Amor em tempos de pandemia (e cia.)

Amor, sempre amor. Em tempo de pandemia ou em épocas normais. Apenas imaginado ou vivido por inteiro – ou por partes. Amor com ventura ou com angústia; com alegria ou tristeza; com esperança ou desespero; com alivio ou dor. Sempre Amor, sempre o mesmo e sempre diferente. Aqui vão alguns exercícios que fiz, sobre tal tema. Algumas coisas eu confesso que vivi de fato, mas nem tudo é verdade. Minha nudez não mais me assusta e eu a compartilho com vocês.

AS HISTÓRIAS
Amor em tempos de pandemia 
Menina de tranças 
Jerusa 
Um anjo louro 
Menina na janela 
O que foi feito de Graça? 
Quadrilha moderna 
Esperando Bardot 
A história de Jacó 
Afinidades eletivas 
Continuação 
Amor infernal 
Os trabalhos de Éricles 
Alumbramento
Carmina
 

***

Amor em tempos de pandemia

Parecia em cena de filme. Eu dirigindo pela noite a dentro, tendo pela frente horas e horas de estrada deserta, para estar com aquela pessoa tão querida e especial, em seus prováveis últimos dias ou horas de vida. Eu vivia aquilo como um transe, desencadeado pelo telefonema que recebi ao chegar do trabalho. Sim, ela chegava ao fim.

Eu não a via havia algum tempo, seis ou sete semanas, afastados que estávamos pelos terríveis acontecimentos que fizeram as pessoas guardarem distância umas das outras, por meses a fio. Falávamos, entretanto, quase todos os dias e eu acompanhava, de longe, os percalços de um tratamento médico que já há tempos era percebido, por ela e depois por mim, como infrutífero e devastador.

No início de tudo, porém:

Amigo, estou preocupada com esta febre, que não cede há semanas.

– Não há de ser nada, faça um exame de urina…

– Sei lá, com a história familiar que eu tenho, melhor não facilitar.

– Talvez seja o caso de procurar um médico, então.

– Este é o meu medo verdadeiro.

 ***

Muitos anos antes… Eu trabalhava naquela repartição de coleta de impostos, onde nada acontecia. Éramos um punhado de burocratas esperando apenas o relógio marcar as cinco horas para bater o ponto e cair fora. A chegada da nova funcionária, transferida da sede, na capital, nos trouxe alento e curiosidade. E ela não decepcionou, pelo menos a mim que encarava o trabalho com espírito diferente de uma parte daqueles ali, cujo expectativa real era de não se comprometer com nada, não ir atrás de complicações, como eles diziam.

Na verdade, eu sabia muito bem quem era ela. A bem dizer, havia uma ligação antiga, embora não exercida de fato, entre nós dois. Eu conhecia seu pai, meu professor no ginásio, mas que continuou ligado a mim e a outros colegas depois disso, embora nos víssemos raramente, como uma espécie de involuntário guia espiritual. Em uma das vezes que o reencontrei, diante de meus posicionamentos políticos, me disse: você precisa conhecer melhor a Maria Lucia, minha filha, vocês pensam igualzinho. Eu não a via senão raramente, mas nunca pude me esquecer do que me dissera o velho professor Jaques.

Na sua apresentação ao grupo, na chegada à tal repartição, ela se desculpou: – gente, vão me desculpando, mas sou muito intrometida

E logo demonstrou o que ela designava como tal. Insurgiu-se, de pronto, contra aquela nossa mania de anotar lembretes em cadernos, quando já tínhamos um sistema informatizado de registro de informações; as nossas reuniões sem hora para começar e acabar; a falta de protocolos e registros formais relativos a decisões ali tomadas, bem como de prazos e personificação de responsabilidades. É claro que a maioria odiou e logo se indispôs contra ela, pelo menos às escondidas. Mas para minha mente aquilo era música, divina. Era uma sacudida que no fundo, mesmo sem que eu o soubesse de fato, eu bem desejava.

Mas já então, não podia me enganar, havia nela algo mais a me tocar, além daqueles modos incisivos. Aquele seu jeito de olhar, fosse para mim ou para as outras pessoas, como uns olhos azuis que pareciam emitir fagulhas em alguns momentos, quando queria se fazer entender ou colocar ênfase no que dizia.

Ênfase… Penso que nunca tinha visto uma pessoa que colocasse isso de jeito tão marcante em toda minha vida de funcionário ou de pessoa comum. E eu vi que gostava daquilo. 

Daí para convidá-la a minha casa foi um átimo. Eu normalmente não fazia isso com os colegas de trabalho, com exceções muito raras e inconstantes. Mas com ela, fiz com prazer. E o que já era uma ponte de afeto no ambiente de trabalho se estendeu sem delongas ou obstáculos a minha mulher e meus filhos pequenos. Um deles, aliás, ao perceber aqueles inéditos olhos azuis, com a pupila escura bem demarcada ao centro da íris, indagou a ela: – por que você tem este furinho no olho? Rimos todos, e não era para menos. Ali começava uma longa história de afeto e presença, por anos a fio.

No trabalho, as mudanças pressentidas começaram a acontecer. Logo desenvolvemos, ela, eu e mais uns dois ou três funcionários mais conscientes e cumpridores, forte cumplicidade em nossas tarefas rotineiras, algo que se por um lado nos deixava felizes e realizados, por outro lado nos trazia ciúmes e malquerenças. A hora fatal das cinco da tarde para o nosso grupo cúmplice muitas vezes se estendia por mais quantas fossem necessárias. Saíamos do trabalho muitas vezes já com a noite feita e ainda prosseguíamos no mesmo ritmo em algum café ou botequim.

Na repartição, olhares atravessados. Em casa, comecei a notar, algo assim acontecia também. Hermínia, minha mulher, parecia ter gostado dela, sem explicitar algo como ciúme ou desconfiança feminina. Ela apenas dava prosseguimento a um costume já demonstrado desde os primeiros momentos de nossa relação, de me querer a seu lado durante todo o tempo, coisa acentuada pelo nascimento de nossos filhos. Às vezes ficava amuada com as frequentes expansões de meus horários no trabalho. 

De repente em um daqueles serões aconteceram coisas. Havia a eminência de uma auditoria em nossas atividades e os agentes da mesma eram renhidos burocratas, para quem valia mais o cumprimento restrito de alguma norma escrita do que uma solução viável e criativa, ainda dentro das regras oficiais. Não deu outra, pegaram pesado com os nosso modo de fazer as coisas e ela, sensível como era, sentiu-se diretamente atingida com algumas medidas de repreensão que foram tomadas no calor dos acontecimentos, sem maiores chances de explicação ou defesa. Pior ainda, alguns dos nossos pares, justamente da turma que não queria mudanças, tomou partido dos auditores e os ajudou a culpar os demais pelas falhas detectadas. Maria Lucia se recolheu ao banheiro, já com os olhos injetados e vermelhos, mal contendo sua indignação.

Quando a terrível sessão inquisitória terminou, eu me ofereci a lhe dar carona até em casa, pois já era tarde e ela, como de costume, dependia da passagem de um ônibus que cumpria horários apenas precariamente.

No meu carro, suas lágrimas rolaram e eu fui pego de jeito, pois dirigindo como estava me via impossibilitado de oferecer a ela um lenço ou, quem sabe, um ombro. Ela chorou um rio inteiro no trajeto até sua casa. Na chegada, me pediu desculpas e me convidou a entrar por algum tempo, para beber uma água ou um café, ou até que ela se recuperasse, segundo meu entendimento. Aceitei, de imediato, e nem podia negar: aqueles olhos azuis já haviam marcado presença em mim e eu estava disposto a assumir qualquer risco que isso trouxesse.

E o risco se fez acontecer. Antes de água ou café, paramos no próprio saguão de sua casa e ali, entre uma desculpa e outra, nos vimos frente a frente, com apenas alguns centímetros a distanciar nossos corpos. E assim aconteceu: primeiro um toque de consolo no ombro dela, um rápido carinho no braço e o passo seguinte foi justamente algo previsível, existente desde que o mundo é mundo e que existem seres humanos. Nos abraçamos longamente e um beijo molhado se fez presente entre nós, mais por lágrimas do que por saliva, ansioso de desejo, mas também de medo.

Depois disso, nada seria como antes.

 ***

Azar danado, eu pensava, enquanto dirigia pela estrada, naquela madrugada. Aquilo era uma fatalidade, eu e ela esperamos por um momento propício durante anos e agora vinha aquela doença. Aquela febre não parecia ser coisa importante, mas com o passar dos dias evoluiu para queda no estado geral e em pouco tempo estava diagnosticado um câncer, dos mais agressivos, por sinal. Quando recebi o fatídico telefonema, ela fazia quimioterapia há pelo menos um mês e os resultados não se mostravam promissores. Nos últimos dias entrara em decadência profunda e, pela informação que obtive, até mesmo às vésperas de um coma.

O pior de tudo era a maldita pandemia, que nos mantinha a todos trancados em casa, sem poder fugir disso. A nossa velha comunicação telefônica funcionou, mas o certo é que queríamos mais, muitíssimo mais.

Ela tinha ficado viúva, depois de duas décadas de um casamento tranquilo. Tranquilo, é bom dizer, em vários sentidos, pois de maneira geral não perturbou encontros nossos a cada dois ou três meses. Como a esta altura ela trabalhava na iniciativa privada, em cargo que lhe exigia viagens, isso facilitou com que nos víssemos sem maiores contratempos. Eu também me via liberado agora, pois meu casamento havia alguns anos fracassara e eu vivia de galho em galho, não me furtando a relacionamentos nem sempre muito honestos e dignos, mas deixando um espaço para aquele que já era um amor marcante e permanente.

Com os acontecimentos relativos a nossas vidas afetivas, a viuvez dela e a minha libertação de laços formais com alguma pessoa, passei a propor a ela que pudéssemos levar nossa história à luz do dia, por que não? Mas sua resistência foi grande, pois tinha se tornado amiga de Hermínia e temia que uma aproximação amorosa fosse mal vista, por ela ou pelos amigos comuns que tínhamos, inclusive por nossas famílias. Eu bem que tentei dissuadi-la, mas acabei vencido pelo seu argumento que do jeito que as coisas andavam, uma liberdade quase total já nos estava assegurada e não era preciso termos medo de quase nada mais.

É claro que isso, nos últimos tempos, ficara ameaçado pela pandemia. Neste momento, entretanto, tínhamos aprendido que o telefone era um instrumento que poderia ser utilizado não só para recados, negócios e conversações informais e gerais, mas também para coisas muito mais profundas e interessantes, inclusive envolvendo assuntos amorosos e interlocuções eróticas.

E ia tudo muito bem até que apareceu aquela febrezinha que em poucas semanas desandou em estrago muito maior, para tristeza minha e dela.

 ***

Porque toda aquela proximidade era algo que superava, claramente, toda e qualquer expectativa que pudéssemos ter de início. O pai – meu velho professor Jaques – por exemplo, ao nos receber pela primeira vez, ou seja, eu, Hermínia e os filhos, junto com ela e o marido, ainda se lembrou de sua frase de anos antes, revelada agora como profética: – eu sabia que vocês iam se dar bem e fico feliz ver incluída nisso toda sua família, meu amigo.

Um dos irmãos dela, por pândega, chegou até mesmo a dizer em uma mesa de almoço, debaixo de risadas gerais: – temos que tomar cuidado, papai foi com a cara deste camarada; do jeito que vai vamos acabar tendo que dividir a herança com ele.

E assim fui vendo meu velho professor transformar-se quase que em um segundo pai para mim. Ele agora se dedicava a tocar uma fazendinha da família, bem perto da cidade e lá fui encontra-lo algumas vezes. Jaques era uma figura emblemática na cidade, no melhor sentido que esta palavra pode ter. Ex-Prefeito, ex-Provedor da Santa Casa, presidente do Lions Clube, vicentino militante – tudo o que faz de um homem em comunidade personalidade prestante e imprescindível. Nossas conversas, ele sempre respeitoso e carinhoso comigo, eram marcadas por forte simpatia mútua, embora nossa diferença de idade talvez ultrapassasse os quarenta anos.

Certa vez, já em momento mais recente, fui visitá-lo diretamente na fazenda, gozando o privilégio de ter encontrado, em plena madureza, aquela especial figura de pai e amigo. Havia, então, seis meses que não nos víamos. Ele estava doente, de câncer, com um prazo de vida indefinido pelos médicos, provavelmente curto. Acompanhava-o, entretanto, à distância, sabendo-o machucado pela moléstia, com o rosto alterado pela brutalidade da quimioterapia. Eu não queria vê-lo naquele estado.

Outra coisa, ainda, me mantinha distante. Eu rompera recentemente o casamento de muitos anos com Hermínia e tinha medo de que o afeto que ele sempre dedicara ao casal, não sobrasse para mim, que trilhava agora outros caminhos. Ou que me recriminasse, por partir vínculos tão sagrados. Aquele homem nem poderia imaginar que meus vínculos agora eram com a filha, e o que é pior, de certa forma antevistos por ele mesmo, em tempos passados. O certo é que tal visita me deixava um tanto angustiado, com medo da reação que ele pudesse ter. Fui então encontrá-lo na fazenda, onde poderíamos usufruir da privacidade que a casa da cidade, na qual a família, numerosa e comunicativa, com certeza não nos permitiria.

Nada, porém, foi como eu temia. Recebeu-me com as honrarias de sempre. Mostrou-me as novidades no curral e os chiqueiros reformados, o novo trator, o viveiro para o qual havia adquirido um punhado de novos habitantes. Era daquele tipo de pessoa que, mesmo condenado por uma doença maligna, mandava plantar mais mil pés de café, reformar a casa e povoar um novo viveiro. Além disso, trocara o carro por um mais novo e mais veloz.

Notei, naquele dia, que apesar da disposição em me exibir as benfeitorias, ele ofegava ao caminhar. Suava, talvez, um pouco mais que o costume. Ao transpor o rego d’água, não armou o costumeiro pulo, majestoso, que apesar dos setent´anos, ainda lhe permitiam as longas pernas. Antes, preferiu passar pela prosaica pinguela, destinada, naqueles passeios, apenas às mulheres.

Chamavam-nos para o café, preparado ritualmente pelas empregadas, uma tradição nas casas da cidade e da fazenda, desde o tempo em que ainda era viva a esposa. Na mesa grande, três ou quatro quitandas diferentes, queijo de Minas feito em casa, além de, é claro, bom café plantado, torrado e moído ali mesmo.

Ao fim e ao cabo, na mesa, a sós comigo, dirigiu-me o olhar azul profundo, inquiridor, sem deixar de ser carinhoso: – e você, então… Falou de um modo que me deixava livre, para interpretar e responder a pergunta como quisesse. Resolvi encarar pelo lado que, até então, evitara. Abri-me, como nunca pensei ser capaz. Eu tinha com ele uma relação afetuosa e franca, mas, nunca antes me sentira capaz de confissões tão pessoais e íntimas. Falei de tudo, com foco na ruptura com Hermínia, mas não do essencial, que ali poderia soar chocante. Escutou-me calado, paciencioso. Creio que nem me fez perguntas. Apenas me deixou falar, sem qualquer gesto intempestivo. Quando percebeu minha loquacidade diminuída, atalhou, bondoso: – vamos, ainda preciso mostrar muita coisa a você; aqui na fazenda não se para nunca, tem sempre novidades. E andando por ali prosseguimos a conversa longa e macia que, entre ele e eu, mesmo com tantos anos de diferença na idade, parecia nunca ter tido começo ou fim.

Entretanto, ficava tarde, esfriava. Eu tinha pela frente quase duas horas de estrada que me separavam de casa. Na soleira da varanda, abraçamo-nos, com um contato físico breve e um tanto duro, como era de seu feitio. Por um momento, ficamos silenciosos e melancólicos, mas, principalmente, lembro-me bem, emocionados. Os olhos azuis tornaram a me fitar, com surpreendente profundidade e clareza. Disse-me, então: – ninguém pode julgá-lo, muito menos eu. O importante, na vida é ser feliz. Siga seu rumo, se você já sabe que a felicidade lhe espera. Isso é o que importa, não o julgamento de alguém, seja lá quem for. Deus há de te abençoar. Sábias palavras, que abrangeriam também aquela verdade que eu não revelava, nem naquele ou em qualquer outro momento

Não mais nos vimos. Três ou quatro meses após minha visita, veio a falecer durante uma pescaria com amigos. Vi-o no funeral, com a face serena de quem confiara a alma ao espírito das matas, dos rios e dos peixes. Alegrei-me por tê-lo presente em minha vida, meu quase futuro sogro, meu amado professor Jaques Monteiro.

 ***

E os pensamentos me corriam soltos, naquela madrugada fria, tendo nas mãos o volante do automóvel. Havia muito do que lembrar, dado o objetivo da viagem. Ah, Maria Lucia, que momentos luminosos tivemos… Falo de acontecimentos que não tiveram como ser totalmente vividos, pelo menos da maneira que as histórias de amor devem sê-lo. Nossos encontros, com efeito, eram geralmente furtivos e o mundo ao nosso redor jamais pôde saber de nada do que se passava entre nós. Mas foi tudo muito profundo e avassalador. Um dia, anos depois de tudo ter começado, por alguma razão, pus-me a refletir sobre as coisas que me haviam marcado a vida. É claro que no capítulo das pessoas, havia aquela especial, que me influenciou existencialmente, além de exercer um papel até então exclusivo: o de ser alguém a quem amei de verdade e de forma continuada. Eu pensava se teria sido capaz de estar com ela por inteiro e atento, já que me sentia a vida marcada pelo ímpeto e pela inquietação. Sentia assim, quando olhava para trás, que nem sempre me fora possível estar consciente de tudo o que me acontecia e seus desdobramentos, ou de assumir condutas adequadas, do ponto de vista afetivo. Era especialmente marcante em mim certa culpa, no campo profissional, de por vezes me sentir como alguém que pulava de um galho a outro, antes que encerrassem os ciclos das experiências que vivenciava. Na vida afetiva, então, nem se fala…

E me ative a um aspecto particular dessa minha inquietude crônica, relativo a algo de que não me curara e que me causava forte arrependimento, um sentimento que, eu pressentia, talvez me acompanhasse pelo resto de meus dias. Eu pensava, então, em Maria Lucia, aquele especial e verdadeiro privilégio que a vida me oferecera e do qual eu nunca pudera ou não conseguira desfrutar de forma inteira. Pensava também em ter faltado a mim a coragem necessária, principalmente quando me lembrava que a pessoa que representava a materialização de tal privilégio fora repetida vezes afastada por mim, embora em outras tantas ocorresse o contrário. E ela, em sua generosidade peculiar, certamente dotada de percepção consciente (que eu próprio não tivera de forma tão intensa) de que o que vivíamos era realmente algo inédito, raro e profundamente iluminador, a ser vivido como fosse possível, sempre me queria e me acolhia de volta. E mesmo que se passassem meses ou até anos entre tais momentos, cada encontro ou reencontro sempre se fazia como se fosse o da primeira vez, ou, pelo menos, como uma conversa que tivesse sido interrompida em sua melhor parte, mas apenas no dia da véspera. Para o bem ou para o mal. Mas o que seria, de fato, o bem e o mal nessa história toda?

De fato, eu não poderia jamais me queixar das muitas benfeitorias que a vida me trouxe. Ter sentido, por exemplo, pulsar em mim tantas vezes os disparos do coração, a sensação de sermos ela e eu pessoas certas em lugares idem, quem sabe em um tempo errado. Aquilo representou sempre para mim uma sucessão de imagens gratificantes, às vezes ternas, às vezes abrasadoras, às vezes até assustadoras. Mãos frias, lágrimas, coração a galope, toques de cotovelo, olhares, dedos entre dedos, pele, cheiros, procuras, comedimentos que se abriam em torvelinhos. Nós dois, raramente a sós, em tantos e diferentes lugares.

