A história clínica sugeria uma infecção, quem sabe uma micose, agravada, talvez, pela visível higiene precária do personagem. Examina daqui, examina dali, colhe-se material, esperam-se resultados. E o tempo vai passando. Até que um dia o diagnóstico se fez sozinho. O pobre Antônio começa a eliminar pelas narinas uma legião de larvas de mosca de berne. A esta altura, a higiene local com água sanitária, além da aplicação de compressas de vaselina, que sufoca as tais larvas e as faz fugir, resolveram a questão em poucos dias. Inclusive a fedentina cedeu. A história só não teve um final feliz porque Antônio era pobre, muito pobre, e vivia sozinho, quase abandonado. Seus hábitos higiênicos eram dignos de um vivente medieval, fosse servo ou senhor. E tendo recebido alta, creio que voltou para sua vida de sempre.

Toda essa história, entre o dramático e o escatológico, me vem à mente mais uma vez, fazendo-me refletir sobre a compreensão entre o que é ser ou estar doente, na visão dos próprios pacientes, diante da maneira distante e técnica como enxergam os médicos, que apenas perseguem diagnósticos, para então aplicar tratamentos heroicos. Diante de sua indagação ao Antônio sobre como isso pôde ter lhe acontecido ao nariz, recebi dele explicação sui generis, um tanto acanhado, meio se desculpando: pois é seu doutor, não sei não; é que às vezes a gente distrai do nariz. Tal dito, sem dúvida um tanto filosófico, me fez lembrar de uma frase famosa, que um professor da faculdade gostava de repetir, acho que de Voltaire, ou apenas atribuída (como tantas coisas hoje em dia) a ele: a medicina é a arte de distrair os pacientes enquanto a natureza trabalha.

O caso da beringela me trouxe à tona meu amigo Pedro Tavares, não sei por qual motivo, talvez pelas proverbiais solidariedade e empatia que este médico demonstra com seus pacientes. Ele tem um filho com síndrome de Down e um dia me contou como ficou sabendo de tal infortúnio. Chegou ao hospital depois do parto realizado, pois estava de plantão, e só pôde estar com a esposa após algumas horas, quando o bebê já tinha nascido. A recepção que teve por parte da encarregada do berçário foi chocante: uai, pensei que o senhor fosse japonês, o bebê tem os olhos tão puxadinhos. Ele me revelou isso uma certa vez, com os olhos inicialmente marejados, mas depois em estado de choro convulso. Eu só lhe fiz abraçar, por falta absoluta de palavras de consolo. O problema é que nós médicos não aprendemos a dar – e nem a receber – notícias ruins. Muito menos consolar alguém que as recebe. Aliás, se há uma coisa que as Faculdades de Medicina mal ensinam – ou simplesmente não ensinam – é a sensível arte de saber comunicar notícias ruins, aspecto tão comum e necessário a quem se dedica ao trato com a saúde e a doença das pessoas. Ou isso seria um dom, não ensinável?

Com efeito, da primeira notícia de morte a uma família, ou do comunicado direto a um paciente de que ele tem uma doença maligna, ninguém que tenha sido um dia obrigado a isso é capaz de se esquecer. Imaginem quando isso impõe quando se é um jovem e inexperiente… O fato é que o drama de Pedro me fez recordar – nem sempre me esqueço das coisas – de algo que vivi nos meus primeiros anos de médico, quando portador que eu ainda era de uma santa juventude, e de uma não menos santifi­cada inexperiência. Aconteceu o seguinte: certo dia se aproximou de mim uma funcionária do hospital, transtornada, em pranto inconsolável, e me fez um pedido, ao qual eu daria tudo para não precisar atender. Ela acabara de saber que tinha perdido dois tios e dois sobrinhos em um aci­dente de carro e a família precisava dar a notícia à avó, de noventa e muitos anos e tinham medo da reação dela. Eu conhecia um pouco da história da família, calejada na vida por outra tragédia imensa, que foi um famoso caso de dois irmãos vítimas de um erro judiciário nos anos 30 ou 40 e que passaram anos a fio de suas vidas na cadeia, injustamente, até que a verdade aparecesse, como ressurgimento, bem viva, da suposta vítima de um homicídio. A avozinha era viúva de um deles. Desgraça pouca realmente não era… Eu, compungido, abracei a moça e prometi acompanhar a triste missão, embora o que ela me pedia era maior de qualquer gesto de que eu me sentisse capaz. Despachei como pude as prescrições que fazia no momento e fui para o sacrifício, pequeno diante do que eu iria testemunhar, mas verdadeiramente assombroso para mim.

