Conheço a Chapada dos Veadeiros há mais de 30 anos, quando me mudei para Brasília. Tive até casa e terreno no Povoado do Moinho, em Alto Paraiso, os quais vendi em 2024 para pessoa em condições de cuidar melhor do local do que eu, já cansado das viagens de mais de duzentos km desde Brasília. Entretanto, realmente dizer que conheço a chapada, como afirmei acima, representa, na verdade, um certo exagero, pois nas três décadas que andei por lá na verdade praticamente só circulei nos poucos km que vão de Alto Paraiso ao Moinho, no rumo Leste, e eventualmente até São Jorge, um pouco mais longe, no sentido Oeste. Somente agora, tantos anos depois de estar na Chapada pela primeira vez é que me decidi a fazer um périplo mais amplo por lá, qual seja um contorno do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, através de suas fronteiras ao Norte e Noroeste, o que inclui passagens pelos municípios de Cavalcante e Colinas do Sul. É sobre isso a presente narrativa.
Comecemos pela informação pesadamente técnica que nos traz a Wikipedia, onde se pode ler que a área do Parque Nacional corresponde à zona norte da Faixa de Dobramentos e Cavalgamentos Brasília, na Província Estrutural do Tocantins, dentro dos Grupos Arraias e Traíras, o primeiro sendo caracterizado por complexos graníticos gnáissicos, que todavia não afloram na área do Parque, enquanto o grupo Traíras está presente na maior área do PNCV, com rochas metamórficas de origem em formações sedimentares marinhas, caracterizadas por quartzitos com estratificações cruzadas e estratificações cruzadas do tipo espinha de peixe, bem como marcas de onda de maré, intercalados com metassiltitos.
Ufa! Chega, né? Quanta obscuridade científica… Vamos ao que meus olhos leigos e descomplicados, às vezes equivocados também, puderam observar.
Quando se ultrapassa o ponto que até então limitava meus périplos pela Chapada, ou seja, as imediações da entrada da cidade de Alto Paraiso, o que primeiro me chamou a atenção foram as paisagens que se descortinam a partir dali. É bem verdade que a rodovia já oferecia, antes de tal ponto, um panorama variegado de colinas e planaltos, enriquecidos pela ampla tintura verdejante trazido pela estação chuvosa. O que eu não sabia era que o melhor vinha depois. Com efeito, trafegando em altitude acima dos mil metros, as paisagens se tornam continuamente acidentadas, com serras, picos, curvas e vegetação cada vez mais chamativas e exuberantes. Isso do lado esquerdo, pois do lado contrário pode se vislumbrar o amplo panorama do Vale do Paranã, um dos grandes formadores do tio Tocantins. O amigo que estava comigo na viagem, Karsten Montag, cidadão que conhece do mundo muito mais do que eu, não se cansava de elogiar tais paisagens, lembrando que certos trechos o faziam lembrar das montanhas da Grécia e da Eslovênia, enquanto em outros, dos planaltos do Kazaquistão. Como não conheço nenhum desse países, aproveitei para adicionar tal informação ao meu repertório geográfico. Quando prosseguimos pela rodovia, rumo ao Norte, depois de um longo declive, 60 km além de Alto Paraiso, alcançamos uma região mais plana, cercada como numa espécie de anfiteatro por montanhas imponentes.
Em tal situação está a cidade de Cavalcante. Seria apenas mais uma vila do interior, prosaica e pobrezinha, não fossem aquelas montanhas que a natureza ali colocou. Mas com um olhar mais descomprometido percebo que ali outros aspectos dignos de nota ali. Vamos primeiramente à história. A Wiki me informa que sua origem remonta a 1736, quando o garimpeiro Julião Cavalcante chega a tal região, com sua tropa e auxiliares, em plagas até então provavelmente ignotas, em busca – somente poderia ser! – de ouro. E ele o encontra! Não tarda que a notícia de tal descoberta, à margem do córrego Lava Pés, na serra da Cavalhada (que lá estão até hoje com estas mesmas designações), atraiu enorme multidão de aventureiros, vindos não se sabe de onde e nem como, iniciando-se então a formação do povoado com o nome de Cavalcante, em homenagem a seu fundador e colonizador. Assim reza a história ou, quem sabe, a lenda. Lugar antigo, como se vê, de uma época em que ninguém se aventurava por tais paragens, a não ser o povo originário, quando o país não passava de reles colônia, que começava a dar sinais que iria enriquecer – pra valer – o seu feroz colonizador. Mas o fato é que aquele ouro não passava de uma ilusão – extinguindo-se após poucos anos de exploração.