Uma cena particular, forte: a gente se amando em minha casa e lá fora caindo a primeira chuva do ano. Um bom vinho e sua música predileta no som da cabeceira. Ou então, daquele banho quente, juntos em banheira espumante, à luz de velas… O que sempre lhe pedi e fui correspondido, sem limites, foi que me dedicasse o carinho e a generosidade de sempre, me acolhendo para conversas a sós, sem hora de acabar, mesmo quando não nos víamos meses ou mais de ano. E, principalmente, que me recebesse e me ouvisse, com o afeto de sempre, para entender melhor as coisas que me passavam pelo coração. Quando não fosse para fazer, mais uma vez, aquilo em que éramos dois mestres consumados: a arte da boa conversa, o fluir da inesgotável luz que sabíamos despertar, o sentimento que todo o Universo se resumia e se concentrava em duas pessoas únicas e especiais, pelo menos na curta duração daqueles momentos extraordinários.

E eu me perguntava o que fazer disso tudo, dessa bagagem, desse patrimônio amoroso e afetivo tão raramente acumulado entre as pessoas? Carregá-lo apenas na gavetinha mais escondida das minhas e das nossas lembranças? Cada um cuidando do seu pedaço? Ou então perseguir, de alguma forma, a utopia da permanência de tais coisas lindas? Não tenho e nunca tive resposta para tantas perguntas… E mais esta ficou sem ser respondida: foi justo sufocar sentimentos sendo a vida tão curta e tão dura?

Recebi dela, em todo tempo que nos relacionamos, uma única mensagem escrita e não assinada. Assim dizia: nem anjo nem demônio, você mesmo. Muitas vezes doce, outras severo. Sempre com opinião sobre tudo. Sabe dizer a vida em versos sempre que alguma coisa desata em seu coração. Recebe com coração e comidinha quente. Tem a casa iluminada na medida certa, nem mais nem menos do que o necessário para se ver o essencial. Sabe guardar as relíquias da vida na memória, que pode ser reativada sempre que a saudade traz lembranças gratificantes. Enfrenta o desafio de “resignificar” a rotina e os pequenos detalhes da vida. É este homem que gosto. Beijos.

Mas a vida real falou mais alto. Não podendo nomeá-la de forma frontal – dado um compromisso que com ela assumi – dei-lhe um nome, clandestino, mas apropriado, de deusa grega: Atheneia.

 ***

Os quilômetros eram devorados, mas de certa forma eu preferia que se estendessem mais. Eu bem sabia do que me aguardava no final da linha.

Finalmente cheguei. A primeira impressão já me foi marcante, para não se esquecer nunca. Ela estava sentada no sofá da sala, magra, quase esquálida, cabeça já glabra pelos efeitos da quimioterapia. Aquela face já não era a dela, mas de um espectro que ocupara seu corpo. Os olhos azuis continuavam os mesmos, parecendo ainda mais fulgurantes. Vi em seu rosto, naquele momento, o mesmo de Jaques alguns anos antes, também devastado pela doença. Mas apesar de tudo era a minha Maria Lucia de sempre.

Ela não conseguiu levantar do sofá para me abraçar, mas eu me sentei do seu lado, tomei-lhe as mãos entre as minhas e assim estivemos por um bom tempo. Mesmo com outras pessoas em casa, parentes e cuidadora, fiz isso como ainda não tinha feito antes, dados os cuidados que tínhamos em não denunciar nosso afeto frente a outras pessoas.

Fiquei por ali, ajudei no que pude, pouco é verdade, porque sua rede familiar e afetiva cuidava de tudo. Mas conversamos, rimos um tanto, relembramos velhas histórias lembráveis. Eu ia pernoitar em outro lugar, mas acabei ficando para passar a noite por lá mesmo.

Com a chegada da noite ficamos na casa somente ela, eu e uma amiga, que era também enfermeira. Foi então que aconteceu a cena inesquecível, que até me hoje me provoca arrepios de emoção. Fomos dormir juntos, abraçados, trocando carinhos sem fim, com o beneplácito da amiga. Pela primeira vem em nossas vidas fazíamos isso diante da presença de outra pessoa. Se alguém disser que apesar de tais condições fizemos amor, eu diria que foi isso mesmo. Aliás, o fizemos ao nosso modo, de um jeito que nunca havíamos experimentado antes, medido não pelos arroubos do corpo, mas pela sintonia absoluta das nossas almas.

Tudo que vivemos, por anos, mesmo de forma descontínua, não poderia ter se encerrado de maneira melhor. No dia seguinte, estive com ela mais algumas horas e depois parti, de volta para casa.

Passado pouco mais de um mês uma mensagem em meu celular, em plena madrugada, trouxe a já esperada, mas indesejada notícia. Ela partira em paz, depois de mais de uma semana desligada do mundo.

Foi assim, foi o melhor que a vida poderia ter me oferecido. Sou grato por esta dádiva.

 ***

Menina de tranças

Ele acordou cedo naquele dia. Aliás, nem dormira direito toda a noite, tal era sua expectativa. Afinal, iria sair para uma viagem com o pai, só os dois e mais ninguém, como ainda não acontecera em sua vida. Era uma viagem de ‘negócios’, assim a designava o pai, até então desempregado, que iria tentar uma carreira de representante e vendedor de produtos alimentícios pelo interior do estado.

O garoto estava particularmente feliz, e mesmo surpreso, porque acabara de sair de um período tumultuado de convivência em casa. Uns dias antes, fora separar uma briga de dois irmãos mais novos e acabou sendo ele próprio punido pelo pai, de forma violenta, responsabilizado como o agente e não o moderador da confusão, sem que fosse defendido pelos contendores ou pela mãe. Em outro momento, como trouxera da escola um boletim com notas sofríveis, a própria mãe, que nos casos mais graves recorria ao pai, desta vez o recriminou diretamente, punindo-o com a suspensão do Chica-Bom semanal por todo o mês.

Tudo isso era rotina em sua vida, em particular as surras aplicadas pelo pai, por motivos que muitas vezes lhe pareciam fúteis, mas o último mês lhe fora especialmente ingrato. E a última daquelas surras, com um cinturão sempre pendurado atrás de uma porta para tal finalidade, lhe havia deixado uma marca da fivela na coxa, ainda roxa e um tanto dolorosa na véspera da prometida viagem.

Mas aquela manhã era promissora e estava bem começada, com o pai encarregando-o de colocar as malas no carro e ligar o motor, para que esquentasse enquanto tomavam o café da manhã, conforme costume da época. Ao cuidar de tais afazeres, ajeitou no banco traseiro, com especial atenção, o embrulho feito com pano de prato, com algumas guloseimas que a mãe preparara para a viagem. Nada poderia ser melhor do que aquilo. 

E seguiram pelas estradas, inicialmente já conhecidas, mas logo em seguida adentrando mais e mais em territórios ignotos. O pai, ordinariamente taciturno lhe parecia, desta vez, especialmente atencioso, embora não desse resposta a boa parte de suas perguntas e observações surgidas durante a viagem. Mas para ele aquilo era, ainda assim, o melhor dos mundos.

Pela hora do almoço já estavam em outra cidade, diferente de todas as outras que ele conhecera, com suas ruas empoeiradas, casario antigo e uma enorme estação de trem. A natureza, para se chegar até ali, era uma vastidão plana, totalmente diversa do ambiente montanhoso ao qual ele estava acostumado, e ali cresciam árvores esquisitas, tortas e cascudas. Aqui e ali pessoas vendiam os frutos típicos daquela paisagem, de uma tonalidade amarela e de um odor penetrante, como ele nunca havia visto ou sentido antes. Aprendeu, logo de saída, o nome de tais coisas novas que aquela viagem, tão augurada, lhe trazia: o mato era cerrado e o fruto pequi.  

A hora do almoço, em restaurante próximo à estação, ainda lhe trouxe mais coisas novas, como a comida fortemente temperada, a carne de bom sabor, mas especialmente salgada, as garrafas de pimenta, imensas e arrolhadas com sabugos de milho. Em uma mesa próxima, um homem retirava desses frascos colheradas inteiras de pimenta, que uma vez amassadas com um garfo no prato, ele comia em forma de pasta no pão, demonstrando grande prazer com isso, embora seu rosto se transfigurasse em tons de vermelho ao roxo e o suor lhe corresse pela testa e bochechas como se estivesse debaixo de um chuveiro.

E as surpresas se acumulavam, a cada momento mais extraordinárias. Agora, era o trem de ferro, que o garoto iria experimentar pela primeira vez na vida. Deixariam o carro naquela cidade para ir até outra mais adiante, na qual se iniciariam, finalmente, os ‘negócios’ que haviam motivado aquela excursão de pai e filho pelos sertões do estado. Era tudo emoção.

O trem lhe provocava especial sensação, mas ele o achou lento, barulhento e, principalmente, muito malcheiroso, dada a proximidade do assento que tomaram em relação ao banheiro, em uma ponta do vagão. Mas ver a paisagem pela janela, depois de algum tempo recompondo sua familiaridade com as montanhas, lhe era prazeroso, de forma especial. Em dado momento, ele pôde ver um grupo de pessoas junto a um pontilhão, em atitude de quem usufruía de um banho de rio. Eram mulheres, estavam em trajes sumários e uma delas, ele mal e mal percebeu, se escondeu de forma apressada atrás de uma moita, por estar, ao que parecia, nua. Ele mais tarde chegou a duvidar se vira de fato os seios ou mesmo a mancha negra do púbis, tão de relance aquilo ocorrera, mas a sensação proibida, por si só, já lhe bastava. Só não viu mais porque, numa curva, a chuva de fagulhas e fuligem lançadas pela velha locomotiva, lhe turvou por completo a visão. Ver uma mulher nua: aquilo era a melhor novidade, em um dia tão cheio delas. Anos mais tarde ele se lembraria disso ao ler um poeta que tratara algo semelhante como meu primeiro alumbramento.  

Lamentou que a cidade de destino lhes chegasse antes do esperado, pois mesmo com os percalços do desconforto e dos maus odores, estava apreciando, de verdade, aquela inédita jornada em trem de ferro. Ainda mais a nova cidade, a segunda em um único dia, lhe pareceu curiosa e digna de ser apreciada. Cercada por uma natureza de pedras muito claras e portentosas, com a vista alcançando largos horizontes, mesmo com tudo isso o que mais lhe chamava atenção eram as ruas estreitas, calçadas por enormes placas de pedra e o casario antigo, com paredes brancas, janelas e portas muito coloridas. E uma profusão de igrejas. Ali fazia frio, bem mais do que na parada anterior e o pai lhe explicou que isso era devido à altitude. 

Tomaram hotel, num casarão da rua principal e ele ficou feliz pela situação do quarto, que projetava uma graciosa varanda em direção à rua de frente. Saíram para jantar e mais uma vez lhe tocou a feliz sensação de estar agora a fazer certas coisas que eram totalmente raras em sua vida com a família. Lembrou então dos irmãos, não com saudades, mas pensando na inveja deles se soubessem de suas aventuras naquele dia. Não conseguiu aproveitar bem o jantar, porque lhe pareceu ter gosto estranho aquela sopa, no que o pai, em raro gesto de afinidade, concordou com ele. Mas ficou feliz por ter tido o direito de completar a refeição com um refrigerante. 

Depois do jantar andaram por momentos pelas ruas centrais, com ele encantado com as fachadas dos casarões, tão diferentes e muito mais bonitos do que os prédios que ele conhecia em sua cidade. Em uma esquina, homens e mulheres se agitavam, mesas na calçada e casais abraçados, com música e luzes abundantes, em torno do que parecia ser uma festa. Ficou curioso com o fato que aquilo acontecia em várias das casas daquela rua, algumas das quais mostrando uma luz vermelha na porta.  O que seria aquilo? 

Quando ele achou que o passeio noturno estava apenas começando, o pai o surpreendeu com uma mudança de planos, dizendo que seria melhor eles retomarem ao hotel. Eles? Os dois? Qual seria o motivo? Logo viu que a determinação alcançava apenas a ele. O pai apenas o conduziu ao quarto, recomendou-lhe que não trancasse a porta e saiu de novo, deixando-lhe ali um tanto frustrado. Mas, pensando bem, gratificado pelos acontecimentos do dia. Mais do que ele merecia, pensou, modestamente.

Com tantas emoções o sono não lhe tardou. Só deu por si no dia seguinte, já com o sol alto, o pai na cama ao lado. Não percebeu a hora que ele havia chegado, mas achou estranho que àquela hora, com o sol batendo de chapa no cômodo, ele ainda estivesse na cama, contrariando seu costume, o que o fez pensar que ele devia ter chegado bem tarde.

O dia agora, era para os tais ‘negócios’. O pai determinou que ele lhe acompanhasse, não perguntando se ele gostaria de ficar no hotel ou fosse fazer outra coisa, vagar por aquelas ruas que lhe agradavam tanto, por exemplo. Mas aquilo era apenas costume, nada mais, e segundo o que já lhe havia dito o pai, era assim que ele fora criado também. E acrescentava, enfático e com o dedo em riste: e olha que eu tenho o maior respeito pelo seu avô, que foi um excelente pai para mim.

Para que discutir? Vai ver que a lei do mundo sempre foi esta… Além do mais, nas raras ocasiões que ousava contestar o pai o assunto era encerrado com opressivo silêncio, quando não com gritos e ameaças. 

Pela hora do almoço, mais novidades. Sem que ele soubesse o motivo o pai lhe avisou: – você vai voltar para casa hoje. Ele esboçou querer saber o porquê. – Vai voltar e não discuta, rapazinho, eu estou mandando. E completou: se quer saber mesmo, vou lhe dizer: como é que você viaja sem trazer um agasalho? – Mas foi a mãe que arrumou a mala… – Calado! Antes que eu me enfureça de vez…

Bobagem querer discutir com alguém assim, e mais uma vez ele se resignou…

E assim, 24 horas depois das emoções de viajar de trem, de ver aquela moça nuazinha no banho, do contato com uma cidade tão diferente e bonita, e da aprazível caminhada noturna com o pai, viu-se o garoto embarcado num ônibus, de volta à companhia da mãe e dos irmãos. Calado, frustrado, sem saber o real motivo dos novos acontecimentos e o que é pior, depois de ter experimentado, por momentos fugazes, a sensação agradável de que o pai finalmente lhe fazia justiça.

E naquele ônibus velho e moroso, não menos desagradável nos ruídos e odores que o trem da véspera, embarcou, com a mente turvada por pensamentos sombrios e sentindo muita pena de si mesmo. Na primeira parada, quis esvaziar a bexiga e não conseguiu, por ter ao seu lado um brutamontes que fazia questão, bem a seu lado, de balançar seu instrumento vigorosamente e ainda liberar ruídos intestinais com grande estrépito. Tornou a embarcar no calhambeque não menos chateado, mas agora premido por uma bexiga incomodamente cheia. 

Poucos quilômetros adiante, aconteceu. O ônibus para bruscamente e depois de alguns minutos de espera o motorista anuncia que havia um defeito grave no radiador e que tinham que aguardar um contato com a empresa, para ver a solução que seria dada. Havia um estabelecimento nas proximidades, coisa de um ou dois quilômetros, e os passageiros poderiam esperar lá. 

Logo uma fila se fez, puxada pelo auxiliar do motorista, e os passageiros foram encaminhados a seu destino intermediário, na verdade um misto de lanchonete, armazém, hospedaria e borracharia, algo bem comum nos interiores do país. O atraso da viagem, embora tenha preocupado o garoto logo que anunciado, acabou por deixá-lo relaxado, não só por lhe retardar a volta ao lar, de onde ele preferia estar distante, mas também por lhe augurar possibilidades, quem sabe, de aventuras que poderia contar aos irmãos posteriormente, tirando de tal coisa não poucas vantagens. Além disso, também por acarretar possíveis preocupações à mãe, que certamente fora avisada e lhe esperava ainda na noite daquele dia. Com isso ele, intimamente, se regozijava. Assim, a sombra inicial logo se transformou em serenidade e até certa alegria.

Com os trocadinhos que tinha no bolso, dados pelo pai à hora do embarque, viu que pelo menos poderia comer um pastel com caldo de cana, o que lhe pareceu de bom tamanho, Como a empresa logo conseguiu um local para que os passageiros guardassem seus pertences e ele na verdade só portasse uma pequena sacola, viu-se logo liberado a explorar os arredores do estabelecimento, enquanto ainda havia luz do dia.

Andando por ali viu nos fundos uma casa, que parecia – e depois se confirmou – ser a residência dos proprietários do estabelecimento. Foi recebido de maneira festiva pelos cães e logo passou a brincar com eles, em total compartilhamento de afeição. A criação do terreiro, representada por perus, patos e galinhas, também logo lhe chamou atenção e ele até mesmo julgou ter atraído a atenção especial de algumas dessas últimas, que vieram cacarejar em torno dele, fazendo-o sentir bem recebido e mesmo festejado. Isso tudo antes de perceber algo realmente novo no cenário, uma aparição que lhe parecia verdadeiramente celestial.

Sim, acabava de chegar uma menina mais ou menos de sua idade, loura, com um jeito de anjo, como aqueles que havia aos pés de uma Nossa Senhora que a mãe guardava no quarto, numa espécie de altar e a quem às vezes orava para que a vida da família melhorasse. Ela sorriu para ele e logo foi lhe perguntando o que fazia ali. A cena da moça no banho lhe voltava agora, mas carregada de outros sentimentos, que misturavam ternura e encantamento. E melhor ainda, uma presença física e consumada, vestida, sem qualquer fuligem ou turvação.

Ele falou do ônibus e ela se mostrou preocupada com o fato de que alguém de sua idade viajasse sozinho. Ele não perdeu a oportunidade de lhe pregar umas mentirinhas, que aquilo era comum para ele, que auxiliava o pai em seus negócios e que agora voltava ao escritório da firma, na capital, para tomar algumas providências. Ela não pareceu acreditar muito naquilo, e se manifestou sobre o quanto achava pouco adequado aquilo, dada a idade dele, que ela logo constatou ser de apenas um ano a mais do que ela. Aproveitou para contar a ele que ainda não havia ido à cidade grande, a capital, onde ele morava, o que mais uma vez abriu ao herói a oportunidade de contar outras potocas e vantagens, sobre a altura dos edifícios, as sessões semanais de cinema assistidas por ele, a recente compra pela família de um aparelho de TV, as idas habituais dele e dos irmãos a uma sorveteria, onde podiam consumir quantos picolés de Chica-Bom quisessem.

E ela cada vez mais interessada o colocava em um pedestal no qual ele jamais imaginaria estar. Falou da vida dela também, da escola que tinha que andar mais de uma hora para alcançar, da amiga principal que só podia ver em dias de aula, da tristeza que era ser filha única e não ter irmãos, da perda recente da mãe, dos sentimentos do pai recém enviuvado e tendo que cuidar do múltiplo estabelecimento ali ao lado, e mais da chácara onde viviam. De sua própria vida de trabalhos diversos, que incluíam cuidar da casa, tratar dos bichos e até mesmo lavar a roupa da família, na verdade agora restrita a ela e ao pai.

Ele encantado e ao mesmo tempo penalizado com aquilo a escutava, deixando de lado, aos poucos, as lorotas que vinha inventando. Já escurecia e a conversa prosperava, de maneira surpreendente para ele. Ela concentrada na conversa e ele não menos, feliz por perceber agora que aqueles últimos contratempos, que incluíam a sua devolução forçada à casa e o enguiço do calhambeque, vinham de fato para o bem

Ela o chamou para conhecer a casa, mostrou-lhe a sala, a cozinha, o quarto do pai e – suprema glória! – o próprio quartinho dela, com sua pequena coleção de bonecas, sua Nossa Senhora, seus dois ou três pares de sapatos, arrumadinhos debaixo da cama coberta por uma manta xadrez. Aquilo tocava fundo a alma do garoto, ele não sabia bem o motivo, mas exultava de íntimo prazer, por ter encontrado o que ele já considerava uma alma irmã.