Notícias ruins andam a galope, diz o velho ditado. E, de fato, quando cheguei à porta da avozinha, a tragédia já estava consumada. Havia muitos carros parados na rua e por toda parte pessoas se abraçavam e choravam, sendo uma família muito grande e arraigada na cidade. E eu entrei na cena principal, como um condenado. E era realmente dantesco o ambiente, com muito choro, lágrimas, des­maios. Mas quem eu vejo, bem no centro do redemoinho, não como objeto de atenção, mas como agente direto, ativo, de consolo aos demais? A velhinha. E me lembro bem de suas palavras, para uns e outros: não se deixem abater meus filhos, Deus é maior e sabe o que faz. Para uns ela oferecia um carinho; para outros um copo de água com açúcar ou um chá; para todos, presença confortadora, nada mais.

Acreditando ou não em Deus, estando disposto, ou não, a aceitar desígnios como este, uma coisa para mim ficou clara naquela cena: as pessoas sempre souberam o que fazer nas horas difíceis, com, sem ou apesar dos médicos e demais profissionais de saúde. E na idade avançada, como no caso, esta forma de sabedoria era mais profunda e mais efetiva ainda. Sorte minha, que não tendo apoio em tal quesito na minha formação médica, pude encontrar alguém assim, em hora tão extrema, que não só me poupou de fazer algo para o que não estava preparado como me ofereceu uma grande lição de vida.

Chamam meu voo. Elsa está de volta, com seu cortejo de sacolas. Tenta me apressar, como sempre, parecendo mais interessada em que eu lhe carregue a mochila e as sacolas, do que propriamente na minha companhia. Sem problemas, ando tão desligado que certamente não faria boa presença com ela. E assim seguimos para o embarque, eu cabisbaixo e ainda sufocado por algumas lembranças que despertei em mim mesmo. Elsa querendo saber se estou bem, o que me faz mentir, que estou apenas com sono. No meio dessas lembranças ainda me toca, especialmente, depois de muitos anos, o drama de Pedro, que me faz afundar em desconforto. No avião, por sorte, não há lugar ao lado de Elsa, o que, com todo respeito, me traz certo alivio, por me permitir prosseguir na outra viagem, essa bastante íntima, à qual vinha me dedicando, desde as horas na sala de espera.

Acomodei-me e tentei resgatar da memória o ponto onde tinha me detido um pouco antes. Qual seria mesmo? O nariz de Antônio; as investidas mal sucedidas daquele marido repleto de virilidade e falta de noção; as complicações múltiplas daquele rapaz dos grotões do país; a inusitada correção ortopédica feita pelos rapazes “enfermeiros”; a bala que entra e sai de um crâneo sem ofender os miolo; o drama de meu amigo Pedro Tavares. Como juntar tudo aquilo? Na raiz de meu mal-estar e de minha memória esgarçada talvez pesasse a erosão provocada por aquela festa sem pé nem cabeça, a saturnália senil à qual me vi obrigado a comparecer. Os colegas envelhecidos, conservadores, calvos, de barrigas protusas, repetindo piadas desgastadas, aplicando verdadeiros murros uns nos outros à guisa de abraços, eram uma imagem sem foco, feita de falsidade e redundâncias. Realmente não devia ter vindo. Aqueles contatos íntimos e forçados só me serviram para despertar dores incubadas. E mesmo ali na poltrona do avião, tentando relaxar, ainda me incomodavam os efeitos do malsinado encontro. Aos setenta e cinco anos não há realmente muito a fazer diante de coisas como essas, senão suportar as dores físicas e mentais, tentando encontrar algum derivativo em leituras, trabalhos manuais, algo assim – talvez principalmente nas lembranças conservadas que nos vêm à mente.

Pensando nisso, lembrei-me, nem consigo saber porque, da cirurgia de catarata que venho adiando há anos, por puro medo de dar errado. A mesma coisa sobre minha próstata, que transforma minhas micções em verdadeiras mensagens em código Morse. Tentando ser profundo, mais uma vez, penso que se pudesse voltar no tempo, teria jogado fora a carreira médica e estudado outra coisa, jornalismo, letras, talvez biologia, por exemplo.