Permito-me uma breve digressão, sobre este designativo Cavalcante, melhor dizendo Cavalcanti. Vejo na Wiki que tal família tem origem italiana, mais precisamente em Florença, de onde, em meados do século 16, um certo Filippo transferiu-se para Portugal e depois para Pernambuco. Assim, pode ser que o tal Julião, fundador da cidade aqui em foco, tenha sido na verdade um bom pernambucano e não um portuga clássico. Mas não posso me responsabilizar pela fidedignidade de tal informação.
A visão da cidadezinha de Cavalcante está dominada por aquela cadeia impressionante de montanhas, situada que está num segmento da mesma, como a fechar uma enorme ferradura. São montanhas portentosas, revestidas em parte pela vegetação do cerrado, mas também exibindo encostas de pedra nua, de tonalidade avermelhada. Imagino que sejam as tais rochas metamórficas de origem em formações sedimentares marinhas, anunciadas pela competente e prolixa Wikipedia. Uma coisa é certa: tal paisagem é encantadora e desperta, logo na chegada, o desejo de explorar aquelas montanhas e, principalmente, o que se esconde por detrás delas. Tem um detalhe especial ainda no quesito paisagem: as veredas de buritis, presentes em muitos trechos da estrada, estão aqui bem próximas à cidade, embora um tanto maltratadas.
Antes de sair em tal exploração trás-os-montes, duas palavras sobre a cidade de Cavalcanti. Como já disse, à primeira vista ali não haveria muita coisa de interesse, mas um olhar mais criterioso (e generoso) sempre pode desvendar coisas dignas de nota. A sua antiguidade é confirmada, de saída, pelo desenho tortuoso de suas ruas principais, típico, ao que parece, da colonização lusa. Já nas periferias, logo adiante, o desenho torna-se mais organizado, refletindo certamente um padrão mais contemporâneo de ocupação. Vê-se por ali, na zona central principalmente, um ou outro casarão de janelas e portas de madeira, em tamanho avantajado, provavelmente o pouco que sobrou de um padrão antigo de construção, hoje um tanto descuidado, com a indefectível metalização de tais estruturas. O fato é que do século 18 até agora muita coisa mudou e, certamente, as casas antigas, solúveis em água como eram, já não dão poderiam dar o ar da graça por aqui. Há que se notar, ainda, a presença de quintais portentosos, onde dominam as mangueiras e as jaqueiras, principalmente na zona mais central. Um comércio pujante está presente também, com lojas de implementos agrícolas, utilidades domésticas, pequenos supermercados e até mesmo de algum artesanato, embora isso não seja necessariamente algo de fabrico local, pelo que observei.
Um marco das mudanças que Cavalcante vem experimentando é aquele mostrado pelo belo estabelecimento que nossos amigos locais, vindos de Brasília (agregados a um padrasto inglês), criaram na cidade, onde se vê um arranjo arquitetônico ousado, com mobiliário e divisões modernas, instalado sob o teto de um antigo viveiro e também com boa comida e um atendimento qualificado. Estivemos por lá uma noite e pude notar que tal instalação parece ser de usufruto quase exclusivo de uma nova categoria social que hoje ocupa a cidade, formada por forasteiros de melhor poder aquisitivo, que provavelmente são usuários ou têm como ganha-pão as atividades turísticas. Por que digo isso? Sem nenhum preconceito: os preços são altos, a cerveja é artesanal e de qualidade, não há som ambiente de muitos decibéis, nem música sertaneja e conversas em altos brados. Portanto, o público não parece ser formado por nativos …
Para o mal ou para o bem (com maior possibilidade neste último termo) o turismo chegou pra valer em Cavalcante. Isso se denota pela multidão de pousadas que se vê por toda parte; pelos sítios de recreio na periferia da cidade, que provavelmente mudaram a categoria econômica de muitas das antigas fazendas; pela pujança de um comércio que já não é formado apenas por lojas de produtos agropecuários, mas também por grifes de roupas e pelas variadas lojas de artesanato e produtos corporais e esotéricos, fazendo da cidade um lugar sob medida para pessoas de fora, sem dúvida. É o Brasil minha gente, país complexo e mutante, que foge a lugares-comuns e não é para o bico de principiantes.