Como já anunciavam a chegada de um novo ônibus, ele teve que se despedir. E então veio o prêmio do qual ele jamais se julgaria merecedor: ela se aproximou, tocou-lhe o peito com a mão e lhe pespegou um beijo na bochecha, tímido, fugaz, um pouco seco, mas sempre um beijo. 

Ele voltou para casa feliz. A injustiça e a violência do pai, as discórdias com os irmãos, os eternos queixumes da mãe, o ambiente sombrio e infeliz da escola, as dificuldades com a aritmética e sua professora antipática, nada disso era agora problema insolúvel para ele. Com aquela despedida que lhe oferecera o anjo de tranças louras, a vida realmente ganhava sentido. E ele, de repente, se via feliz. Como nunca. O resto não importava.

  ***

Jerusa

– Você já se encontrou com ela? Queria saber se ela continua linda e gostosa como sempre? Quando penso no que eu perdi…

O assunto era recorrente em nossas conversas. Esporádicas, na verdade, mas quando aconteciam, era tiro e queda: Antônio fazia questão de perguntar pela antiga namorada, que não via há dez anos. E perguntas sempre vinham a galope.

Ele estudou no Rio e a conheceu nos tempos da faculdade. Segundo ele, uma morena estonteante. Um pouco baixinha na estatura, não mais do que um metro e sessenta, mas o resto tinha de sobra…

  • Que bunda, meu Deus!

Como eu agora vivia no Rio e frequentava, supostamente, os mesmos ambientes que a moça, Antônio queria ardentemente saber se eu a via. Eu apenas vagamente poderia saber quem ela era. Também como esquecer de um nome como aquele: Jerusa. Mas pessoalmente nunca a tinha visto.

Já nome que me intrigava… Seria com “G” ou com “J”? Nome verdadeiro ou apenas apelido? Será que era originado de Jerusalém? Eu tinha ouvido falar do gentílico erudito: hierosolimitano. Mas por este caminho não dava para atinar qual a fonte de que teria jorrado um nome assim. E me intrigava mais ainda a insistência quase doentia do meu amigo:

  • Veja se a encontra e me traz notícias dela, da próxima vez que vier aqui…

Mas eu tinha outras coisas para fazer, e não eram poucas. Médico residente em hospital público, dois ou três plantões por semana, empreguinho extra na Zona Norte. Não era brincadeira minha vida no Rio. Mas em todo caso, o nome me ficou, como se dizia antigamente, na algibeira.

Mas uma vez, contudo, em uma reunião para discutir o que fazer para um paciente especialmente complicado, alguém se lembrou:

  • Quem tem experiência com casos, assim é a Dra. Jerusa, pena que ela está longe agora. – Longe, onde? Resolvi perguntar… – Na Inglaterra, fazendo um estágio de hematologia molecular. Como se ela já não soubesse tudo nesta área…

Voltei à minha cidade para uma breve temporada daí a poucos dias e, como sempre fazia nas férias, logo me anunciei aos amigos. Aquele que buscava Jerusa, perdida musa, foi o primeiro a me ligar, ansioso como nunca:

  • E então, alguma notícia? – Desta vez, sim! E ele imediatamente se animou:
  • Então vamos nos encontrar para você me contar, pessoalmente…

Caramba, pensei, que notícia mais besta é esta que trago, apenas dizer que a moça está fora do Brasil. Mas Antônio era um amigo que eu prezava, com quem sempre gostei de bebericar um vinhozinho, de que ele era também grande apreciador, além de dono de uma adega invejável, e além do mais, poder usufruir de uma conversa agradável e variada. Aquela insistência em saber de uma ex-namorada era antiga, mas só tinha adquirido este teor de verdadeira aflição nos últimos tempos. Marquei com ele no dia seguinte e ele se prontificou em me buscar na casa de meus pais.

  • Antônio, porra, conte esta história direito! Que fixação, meu caro… Você casado com Soninha, pessoa tão bacana, com dois filhos, vida arrumada. Por que esta mania de querer fuçar o passado desse jeito?

Ele me olhou de um jeito estranho, olhos perdidos no espaço, quase marejados, bem longe dos gestos que me eram familiares nele.

  • Eita, cara, é uma longa história…

Conhecera Jerusa nos primeiros dias de aula na faculdade, na doação compulsória de sangue que os calouros faziam. Ela, acompanhada de outro aluno mais velho, que logo se confirmou namorado. Calhou de que fizessem parte do mesmo grupo nas aulas de anatomia. Ele começou a jogar charme pra cima dela, convidando para um café no meio da tarde, comentando o último filme que vira, estudando na mesma mesa na biblioteca, deixando os cotovelos se roçarem, buscando um café na cantina, essas coisas pequenas, mas que acabam aproximando as pessoas, principalmente quando têm interesses recíprocos, confessáveis ou não. Ela, recatada, educadamente o afastava de contatos mais íntimos, pois afinal tinha um namorado. Com a insistência do colega, acabou confessando que achava aquele relacionamento meio estranho, não tinha lá muita afinidade com o outro, mas que detestaria fazer qualquer coisa que parecesse traição a ele, que apesar de tudo era um sujeito legal. Antônio apenas lhe assegurou que esperaria, mas que – não podia negar – estava realmente muito interessado nela.

Algum olhar ou gesto de Jerusa deu a Antônio a sensação que ela acabaria nos braços dele. E assim foi, depois de alguns meses.

O tempo de espera se revelou compensador, com eles se percebendo como bons amigos cada vez mais, e assim teciam ampla teia de sentimentos comuns. Mas Antônio, especialmente, queria mais, passando a desejá-la não só como amiga, mas também como mulher. Eis que debaixo das roupinhas modestas que ela vestia, ele detectou um corpo que falava por si só, como belas curvas, coxas grossas, bicos de seios que insistiam em fazer volume debaixo do jaleco. A pouca altura só adicionava valor aquilo tudo, me disse ele.

Ela mesmo tomou a iniciativa de inquiri-lo, certo dia: – Não vai mais me fazer aquela proposta? Desistiu?

Nem bem isso posto, aceitou o convite dele para um cinema, mas nem viram o filme, já perdidos em beijos, olhares e toques ardorosos de coxas e braços. Havia também, naquele mesmo dia, a festa de aniversário de um amigo comum e lá foram oficializando, no ato, o namoro perante os colegas de turma.

Alguém que lá estava augurou: – Eu bem que desconfiava – isso vai dar casamento!

Era a primeira namorada dele. Ela, além daquele que acabava de perder o posto, já tinha namorado um ou dois, mas nada muito sério. Com poucos dias de convivência, confessou a ele que ainda era virgem, mas que preferia se manter assim até se casar, pois esta era a regra que sua família estabelecia para a questão do sexo, com o que ela concordava sem restrições.

Antônio vinha de ambiente menos conservador e se ainda não tinha namorado de verdade, já era bem iniciado em termos sexuais, sem maiores tabus a respeito. Assim, ele que pensava diferente de Jerusa, em nome do entusiasmo que sentia com a conquista recente da moça, achou que este era um preço razoável a pagar para tê-la ao seu lado. E não sofreu com isso.

  • Você não imagina a bela vida que levamos naquela época… Eram festas, passeios, amizades comuns. Sintonia total, em gênero, número e grau, com uma química formidável. Todos louvavam o par que fazíamos. E não era pouca a inveja que muitos tinham de nós.
  • Tinha tudo para dar certo… E não deu?
  • A vida tem esquinas perigosas… E numa dessas eu me perdi.
  • Conte como foi.

Ele contou, com a voz um tanto embargada. Era impressionante aquilo, acontecimentos de dez anos passados ainda afetarem tanto uma pessoa, ainda mais um tipo que eu considerava durão, como meu amigo.

Foi assim: estavam já prestes a formar quando lhe apareceu uma tentação irresistível, sob a forma de uma antiga colega de ginásio – esta do tipo liberal – que esteve com ele em uma festa, estando Jerusa fora da cidade, em visita aos pais. Começou com uma conversa macia, sem compromisso, mas logo olhares, assuntos sutis e certos toques de pele começaram a despertar sensações fortes em ambos, e com tal moça não houve recusa ou pedido de adiamento: na mesma noite estavam na cama, ou melhor, no banco de trás do carro que Antônio às vezes tomava emprestado do pai.

Mas a tal moça liberal era conhecida de Jerusa… Além disso, aquilo ficou escancarado e parte da ação foi vista por muita gente que convivia com o casal. Antônio achou que a melhor saída era abrir o jogo com a namorada. Na volta de Jerusa, ele ainda estava na fase dos rodeios, procurando o melhor momento para tocar no assunto, quando ela própria lhe comunicou que já sabia de tudo e que aquilo para ela era o fim. E não quis mais conversar sobre o assunto. No dia seguinte mandou devolver, por um colega, os livros e alguns outros objetos que o namorado tinha deixado em sua casa.

Antônio tentou demovê-la, mas dada a fraqueza da carne, reforçada pela força da decisão da tal moça que sabia o que queria, não foi difícil para ele aceitar a perda de Jerusa, embora tenha feito algumas tentativas ao longo dos meses seguintes. Sem sucesso… Até que chegada a formatura, poucos meses depois, Jerusa foi fazer residência em São Paulo e ele próprio tomou outro rumo. E não se viram mais. A ex-colega liberal foi apenas um sonho de verão, tendo todo aquele namoro tão ardente esfriado pouco depois, não durando mais do que um semestre

Quando veio para minha cidade, no interior, terminada sua formação, arranjou colocação em uma clínica que precisava de um especialista como ele e em pouco tempo virou também professor na Faculdade de Medicina recém-aberta. E foi assim que conheceu Sonia, sua aluna, por quem teve uma queda imediata, logo correspondida, situação que evoluiu para gravidez e casamento em poucos meses. Por trás de tudo, uma moça casadoira e uma família que fazia questão de papel passado. E ele que andava gostado da liberdade que a vida de solteiro lhe dera depois rompimento com Jerusa e da passagem da moça liberal em sua vida, se viu novamente preso no laço amoroso. E ao primeiro filho sucedeu um segundo, com diferença de apenas um ano entre os dois rebentos.

Dito isso, mergulhamos em boa garrafa de um Valpolicella, seguido de um português, outro italiano, além de um chileno meia-boca, para arrematar. Bêbados, ambos, eu vi então um homem chorar de verdade, de saudade do passado e de arrependimento, coisas para as quais é impossível qualquer consolo.

Voltei ao Rio com pena dele, mas com a sensação de que não havia nada a fazer pelo meu amigo. Até que um dia…

Era uma sessão de congresso médico, daquelas que os corredores costumam ficar mais apinhados do que os auditórios, propriamente. Lendo o programa eu vi que havia uma palestra sobre algo complexo, ligado à tipagem genética das células brancas do sangue, tema que não me interessava quase nada.  Mas pude ver que o nome da palestrante era Jerusa Soares de Alencar, a musa de Antônio, em pessoa! Era hora de conhecê-la, finalmente.

Cheguei atrasado e a sessão já tinha se iniciado. Na mesa pude ver apenas o rosto da musa, de longe. Parecia simpática, de fato, mas não exatamente a maravilhosa mulher de quem eu ouvira tantas histórias. De onde eu estava, pude pressentir que o tempo tinha feito alguns estragos naquela escultura. Quando finalmente a vênus desceu da mesa, findada a palestra e o debate, me deparei com uma figura totalmente diferente de qualquer dos devaneios do pobre apaixonado. Um rosto que talvez já tivesse sido bonito, mas encimando um corpo disforme, marcado certamente por muitas gravidezes, para dizer pouco.

Perímetro glúteo de um metro inteiro, se duvidar, embora ancorado por altura pequena, que talvez não passasse dos oito palmos de que havia me falado Antônio. Um abdome proeminente. Roupas meio balofas, que haviam substituído a decantada simplicidade no vestir por descuido e mesmo cafonice.

Que decepção…

Na minha próxima volta à cidade, para onde vim procurar minha vaga no mercado de trabalho local, já tendo deixado o Rio para trás, até que tentei evitar o encontro, mas ele acabou acontecendo, já que fazia parte da minha rotina ali. Antônio me veio com a pergunta de sempre.

  • E aí você conseguiu vê-la?
  • Não. Não consegui, foi pena… 

Melhor assim. 

Nada a favor da cultura do corpo, que assola tantas mulheres e homens por aí. Mas a história de Jerusa representava um descompasso descomunal entre o sonho de uma pessoa e a realidade que a vida trazia.

 ***

Um Anjo Louro

Foi um inesperado acontecimento que repercutiu pela minha vida a fora. Conto como foi. Eu tinha nove ou dez anos e certo dia, ao chegar da escola, dei com algo totalmente fora do comum na sala da casa. Uma família inteira ali, estava, por assim dizer, acampada, com malas, caixas e até mesmo sacos por toda parte. O pai havia saído para tomar providências, só o vi mais tarde e depois falo dele. A mãe era uma matrona loura e corpulenta, de um tipo físico completamente diferente do padrão brasileiro, que somente muito depois compreendi ser de natureza germânica ou eslava. Falavam outra língua, pelo menos entre eles. Mas as crianças…

Eram três. Um pequetito, talvez nos seus quatro anos, se muito, figurava doença aguda, a inspirar permanentes cuidados da matrona. Encatarradíssimo, febril, choraminguento, meio sujo, tinha um aspecto miserável, em que pesassem seus cabelos louros, quase brancos e as bochechas muito vermelhas. Vestia um pijaminha de flanela bastante puído, com marcas evidentes da longa viagem que o trouxera até ali. A menina do meio talvez fosse da minha idade. Por alguma razão me marcou pouco, a não ser pelo linguajar incompreensível, que mantinha com a mãe e os dois irmãos. Se falou alguma coisa em português – pode ser que tenha falado – não me recordo mais. Lembro-me apenas que a coitadinha tinha perebas por todo corpo, mas parecia não sofrer e nem mesmo se dar conta disso.

Mas a filha mais velha, esta sim, era uma figura marcante, inesquecível. Loura, alta, esguia. Os cabelos lhe batiam na cintura. Gestos enérgicos de quem dispunha, na família, do estatuto de uma segunda mãe para os irmãos mais novos. Teria seus quinze anos, talvez. Vestia-se de chita, bem à brasileira, mas com aquele porte e o longo cabelo louro, lembrando uma camponesa europeia, se não uma personagem de contos de fadas. Melhor dizendo, parecia um anjo – e agia como tal – socorrendo e consolando os irmãos mais novos, adoentados.

Foi por poucas horas, lamentavelmente, que os vi de perto, mas aquelas imagens me marcaram por muitos anos, principalmente a daquele anjo louro, baixado à terra, vindo não sei de onde. De onde chegava, afinal, aquela gente, assim tão de repente em nossa casa? Logo minha mãe esclareceu o fato inusitado. Era uma família estrangeira, cujo chefe era amigo de um tio meu, com o qual tinha trabalhado no passado. Eles estavam de passagem, vindos do Norte do estado, agora rumando para São Paulo, para tentar uma sorte melhor em outras bandas. Estiveram conosco não mais do que uma parte de manhã e uma tarde, depois seguiram seu destino, pegando o trem noturno da Central do Brasil, que ainda circulava entre minha cidade e São Paulo naquela época.

E soube mais: a família havia morado na nossa cidade natal por algum tempo, onde o pai conhecera meu avô e alguns tios meus. Eram imigrantes europeus, judeus, talvez; eslavos, depois se soube. Estariam fugindo do nazismo, do estalinismo ou da grande guerra – não era possível saber naquela ocasião. O homem era agrônomo de profissão e foi nessa condição que arranjou colocação na cidade onde havia diversidade econômica antes que a grande companhia tomasse conta de tudo e instaurasse a ditadura da mineração. Além de sua formação agrícola, ele era muito culto, conhecia de tudo um pouco e tinha um lado empreendedor, inquieto, bastante marcante em sua personalidade e que influenciou bastante sua vida. Tanto que saiu da nossa cidade natal, foi para o Norte e agora se dirigia a São Paulo. Entre as estepes eslavas e o interior do estado deve ter tido, certamente, outras tantas passagens.

Pois bem, resumindo a história, nunca mais os vi, pelo menos de perto e tive bem poucas notícias deles. Aqui minha narrativa entra numa espécie de ramificação, mas mais adiante os caminhos se encontrarão. Corriam agora os anos 60. A capital onde residíamos começava a tomar ares de metrópole, mas arrastando ainda certos grilhões provincianos. Uma dessas coisas anacrônicas era uma espécie de concurso de beleza e simpatia (nada de misses de maiô!), ao qual se dava o colonizado apelido de glamour-girl. Na época, eu talvez não me interessasse por colunas sociais, mas já apreciava, bastante, aliás, a visão de uma linda mulher. E em um daqueles anos dourados, ao som dos Beatles e da Bossa Nova, apareceu uma mocinha especialmente cheia de glamour: loiríssima, muito alta, esbelta, olhos azuis faiscantes, poliglota, intelectualmente muito articulada, determinada, cheia de personalidade. Não se falava em outra coisa naquela cidade provinciana de então. Um belo dia, a revelação. Minha mãe, ao ver aquele anjo no jornal ou na TV, comentou: esta moça é a filha de Seu Jorge, daquela família que esteve conosco, há alguns anos atrás. Lembram? Eu, é claro, me lembrava.

Caramba, eu que nunca havia visto um glamour-broto, ou qualquer outra celebridade tão de perto quase caí pra trás de susto, mesmo com alguns anos de atraso. Então era ela! Depois o anjo desapareceu, pelo menos para mim, que não acompanhava as notícias do mundo da jeunesse dorée para usar o linguajar colonizado dos colunistas sociais de então. Já nos anos 80, vendo um programa TV em cadeia nacional, minha mãe mais uma vez me trouxe a revelação: – estão vendo aquela lá? Pois é, é a filha de Seu Jorge. O anjo louro, a adolescente encantada, a mulher de sonho tinham se metamorfoseado mais uma vez, se transformando agora em modelo, apresentadora de TV, celebridade e acima de tudo belíssima mulher, conhecida nacionalmente. Mas eu posso dizer com orgulho: eu a conheci antes de todos; melhor ainda, dentro da minha própria casa!

O tempo passou, para ela inclusive. Um jornal sensacionalista, daqueles que parecem ser impressos com sangue e que os jornaleiros colocam abertos na parede de suas bancas para chamar a atenção de quem passa, me trouxe a notícia de que ela tinha sido vítima de violência por parte de um namorado de ocasião. Uma foto dela, com aquele mesmo olhar profundo, que era meu conhecido, emoldurado agora por um hematoma, ilustrava a matéria. Como a vida foi ingrata, pensei, com aquela criatura angelical, que eu conhecia, sem que ela me conhecesse, desde a infância. Como passa a glória do mundo, me veio à mente a frase clássica, tirada não sei de onde. O fato é que, mais dia menos dia, eu quase havia me esquecido deste fato recente e mesmo dela, de seu mistério, daquela proximidade familiar, daquela vida improvável de uma família entre dois mundos. Mas isso não era tudo…

Tempos depois fui a São Paulo para uma reunião de trabalho e diante de algum tempo livre resolvi fazer um passeio a pé pelo velho centro da cidade. Ali, em algum lugar entre a Praça Clovis e o Teatro Municipal, fui abordado por uma mendiga, esfarrapada e suja, com uma gaforinha que não sabia o que era um bom banho há tempos. Queria um trocado ou um cigarro; o que eu tivesse. Tentei me afastar, mas não me foi possível deixar de ser tocado por seu olhar, aqueles olhos azuis profundos que eu conhecia de algum lugar. Era ela, não tive dúvidas. Só não me perguntem como é que uma simples menina que fugiu da guerra na Europa e depois se tornou migrante interna no Brasil, pôde chegar à burguesia e atingir o estrelato na TV, para decair na vida daquela maneira tão radical e trágica.