Sem dúvida, já há algum tempo me dei conta de que minha opção profissional foi construída, na verdade, em cima de equívocos sem conta. Fui fazer medicina por ter boas notas e ter me transformado em aluno competitivo e acima de tudo para mostrar a meu pai quem eu era, nada mais. Vocação legítima era coisa que certamente me faltava, hoje tenho isso muito claro. As primeiras aulas na faculdade, ao lado de um cadáver que nem precisava estar ali, já me mostravam um caminho mal começado. Se pelo menos eu tivesse a meu alcance gente, na modalidade viva… Entretanto, o que me ofereciam era um corpo morto; depois o mesmo fatiado em lâminas de vidro; mais adiante, sapos, cães, tubos de ensaio e cálices com sangue e secreções diversas. Quando finalmente chegava a hora do encontro sonhado, vinham radiografias, papéis, debates, corridas de leito totalmente impessoais, com tediosas intermediações de luminares vaidosos.

Tal foi a minha vida de médico. O que eu realmente podia ter feito de bom e útil para os outros? O que aquela faculdade me trouxe de especial, em termos humanos, não sendo eu capaz nem mesmo de saber dar notícias ruins ou consolar quem fosse alvo delas? Que medicina era aquela, que celebrava os casos raros e se esquecia do que era corriqueiro? De onde vinha tanta certeza e conformismo que aceitava manter uma pessoa internada durante meses apenas para satisfazer uma compulsão especulativa de especialistas? Para que tipo de pessoas e de sistema de saúde se ensinava uma medicina tão elitista? Por que especular quase tudo sobre as doenças, mas muito pouco sobre as condições das pessoas que eram acometidas por elas? Por que não me ensinaram o valor, por exemplo, de indagar dos desejos e projetos dos pacientes, e não apenas de suas dores e sinais patológicos ou hereditários?

Sim, de há muito eu percebia: um indivíduo não representa apenas um pacote de vísceras, sangue e ossos, reduzidos a lâminas, mesas de mármore ou tubos de ensaio. Muito mais do que isso, um ser humano é o resultado de uma legião de relações dentro da sociedade, com o mundo dos outros indivíduos e com a natureza – quem sabe até com ramificações cósmicas. A sexualidade das pessoas e suas variantes não deveria também fazer parte do que se ensinava na faculdade, longe de ser tratado como assunto obscuro ou imoral, no máximo objeto de chistes desgastados e preconceituosos? O que realmente passava pela cabeça de certos professores – e talvez da maioria dos estudantes – que medicina, cultura, questões sociais e política são coisas que devem continuar separadas, longe das preocupações dos praticantes da saúde? Quantos equívocos…

Ah, o desastre da formação médica! Quando me lembro, por exemplo, das aulas inaugurais do curso, na anatomia, vejo que os equívocos começavam por ali, já no primeiro dia. Deste o início aquilo era, para mim, uma decoreba, uma enorme perda de tem­po. Aquele anfiteatro lúgubre era lugar onde não se dissecava, mas se destruía corpos. Eu somente descobri depois, mas já desconfiava de uma coisa: depois daquelas sessões de horror seria preciso aprender tudo de novo, principalmente para aqueles que fossem se dedicar à cirurgia ou ao diagnóstico por imagem. Para os demais, mesmo do curso de medicina, bastavam noções gerais, sem cadáveres, sem formol, sem picadinho de gente, sem todo aquele simbolismo horror show. Já ouvi dizer que o ensino com cadáveres já está superado alhures, em países civilizados, que já os baniram das aulas de anatomia. Para mim, embora pareça desarrazoado, os cadáveres são desnecessários nas aulas sobre o corpo humano, por razões de ética e humanitarismo, em primeiro lugar, mas até por razões pedagógicas. Afinal, corpos humanos em formol estão para os corpos reais as­sim como as passas estão para as uvas reais, sumarentas. Suponhamos que alguém que nunca viu uma uva ao vivo vá entender o que é esta fruta através de uma passa seca. Missão impossível, não? Pois era assim que se ensinava – e talvez ainda se ensine – a anatomia: em corpos que estão longe de representar o real. É um dos dilemas dessa formação: as coisas mudam na vida real e as escolas só dão conta disso – quando o fazem – muito tempo depois. E tome fornadas de médicos igualmente distantes da vida real.

Logo depois de ter me instalado na poltrona, já embalado pelo ronronar macio do motor a jato, acabei adormecendo, como quem foge de cuidados graves, e só agora trago ao papel as falas que gravei naquela tarde calorenta. Mas ainda não sei que fim darei nisso.

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