Um detalhe a mais, comparando agora Cavalcante com Alto Paraiso. Aqui o projeto de turismo parece estar sendo construído, de forma intencional ou não, dentro de um modelo que tem foco local, seja na tradição quilombola ou nas belezas naturais, sem outras pretensões. Na outra cidade permanece o resquício de um podescreísmo um tanto descabelado, com aqueles horrorosos ET’s por toda parte, referências pseudo-hinduístas e um esoterismo de almanaque. Estamos em Cavalcante e as coisas parecem um pouco mais sensatas. Com certeza, a Índia não é aqui.
Vamos transpor as montanhas, finalmente, rumo às terras dos quilombolas ou kalungas. Resolvi fazer mais uma incursão às ondas da internet, onde leio que os quilombos constituem um fenômeno típico não só do Brasil como das Américas (embora certamente sejam mais comuns por aqui). Eram territórios demarcados e habitados por pessoas de origem africana, escravizados pelo colonialismo extrativista, do qual procuravam escapar por meio de sofridas fugas por muitas e muitas léguas. Acredita-se que havia variedades rurais e também urbanas e periurbanas de tais comunidades, mas essa segunda variedade me parece duvidosa, se o objetivo primordial dos fugitivos era o de escapar dos grilhões do escravagismo. Em tais redutos se mantiveram tradições culturais, linguísticas, espirituais e alimentares diversas, ligadas à origem africana das pessoas envolvidas com o fenômeno.
Prosseguindo na pesquisa, vejo que Kalunga é o nome atribuído a descendentes de africanos escravizados fugidos ou formalmente libertos, principalmente com localização no Brasil Central, que constituíram as tais comunidades autossuficientes e isoladas, como é o caso daquelas existentes no município de Cavalcante, além de outros, nos estados de Goiás e Tocantins. Em Cavalcante estima-se que existam cerca de duas mil pessoas assim identificadas, distribuídas nas localidades do Engenho, Prata, Vão do Moleque e Vão das Almas. Foi na primeira delas que estivemos.
Informação adicional 01: nas eleições municipais de 2020 o cidadão Vilmar Kalunga (PSB) foi eleito prefeito da cidade. Não encontrei informações sobre quem o substituiu a partir de 2025.
Informação adicional 02: acredita-se que sempre ocorreu nessas comunidades grande miscigenação, envolvendo não só afrodescendentes, como também povos originários e mesmo gente branca, sem esquecer da influência cultural do catolicismo (mais tarde substituída pelo protestantismo neopentecostal), em anteposição a uma teogonia afro, favorecendo assim o surgimento de uma cultura hibridizada e sincrética em termos religiosos. O aspecto racial das pessoas presentes na comunidade quilombola que visitamos (Engenho) demonstra visivelmente tal miscigenação. Não custa acrescentar aqui uma questão que se me recusa a calar, a seguinte: o que uniria de fato essa gente negra, indígena, branca, cabocla, de tantas origens e etnias? Para mim não é a cor da pele, a etnia, a origem além-mar, a espiritualidade ou uma cultura específica, mas sim o grande problema de serem todos pobres. É para tal grupo que uma boa política pública deveria estar orientada (agora eu deveria sair de cena, para o que céu não venha a desabar sobre a minha cabeça…).
Vamos então ao quilombo do Engenho, situado a aproximadamente 40 km de Cavalcante, servido por boa estrada de chão. Aliás, nos chamou a atenção nesta viagem a boa qualidade das estradas, seja nas asfaltadas, de gestão estadual, como nas intermunicipais. No caminho existe um ponto de parada obrigatória, um bem cuidado mirante em um alto de chapada, de onde se descortina uma vista sensacional.
O aspecto da vila do Engenho é pobre, porém bastante digno. As ruas não são calçadas, mas são bem transitáveis, existe coleta de lixo e as casas, humildes, são quase sempre de alvenaria, às vezes utilizando um tijolo de adobe, de aparência muito sólida e resistente, até com acabamento estético. É bem evidente a ação de políticas públicas na comunidade, certamente ligadas à condição quilombola, como se tornou regra nos governos do PT, tendo como exemplos as construções destinadas às atividades comunitárias (centro social, comércio, artesanato, oficinas laborais) além de prédios ligados a saneamento, educação e polícia. Dá para perceber que a atividade principal na comunidade hoje em dia é o turismo, não sendo perceptíveis áreas significativas de lavoura ou pecuária, que aliás nem tem cercas, seja ao longo da estrada ou nas cercanias da vila.