Mas como dizia o personagem de Suassuna: só sei que foi assim.

 ***

Menina na janela

Manhã de chuva, mas poderia ser também de sol forte e pleno. Lá estava ela. Na janela. O pai na roça, a mãe lavando roupa, os irmãos mais velhos na escola. Só ela em casa, triste, triste. Também, será por que dona Teresinha, a professora dos pequenos, tinha que adoecer justo agora? Nem a companhia de Malhada, a gata, era capaz de lhe trazer consolo, até porque a danada dera para namorar e mais ficava a andar por aí do que vir brincar com ela. E tudo demorava a passar, demais. A mãe queria ela quieta em casa. De outra vez tinha saído para dar uma volta e quase foi atropelada pela motoca do Zé Caixeiro. Para não dizer que não tinha nada para fazer, a mãe mandou vigiar a água na chaleira, para desligar, quando fervesse – vê se pode uma coisa assim! Ela era capaz de muito mais!

Mas de repente, barulho de carro na estrada. E não é que estão passando a porteira agora? Quem seria? Um par de pessoas, ou mais. Um carro enorme, como ainda não tinha visto igual, parecia a camionete do seu Gumercindo, mas com mais janelas, na frente e atrás. Na cacunda vão levando uma moto e mais um monte de trastes embrulhados em uma lona. Deus do céu, este povo da cidade…

Agora chegaram no limpão de frente à casa. Dois moços e uma moça. Ou melhor, com aquele cabelão nos ombros, ainda mais louro como uma espiga de milho, um daqueles moços mais parecia uma moça. Mas foi ele que veio falar com ela: – boa tarde, moça.

Moça? Ninguém nunca tinha lhe chamado assim, o costume ali era de outro tipo, garota, menina, piá, algo assim. Ou então nada, alguma coisa como oi – e ficava por isso mesmo.

– Eita, aconteceu alguma coisa com sua língua, guria? Não fala nada?

Que diabo, estava começando a ficar com vergonha. Sempre perdia o jeito quando tinha que conversar com gente da cidade, umas pessoas tão diferentes, às vezes muito chatas, metidas a não sei o quê. Balbuciou qualquer coisa, com um pequeno movimento de lábios. O que tinha a dizer o fez mais com o olhar, tentando dizer que tivessem um bom dia – mas que não a amolassem muito. O cabeludo achou graça, mas pelo menos foi legal com ela: – tudo bem com você? Como se chama? Eu sou o Ivan…

Ivan… Que nomes bonitos essas pessoas da cidade costumavam usar. Este aí até parecia ter saído de alguma novela. E ele não parava de falar, enquanto os outros ainda estavam a mexer na bagagem da camionete. – A gente quer ir na cachoeira, já falamos com o Januário lá em cima. Januário era o pai, se já tinham falado com ele, quem era ela para dizer que sim ou que não?

Finalmente conseguiu dizer alguma coisa: – podem passar, é por ali, depois de quebrar pro lado da porteira.

O tal do Ivan era metido a engraçadinho: – fique tranquila, mocinha, não vamos quebrar nada…

Mas aquele ali queria mais: – não vai contar pra gente como é o seu nome? Dessa parte ela não gostou, porque tinha vergonha daquele nome antigo e fora de moda, que ela tinha ganhado por causa de uma madrinha que ela nem conhecia: – Dolores. – Como, insistiu o outro: Maria das Dores? Aquilo só podia ser para fazer raiva nela. Devia ter percebido e ensinado o caminho errado para eles…

Mas o Ivan também sabia consertar as coisas:  ah, Dolores, é o nome de uma tia minha, sabia? Uma pessoa muito legal. Aliás, pelo que vejo, você parece ser uma pessoa bem legal também. Acho que vamos ficar amigos.

Menos mal para ela, pelo menos dava para tomar pé da situação e deixar a vergonha sumir. E com o pudor posto de lado, conseguiu olhar pela primeira vez para os recém chegados. A moça era toda pintada, com uns rabiscos pretos e coloridos no pescoço, nos braços, na barriga. No ombro, tinha uma cabeça pintada, que parecia um índio, ou coisa assim. O outro, que devia ser o namorado dela, era igualmente desenhado dos pés à cabeça. Eita! Este povo da cidade… Mas Ivan, por milagre, não tinha nada pintado em si, ou melhor, depois ela viu, tinha apenas uma pombinha voando, nas costas de uma das mãos. Dolores achou aquilo bem catita, mas guardou para si tal constatação.

– Mas pode me chamar de Lorinha, como é o jeito que o povo daqui me trata… Ela já não sabia de onde tinha tirado a coragem de falar uma coisa como aquela, ainda mais para gente que ela acabava de conhecer. Ivan não perdeu a oportunidade: – ah, assim fica mais bonito mesmo. E combina com você!

Ela agora se sentiu encorajada em espiar melhor aquelas pessoas. Ou melhor, olhar direto para Ivan, porque os outros dois estavam dando nela uma certa gastura, com a pele do corpo tão rabiscada daquele jeito. Meu Deus, como ele era bonito! Até parecia um santo que ela tinha visto na capela, com o corpo todo espetado por flechas. Nem na televisão ela tinha visto alguém assim. Aquele cabelo longo, parecendo de milho, a lhe descer pelos ombros, cruzes, ela não sabia que podia existir uma coisa assim tão perfeita, de verdade, e bem ali na sua frente. E agora podia lhe ver os olhos e eles eram azuis, como duas bolinhas de gude, não das comuns, mas daquelas especiais, tão difíceis de encontrar!

Era a sensação que lhe dominava: aquilo que agora ela via à sua frente, aquele moço, era coisa realmente difícil de se ver por aí, em qualquer lugar, aliás. Ela, pelo menos, nunca tinha vista alguém assim.

Nisto lembrou-se da chaleira, da recomendação da mãe. Deu-lhes as costas, sem avisar nada e quando finalmente voltou à janela, teve o tristeza de perceber que eles já tinham tomado o caminho da cachoeira.

Seu dia, entretanto, já não era o mesmo. Não estava mais preocupada com dona Teresinha, com Malhada, com a mãe, o pai ou os irmãos, nem com nenhuma chaleira, fosse lá o que fosse. Ela só queria ver o Ivan de novo, pelo menos mais uma vez. Olhar dentro daqueles olhos de bola de gude, que pareciam ter um furinho escuro no meio, e mais aqueles cabelos de milho, escutar a voz dele dizer de novo: – Lorinha é mais bonito; combina melhor com você.  

E na janela ficou, por horas seguidas, a olhar para os lados da porteira do quintal. Nunca antes tinha ficado tanto tempo assim. Foi retirada de tal vigília pela chegada da mãe, que ia preparar o almoço da família e a enchia de ordens, de buscar água, apanhar umas folhas de couve na horta, pegar o alho na despensa, essas coisas. Ela fez tudo sem reclamar, mas sem prestar qualquer atenção nos afazeres; ter ido à bica, por exemplo, para voltar com a vasilha seca. Ao ponto de a mãe ter ralhado com ela, que deixasse de ser sonsa.

No final da tarde, finalmente o movimento tão esperado aconteceu. Vinha o casal na frente e mais atrás o santo do altar de Dorinha. Os rabiscados passaram sem qualquer manifestação ou gesto amigável, mas Ivan – este não – fez questão de parar e chamar – Lorinha! Ela veio, nem sabia como conseguia respirar, muito menos se precisasse dizer alguma coisa. E ele: – trouxe uma coisa para você, desculpe, ficou meio amassado. Era um bombom, realmente meio amarrotado, mas pulsante e lindo em sua embalagem redonda e vermelha, onde estava escrito o que ela leu com a dificuldade de recém alfabetizada: Sonho de Valsa.

– Até qualquer dia, Lorinha, disse Ivan, já entrando na camionete.

Ela talvez não tivesse, até aquele momento de sua vida, a percepção clara de uma sensação tão forte como aquela. Seria aquilo – coisa mais feliz – de que ela se lembraria mais tarde, uma espécie de amor, ou encantamento. Naquele momento, coisas assim com certeza estiveram bem ali com ela, em modo tão forte, claro e luminoso como dois olhos azuis, como aquela voz cristalina a lhe dizer coisas que era tudo o que ela queria ouvir. Não de maneira tão evidente, mas o bastante para que ela se lembrasse disso por muito, muito tempo, levando-a ansiar pela possibilidade de sua repetição em alguma outra chance que a vida lhe oferecesse. Talvez não tivesse entendido, ainda, que a tal felicidade fosse apenas uma sensação, que só se apresentaria às gentes daquela forma, como um raio, um olhar, uma chuva de verão, um bombom oferecido a partir do nada, não como quem chega para ficar.

Mas ali na janela ela sentiu, embora não tenha compreendido de fato, o significado disso, de verdade.

 ***

O que foi feito de Graça

Histórias estranhas? Tenho uma pra contar. Escutem. Naquela rodoviária, meia noite chegando, eu enfrentava o tédio e me preparava para um vazio aborrecido, até o meu ônibus passar, lá pelas duas da madrugada. Mas não é que me chamou a atenção a conversa na fileira de cadeiras atrás de mim, travada por dois sujeitos, costas quase coladas às minhas, também a espera de condução? Peguei a conversa neste ponto: 

– Pois é, lá me disseram que a Graça tinha morrido. De parto.

– A Graça, Gracinha, aquela gatona, musa de nossa adolescência, não é possível! 

– Sim, Maria das Graças Soares de Alencar. A filha mais nova do velho Genebaldo…

– Uai, que coisa! Tão moça e sacudida, bonitona, até. Quantos sonhos eu tive com ela, nem posso contar… Pensando bem, não foi só eu.

– Pois espere que te conto um sonho que você não teve…

– Estou escutando, quero saber de tudo.

– Eu perguntei por ela, minha conhecida também, meio prima até, mas que andava sumida de muito. Eu bem que a achava atraente também, mas a consanguinidade me afastou, menos nos pensamentos. Mas então me disseram: – não sabe ainda? Morreu, a coitada. 

  • Como foi isso? A última notícia que tive dela é que estava grávida, retomando um casamento que parecia fracassado.

– Pois é, o que me contaram foi que a morte tinha sido consequência de uma gravidez mal sucedida, levando de uma só vez mãe e cria. Ficaram até surpresos que eu não soubesse, pois o assunto tinha dado muita repercussão. E o pobre do marido tinha ficado tão desgostoso que sumira no mundo. 

– Eu conheci o casal. Mas faz tempo que estive com eles, uns cinco ou seis anos talvez… Acho que o cara até é gente do nosso tempo. 

– Mas isso que lhe conto foi mais recente, bem depois. 

– Mas continue, estou lhe interrompendo. 

– Aquela notícia me deixou pasmado. Pelo fato em si, pois que esta Graça era uma pessoa querida, mas também porque ao voltar para casa eu precisaria dar a notícia para Luiza, minha mulher, que tinha certo comadrio com a Graça. E ia ser um choque feroz para ela, capaz de abalar ainda mais um temperamento sensível, bastante atormentado naquele momento por outras perdas recentes experimentadas por ela, agravadas por uma menopausa precoce e mal recebida. 

– Poxa, que situação… 

– Pois é, eu estava fora de casa e passei a viagem de volta pensando nisso. Tinha que contar, mas não sei se conseguiria fazer isso de imediato, logo que pusesse os pés em casa. Quem sabe, depois. Mas de todo modo não atinava com a melhor maneira de agir. 

 – Não dava pra fingir que não sabia? 

– Bem que pensei nisso, mas acho que seria fácil alguém me desmentir. E aí minha mulher não me perdoaria, pois a Graça era realmente muito querida por ela. O fato é que aquela viagem demorou, não tanto pelo atraso e as baldeações, mas também porque minha cabeça não chegava a um acordo sobre o melhor modo de falar sobre uma coisa como aquela, tão indizível. Tenho que reconhecer também que sou bem atrapalhado nessas coisas de mentir, enganar, fingir. 

– É ruim, hein… 

– Pois é… 

– O que matutei naquelas horas dentro de um ônibus você não é capaz de imaginar. Desconforto total, naquele calhambeque miserável, naquela estrada esburacada, com a cabeça e girar doidamente. E eu sem encontrar uma solução. E pra complicar, um enguiço que nos custou umas duas ou três horas de parada. Mas, pensando bem, foi até bom, me ajudou a colocar as ideias no lugar, ou pelo menos me acalmar. Mas mesmo assim cheguei em casa com uma tremenda cara de cachorro que caiu da mudança. 

– Mas contou logo pra ela? 

– Não, não contei… 

– Não contou, mas assim não teria ficado ainda mais complicado pra você? 

– Espera que chegarei lá. 

  • Não quer tomar um café antes de nossa condução chegar? 

Nesta hora eu, que espionava a conversa, cheguei a lamentar que perderia o curso de tal história, mas felizmente adiaram o tal café. 

– Pode ser. Mas deixe que eu encerre o assunto. Cheguei em casa, fui para um banho. Luiza me seguia de perto, pois eu estava fora há muitos dias e você sabe como é… casal que somos ainda amorosos, apaixonados. Saí do chuveiro, havia um jantarzinho quase romântico me esperando, tinha até velas. Mas era difícil esconder a verdade. E Luiza: – fala, estou vendo que você não está bem, o que está acontecendo? Eu dizia – nada não, está tudo certinho; só acho que preciso de umas horas de sono. Vi que eu não a convencia, mas esvaziamos uma meia garrafa de espumante e resolvemos ir para a cama. 

– Deixou para o outro dia, então? 

– Sim, deixei, mas não esperava uma mudança radical em meus planos. Você não é capaz de imaginar o que aconteceu… 

– Conta! Esta história já está me deixando curioso… 

– Eis que o telefone toca. Bem ali, na beira da cama. Do meu lado. Eu atendo e adivinha quem era? 

– Não sou capaz de saber… 

– Tente. 

– Ora bolas, vou chutar. Seria uma ressuscitada Maria das Graças? 

– Já está sentado para não cair? Exatamente era ela mesma, a Graça! Nossa amiga Maria das Graças Soares de Alencar. Em pessoa. Ou em espírito, foi o que pensei na hora. 

– E você, como reagiu? 

– Primeiro me arrepiei da sola dos pés até a raiz do cabelo… Depois, o que pude balbuciar foi: Graça, de onde você está falando? E danei a chorar, soluçando como um condenado. O que era aquilo, meu Deus! Luiza, do meu lado, não entendia patavina… 

Neste momento o autofalante anunciou a chegada de meu ônibus. Ajeitei mal e mal minhas coisas, mas meus vizinhos das costas também fizeram uma pausa para procurar algo na sua bagagem, talvez um fósforo ou um cigarro, já se levantavam para o café. E eu fiquei ali, morto de curiosidade, sem saber a solução do mistério que sem que eu pedisse me fora trazido, até com certo detalhe, sobre aquela Maria das Graças, que morrera – ou não – mas que, no entanto, era capaz de fazer ligações telefônicas, sabe-se lá de onde. 

Fiquei pensando… Era outra a Graça que morrera? A ligação de que falava o desconhecido não teria sido um engano? Era apenas uma troça entre amigos? Tudo ficou por isso mesmo, infelizmente. 

Enquanto o marido de Luiza vivera o conflito de ser obrigado a dar uma notícia ruim, eu tive que completar minha viagem em dilema ainda maior, o de ignorar o que de fato tinha ocorrido com aquela mulher, de cuja história de repente me tornei íntimo e testemunha. E eu, lamentavelmente, nem tinha quem me esperasse com um jantarzinho romântico e uma garrafa de vinho. Assim fui dormir mal acomodado em um banco de ônibus e além do mais sozinho, ou melhor, com este mistério atravessado no peito. 

Quem quiser que conte outra.

 ***

Quadrilha Moderna

João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém. João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. (Carlos Drumond de Andrade – Quadrilha)

João amava Teresa. Desde criancinha, no Jardim de Infância, ele já tinha se declarado a ela, quando dançaram a quadrilha junina juntos. Os pais de João e Teresa eram amigos. Ou melhor, o pai de Teresa e a mãe de João, porque a mãe de Teresa tinha morrido e a mãe de João era separada do marido. Ah, eles moravam no mesmo prédio também. Vinham da aula juntos, às vezes buscado pelo pai de Teresa ou pela mãe de João. E às vezes iam assistir algum filme juntos na TV. Isso foi durante alguns anos. Mas depois a mãe de João arranjou um companheiro e se mudou daquele prédio. Aliás, mudou de cidade.

Anos depois, o companheiro constante de Teresa, se chamava Raimundo. Mas como achasse seu nome muito feio, pedia que lhe chamasse de Ray, assim, com “y”. Era um cara bonito, o mais bonito de seu pedaço, o mais cobiçado pelas moças. Teresa, que não era nada feia se encantou com ele também. Ela era alguns anos mais velha do que ele, mas mesmo assim resolveu ficar a seu lado. Conviviam todos em uma turma grande e muito unida, na qual aquela velha história de “ninguém é de ninguém” era levada a sério. Teresa tinha um caso ou algo parecido com Ray – ela não negava isso – mas ao mesmo tempo sabia que ele vivia em clima de romance com outras moças. Ela acabou achando aquilo normal. Amor a todos e a tudo, poliamor como agora se diz era a segunda regra ali. A primeira era a de que não havia regras. E assim Teresa, criada em família católica e conservadora, foi passando de mão em mão, sem culpas, pois ao mesmo tempo se dava ao direito de escolher, com critérios próprios dela, a que mão ou mãos se entregar. E eram todos felizes.

Mas Ray parecia gostar mesmo, de fato, era de Maria. Parecia apenas, pois na prática era difícil saber com quem ele andava em cada momento. Mas com Maria ia ao cinema muitas vezes, dormiam um na casa do outro, conviviam intimamente dentro das próprias famílias. Saíam muito para acampar e coisas assim, ele (ou ela) e mais um, dois ou duas, apertados em uma barraca, banhando-se felizes em cachoeiras, nus como a natureza os criou. E todo mundo achava normal.

Maria era meio louca. Nesta história de amor livre, então, ninguém a superava. Estava com Ray, aparentemente, em muitas ocasiões, mas ninguém se surpreendia quando a encontrava, dentro de um cinema, no parque de diversões ou em um show musical, nos braços de algum outro rapaz. Sem esconder nada; ao contrário, parecendo fazer questão que a vissem assim, em clima de total descontração e felicidade. Qual o problema?  

Mas o mais constante dos casos de Maria era Joaquim, principalmente depois que Ray elegeu como seu principal amigo um rapaz chamado Norberto, ou Beto. Joaquim era um bom moço, filho de família pobre. Muito tímido. Parecia nunca estar à vontade com as doideiras de Maria, mas a acompanhava nos banhos de cachoeira, nos acampamentos, nos shows de rock. Com e sem Raimundo presente, isso não fazia diferença para eles. Ou melhor, fazia alguma diferença para ele, sim, que tinha muita vontade de que Maria fosse uma moça igual às outras. Em termos: aquelas moças que ele e sua família conheciam, que frequentavam igrejas e faziam questão de chegarem virgens ao casamento. Nada a ver com Maria, aquela doidinha.  

Mas um dia Joaquim conheceu Lili, mesmo que ainda não tivesse deixado de aplicar bons beijos e apalpadelas em Maria. Lili parecia ter tudo o que ele sonhava: era muito séria, usava roupas discretas, não se despia em público e nunca havia namorado ninguém. Para que procurar mais? pensou ele. Arranjou uma desculpa para se afastar de Maria e ficou com Lili.

O problema é que Lili não retribuía intensamente os cuidados de Joaquim. Andava com ele por todo lado, menos para frequentar igrejas, que não eram a praia dela. Recusava-se a namorar, dizendo que a amizade era o melhor dos sentimentos. Mas será que gostava de alguém? Que nada, gostava sim. Só que não podia contar para ninguém, porque ela gostava de uma menina como ela. Seu nome era Glória e era em tudo parecida com Maria, nas roupas, no jeito discreto, na castidade aparente.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, como já dizia o poeta…

E o tempo passou para todo mundo.

João foi para Portugal trabalhar como motorista de aplicativo. Comeu o pão que o diabo amassou. Falar a mesma língua não era nada, diante do abismo cultural que ele logo descobriu existir entre ele e os naturais da terra. Acordava todo dia às quatro da madrugada e ia pegar o carro num estacionamento remoto, ainda a mais de uma hora da cidade onde ele exercia seu ofício. Entrou na fila para obter cidadania, ou pelo menos autorização para trabalho regular, mas passados muitos meses começou a constatar que seu lugar talvez fosse no Brasil mesmo. Ele começou a namorar uma estrangeira, como ele, albanesa ou búlgara, não sabia bem e que atendia pelo estranho nome de Penca. Ele nunca conseguiu saber se gostava realmente dela, ou vice versa, e decidiu voltar para sua verdadeira terra natal, o Brasil. A vida em terra estranha, e ainda mais paga em Euros lhe parecia inviável.  Por alguma razão misteriosa, nas noites com Penca sentia saudades de sua namoradinha de infância e adolescência, Teresa.   

Teresa esqueceu-se de João e de Raimundo. Depois de muitos amores, gloriosos ou vulgares, resolveu fazer daquilo profissão. Acompanhava senhores circunspectos a noites de gala, teatros e ópera. Depois se despia para eles, em ambientes reservados. Sexo, não. Não fazia parte de seu repertório. Mas também não dispensava algum parceiro ocasional, quando a vontade relativa a tal quesito aumentava. E estes foram tão numerosos que ela mal se lembrava dos nomes de um ou dois. Um dia começou a se sentir fraca e febril, incapaz até mesmo de atender um bom e conhecido velhinho em alguma tertúlia noturna. Foi ao médico e descobriu o que já temia. Morreu de Aids alguns meses depois.

Já Raimundo, Ray para todos, nunca se casou com ninguém, pelo menos formalmente. Aos poucos descobriu que se dava bem era com rapazes, mais do que com mulheres e resolvi se assumir de vez. Arranjou um namorado chamado Moacir e virou um daqueles sujeitos que a rapaziada chama de Tiozão, sempre disposto a pagar um jantar, uma cervejinha, ou dar um presente a quem estivesse disponível a estar com ele. Moacir foi preso por tentar enforcá-lo, depois de uma discussão na cama, pela madrugada. E depois disso ele virou apenas uma sombra daquele glorioso e lindo Ray que fora um dia.

Maria, depois de anos de vida intensa e alegre, virou evangélica e com isso conquistou Joaquim, que passou a frequentar a igreja junto com ela, com a maior alegria e devoção.  

Lili suicidou-se…

J. Pinto Fernandes, que tinha também tentado um dia vencer as resistências de Lili, e que não tinha entrado na história, agora namora Natércia, que também não tinha entrado nesta e em nenhuma outra história. Ambos são funcionários públicos, ganham bem, têm casa própria, dois carros na garagem e filhinhos lindos. Não sabem o que é poliamor e acham que andar pelados por lugares públicos, ter relações sexuais com desconhecidos ou recém conhecidos e, principalmente, fazer amor com pessoas do mesmo sexo são atos estranhos, que escapam às regras da natureza. Mas sempre dizem que que respeitam quem aprecia tais coisas, desde que não afetem ou que sejam com seus próprios filhos, é claro. Pelo que se sabe estão muito felizes em seu casamento.

 ***

Esperando Bardot

Mulher é comigo mesmo. Já tive muitas – e para falar a verdade ainda me disponho a conhecer mais. Mas espera aí… Não sou desses caras aí que ficam escondendo o jogo, se fingindo de santinhos. E nem daqueles que não arranjam nada na vida e dão para inventar histórias. Comigo, não. Se perco, faço a volta por cima – e depressa. O que me move é a beleza, a mais autêntica e limpa  que possa existir. Corro atrás disso sempre – e não me arrependo.

Julia, por exemplo, a americana. Magrinha, esguia, mas que corpo, meu Deus! Aquele olhar de gazela assustada. Eu a conheci na rua, subindo e descendo por Rodeo Drive. Pretty Woman, era como eu a chamava, porque até aprendi um pouco de inglês para usufruir melhor da companhia dela. Julinha sempre de minissaia, palmo e meio de coxas à mostra, aliás, seu traje predileto. E que pernas, Jesus Cristo! Aquilo mais mostrava do que escondia aquelas belas gambas, que lhe pareciam surgir desde logo abaixo das axilas, tão longas eram. E quando ela punha umas meias pretas, longas, até lá em cima… Nossa! Aquilo era de fechar o comércio, não só na Rodeo como nas adjacências, até os altos do Bosque Sagrado. Ela tinha lá umas histórias meio misteriosas no passado, o modo como ela ganhava vida, antes de conhecer um sujeito rico que cuidou dela por algum tempo. Mas quem se importa? Depois cheguei no pedaço e tudo mudou, modéstia à parte. Eu a ganhei e então ela foi minha, totalmente minha, de mais ninguém. Mas a vida dá voltas. Um dia me cansei daquele charme de Los Angeles, Hollywood, Rodeo Drive, Golden Gate, Beverly Hills. Enfarei daquilo tudo, e não foi à toa. É que eu, simplesmente, tinha conhecido Emma. E nada foi como antes.

Tinha nome de ave, mas Deus do céu, um pássaro como aquele só no paraíso. Bonita? Não, diferente! Bem inglesa, pele bem alva, um pouco sardenta. Até aquelas ruguinhas ao redor dos olhos compunham seu charme. Emma é o seu nome. Eu a conheci em Carnaby Street, Portobello Road, um desses lugares charmosos, que não eram bem seu habitat – nem o meu para falar a verdade. Depois a vi no Covent Garden, ela trabalhava num teatro por ali, não como bilheteira ou algo assim, mas como atriz principal de uma peça que já estava em cartaz fazia três anos. Inglesa até não poder mais, daquelas mulheres que um homem não esquece, principalmente se compartilhar com ela um evening tea, que depois da tarde entra pela noite a fora e só termina no breakfast, entre lençóis. Shakespereana e jane-austeniana, especialista total. Todo o teatro inglês era dominado por ela, com rigor e maestria. Mas isso não fazia dela uma pessoa sisuda, pelo contrário, engraçada que só. Dei boas risadas com ela representando só para mim aquele Muito Barulho por Nada do bardo. E a partir de William S. caminhava, como quem vai à esquina, a alguma peça de Albee ou Miller. Versatilidade era com tal mulher. Ninguém melhor do que ela para representar mulheres fortes em peças datadas e adaptações literárias, de Jane Austen, por exemplo. Mais sublime ainda ao representar mulheres altivas e matronais, sem se desfazer de profundo senso de ironia. Isso é o que diz a crítica, mas discordo, sendo ela própria isso aí, não por figurar algum personagem. No cinema, dois Oscar ela ganhou, por merecimento – se é que tal troféu esquisito vale alguma coisa – mas o prêmio mais importante é o que lhe dei e darei para sempre, wonderful woman, great Emma: meu amor, com qual lhe homenageio e agradeço.  

Foi depois disso que me veio Claudia. Claudia Josefina Rosa, de cardinalícia beleza. Italiana temperada pelo sol mediterrâneo da Tunísia. Eu a conheci no mezzogiorno, filha da nobreza, fazendo parte do séquito de um certo Leopardo. Era então uma signorina Angelica Sedara, na corte das Duas Sicílias, e me tirou o sono durante muitos meses, até que finalmente a tive só para mim. Em uma toca povoada por Leopardos a felina verdadeira era ela. Capaz até de desprezar um Alain Delon, aquele, que mudaria tudo para que tudo continuasse como sempre esteve. Mas eu, por tanta graça e beleza, faria muito mais. Sempre lutei para ser – e fui – um homem realizado por tê-la comigo, não sendo tão nobre quanto os outros, mas sobretudo fiel e amante. Desta Claudia, minha mulher mediterrânea, posso dizer sem medo: que morena, que pernas, que quadril, que rosto, que cintura – meu Deus! O mais não louvo por respeito e pudor. Tanta coisa linda e apaixonante em uma mulher só, a revirar as profundezas de um homem, capaz de despertar nele o furor de um Vesúvio!  Esses olhos negros, enormes, tirariam qualquer um do sério; quando se voltavam para mim, me enlouqueciam. Ninguém poderia resistir ou ser curado daquilo. Eu sei, eu vi, eu senti.  E pude segui-la por todos os cantos do mundo, nas ruelas napolitanas e nos subúrbios pobres de Roma, dos dois lados do Tevere; por Itália, França, toda a Europa, América e onde mais estivesse. Homens ricos, elegantes e bem-postos que estivessem com ela, deles há muito perdi a conta, pouco me importavam. Eu sempre soube que ao fim e ao cabo era a mim que ela se chegava. O fato é que nunca houve, em nenhuma parte do mundo, a qualquer tempo, do Egito bíblico à Roma do pós-guerra, uma mulher como aquela. Falar de cada pedaço da rica escultura de seu corpo implicaria em páginas e páginas de algum tratado nunca escrito sobre a beleza feminina. E seria totalmente em vão. Pena que a tive por pouco tempo; eu não poderia competir com a força do cash americano, em puros dólares. Mas pude viver a maior ventura e os dias mais gloriosos a que um homem pode sonhar com Claudia, extraordinária mulher. Um ícone! E ela esteve comigo, me dedicou o melhor de seu sorriso e de sua sensualidade. Abri mão dela, um dia, por absoluto espírito democrático. Não me julgava merecedor de ter uma deusa de tal estirpe sem dividi-la com alguém. Por sorte, a este tempo, me apareceu Sonia…

E ela saiu do nada. Ou melhor, eu a vi um dia, morena fagueira com olor a cravo e a canela, a subir em telhados. Baiana, paulista, brasileira e sobretudo universal, como o são as mulheres realmente lindas. É bem verdade que a vi ao lado de uns bigodudos machões. Mas até nisso eu lhes suplantava. Daquele italiano, Marcelo-não-sei-das-quantas, eu confesso que tive ciúmes, mas logo vi que aquilo não tinha futuro como relação amorosa, era apenas trabalho. E me pus a acompanhá-la, onde quer que fosse, com ela nasceu o verbo tietar e eu fui dos primeiros a conjugá-lo. Pereio pensa que a seduziu, mas não contava com a astúcia amorosa de quem chegou antes dele. Eu te amo? Quem disse (e ouviu) isso em primeira mão fui eu. Sonia dos mil ofícios: teatro, televisão e cinema, como se diz, feitos com uma mão nas costas. Aliás, devo admitir, mulheres assim, e muitos instrumentos, inclusive na cama e na mesa, sempre me fascinaram. Sincera como ela só, certo dia me disse que não mais se despiria na minha frente por sentir que os seios lhe estavam muito caídos. Mas felizmente arrematou: você espera eu me deitar e então pode acender a luz – mas só o abajur. Modéstia dela. Mulher esplendorosa, capaz de ser ao mesmo tempo uma dama, uma freira, uma puta; solteira, casada ou viúva. Moreninha brejeira, meretriz aposentada, médica de família, proverbial mãe de família. Dona Flor de muito maridos, mas nem todos de verdade. Isso quando não subia em telhados, como quando a conheci, na figura de morena tão brasileira, com a pele e cheiro ao cravo e à canela. Os malditos americanos mais uma vez me roubaram, com seus seriados comerciais, que encheram esta mulher de dólares, mas não retiraram a admiração de um cara de bom gosto como eu. Vez em quando nos vemos, mas agora, confesso, apesar de estar envelhecendo, me vejo interessado em mulheres mais novas. No Edifício Aquarius algumas vezes já estive com ela, mas ao tal lugar de Bacurau evito ir. Não gostei daquilo lá, me deu gastura. 

E aí me apareceu esta Penélope. Entre tantas belezas que vi nela e antes dela, fui fatalmente atraído por aqueles olhos de cabra tonta. Ou de ressaca, sei lá. Disputei-a ferozmente com um tal de Javier, mas foi tarefa difícil, perdi. Fui forte, mas não tive vez. Tivesse eu em mãos um daqueles cilindros de ar comprimido a disparar projéteis certeiros e fatais no crâneo de alguém, eu mostraria a ele. Mas arrastei a minha Cruz no encalço de Penélope por Madrid, Barcelona, Paris e Nova Iorque. E mais longe iria por aqueles olhos inverossímeis.

Fazendo um balanço em minha vida amorosa, atualmente cheguei à conclusão que a mulher inesquecível de fato, para mim foi Brigitte, aquela criada diretamente por Deus para ressignificar o senso estético dos homens. Ela povoou minha adolescência, tantos anos atrás. Fruto proibido que eu apenas pressenti, sem poder tocar, mas que não me sai da memória e pela qual sinto um frio na barriga (e um calor mais embaixo) até hoje. Ah, Brigitte, minha bebê de sempre. Eu te perdoo pelo que seus detratores chamam de devoradora de homens. Você pode até ter tido uma inclinação como esta, mas isso foi antes, bem antes, de conhecer a pessoa certa. Mesmo aquele último que te acompanha, meio facistão, surgido depois que você se desencontrou de mim, deve ter alguma qualidade que a leve a estar com ele. Mais de cem amantes, entre eles mulheres: a lista das infâmias a seu respeito nunca parou de crescer. Mas eu bem sei que não passam de invencionices de invejoso. Aqueles playboys que lhe quiseram botar as patas, como alguns zaguris e sachs que não sabiam de nada, e por isso te perderam, como tantos outros. Bem melhores do que eles são estes cães que você protege agora.  Sua pele, seus olhos, seus lábios, seus seios, suas coxas, seu ventre – devo dizer com o pudor que me é peculiar – deixam nas catacumbas da beleza todas aquelas mulheres que estiveram comigo. Nenhuma se equipara a você. Eu não te desprezei, você é que fugiu de mim, Brigitte. Por mais que te busque nos arcanos dos anos 60 não mais te encontro.  Aquela mulher enrugada e de olheiras fundas, que cuida de cachorros e ataca ferozmente os muçulmanos, não pode ser você. Deve ser mais uma invenção desta imprensa suja. Para mim Brigitte, você reina. Aliás, nunca deixou de ser minha rainha triunfante. Minha procura não ficará em vão. Em algum lugar desta vida – ou de alguma outra – estarei sempre a esperar você. Se de novo lhe encontrar, juro, não lhe perco mais. Devotamente seu.

 *** 

A história de Jacó

Jacó, o vaqueiro desta história. Sim, ele, Jacó da Vereda Alta, filho de Isaque e neto de Abrão Borges. Jacó gostava de Raquel, filha de Lesbão, fazendeiro assentado no Buriti Seco. Jacó não era de enxada e foice, tinha orgulho de seu trato com o gado bravo, peão corajoso, segundo todos que o conheciam, com fama assentada da Vereda Alta ao Buriti Seco e até mais além.    

Jacó, do alto de seus vinte anos, com efeito, não era homem de plantar milho e feijão, isso não, mas sim de laço e ferrão. Mas deu de frequentar com assiduidade os mutirões de bateção de pasto e mais o que houvesse na fazenda de Lesbão. Foi lá uma vez, duas e três, depois outras tantas. Agora, o ano já virado pela metade, aquela pastaria, de se perder de vista, precisando ser limpa antes da chuva começar, para receber o gado magro, vindo do alto sertão, que ia ganhar ali arrobas sem conta. E foi assim que ele um dia se deu conta que existia Raquel.

Raquel, aquela dos olhos verdes, pele morena, cabelo na cintura e cinturinha delgada. Raquel, que mal viu Jacó lhe dirigiu um olhar que talvez fosse o seu costumeiro, mas para ele foi como se viesse dos anjos.

– Bom dia como está o senhor? Aceita um café, umas broinhas?

Isso foi da primeira vez. Em seguida já estavam quase íntimos, o moço já vencido em sua timidez com o jeito alegre e dado da outra. As conversas já tomavam rumo mais aberto, aqui e ali até falando de flores, de guabiroba, bacupari e outras frutas da estação e de intrigas da vila, não mais do invariável assunto da falta de chuva, que dominava toda a conversa por ali, na ocasião e quase sempre. E o vaqueirinho exultava.

Nem tudo eram flores e frutas do mato, entretanto. Ia tudo muito bem entre ele e a moça, mas eis que um dia quase tudo se perde. Era hora do almoço e havia suã de porco com arroz. Jacó acocorado segurava um prato cheio até as bordas, ele se pelava por aquilo. E ali na casa de Seu Elesbão não tinha miséria, é o que todos reconheciam e agradeciam. Chegava ao ponto de até de se oferecer um copinho de boa caninha, no final do eito, para quem tivesse o costume, claro. Mas não passava disso. A garrafão logo desaparecia após uma primeira e única rodada entre os trabalhadores do mutirão. 

Pois bem, Jacó num canto da varanda, prato equilibrado nas coxas, assentado nos calcanhares, se deliciando com a comida, quando a moça chegou, de surpresa, e o saudou, com a aberta alegria de sempre. Ele, com boca e dedos lambuzados de gordura e molho tingido pelo urucum – quem já comeu suã sabe que é preciso enfrentá-lo assim com intimidade – se sentiu pego em má situação, e tentou disfarçar escondendo o prato de folha atrás de si. Porém, cuidando de não desperdiçar o belo pedaço de osso e carne que ainda tinha nas mãos, visando voltar a atacá-lo quando o anjo completasse sua passagem por ali. Não foi este, entretanto, o entendimento de Nero, um danado cão mestiço de Fila com sei-lá-o-quê, malandro que nem ele mesmo. Aquele diabo ia passando por ali justo naquele momento e não teve dúvidas: abocanhou o belo pedaço de suã, com muita carne ainda não comida e chupada, e o levou consigo, num bote só. Não é que o dedo de Jacó estava enfiado e meio preso no buraco do osso e o puxão dado pelo cão só fez arrastar suã, dedo e dono do dedo pelo pátio a fora?

Jacó queria morrer de vergonha, mas Raquel lhe foi generosa, lhe estendeu a mão para que levantasse, perguntou se ele estava bem e chamou logo uma mulher da cozinha para que limpasse a lambança. Linda e querida como sempre, ainda emendou, apesar de rir à solta do acontecido:

– Não se preocupe, moço, isso acontece. Até meu pai já sofreu coisa parecida, com este mesmo Nero, que derrubou ele da cadeira…

Tudo está bem quando acaba bem – e a vida seguiu. Não faltou em breve oportunidade para ele estar de volta. Era festa da Santa Cruz e no Buriti Seco, como de costume, havia missa e festa. Havia muita gente por lá e ele custou a ver o objeto de seus cuidados. Estavam ela e sua irmã mais velha, Lia, que era coxa de uma perna, a comandar um batalhão de mulheres e moleques na cozinha, pois ali naquele dia comeriam mais de cem. O vaqueiro postou-se próximo à porta da cozinha, mas o máximo que recebeu da amada foi um bom dia, mesmo assim de passagem. Depois ela foi acolitar o senhor vigário. 

Na despedida, algo mais animador, embora muito breve para ao desejo dele: – Volte outro dia, hoje estive tão ocupada, nem pude lhe dar atenção.      

Para quê mais do que aquilo, pensou o moço, de modo a disfarçar o que em outra ocasião poderia ser apenas frustração. Mas para ele já estava de bom tamanho.

A outra ocasião não tardou. Passado um mês e meio ou dois chegou a notícia que um doutor veterinário vinha da capital para dar uma palestra à vaqueirada da zona, eis que ele muito entendia de doenças de bezerros. O moço era dali mesmo, filho de um Azevedo da beira do rio, rico que nem ele só. Ninguém fazia muita fé nele, que tinha fama de mandrião, mas ao mesmo tempo não era o caso de perder a oportunidade de se aproveitar a mesa farta de Seu Lesbão, que em ocasiões assim, não deixava por menos, às vezes até mandava comprar na Vila uma ou duas grades de cerveja.

Agora, sim, pensou Jacó – e rumou para lá. Realmente o dia estava pra peixe. Raquel, junto com a irmã, cuidava das quitandas, mas como havia um exército de mulheres na cozinha e nem tinha padre para ela se ocupar, sobrou tempo para longas conversas entre ela e Jacó, que começaram com apreciações sobre as chuvas que não vinham, passaram pelas floradas de pau de pombo, que naquele ano estavam soberbas, desaguando no enxame de moças emprenhadas e sem pai conhecido por todo lado ali na região.

Em certo momento, Raquel teve que ir à cozinha, para ver como andavam as coisas. Voltou de lá apenas alguns minutos depois, trazendo a agora a irmã coxa a reboque.

  • Minha mana querida, Jacó, que cuidou de mim quando eu era criancinha e quando minha mãe se foi. E olha que eu quase morria de coqueluche e febre malina. Não fosse por ela…

Lia tinha vergonha de todo jeito e pouco ficou com eles, numa conversa que rendeu nadinha. Pediu logo licença e voltou para a cozinha. Mas Raquel parece que tinha encontrado um novo pé de conversa:

  • Não repare o modo dela, é muito acanhada. Com essa perninha seca, coitada, acha que ninguém liga pra ela. Você ainda vai conhecer ela melhor, vai gostar muito dela…

Falou mais ainda das qualidades da irmã por longos minutos, de sua mão boa como doceira e quitandeira; do auxilio que ela prestava aos filhos dos empregados, ensinando-os a ler e escrever; dos ouvidos e ombros que ela emprestava às mulheres dos pões da fazenda em suas queixas contra maridos e sogras. E ia assim por um rosário interminável. Jacó, contrariado, pois o que mais queria era voltar aos bons assuntos, à parolagem sem compromisso que vinham levando com apuro até a chegada da manquitola à conversa. Raquel pediu licença para voltar à cozinha, mas emendou:

  • Você precisa conhecer ela…

A palestra do moço doutor já estava no fim. Raquel sumiu pelo casarão a dentro, até que Lia apareceu a Jacó, com um bule e uma bandeijinha na mão, não sabendo muito o que dizer:

  • Um cafezinho? As broinhas foi eu mesma que fiz e assei…

Jacó era educado, aceitou. Mas não passou disso. A moça tinha pouco repertório, não era boa de prosa, como a irmã. E Jacó, pra falar a verdade, não tinha vontade nenhuma de esticar o assunto.

  • Então, você me desculpe, mas tenho que pegar a estrada, antes que chova por aí.

A bem da verdade, não havia uma nuvem no céu. 

Mas o moço ficou mordido atrás da orelha. – Qual é, minha Santa?

Mas não fosse por isso. Quem ali estava era Jacó, dos Borges da Vereda Alta, vaqueiro de profissão, filho de Isaque e neto de Abrão, que não era de enxada nem de foice, mas de coragens. Seu negócio era o trato com o gado bravo, sua força todos conheciam, ali e mais além. Não ia, assim, se desanimar por pouca coisa. Não seria uma dúvida por causa de mulher que o derrubaria. Resolver mandar carta, assim escrita:

– Senhorita eu queria muito ti falar umas coisa, de pessoa a outra pessoa, mas não vi oportunidade ainda. Voçê fica sabendo que estou intereçado é na sua pessoa, não em nenhuma irmã, por milhor que seja, nem que não fosse capenga. E espero resposta. Viu?

Tratou logo de arranjar um moleque para levar o bilhete, por uns poucos trocados. Deu a ele variadas recomendações, temendo, principalmente, alguma interceptação de Lesbão, por quem tinha grande temor. Mas esqueceu do principal: dar ao moleque indicações mais precisas sobre a destinatária da mensagem.   

E lá se foi o mensageiro improvisado, rápido como um corisco, cumprindo rigorosamente as instruções de quem o contratou. Perdeu um pouco de tempo na chegada, por Lesbão estar por ali, em conversa com uns visitantes, bem na porta da casa, o que obrigou o moleque a esperar algum tempo junto a uma moita de bananeira. Liberada a entrada, não foi difícil encontrar a destinatária, que peneirava um polvilho numa coberta do quintal. Entregou a ela o bilhete, usando exatamente as palavras da encomenda: – Seu Jacó mandou trazer.

Saiu dali correndo, apenas a tempo de perceber, com malícia, que Seu Jacó devia estar doido de querer namoro com uma moça coxa como aquela, que andava como se tropeçasse a cada passo. Mas ele não tinha nada com isso. Estava ali só para ganhar um dinheirinho mesmo.

E Lia, sobressaltada, leu o bilhete e o guardou no decote da blusa. Mais tarde contou para o pai, com quem ela tinha grande proximidade, sendo ele o salvador dela em muitas ocasiões que recebera troças, não só dos meninos da escola e mesmo da família, pela sua condição de manquitola.

Lesbão era de boa paz e, viúvo como era, tinha imenso amor pelas filhas, especialmente por Lia, que não era bonita como a outra e ainda por cima tinha aquele problema nas pernas. Judiciosamente, mas sem deixar de lado seu carinho extremoso de pai, falou: 

– Uai, minha filha. É caso de se pensar, conheço esses Borges da Vereda Alta não é de hoje. É tudo gente boa, honesta, que cumpre os prometidos. Dou apoio. Vamo cuidar disso, então! 

Jacó esperou resposta uma semana, duas, um mês e mais. Já pelo décimo quinto dia começou a receber cestinhas de quitandas e docinhos, primeiro de forma totalmente anônima, depois com confeitos em forma de “L”, depois com o nome inteiro.

Até que um dia Lesbão mandou recado pela comadre Dolores que ele fosse ao Buriti Seco. E a mensageira acrescentou: – Jacozinho, bote sua melhor roupa porque você tem que se preparar para entrar para uma família de respeito.

Era o sétimo mês desde que ele começara a desenrolar seus planos de conquista de Raquel. E agora vinha aquilo… Ele não merecia. Só pensou assim: – sete meses é pouco. Eu daria sete anos, e muito mais do que isso para ficar com ela. 

Mas como tudo passa, mas também o que está ruim pode ficar pior, um dia ele ficou sabendo que Raquel tinha ficado noiva do Azevedinho, o moço doutor veterinário.    

 ***

É aí que entra na história o Doutor Luís de Camargos, filho da terra, advogado sem diploma e professor de português no ginásio da Vila, amigo da família Borges, que ao saber da triste história de Jacó, compôs para o infeliz vaqueiro o seguinte poema:

Em muito mutirão Jacó servia

A Elesbão, pai de Raquel, moça tão bela,

Mas não era pelo pai, era por ela 

E dela era a mão que pretendia.

Passavam os dias e ele em agonia 

Ter ela bem perto, o que mais pretenderia?

Porém Raquel, com visível felonia

Impunha ao pobre moço sua irmã Lia.

Vendo, porém, Jacó que com trapaça

Lhe era assim negado o que queria

Abrindo-lhe no peito tal ferida

Avisa a toda gente, em plena praça

Não me importa, mais ainda eu serviria

Pois por tanto amor eu daria até a vida

  ***

Afinidades eletivas

Gustavo chegou da escola chorando, inconsolável. Não era costume seu. A mãe, preocupada:

  • Por que você está assim, Gugu? Conta pra mamãe o que aconteceu.
  • Ele falou que eu tenho um nome de cobra.
  • Nome de cobra? Que história é essa, quem lhe disse isto?
  • Aquele menino lá.
  • Como é o nome dele?
  • Acho que é Renato. Vou bater nele com uma pedra.
  • Filho, não faça isso! 
  • Não posso fazer nem isso nem nada, Mamãe? Mas eu preciso muito fazer alguma coisa…
  • Então você faz o seguinte: diz para ele que Renato é nome de pato. E vai ficar tudo resolvido.

Volta no dia seguinte, ainda choroso e aborrecido com a vida.

  • O que foi meu filho, agora?
  • Ele não se chama Renato…
  • Qual é o nome dele, então?
  • Esqueci de perguntar…
  • Amanhã então você pergunta.

Volta para casa finalmente alegre, no modo Gustavo habitual de convivência. A mãe nem lhe pergunta nada; ele próprio se prontifica a esclarecer.

  • Sabe o Pablo, Mamãe?
  • Quem é Pablo? Será que eu conheço?
  • Aquele coleguinha que eu pensei que era Renato.
  • Sim, claro, a Mamãe se lembra. O que aconteceu?
  • Não aconteceu nada. Ele agora é meu amigo.

Um dia depois.

  • Sabe a Manuela, Mamãe?
  • Sim Gugu, a filhinha de minha amiga Neide, da sua idade.
  • Ela mesmo, irmã do Joaquim…
  • E o que tem a Manuela?
  • Você sabia que ela falou que queria namorar comigo?
  • Nossa! Verdade, Gugu? Quando ela falou isso?
  • Hoje, na hora do recreio…
  • E você, o que disse para ela?
  • Falei que sim, mas só se o Pablo pudesse também brincar disso, com ela e eu. 
  • Você acha mais legal assim?
  • Sim mamãe. O Pablo é o melhor amigo que tenho agora.

 Passam os dias. Não se teve mais notícia do triângulo amoroso. A mãe resolve especular depois de algum tempo.

  • Então, Gugu, quais são as novidades na escola.
  • Chegou um menino novo lá, grandão. Ele é tão estranho… já mordeu umas crianças na sala da gente. Teve até que ir para a diretoria.
  • Quis morder você também?
  • ‘Ni’ mim não, só no Pablo.
  • No Pablo, coitado! E você, o que fez?
  • Eu ‘esculpi’ nele!
  • Cuspiu? Que coisa feia. Não é assim que a gente faz. Tem que avisar pra professora!
  • Ele mordeu ‘nela’ também… 
  • Mas mesmo assim…
  • Mamãe, é que eu sempre ‘protojo’ as pessoas que eu gosto, viu?

Nisso a mãe encontra sua amiga Neide na porta da escola. Conta-lhe a novidade das intenções de namoro de Manuela com Gustavo e a resposta dele, propondo incluir o amigo. Neide acha graça, não sabia de nada. Mais tarde, em casa:  

  • Gugu você não falou mais nada da Manuela… Está tudo bem com vocês.
  • Eu nem vi ela hoje… Acho que está doente, de catapora.
  • Acho que ela estava na aula, sim. Até encontrei com a mãe dela na porta.
  • Ah, é porque a gente quase não conversa mais…
  • Mas vocês não iam até namorar?
  • Ela queria mesmo. Até namorar o Pablo junto comigo. Mas ele não quis.
  • Não quis? Como assim?
  • Ele falou que ela tem nome de coruja… E me chamou para gente juntos namorar a Lis, que é loirinha e tem olho azul. Ele gosta mais dela. Disse que o nome dela é de tartaruguinha malhada.  
  • E você? Gosta mais como?
  • Gosto mais de quê, Mamãe?
  • Olhos… Qual cor prefere?
  • Eu? Qualquer cor…
  • E vocês contaram para a Lis que estão interessados em namorar com ela?
  • Eu não. Vou aposentar deste negócio de namorar, como o vovô fez com o trabalho dele. Agora só quero casar, mas não achei ninguém pra combinar isso comigo. Acho que sou novo ainda. E dá muito trabalho…

Passa o tempo…

  • Mamãe, agora briguei com o Pablo.
  • Por que, meu filho?
  • Ele falou que meu nome é de cachorro.
  • E você, o que disse pra ele?
  • Cachorro e dinossauro são os bichos que eu gosto mais! Não estou nem aí… Pior é ele, que tem este nome que parece de ‘covirus’.
  • Mas vocês brigaram, de cuspir, bater?
  • Não, a gente agora é de cinco anos, não briga mais. Foi cada um pra sua casa. Amanhã a gente combina o que vai fazer. Sabe, Mamãe: de noite a gente sempre pensa as coisas melhor do que durante o dia.  

 ***

Continuação

(Fantasia sobre o conto “João Porém, o criador de perus”, de Joao Guimarães Rosa (in Tutaméia))

Não, Lindalice era a outra. Nesta história a vez é de Geriselda. 

Foi assim: João vivia para seus perus. Mangavam dele os amigos, dizendo que havia, nas redondezas, uma moça loura que o olhava e queria conhecer, Lindalice. Esta, de verdade, não existia. Mas João, dito Porém, que só sabia de perus, milho e terreiro, transtornava-se. Queria porque queria. Os amigos, maldosos, não lhe diziam a verdade. Pelo contrário, traziam recados, propunham respostas, ofereciam para escrever cartas de amor. João deu de gastar, perfumes, terno de brim, botinas – coisas que nunca tinha usado na vida. E queria chegar junto daquela rapariga que não via – e nem podia ver. 

Os amigos, apoiavam. Marcaram encontro, para dizer, à última hora, que Lindalice, adoecida, tivera que viajar para a cidade, atrás de doutor.

João penava, queria saber quando, e se, e onde. Descuidava da criação. Uma ninhada inteira de peruzinhos, solta no terreiro em altas horas, por puro descuido do dono, sumira, atacada por algum bicho da noite. O milho para as aves, antes negociado escrupulosamente com vizinhos, já mal se via nos improvisados cochos espalhados pelo terreiro. Os perus davam de invadir os quintais dos outros, onde se fartavam das abóboras ainda não colhidas ou maduradas. João Porém, na porta da venda, bebia coisas que até então desconhecia. E não poucas vezes foi visto cambalear pelas ruas da corrutela. 

Um dia, jogou pedras na janela da casa das professoras, julgando estar sua amada ali escondida. O cabo meteu-o no xadrez, o sujo banheiro da delegacia do vilarejo. Dalí, humilhado, foi solto ao romper do dia. Na rua, chusma de garotos gritava “João Porém, João Pooorém…” Ele, atormentado, ainda pálido e amarrotado pela carraspana, mais zarolho que nunca, corria atrás. E o escárnio se recolhia, para reaparecer adiante, atrás do muro da Igreja, de dentro das salas da escola. 

Foi aí que vieram os amigos buscar a pobre Geriselda. Que ela fosse e passasse por ser aquela Lindalice de troça, mesmo não sendo. Que Porém não conhecia e tinha, da outra, apenas imaginada, a visão de loura cabeleira, em tranças composta. Esta, bem sarará e marcada por bexigas, além do mais ganhando a vida do jeito que todo mundo no arraial sabia, nunca que ia enganar ninguém, mesmo um peruzeiro caolho que nem João. E eles insistiam, propondo até pagar, que ela aceitou, por que não? Pobre, sim, mas honesta, nem tanto, um qualquer dinheirinho que entrasse faria bem, não é?  

Então ela foi ter com ele. Era de tardinha e João, sentado num toco à porta de casa, olhava para o chão. Em volta, a peruzada ciscava e gorgolejava. Mesmo dentro da cafua era uma barafunda de penas e titica. Geriselda parou ali e ficou olhando o pobre João. Ele de repente a viu, o sol batendo nela por detrás. A cara triste e amarela, de repente se alumiou. Ficou de pé e olhava, olhava, como uma aparição. No princípio, ela pensou que aquilo não parecia ser com ela, logo percebendo que era um olho apenas. O outro, lhe fitava sério, úmido, amoroso, como o de um cachorrinho no pé do dono. João lhe estendeu a mão, grossa, suada, fria. Puxou a moça para dentro de casa, fez café, ofereceu cadeira, pediu licença pra fumar, até lhe ofereceu o pito. Quase não falava, só olhava com o olho são, o outro revirava a conferir o mundo em volta. 

João, num fio de voz, disse: – a gente ficamos aqui, de romances… Já escurecia e um daqueles perus, ali perto, gluglulejou e João nem acabou o que ia dizendo. A mão dela suava junto com a dele. Daí, ele encostou a cabeça no seu ombro e uma peninha de peru lhe fez cócegas no nariz, tendo que fazer força para não espirrar. Ela gostou daquilo. E assim viram o dia nascer…

Semana passada João ficou mal, e se foi. Deu de inchar, ficando mais amarelo que o costume. O doutor, na cidade dizem, tirou dez litros de água da barriga dele. Voltou para ser enterrado, numa rede encharcada.

Para Geriselda a saudade aperta, ainda, mas não chega a maltratar de verdade quem tem ofício de herança. João Porém quis que ela prosseguisse sua lida, e ela se entendeu com ele por meio de todos esses perus, aqui em roda, precisando de trato e cuidados. Carecia dar essa ajuda a ele.

 ***

Os trabalhos de Éricles

– Senhor Eurico, a senhora Eurídice lhe espera no guichê vinte e cinco.

A autofalante da rodoviária errava meu nome, que é meio diferente mesmo, mas Eurídice eu sabia muito bem quem era. Aquele recado era pra mim mesmo.

Éricles: este nome esquisito é o meu. Ouvi dizer que foi um erro do escrevente no cartório, ignorante que só ele. Meu pai queria, na verdade, que eu me chamasse Hércules, mas como ele estava viajando quando fui registrado, por um padrinho, ficou por isso mesmo. E a maioria me chama assim, por este nome meio fora de propósito. Pelo menos, me evita os apelidos. Um padre estrangeiro que reza missas aqui de vez em quando me tranquilizou, explicando que em sua terra tal nome existe de verdade e se escreve assim mesmo. Menos mal.

Mas foi por ele mesmo, este meu nome estranho, que custei a entender, mudado que foi para Eurico, que ouvi no autofalante da rodoviária, para comparecer a um ponto de encontro, porque lá uma pessoa me esperava: Eurídice, minha cunhada, sempre atrasada, ainda mais em um momento como este, tão importante em nossas vidas. E lá estava ela, linda como sempre, mas com um olhar de preocupação. De cara vi que tinha algo errado: ela não carregava mala ou mochila, mas apenas uma bolsinha a tiracolo, ao contrário do que tínhamos combinado. Aquilo não era bagagem para a viagem pretendida.

Eurídice é mulher de meu irmão mais velho. Aliás, meu único irmão, e só por parte de pai. Aristeu é o nome dele, somos uma família que carrega nomes esquisitos, como os primos Menelau, Heráclito e Esperidião. Meu pai tinha o nome de Anfitrião – isso mesmo, acreditem – embora não fosse muito de ser gentil com as pessoas e ter pouca simpatia por qualquer tipo de visita. Pior era o nome de meu avô, que se chamava Zeus… Vejo que estou exagerando nos detalhes. Melhor retomar o caminho mais reto.

Meu pai ficou viúvo em seu primeiro casamento, tendo com sua mulher Espéria só um filho, esse Aristeu de quem falei. Daí, casou-se de novo, desta vez com Ismênia, que é minha mãe. Fomos criados juntos, Aristeu e eu, ele meia dúzia de anos mais velho do que eu. Para dizer a verdade, não chego a me lembrar de um só momento que tenhamos convivido com harmonia na nossa infância e juventude. Aristeu frequentemente me batia, tomava meus brinquedos e ainda tinha o costume de me denunciar a nosso pai por malfeitos dele, mas inventados como se fossem meus, com frequência. Minha mãe bem que tentava me defender, mas quem disse que aquele velho turrão, o terrível e mal nomeado Anfitrião, acreditava em mim ou nela? Meu pai faleceu faz muitos anos. Ismena sobreviveu a ele e vive comigo e meu irmão em nosso sítio, onde plantamos hortaliças, tocamos uma rocinha de milho, criamos umas vaquinhas e uns porquinhos. Aristeu pouco se importa com minha mãe, que afinal não é dele também, ao contrário de mim, que tenho por ela um grande amor, procurando confortar e proteger esta pobre criatura, sempre.

Voltando a falar desta Eurídice, Aristeu a conheceu numa feira de gado ou algo parecido, e veio a se casar com ela depois de poucos meses de namoro. Mas mesmo casado com uma criatura doce, continuou sendo o mesmo Aristeu de sempre: turrão, grosseiro, desconfiado, ruim de conversa como ele só. Puxou em tudo o velho Anfitrião. Logo vi que Eurídice, tão formosa e delicada, tinha pouco a ver com ele, numa relação quase incompatível, para dizer pouco. Não sei realmente como ela foi cair em tal armadilha. Aristeu se considera o verdadeiro dono da propriedade em que vivemos. Ele tem certa razão, porque quando o velho Anfitrião se casou com sua mãe Espéria, o sítio pertencia à família dela, de longa data. E meu pai nunca fez questão de deixar isso acertado em qualquer cartório. De modo que sou tratado aqui não como parte da família, mas como um empregado comum. Aliás, devo dizer, há outros serviçais aqui que são mais bem tratados e respeitados do que eu.

Nas tarefas do sítio, sempre fico com a pior parte. As bicheiras do gado, por exemplo, quem cura sou eu. Buscar a Estrela, aquela mula desgraçada que morde e dá coices, além de se esconder nas grotas e capoeiras, de madrugada ou debaixo de chuva, também sempre fica a meu encargo. Uma cobra aparece dentro do curral ou no paiol, é a mim que recorrem. A roda d’água mostra algum enguiço – chamem o Éricles, é o que sabem dizer. E ainda me fazem ficar de tocaia quando por acaso um bando de ciganos aparece por aqui, e para isso não me cedem nem mesmo a cartucheira de meu irmão, mas apenas uma garrucha velha e enferrujada, que nem sei se atira de verdade. O cachorro do Juca, um outro agregado, ficou louco, babando feito uma vaca e querendo morder todo mundo. Quem foi chamado para dar conta dele? Eu, claro. Com uma boa paulada mandei o dito cujo para o quinto dos infernos – o que mais poderia fazer?

Outro dia me incumbiram de limpar sozinho o chiqueiro dos porcos. Aquilo estava sem nenhum cuidado há meses e meses, numa fedentina de dar medo. O Quinzinho, o camarada que cuidava de lá, tinha ido visitar a mãe fora da cidade e nunca mais voltou. Acho que o monte de esterco da porcada já chegava a uns dois palmos. Fui fazendo aquilo quase a vomitar com a catinga aumentada pelo calor do dia, atazanado por mil e uma moscas. Num canto havia uma cascavel bruta, erada, e ela quase me atacou. Se não fosse aquele chocalho acho que nem estaria aqui uma hora dessas. Mas eu que não sou bobo nem nada, dei conta do recado. Desviei o rego d’água, que passava ao lado, para dentro do chiqueirão e deu até gosto de ver aquele bosteiro todo rolar por água abaixo, para finalmente se soverter no corguinho. Aristeu veio conferir o serviço e ao invés de me elogiar, ainda disse que de um troço malfeito como aquele só eu mesmo seria capaz.

Meu irmão a cada dia inventa serviço novo para mim. Agora, por exemplo, me pôs para vender alfaces e rabanetes na estrada. Passei o dia no sol e na poeira, sem comida e no final ainda tive que ouvir que não me esforço o bastante. Ele não percebe que o povo daqui não come essas coisas de rabanete e verduras, muito menos alface. O pessoal gosta mesmo é de suã de porco no arroz, bem untado de preferência. Ali na estrada não tive nem mesmo uma água fresca para beber… ou melhor, Eurídice ficou com pena de mim e apareceu por lá com uma bilha d’água. E ainda esticou a conversa, dizendo que não concordava com os modos de Aristeu comigo, pois achava que eu não merecia coisas assim. Ganhei meu dia. Ah esta Eurídice! Que pessoa especial, completamente diferente da peste do marido. Ela me trata muito bem, tem simpatia mesmo por mim. E de minha parte é assim também. A gente às vezes pega de conversa, por horas a fio.

A derradeira tarefa que Aristeu me arranjou foi a de vigiar o primo Menelau, que segundo ele, andava roubando coisas aqui no Sítio. Um colar de sua esposa havia desaparecido e ele suspeitava desse primo. Duvidei. Ando muito com Menelau e nunca o vi fazer uma coisa dessas. Como Eurídice agora ficou bem amiga minha, comentei com ela o acontecido, e vi que ela ficou meio transtornada, querendo saber detalhes de tal assunto. Eu só sabia daquilo por alto, pelo tipo de ordem que Aristeu me dera, mas prometi procurar mais informações. Eurídice mais tarde me procurou para fazer revelações estranhas, mas que na verdade combinavam bem com o temperamento de Aristeu. Ela me falou do desaparecimento do colar, mas passados alguns dias, ao guardar umas roupas lavadas do marido, descobriu a peça na gaveta da cômoda onde ele punha as cuecas. Para ela havia maldade nisso, vontade de envolver o primo em alguma intriga. De passagem, me disse ainda que apreciava muito a pessoa de Menelau e que detestava vê-lo ameaçado pelo marido, e que procurava uma solução para protegê-lo. Me contou também que sua vida com Aristeu estava pela hora da morte e isso a fazia sofrer muito, tendo ele recentemente sido violento com ela, sem entrar em detalhes. Sobre Menelau, disse que nem que lhe custasse o próprio casamento, no qual já havia perdido as esperanças, iria tentar salvá-lo das garras de Aristeu. Isso me pegou de surpresa, não por me fazer confirmar a ruindade de meu irmão, que não era dirigida somente a mim, pelo visto, mas também porque nos últimos dias eu e Eurídice tínhamos nos aproximado muito e eu até começava a achar que estava surgindo algo fora do normal entre nós. Alguma coisa bem proibida e que me matava de medo, por causa de Aristeu, mas ao mesmo tempo me enchia o peito, me esfriava a barriga e me tirava o fôlego.

É que eu estava sob o impacto de um fato acontecido alguns dias antes, quando depois de uma longa conversa comigo, Eurídice se despediu com um ligeiro beijo no rosto – e isso me deixou transtornado. O coração acelerou e eu nem consegui olhar para ela, muito menos retribuir o gesto. Era uma coisa doida. Por um lado, uma sensação de aleluia, forte demais, como nunca havia sentido. Mas por outro, o medo de que meu irmão viesse para cima de mim insinuando coisas. Nada foi como antes depois disso, entre eu e ela, pelo menos de minha parte, esta é a verdade.

Eu tinha agora um grande dilema nas mãos, que situação! Dar conta daquele frio na barriga e no descompasso do coração. Ao mesmo tempo avisar Menelau que havia desconfianças de Aristeu com relação a ele. Mas também desejava vê-lo longe de mim e de Eurídice, pois eu suspeitava que houvesse entre os dois alguma coisa especial e diferente, pois as reações de minha cunhada me pareceram suspeitas, mais fortes do que uma simples amizade poderia gerar. Acho que eu queria isso só para mim… E eu, como ficava nessa história? E assim aconselhei o primo que desaparecesse por algum tempo, até que Aristeu mudasse de atitude – se é que ele faria isso. Mas deixei claro que meu irmão parecia disposto a tudo. Em se tratando de um sujeito de maus bofes como ele talvez até cogitasse de mandar matá-lo. Menelau me disse que já era sua intenção se afastar e que faria isso no máximo em um ou dois dias, tendo até conseguido um serviço na fazenda de um tio, que morava a um dia de viagem de nós. E me disse mais: sabia que Aristeu tinha desconfianças dele com relação a Eurídice, pois já os tinha visto conversando a sós por duas ou três vezes e ficara enciumado com isso, chegando até a dar uns tapas na esposa. Me abismei, pois Eurídice que parecia tão próxima a mim agora não me falara sobre isso, a não ser de maneira vaga. Acho que a esta altura eu já estava era com ciúmes.

O ponto mais delicado de minha conversa com Menelau foi quando ele me disse que de fato amava secretamente minha cunhada e que já tinha até conversado com ela sobre isso, inclusive propondo fugirem juntos dali. Ela ficou de pensar, sem negar de todo tal possibilidade, mas ele achava que mais dia menos dia poderia acontecer. Deus do céu, era tudo o que eu não queria ouvir! Eu me via como um bobo apaixonado, totalmente sem chance de ser feliz com a mulher que já sentia amar, quase perdidamente. Logo eu, que também ansiava por não só proteger Eurídice, mas sobretudo ficarmos juntos. Foi quando Aristeu me chamou para redobrar a vigilância em Menelau, pois desconfiava que ele ia fugir. Me disse que agora tinha outros planos para ele e que por isso era preciso mantê-lo sob vigilância permanente. Isso só confirmou minha suspeita de que tramasse um assassinato. E eu, inocente, no meio daquela confusão toda.

Resolvi procurar Eurídice, para dizer a ela que desse um jeito escapar também, mas não para o lugar onde estava Menelau, mas sim para a casa de uns parentes, em outra banda, onde ela estaria mais bem protegida, enquanto não encontrava uma boa maneira de deixá-la segura. Viagem em minha companhia, claro. Ela aceitou, sem saber exatamente que meus planos eram favoráveis a mim mesmo, pois minha intenção era de me declarar a ela no decorrer da fuga, além de tentar convencê-la que assim, se ficássemos juntos, eu poderia protegê-la melhor. E isso para mim significava exatamente isso: juntos, de corpo e alma. Mas quantas voltas a vida dá… Marquei com ela, um tanto às pressas, aquele encontro na rodoviária, para que pegássemos um ônibus e fugíssemos, simplesmente, para ficarmos longe das garras de Aristeu. Quase caí para trás quando Eurídice veio me dizer que havia desistido da viagem. E me ofereceu o veneno em dose dupla, pois na sequência, depois de alguns minutos, me confessou que Menelau fizera contato com ela e assim combinaram que ele iria esperá-la em outro lugar, para que dali caíssem no mundo. E no dia seguinte ela daria início ao plano. Foi como se eu tivesse caído de um edifício de trinta andares. Fiquei sem fôlego e sem palavras. E o que é pior, tinha que admitir que toda minha conversa com ela tinha sido apressada pelo sufoco dos acontecimentos, e que talvez grande parte das decisões que julgava serem minhas e dela, estavam apenas na minha cabeça. Afinal, ela havia concordado que eu a ajudaria a escapar de Aristeu, mas ficar comigo era certamente outra história. Lembrei de uma música, que fala de um desejo de morte e de dor…

Da rodoviária voltei para meu quarto enlouquecido, não sem antes passar na venda e comprar uma garrafa de rum e um litro de Coca-Cola. Fui aos infernos. Na minha cabeça só passavam intenções malévolas. Eliminar aquele diabo do Menelau não seria a solução? Colocar veneno de rato na comida do Aristeu? Cair no mundo, desaparecer? Atazanar a vida no novo casal até quem sabe, encontrar um jeito de fazer Eurídice cometer adultério? Mas o que fazer com minha mãezinha? Só ideias tronchas me vinham à mente. Acordei tarde, no dia seguinte, com um tremendo gosto de corrimão na boca. Aristeu batia na porta do quarto, vociferando sobre meu atraso para as tarefas do dia. Avisou, de passagem, que iria à cidade “tomar umas providências” – e eu bem imaginei quais seriam. Fui começar meu trabalho, resignado, mas o que me ocupava de verdade a mente nesse momento era outra coisa, a vingança. Não sabia como, mas ela aconteceria. Nem que me custasse outra dúzia de tarefas ainda maiores do que aquelas que eu cumprira até agora.

Vencer serpentes e cães loucos, domar uma mula renitente, remover uma tonelada de bosta tudo isso era apenas um tira-gosto para o que me aguardava de agora em diante. O mundo ia ver, sim: eu iria à luta! Enquanto eu matutava em tais coisas, Aristeu topou com uma jararacuçu de dois metros e foi picado por ela. Eu fui o primeiro a ser avisado e providenciei a charrete para levá-lo ao hospital. A mula, que nunca colaborou com nada, neste dia parece que até se ofereceu para ser arriada, mas eu ignorei a boa vontade dela e só foi peá-la uma boa hora depois. No hospital da vila, o porqueira do meu irmão penou por uma semana, à espera da chegada do soro. Acabou não resistindo, formando uma ferida brava que levou à amputação do pé e infecção que tomou o corpo dele todo. Ajudei a providenciar o enterro.

Só me falta agora resolver o problema chamado Melenau.  

 ***

Amor Infernal

Que caso mais esquisito, aquele, em que me enrolei com tal mulher. Eu chamaria aquilo de um negro amor, não como uma expressão racista (porque hoje esta palavra exige cuidado pra ser usada), mas como uma coisa que mesmo durante toda sua presença em minha vida eu só queria que acabasse e que fosse esquecida. Um sentimento que se tem, quem sabe, pelos mortos desconhecidos e incapazes de outra vez se levantarem. Pedras de um caminho que cumpria serem deixadas para trás.

Amor blue, não em algum tom celestial de azul, mas naquela variante musical a traduzir paixão e páthos. Na pior fase, malgrado meu, eu a via em toda parte, até mesmo na expressão de alguma mendiga na rua e, doideira minha, como se esta vestisse a roupa que um dia foi dela. Aquele tapete que ganhei dela, tão caro e tão raro, eu bem queria que voasse sozinho e a carregasse para bem longe e nunca mais abrigasse nossos corpos no chão da sala.

De há muito eu queria que ela fosse embora da minha janela e da minha vida. Que se mandasse na rapidez de um raio. Deixei bem claro que eu não era a pessoa que ela queria e da qual realmente precisava. Não, não e não: eu era outro! Ela que procurasse alguém que nunca fosse fraco, mas forte como um leão, para protegê-la e defendê-la. Não era o meu caso.

Estar certa ou errada, não lhe importava em nada. Queria um serviçal que lhe abrisse portas, de maneira quase automática, quando ela passasse. Cansei de dizer para aquela criatura que este não era eu, definitivamente. Insistia: não era eu o sujeito que ela procurava e queria, de fatoMas de nada adiantava.

Ela infernizou minha vida, esta é a verdade, não me dava qualquer respiro. Pelas noites, rondava as ruas da cidade a me procurar, nos bares e onde mais lhe desse na telha. Voltava para casa abatida e frustrada, e não perdia a oportunidade de me chantagear com declarações estapafúrdias de amor, dizendo não se importar que eu estivesse com meus amigos, nas rodas de dadinho e bilhar, até mesmo com outras mulheres. Que a única alegria que tinha era trazida pelos sonhos nos quais eu estivesse presente. 

– Desiste, isso é totalmente inútil, eu lhe diziaMas isso só lhe fazia intensificar aquelas cenas de ciúmes, me ameaçando até mesmo de me matar em alguma esquina da cidade, em cena que viraria manchete de jornal. Mas seria por puro amor, dizia ela. Aquilo era, de fato, o embate de duas insanidades, a minha e a dela. Amor de animais, de gatos vagabundos, de cães de rua.

Admito que quela mulher de passado cheio de charme e mistério um dia me seduziu. Ela que se vestia tão bem e era capaz de dar gorjetas miraculosas aos garçons e fartas esmolas aos mendigos. Logo eu vi a verdade e passei a repetir o que outros já tinham alertado a ela: – cuidado, boneca! Você com certeza vai cair! Ela ria, com escárnio, pensando que tudo aquilo era apenas brincadeira. Depois, o que se viu foi a perda do orgulho e até mesmo a necessidade de ter que negociar o jantar e o café da manhã a cada dia de sua vida. Rolando ladeira abaixo como uma pedra solta.

Mas era apenas uma mulher. Apenas? Quem diz uma coisa assim não sabe o poder que tais criaturas possuem. Aquela ali me acolhia igualzinho a uma mulher, digamos, normal; era até capaz de sofrer como uma mulher. Mas diante das verdades da vida se entregava, choramingava e desmoronava feito uma criança, mimada.

E eu não cansava de dizer que não a queria mais, que ela se mandasse, que juntasse tudo que pudesse ou quisesse levar, tudo que fosse dela e até meu também. Mas que caísse fora de minha vida. 

Tantas fiz que um dia perdi as estribeiras. E fui denunciado por ela na delegacia do bairro. Humilhado, chorei, não procurei esconder, mas todos ali, e mesmo outros vindos de fora ou passantes na rua, assistiram aquilo. Alguns fingiram ter pena de mim, mas não precisava. Eu bem que merecia. Mas o certo que qualquer um chorava, se passasse pelo que eu passei. E chorei mesmo. Tive que dar a volta por cima, quero ver quem seria capaz disso. Mas eu me considerava um homem que tinha moral, a quem não cabia ficar no chão, derrotado. Ela veio me dar a mão, não aceitei. Reconheci a minha queda, mas com honra. Levantei por meus próprios meios, não foi fácil. Sequei as lágrimas, sacudi a poeira, me compus no espelho. Me coloquei de pé, por cima, jurando que nunca mais.

E assim vi que aquilo eram chamas destrutivas em meu coração. Não era amor, propriamente, era pirraça, veneno, cachaça. Um amor vindo do meio dos infernos, de meter medo até no Padre Eterno. Eu já não podia saber o que seria o dia de amanhã para mim. Relembrar o que ficou pra trás, desejar com firmeza que nunca, nunca mesmo, eu padecesse mais. Mas ao mesmo tempo pensava: o que seria de minha vida, sem ela? Vivi assim dias e noites iguais, numa jornada longa e vazia. Eu queria de todo jeito a paz, nem que fosse aquela trazida pela morte.

E, acreditem, um dia ela me procurou. Queria me devolver um anel que eu tinha dado a ela. Zanguei-me: – melhor você penhorá-lo, querida! Que ela recorresse a seus fantasmas, eles a chamavam, sem chance de qualquer recusa. E lhe disse mais, que quem já não tem nada, não tem nada a perder, torna-se invisível, não tem nem mesmo segredos para esconder.

Vi que agora, de fato, ela rolava ladeira abaixo, como uma pedra solta na encosta. Qual seria a sensação dela naquele momento? Não sei dizer. Mas imagino, o que significaria para uma pessoa deixar de estar por conta própria na vida e de repente ver seu rumo perdido, sem nenhum caminho para casa. Como uma pedra rolando, é a imagem que sempre volta à minha mente.

Saí andando a esmo pela cidade. Não me importava realmente com mais nada. Enchia a cara dia sim e outro também. Certa vez, em uma praça, roubaram minha carteira. Tinha um punhado de dinheiro, tudo que me restava. E também um retrato meu com ela, em tempos mais felizes. Fiquei sem a carteira e a grana, mas achei de bom tamanho a vantagem que aquilo me trouxe. E me saiu barato, pensando bem! Aquela foto era a algema que ainda me prendia àqueles tempos terríveis e só agora me dava conta disso. Roubado fui, mas pra sempre libertado depois disso.

(Dedico esta história a dois mestres da arte de narrar amores fracassados: Bob Dylan e Paulo Vanzolini)

***

Alumbramento

Saí de casa para aquela viagem com a sensação de que alguma coisa diferente ia me acontecer. Eu vivia em plena crise de um casamento que, fazia tempo, começara a dar sinais de cansaço. Melhor dizendo, a crise era, já há alguns anos, a expressão viva do que eu vivia ao lado de Maria Alice. Meus sonhos, havia tempo, apontavam para uma vida totalmente diferente e também para uma mulher diferente daquela que dormia ao meu lado e da qual eu mal sabia com o que sonhava. Ou melhor: o que sabia é que sonhávamos diferente, eu cheio de planos com foco coletivo, projetos talvez equivocados e grandiosos de ser útil para a humanidade; ela aderida ao panorama do lar e da família, tratando meus devaneios humanistas como se fossem coisa fora de propósito ou, pelo menos, incondizentes com a vida familiar restrita com a qual ela se identificava.

Meu destino era um encontro profissional, de gente da gestão pública, como eu, um tipo de evento que eu dera de frequentar nos últimos tempos, um pouco para fugir do que eu considerava uma vida sem horizonte e um tanto opressiva ao lado dela, outro tanto porque me vi alçado a certa importância no grupo profissional do qual eu fazia parte, no qual eram tradicionais e quase obrigatórios aqueles encontros esporádicos, mas que se amiudavam ultimamente. Naquele momento, nossos filhos começavam a não depender muito de mim, que já havia me transformado em uma espécie de pai sobre rodas, o que me não deixava de me facilitar tais escapadas, pois buscá-los na escola e levar ao futebol ou à aula de música eram coisas que eu poderia delegar a um terceiro ou um casal amigo, por exemplo. Para Maria Alice, claro, o motivo de tais viagens, que se tornavam frequentes, fazia parte daquele primeiro grupo de motivos, o do escape, nada mais, o que lhe acarretava dissabores e ciúmes cada vez que elas ocorriam. E assim me mandei para a grande cidade no outro lado do país, onde havia coisas importantes acontecendo no meu campo profissional, onde viviam figuras de destaque no mesmo.

Algumas semanas antes do encontro, dentro do clima das tradicionais articulações preparatórias, recebi a visita de um colega de outra cidade, figura que já se mostrava notável no nosso panorama profissional. Eu não o conhecia e ele estava de passagem pelo lugar onde eu morava e fez questão de me fazer uma visita, segundo ele, por ter interesse em conhecer mais de perto as coisas que a equipe que eu coordenava estava fazendo por ali – as quais, na verdade eu nem achava que fossem tão significativas assim. Ele gentilmente afirmou que o nosso trabalho, ao contrário do que eu imaginava, estava ficando conhecido fora de nossos limites, mesmo atuando ele numa capital, enquanto nós ali não passávamos de gente do interior. Trocamos, então, algumas ideias sobre o dia a dia de nossos afazeres, bem como das perspectivas políticas de nossa entidade nacional, em processo de fundação, sobre o que compartilhávamos a ideia de que ainda havia muito por fazer, em nível mais amplo, estadual e até federal, ele me colocando (e eu a ele) como pessoas de potencial político e técnico para tal missão. Conversamos muito e ao final meu novo amigo me avisou que uma pessoa de sua assessoria iria me ligar nos próximos dias, para que eu lhe passasse diretamente algumas informações e documentos sobre nosso trabalho, que ele tinha especial interesse em conhecer de forma mais aprofundada. Tudo na base de telefone e correios; naquele tempo não havia internet.

Os dias se passaram e eu já havia até esquecido de que haveria um contato quando ele aconteceu. Do outro lado da linha alguém me falava da parte de meu colega da capital e das informações que eu havia prometido providenciar. Era uma voz feminina, educada, articulada, pausada, um tanto grave, bastante calorosa, que me deixou, à falta de outra palavra, mobilizado, sem que eu pudesse especificar de alguma forma o que era isso e por que acontecia. Mas o fato é que coloquei foco naquilo e me dediquei, por algumas horas (ou foram dias?) a tentar imaginar como seria a dona daquela voz: alta, baixa, loura, morena, feia, bonita, casada, solteira? Naquele momento, devo admitir, com um casamento fazendo água, algumas ideias de índole romântica, talvez erótica, me acalentavam os pensamentos.

Para meu espanto e satisfação, a dona da voz me deu um indicativo que me fez acentuar a tal mobilização íntima, ao dizer que também estaria presente na reunião que aconteceria daí a alguns dias e que eu poderia levar tais documentos que eram desejados pelo seu chefe, para serem entregues pessoalmente.

Em poucos dias e em certo clima de espera, peguei o avião, depois um ônibus e cheguei lá. 

Já instalado em hotel, depois de algum tempo circulando entre pares no salão do Centro de Convenções onde ocorreria a abertura do evento, pude ver meu amigo de novo e com ele, finalmente, a dona da voz. E a fila de interrogações que eu havia feito intimamente a respeito dela finalmente foram esclarecidas, ao ver em minha frente uma pessoa das mais significativas, para dizer pouco. Uma mulher morena e alta; mais ou menos da minha idade; cabelos curtos (como eu gosto, ainda hoje!); expressão doce; afável; nada tímida, sem deixar de ser recatada. Uma daquelas pessoas que conversam com a gente olhando nos olhos. Em uma única palavra: eu vi naquela mulher uma expressão magnética, melhor dizendo, sem medo de adjetivação hiperbólica, linda! E ainda possuía aquela voz, grave e calorosa, meu Deus…

Da última coisa que me lembrei, naquele momento, é que eu era casado – e para todos os efeitos, bem casado – embora a minha situação matrimonial estivesse passando pelas turbulências que já citei, quase naturais e obrigatórias para um casal que estava junto havia quase quinze anos e que, além do mais – aí eu já perseguia, sem dúvida, uma espécie de álibi – por estar vivendo em meio a uma penosa construção de uma casa monumental, que consumia as energias minhas e de Maria Alice já havia pelo menos três anos. Enfim, um daqueles momentos em que o diabo espreita, com ímpeto provocador, do meio do redemoinho. Mais tarde, ainda no mesmo dia, descobri que a dona da voz – eu já sabia seu nome: Katia – tinha também um matrimônio sólido. E mais, que o seu marido era, simplesmente, uma graduada autoridade pública em sua cidade de origem.

A verdade é que, naquele momento, nem em sonhos delirantes eu poderia imaginar o desfecho que aquilo teria. E já naquele preâmbulo da reunião, entabulamos conversação, primeiro sobre as questões oficiais que nos haviam mobilizado nos dias anteriores. E também acabaram por incluir cenas da nossa vida, aí incluídos filhos, famílias, sonhos, aspirações, posições políticas, gostos musicais e literários. Tudo sem qualquer esforço, como se um vasto menu de assuntos se desenrolasse para nós, diretamente de uma esfera externa, misteriosa e benfazeja. O desfecho de tal tarde foi apenas o previsível, o de combinarmos de nos encontrar mais tarde, uma vez encerradas as atividades de abertura do encontro, para retomarmos a conversa interrompida. E nos ajustamos quanto a isso durante uma pequena caminhada, junto com outras pessoas, entre o Centro de Convenções e o hotel, onde estávamos todos hospedados. Éramos não mais do que uma dúzia de pessoas naquele passeio, mas quem contava de fato, já àquela altura dos acontecimentos era apenas ela e eu; eu e ela, já admitindo que minha narrativa tenha se tornado um tanto hiperbólica, mesmo decorridos tantos anos destes acontecimentos. O resto parecia não existir. E isso foi apenas preâmbulo da noite, mas inteiramente superado por esta.

Depois do bla-bla-bla da abertura solene fomos, sempre em grande penca, para uma casa noturna, com comida, música ao vivo e principalmente bebida. Para mim e para ela o que ocorreu de substantivo foi a conversa que sobreveio; o resto, beber, comer, dançar, foi apenas pano de fundo. E conversamos desbragadamente, noite a dentro. Uma ou duas vezes dançamos, separados, olhos que procuravam olhos, mas sem fixar. Pois quem mandava em nós, ainda, era o pudor.

Procuramos um canto mais afastado, uma espécie de jardim interno, para que a conversa não fosse perturbada pelo ambiente ruidoso. Não havia qualquer intenção de pecado nisso. O maravilhamento era total e nossos olhos estavam postos, um no outro, com reciprocidade total, sem outra querência que não fosse a de captar cada palavra, cada gesto, cada piscadela ou arregalo, cada sorriso. Encantamento! Eis que, já sem medo de mais hipérboles, encontro a palavra que descreve aquela mágica da qual éramos personagens felizes e assustados. O grupo de amigos que também viera ao encontro e que estava no mesmo ambiente bem o percebeu, ao me dirigir aqui e ali os tradicionais comentários picantes, quando por acaso nos encontrávamos, no bar ou no banheiro, por exemplo. Mas o que importava? Que falassem…

O fim da noite não foi aquele corriqueiro e previsível, mas dada a porção de gente com a qual nos movíamos, talvez tenhamos encontrado algo ainda melhor, ou não susceptível da maldade alheia. Já amanhecia o dia quando finalmente saímos, como ali chegamos, todos ou quase todos se dirigindo ao mesmo hotel. A logística nos era impiedosa: ela tinha companhia no quarto e eu também. Um café da manhã no próprio hotel foi o que pensamos para encerrar a noitada, já que agora era feito o dia. Mas o restaurante ainda não estava aberto e nos foi oferecida, como compensação, a possibilidade de mandarem o café no quarto. E assim foi feito. A situação era prosaica: sentados na cama, frente a frente, quatro pessoas, os dois personagens centrais desta história e seus respectivos acompanhantes de quarto, sorvendo um mísero cafezinho acompanhado de pão de queijo. E só.   

Em certo momento eu, num arroubo de empolgação, já sem o pudor de me demonstrar romanticamente, falei a ela de uma canção de que eu gostava intensamente, e que o amanhecer já instalado fora da janela me fez recordar: clareia manhã, o sol vem apagar a clara estrela, a qual eu, desajeitado, trauteei, sem esquecer que os desafinados trazem também no peito um coração. Quando chegou a hora do verso que dizia loucos de paixão, creio que tive consciência – talvez ela também – de que a brincadeira parecia estar indo longe demais…

Não aconteceu mais nada? Não aconteceu, naquele momento, pelo menos, pois, nos despedimos logo em seguida. Para sempre ou apenas por algum tempo mais? Àquela altura era impossível saber…

O que veio depois começou a dar sinais intensos logo em seguida. Na longa viagem de volta, que fiz de carona no carro de um colega, por falta de conexões aéreas, já me vi com a mente absolutamente ocupada em lembrar de cada detalhe dos dias passados e, principalmente, da noite anterior. E me vinham os ecos daquela interminável conversa noite a dentro, cada detalhe indo e voltando, aos pulos como um gafanhoto, em minha memória, em ato de verdadeira epifania. As músicas que ela gostava; os clássicos que lhe faziam a cabeça; as recordações de infância; a última gracinha do filho pequeno; os atropelos do trabalho no órgão público. Cada fragmento daquele já me parecia algo que pertencia a mim também. O tal alumbramento, de que falava o poeta, agora não mais com uma moça nua no banho, mas sim por uma simbólica interação verbal e visual com outra pessoa. Em certo momento, dado meu estado de relativo silêncio e isolamento dentro do carro, o próprio caroneiro, meu companheiro de quarto, que participara daquele estranho café da manhã à beira-cama poucas horas antes, me veio com alusões maldosas a respeito do meu alheamento durante a viagem. – E aí, companheiro, tu tá é apaixonado?

A chegada em casa não me foi mais tranquila. Maria Alice, que se indispunha visceralmente com minhas partidas, não mudava seu estado de espírito nas chegadas. Me recebeu friamente e com mil incumbências de caráter doméstico, inclusive relativas às crianças. Nenhuma palavra se o encontro tinha sido bom, proveitoso ou algo assim. Era o jeito dela, de sempre. Depois de alguns dias, a casa nova ficou pronta e foi hora de providenciar a mudança, antes tão ansiada, mas que naquele momento me pareceu sem maior sentido. Na noite anterior à mudança, que seria a despedida da casa que também havíamos construído juntos em tempos melhores, me bateu uma inusitada angústia e quando me dei conta, tive que sair da cama para ir ao banheiro, simples e puramente para chorar… Não sabia de quê e nem para quê – ou para quem – mas chorei como um bebê que se perdeu da mãe e se viu no meio de alguma multidão desconhecida. Minha vida mudava e eu não sabia dizer para onde ia e nem se eu daria conta daquilo.

Nos dias que se seguiram, já na casa nova, meu comportamento já não era o mesmo. Minha filha mais velha, adolescente na ocasião, notou e se chegou mais a mim. Maria Alice, em seu feitio habitual, manteve a postura distante e um tanto severa de sempre, aumentando as cobranças que me fazia a respeito das responsabilidades domésticas, sem dar o devido desconto para o fato de que minha ausência nos dias anteriores me trouxera maiores obrigações no serviço. Eu me pilhava contemplativo, suspiroso, melancólico, contemplando, em total alheamento o mundo, vendo o cair da tarde na grande varanda da nova moradia, ainda não mobiliada, que me parecia de uma imensidão quase galática.

Maria Alice só fazia me olhar desconfiada, mal escondendo uma mágoa feita sem palavras, mas com indefectíveis olhares. Um dia, muitos dias depois, num rompante que eu já não esperava, finalmente me inquiriu sobre o que estava acontecendo comigo – e acrescentando, cheia de reticências: – depois de sua última viagem... Eu falei: – nada… E mantive esta inverdade por quanto tempo fui capaz, ou seja, por três ou quatro longos meses. Mesmo quando admiti estar passando por algo diferente e complicado, ainda assim fui evasivo: – não sei, acho que preciso de um tempo…

Quando finalmente me senti liberado dos trabalhos ainda pendentes da mudança e da carga de trabalho na Secretaria, resolvi escrever a Katia, de forma ainda cautelosa, dizendo que tinha sido um prazer conhecê-la, que gostaria, quem sabe, de revê-la, se ela já conhecia o novo disco de Jobim, que o pôr do sol na minha cidade andava maravilhoso, etc. Alguns dias depois, ela me respondeu, declarando ter adorado receber minha carta, com o conteúdo restante mais ou menos na mesma intensidade da minha, embora ainda muito formal. Nesta altura, eu já me sentia como um personagem de um daqueles filmes de ficção futurista, pilotando uma nave espacial acelerada, de cuja cabine se via as estrelas sendo deixadas para trás, dentro de uma paisagem com mais e mais pontos luminosos em fuga vertiginosa. 

Mas o resto continuava como sempre. A vida de pai motorista, as contas a pagar, a crise política local a nos morder os calcanhares, como sempre, na repartição. Maria Alice em sua mesmice carrancuda e desconfiada a meu respeito. E a melancolia vespertina, cotidiana, naquela varanda, com o sol se pondo entre tons de laranja e azul, até que chegavam os vagalumes. Eu me alimentava daquelas cartas semanais, às vezes até mais frequentes, que chegavam em meu endereço oficial, abertas e lidas com um frêmito de emoção e desejo, cada vez mais explícitas, com as declarações iniciais de sintonia, empatia, cuidado, rapidamente transformadas em declarações de amor. Num domingo à tarde resolvi me arriscar a chamá-la pelo telefone, depois de escutar, no radio, Gil cantando I just call to say I love you, mas a voz, embargada, mal me saiu da garganta, embora ela estivesse, ao que parecia, sozinha em sua casa naquele momento. Deu para dizer que eu morria de saudades, ao que ela respondeu, com certo laconismo: o mesmo comigo. Me contou também que estava matriculada em uma formação técnica, a acontecer dentro de algumas semanas, em outra cidade.

Esta notícia me tirou o sono e ao mesmo tempo me abriu caminho para elucubrações sem fim, para forjar uma desculpa e estar lá com ela, que estaria, então, próxima a apenas algumas horas de viagem, que eu poderia fazer apenas com uma curta ausência do trabalho, quem sabe apenas um final de semana. Maria Alice, mais uma vez, não ia gostar, como de fato aconteceu. Encontrei, entretanto, mil e uma desculpas e criativas justificativas e fui. Tive que desmarcar um compromisso de família, que eu havia combinado com minha mulher e nossos filhos e só Deus sabe como aquilo foi complicado para mim. Reafirmei para ela a história que vinha repetindo havia algumas semanas, já totalmente inconvincente, a meu ver, de que eu precisava de um tempo só meu. E foi assim que fiz romper todas as amarras para seguir ao encontro de Katia. Na véspera, minha mulher, pela primeira vez em nossa vida de casal, partiu sozinha com as crianças, dirigindo ela própria o carro. Meu coração esfriou de temor, por um lado, mas por outro era todo regozijo: eu ia reencontrar Katia e aquilo não tinha preço e valia qualquer sacrifício. Minha conversa com Maria Alice, na véspera, era seguramente o fim da linha para nós dois, como se confirmou a seguir. Já não era possível voltar atrás, para mim, pelo menos.

Não havia chegado, ainda, o fim da história, ou o início de uma nova saga, para Katia e eu. Longe disso, havia o casamento dela ainda de pé e o meu próprio, de término ainda inconcluso àquele momento. Acima de tudo era necessário testar a hipótese de que valeria a pena nos desfazermos de tantas bagagens para cair num vácuo, sobre cujo sucesso nossa insegurança era total. Mas o fato é que eu sentia que não havia como botar de pé as minhas pontes e nem salvar meu navio para o retorno àqueles quinze anos passados ao lado de Maria Alice. E fui em frente, que nem um foguete interestelar, mais uma vez vendo estrelas passarem a galope pela janela lateral da nave. Lá na frente, porém, eu então não sabia, poderia existir um buraco negro.

E la nave è stata, como num filme de Felini. Um ano – e uma centena de cartas apaixonadas – depois, fomos morar juntos, vivendo uma saga amorosa contínua e acelerada, na qual se mesclaram encantamento, estudo, viagens, poesia, sexo a rodo (na cama, na grama, no chão), cozinha-a-dois, erotismo, alegria, convivência em família, mudança de cidade e de trabalho, projetos de vida juntos e tantas coisas mais.

Até que um dia acordei numa cama que não era minha, tendo a meu lado uma pessoa que me parecia tão estranha… Onde aquela clara manhã e a loucura da paixão?

O destino quis que o desfecho de tudo isso história somente acontecesse dez anos depois – e não foi nada lisonjeiro. Mas seus ecos ainda se fazem sentir no momento em que escrevo estas linhas, passados quase quarenta anos daquela jornada extraordinária, daquela noite de alumbramento, de muitos dias e noites inesquecíveis, da sensação de estar vivendo coisas totalmente venturosas e inéditas, sem retorno possível; daquele estranho café da manhã num pequeno quarto de hotel.

Foi assim.

***

Carmina

Mergulho?

Sim, mas devagar.

Espanto?

Talvez, mas vai passar.

Sedução?

Sim e não. Só começar…

Espelho?

Normal. Corre a espiar.

Destino?

É caso de comprovar.

E então?

Deixa fluir, sem estancar.

Seu gozo, seu delírio

Eu quero

Mas faço melhor:

Espero

<A nudez longínqua de uma pérola>

Para quê?

Se o sonho e a espera

Valem mais…

Despido de verdade está quem ignora

O pudor

De parecer e querer ser como os demais

<Para que tanto corpo?>

Para que tantas palavras

Tanta contenção?

Tudo não passa de um estorvo

Para quem fez do corpo, apenas nuvem

já não se importa com o vento

Ou se faz inverno ou já é verão

Se a viagem é com os pés fora do chão

E o melhor dela está na travessia

O roteiro justo é o que nos faria

Fazer do corpo nuvem, sem freio ou direção.

Vamos resolver a equação da vida?

Comece você…

A fórmula – se é que tem fórmula

Não possui volta, nem ida.

<Eu não te quero aqui por muitos anos>

Eu não te quero vestida ou despida

Eu não te quero aqui e nem ali

Acordada ou desfalecida

Toda palavras ou emudecida

Sem sabor ou sabendo a sapoti…

Eu apenas desejo

A essência atemporal e abstrata

Que evola de ti.

Eu quero, entende?

Intransitivamente.

Que nome posso dar

À espera vespertina

De seu sms

No meu celular?

Passeio

domingo

vinho

entardecer.

causos.

afagos

querer mais?

Pra quê?

<Celebração de Eros>

Basta de poesia!

pelo menos essa

encarcerada em folhas de papel, livros

e telas de computador

eu quero agora poemas libertos

épicos libertinos, nada parnasianos

que subam pelas paredes

preencham as alcovas

escorram pelo chão

ou mais abaixo

(por que não?)

odes do céu e do inferno

elegias ao verão e ao inverno

poesia concreta; nem precisa ser discreta

escrita com suor e movimento

que seja feita com muito ou pouco invento

mas tenha gritos, gozo e tesão

cheia de si e recheada de beleza

e prenhe de nenhuma certeza

que se cumpre e é escrita fora do papel

em jogos e alfaias de cama e mesa

deixando marcas em algum colchão.

 *** FIM ***

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