Mas este turismo quilombola carece de algumas considerações. Não há dúvidas que ele está bem estruturado. Logo na entrada da vila há um prédio, mais um produto das tais políticas públicas, destinado a receber visitantes, ou seja, turistas. Na verdade, o que funciona ali de fato é uma bilheteria (isso mesmo!), sem maior divulgação de informações sobre a história, a cultura e os aspectos étnicos ou fisiográficos da região. Isto posto, nos vemos diante de um verdadeiro rosário de custos inerentes à visita, sendo taxados não só o ingresso às cachoeiras, mas também o trabalho do guia (obrigatório…) e o transporte por veículo além da portaria. Em uma conta rasteira, deu para estimar que um bom dia de passeio ali não nos sairia, individualmente, por menos de 300 reais, sendo uma parte disso per capita. Sim, isso mesmo! Isso se não resolvermos consumir qualquer coisa no empório de produtos da terra que existe logo ali do lado, em mais um prédio construído seguramente com apoio financeiro de alguma política pública. Tudo muito correto, tem que ser assim mesmo, mas a política de preços que vigora em tal estabelecimento é, por assim dizer, assustadora. Os temperos, por exemplo, são acondicionados em pacotinhos minúsculos, menores do que uma caixa de fósforos, pelos quais se cobra várias vezes o que igual volume custaria em um supermercado normal. Isso vale para a totalidade dos produtos ali expostos, sejam cereais, cosméticos, especiarias, doces, artesanatos etc. Comprei ali, por exemplo, um doce de abóbora, estranhamente duro, verdadeiramente in-mastigável, além de caro pra xuxu. Enfim, creio que não basta ser artesanal, comunitário, popular, autêntico, quilombola, seja lá o que for. O importante é que não se pode descuidar da qualidade (e da tabela de preços) que tais produtos oferecem.
Encerrando este breve parágrafo de mau humor, declaro: como é possível um turismo feito por e em favor de pessoas pobres seja capaz de entregar produtos que são tão onerosos e, portanto, destinados apenas a pessoas e poder aquisitivo maior? E o que é pior, que não apresentem um mínimo cuidado com a questão da qualidade. Seria lógica ou pedagógica uma coisa assim? Resumo da ópera: assim como o próprio país em que vivemos, eu diria que também o turismo não é coisa para principiantes, sejam eles quem forem, quilombolas ou não.
Este é o verdadeiro Paradoxo Kalunga, que dá nome a este texto. Vamos adiante.
Aquelas montanhas continuaram a nos atrair. No último dia, fomos bisbilhotar o conjunto de serras ao norte de Cavalcante, bem junto de sua mancha urbana. A surpresa aqui foi maior ainda, pelo relevo caprichoso do lugar e pelas zonas cobertas pela densa mata do cerradão, que é dominante neste trecho. Já aqui uma marca da presença humana (e predadora): ao longo de muitos km a estrada é totalmente rodeada por propriedades cercadas, de pequena dimensão, algumas delas com construções que revelam claramente seu objetivo de lazer. Até aí, tudo bem, faz parte. Mas em certo momento, mesmo apesar das cercas e das construções, placas fincadas pelo poder público advertem aos eventuais compradores de tais terrenos que o parcelamento ali está irregular, por se tratarem de pedaços de terra de dimensões abaixo do permitido pela legislação. E daí? O fato concreto é que ali convivem, de forma pacífica, não somente tais avisos de advertência, como dezenas de terrenos devidamente cercados e construídos. Coisa meio esquizofrênica, por certo. Mais uma imagem de um país que os principiantes definitivamente não conseguem compreender.
Mas vamos em frente. Voltemos ao que a natureza nos oferece.
Depois dessa passagem dominada por cercas e placas de advertência (desobedecidas, por sinal), começamos a prestar especial atenção naquilo que deveria dominar nossos sentidos desde o começo da jornada: a Natureza, nossa Mãe – ela mesma! De repente nos vimos diante de uma segunda cadeia de montanhas, bem rente à primeira, porém mais desafiadora, na qual, subindo um pouco mais, nos vimos diante de um panorama, fabuloso, na direção do Sul e do poente: uma vasta extensão verde, a perder de vista no horizonte, alcançável após uma longa descida.
E que descida! A estrada, de terra batida, mas sempre de boa qualidade, agora serpenteia serra abaixo, entre porções de cerradão, veredas de buritis, arvoredos de porte e corguinhos sem conta. Neste momento nos demos conta que era desnecessário e até supérfluo querer voltar repetindo os caminhos pelos quais viemos. O negócio era seguir em frente, tendo como mirada a cidade de Colinas do Sul, no extremo oposto da Chapada dos Veadeiros, 100 km adiante de Cavalcante. Estávamos na face Nordeste e tal destino se localiza na face Oeste da Chapada, sem esquecer que a mesma tem um formato aproximadamente retangular, orientado no sentido Leste – Oeste. E por aí fomos, numa viagem lenta e segura (para que pressa em uma hora dessas?), aproveitando cada centímetro da paisagem, marcada pelo cerrado, pelas veredas de buritis e por sub cadeias ocasionais das já mencionadas montanhas. Na primeira parte deste trajeto não havia praticamente nada, além da natureza, do seu mato e de suas águas, nem mesmo arame farpado; na metade seguinte é que começaram a aparecer pastagens, plantações e construções humanas, mas nada muito agressivo, eu diria que até bem menos ofensivo à paisagem do que tenho visto em muitas das áreas agrícolas do país. Em certo momento atravessamos o icônico rio Preto, aquele que desce da Chapada em quedas retumbantes e que passa por ali, discretamente, na direção de seu destino final, a represa de Serra da Mesa, no rio Tocantins. E depois de duas horas e tanto de navegação tranquila e maravilhada, aportamos em Colinas do Sul, de onde seguimos para Alto Paraiso e Brasília. De agora para frente sempre no asfalto. E sempre em boas estradas.
Esta é a história que eu tinha para contar. Quem quiser que conte outra.
Mas antes de fechar a página, creio que posso traçar um roteiro de aprendizados e revelações, um possível decálogo, digamos assim, que esta viagem me possibilitou. Viagem que, como tantas outras possíveis hoje em dia em nosso país e em toda parte, mantém uma incômoda proximidade com uma mera visão utilitarista da cultura e da natureza (que precisa ser superada).
- Não persiga o óbvio, aquilo que é realmente interessante nem sempre está nos guias turísticos, no relato das pessoas e nem mesmo nos mapas, sendo preciso cometer a ousadia de saber procurar e assim, mesmo que não se ache nada, a simples procura pode ser a melhor diversão.
- Mantenha o olhar atento, aos detalhes, às placas do caminho, ao jeitão (e ao jeitinho) das pessoas, aos caminhos que parecem não levar a lugar nenhum, o que significa não ser necessário se colocar em riscos desmedidos, mas saber que curiosidade e ousadia não fazem mal a ninguém.
- Observe os costumes e as manifestações das pessoas reais; uma viagem realmente interessante não pode ser feita apenas com atrações naturais e artificiais e relatos remotos e atemporais, mas também com fatos imprevistos e inesperados, originados muitas vezes das grandezas e misérias da condição e da comunicação humana.
- Procure se informar antes (ou mesmo depois) sobre os aspectos históricos, geográficos e culturais dos lugares visitados; se você fizer isso previamente vai achar a viagem mais interessante, se deixar para depois vai usufruir não só de uma nova viagem, mas também da oportunidade e do aprendizado que, ao viajar de novo, estará mais atento – e lucrará com isso – em relação a certas coisas que vê e não compreende muito bem.
- Seja crítico sem ser ofensivo com as manifestações culturais e comportamentais dos indivíduos, que sempre trarão a você algum aprendizado, mesmo que seja no sentido de evitar se comportar da mesma forma, guardando para si mesmo suas eventuais considerações negativas.
- Desenvolva a capacidade de olhar para além das aparências imediatas, evitando repetir a cena de um ditado chinês confuciano, aquele que diz que enquanto o Sábio aponta as estrelas, o tolo vê apenas o dedo.
- Preste especial atenção na Mãe Natureza, não só para admirá-la como também para defendê-la – e não é necessário dizer mais nada.
- O melhor às vezes é o que não está programado, não se aflija quando alguma coisa fugir do roteiro que você imaginava, mas encare como uma oportunidade que a sorte lhe oferece.
- Ouça e leia o que outros já disseram sobre os lugares visitados e roteiros que percorreu, mas aproveitar a viagem, tirar dela entendimento e aprendizado, sentir o prazer das descobertas são coisas que só se pode executar sozinho; como disse Guimarães Rosa, a colheita é de todos, mas o capinar é sozinho.
- E muito cuidado com as certezas militantes; no caso dos Kalungas, não acredite que são gente abandonada pelo poder público, a realidade mostra que não é bem assim, mas o contrário disso, pois na verdade é uma gente que pratica estratégias próprias e até bem sucedidas de sobrevivência e compreensão do mundo e que, como todo ser humano, nasce equipado com suas próprias manhas defensivas, de saber levar vantagem e se dar bem frente às adversidades.
*** F I M ***
Imagens da viagem:












