As ruínas do Cine Academia

Quem não se lembra do Cine Academia? Ali era possível ver bons filmes, ouvir boa música ao vivo, tomar um café ou um drink honesto, encontrar pessoas. Como nada é perfeito, o proprietário era um conhecido trambiqueiro, devedor do fisco e da previdência e seu estabelecimento acabou sendo fechado para pagar dívidas com o Estado, mas mesmo assim deixou saudades em muita gente – o lugar, não seu dono. Edgar, frequentador assíduo do lugar, se sentiu em completa orfandade. Aquele lugar sempre lhe oferecera coisas apetecíveis, filmes, por exemplo, mas não somente isso, pois no quesito “pessoas” ali colheu também ótimas lembranças. Aquela, a qual a mente lhe trazia de volta agora, a mais especial de todas.

Uma noite, um punhado de anos antes de agora, ele ali esteve para pegar um cineminha e, quem sabe, ouvir um bom jazz. Na melhor das hipóteses, encontrar algum amigo, ou, melhor ainda… Esta parte ele levava em segredo, mas o fato é que o estado de solteiro, que ele apresentava naquele momento, assumido prazerosamente, aliás, porém sempre com abertura, quem sabe, para desistir disso também com inegável e renovada satisfação.

E foi assim que comprou seu ingresso, pediu um espresso na cafeteria e como não havia jazz naquela noite, aproveitou para dar uma bicada nos livros da pequena livraria que então existia anexa ao cinema, aproveitando a meia hora de que dispunha antes do começo da sessão. Estava alia folhear livros a esmo, sem se fixar em nenhum, quando lhe apareceu alguém, que em um primeiro momento teve a impressão de já conhecer de algum lugar. Ela já chegou e perguntou, sem maiores preâmbulos, apontando-lhe o exemplar que ele naquele momento folheava distraído: você já leu?

Não. Não tinha lido, apenas matava o tempo ali folheando alguma coisa. Aliás, já fora o tempo em que poderia ser considerado um bom leitor ou, pelo menos, razoável. Mas uma pergunta como aquela não deixava de ser ótima deixa para prosseguir a conversa ou até quem sabe cumprir a parte menos confessável de suas intenções para a noite: encontrar alguém de fato interessante. E não é que parecia ser o caso? Ela era de fato uma desconhecida, aquela mulher de uns cinquenta anos, bonitona, bem vestida, perfumada e parecendo comunicativa, aspecto este que logo se confirmou, aliás.

Edgar e a desconhecida, que logo se apresentou como Antonieta, pegaram de imediato, sem muito esforço, uma conversa animada sobre literatura, sobre livros lidos e por-ler. Edgar ficou bem impressionado com o vasto leque de referências que ela tinha, em termos de leituras, mas amplas do que as dele, que se sentia apenas um ex-leitor, diga-se de passagem. Ela lhe ouvia com atenção e a recíproca era totalmente verificada.

Ato contínuo, ela lhe perguntou que filme ele iria ver, porque ela estava ali pelo mesmo motivo principal do que ele.  Edgar teve um momento de prazeroso suspense: – quem sabe seria o mesmo filme dela? Para decepção de Edgar – ou talvez de ambos – eram filmes diferentes. Aquele que ela iria ver, aliás, ele já tinha visto. Sobre o filme dele, que Antonieta não tinha visto, entretanto ficou curiosa em saber maiores detalhes, dando oportunidade a Edgar caprichar em tal narrativa, que resultou bem sucedida.  

Veio o passo seguinte, dado por ela, que encantou de forma especial a Edgar: – espere que vou tentar trocar meu ingresso para ver este filme que você vai ver também. Assim, em poucos minutos estavam sentados lado a lado, no escurinho, sem que ele e ela soubessem de maiores informações, um do outro. Mas sem dúvida era agradável tal conluio inesperado e havia naquilo, com certeza, muita reciprocidade, ambos já percebiam, de tal maneira que deixaram rolar aquela insólita proximidade, sem perder a oportunidade de comentar passagens da fita com os rostos quase colados, em sussurros, para não perturbar os demais espectadores, prenunciando boa química interpessoal, embora naquele momento não passasse de um vínculo sem ligações atômicas ou moleculares, mais no plano das cargas simbólicas do que nas cargas elétricas.

No final da sessão, cumpriu-se um ritual previsível. Edgar cumpriu seu atributo social de homem: que tal se fôssemos beber algo e conversar mais sobre o filme? O filme era apenas uma comédia água com açúcar, não havia muito a discutir sobre seu enredo, tão pobre. Mas também não era só isso, claro, a ligação química evoluía, e procurava novos pontos de contato em suas orbitais e valências. Havia algo mais que os interessava já naquele momento. E assim, depois de alguma procura, porque já era noite avançada de domingo e havia pouco estabelecimentos disponíveis nas proximidades do cinema, acharam um recém-inaugurado café, mas já com as portas a meio-pau, onde, naquele momento, eram os únicos e derradeiros fregueses e por ali foram ficando até que que o único garçom remanescente deu por encerrado o expediente e não restou outra alternativa para Edgar e Antonieta senão se despacharem para casa. Cada um na sua, claro.

Na despedida, com singelos beijinhos recíprocos nas bochechas, não faltou decisão, claro, para que novo encontro foi marcado, em breves dias, de forma totalmente recíproca. E afinal não haveria, absolutamente, alternativa diferente para os dois recém conhecidos, porém já se sentindo tão próximos.

Daí ao enamoramento, ao primeiro beijo, às carícias ainda tímidas, mas promissoras, foi um passo bem curto. No final da primeira semana já estavam quase íntimos, ao ponto de combinarem um encontro na grande livraria cult cidade, com aquisição, de parte a parte, de profusão de livros e CD, o que parece ter selado, simbolicamente pelo menos, um novo estatuto entre eles. E só havia certeza e felicidade naquilo tudo.

Viver momentos tão felizes, logo viram, era apenas uma parte de um todo, que a cada dia se mostrava mais promissor. Eram, ambos, criaturas um tanto desgastadas por relacionamentos mal escolhidos e malsucedidos e aquele encontro parecia trazer a eles, realmente, as chaves do paraíso.

Nas semanas seguintes Edgar pode conhecer de forma mais completa, a profissional afamada, a empreendedora social, a mulher de espírito indomável, a criadora de um método de trabalho, a líder carismática, a cidadã honorária, um título que parecera a Edgar muito justificado e isento de cargas politiqueiras. Respeitadíssima em todos os ambientes que passaram a frequentar juntos, onde ele era apresentado sem maiores rodeios como companheiro e até com palavras mais intensas, com todo carinho e profunda sensação de certezas, de parte a parte.

Logo ele se viu incluído no círculo das amizades dela, que não eram poucas. Em almoços semanais na casa de Antonieta, reservado às pessoas com quem realmente privava intimidade, ele logo foi incorporado, com importantes companhias, inclusive do ex-marido, sujeito notável, que logo se tornou seu amigo. O que mais Edgar, que se sentia tão batido pelas injunções da vida, poderia querer?

Eram certezas, sobre certezas e mais certezas…

E foi ainda com uma frase como aquela a ecoar na mente – o que mais poderia querer? – que Edgar percebeu que seus sonhos não tinham apenas contornos rosados. Aos poucos teve que admitir que fazer parte do cortejo daquela deusa era coisa para fiéis iniciados. E ele se sentia um tanto gentio, ou profano, pouco afeito a rituais laudatórios em torno de qualquer pessoa de carne e osso – e mesmo em altares. Começou a perceber que aquela verdadeira divindade que estava a seu lado não tinha apenas amigos, mas sim seguidores, fiéis, escudeiros. Mais de uma vez a cobrança dela lhe chegava, um tanto taxativa, de que ele não estaria demonstrando de forma suficiente e crível o culto a sua divindade, como um ícone e um símbolo forte e significativo.

A convivência dos dois amantes, tão suave e rósea, a princípio, viu-se assim gradualmente corroída por uma espécie de pátina, sutil, porém progressiva. Era necessário agir com calma e cautela, Edgar logo percebeu. Contornaram-se as dificuldades uma primeira vez, depois mais uma e outra mais.

E assim o tempo foi passando. Com quase um ano de relacionamento, Edgar começou a sentir que Antonieta padecia de uma enorme dificuldade em suportar discordâncias. Tentou abordar tal questão com ela, que lhe disse apenas que ele estava enganado, que pelo contrário ela sempre lidara com isso, seja na família, na faculdade, no trabalho. Edgar via que não era bem assim, muito pelo contrário, o que havia era um renitente conflito quando ele discordava das opiniões dela, principalmente diante de um ponto sensível, a espiritualidade, que no caso dela se situava à flor da pele, enquanto ele era mais cético e comedido quanto a isso. Em busca de alguma explicação, de si para si mesmo, imaginou que havia nela um passado de glórias, fosse na família, como filha mais velha, sempre exemplar para os irmãos e aluna dedicada e bem sucedida; ou no trabalho, profissional competente e portadora de inquestionável liderança que ela era. Isso, imaginou ele, certamente lhe teria impregnado o espírito de tal forma a gerar certa presunção de certeza e de competência, que lhe fazia ver nas discordâncias dos demais acontecimentos quase absurdos e até ofensivos. Coisa assim: como seria possível que ela estivesse de alguma forma equivocada em relação a qualquer assunto, fosse de natureza profissional ou não?

Viu-se Edgar, malgrado seu, imerso em um mar de melindres, de reações fortes, da necessidade crescente de se justificar perante Antonieta e aceitar as tais discussões da relação cada vez mais frequentes e longas, sem desfecho imediato, deixando vagas de mal-estar que às vezes duravam horas ou dias. Isso apenas para ela, porque na mente simplória de Edgar não seria necessário mais do que quinze minutos de boa conversa para deixar tudo em pratos limpos.

É claro que não era nada tão simples assim. Aquelas certezas de antes já não eram as mesmas. Havia nuvens escuras, muitos enganos, no horizonte. E como!

E assim se deu uma primeira separação do casal, quando ela frontalmente lhe disse que não se sentia confortável com uma suposta maneira distante e pouco atenciosa como ele vinha lhe tratando. Embora admitisse alguns problemas recentes, que ele considerava de pequena monta, Edgar não quis absorver a crítica, pois para ele estava tudo bem ou, pelo menos, perfeitamente resolvível mediante entendimentos diretos, embora certamente distantes daqueles intermináveis colóquios que Antonieta apreciava e valorizava. 

Em certos momentos Edgar, que tinha algum estofo literário, lembrar-se-ia dos versos de Camões, que um dia recitou para ela: – mais serviria, se não fora para tão longo amor tão curta a vida, substituindo serviria por tentaria.

Não foi o bastante, as ideias de separação triunfaram. Da primeira feita por logo período, de anos, se mantiveram separados, tendo ela inclusive se relacionado, de forma conjugal, com outra pessoa, até se enviuvar.

Edgar, que ainda gostava de Antonieta, esperou decorrer o que lhe parecia ser prazo adequado de luto. E voltou a abordá-la: – que tal se déssemos uma nova chance para nós dois?

Foi assim foi mais uma vez, entre outras recaídas. Em certa ocasião Antonieta chegou a trazer a Edgar um verdadeiro dossiê escrito e detalhado, relativo aos problemas que via no relacionamento deles, fazendo isso de forma terminativa. Edgar achou aquilo exagerado e desnecessário, ponderando, entretanto, que se dispunha a refletir e tentar melhorar seu desempenho amoroso com ela. Pediu-lhe, então, que ela desse mais uma chance a ele. Mas a verdade é que a validade disso durava cada vez menos tempo, porque em Antonieta a escalada de necessidades e desejos de atenção era crescente, ao ponto de Edgar se sentir incapaz, perdendo mesmo a espontaneidade de se conduzir perante em tal oceano de demandas, que no entendimento dele afogava sua capacidade de entendimento e resposta.

Separaram-se e juntaram-se de novo, mais uma vez e outra. O argumento da nova chance ficava cada vez mais menos credível.

Até que sobreveio a crise derradeira, como um tsunami, que detonou para sempre o edifício amoroso que julgaram ter construído. Viajaram juntos, numa sonhada e planejada viagem de trem. Logo no terceiro dia Antonieta, que amanhecera bem e estava feliz com tudo, de repente, ao longo de poucos minutos, a partir de nada, mostrou-se profundamente transfigurada, queixando-se de mal estar difuso, sem maiores especificações, ameaçando inclusive interromper a viagem na próxima parada do trem para voltar para casa. Ele, mais assustado do que contrafeito, por mais que a inquirisse, não conseguia compreender a origem daquilo e nem encontrar alguma maneira de ajudá-la, com ela agora afundada na poltrona do trem, a gemer e se contorcer como a morte lhe estivesse próxima. Como ela acreditasse em “seres da luz”, entidades e forças sobrenaturais – ele não, sendo este um dos motivos principais de suas divergências – Edgar chegou a pensar que Antonieta estivesse sugestionada por alguma dessas crenças, ou quem sabe, pior ainda, enfeitiçada, envenenada, alguma coisa assim. O fato é que ele não conseguia encontrar explicações racionais ou razoáveis para aquilo, nem maneiras de ajudá-la, imaginando, ao mesmo tempo, que ela como médica talvez encontrasse sabedoria suficiente para superar aquela estranha crise, o que não aconteceu, a não ser após algumas horas, com muita tensão e desgaste para os dois.

Em certo momento, já tendo pedido socorro a uma brigadista que viajava no trem e que tinha disponível um aparelho de pressão, mas sem saber o que mais poderia fazer para ajudar, Edgar pediu a ela que pelo menos tentasse se controlar, para salvar o espírito da viagem, porque aquele mal-estar certamente cederia e ela teria alívio depois de algum tempo. Para desespero dele, isso desencadeou em Antonieta uma escalada de silencioso mau humor, dentro de seu costume de ver, nas discordâncias dos outros, uma ofensa a suas certezas. Assim estremecidos, apearam na cidade de destino, foram direto para o hotel, sem trocar palavras. Em seguida, ela conseguiu marcar vaga uma consulta com um cardiologista da cidade, acompanhada por Edgar, na qual todos os exames se revelaram normais, configurando, segundo o médico, um quadro de somatização.

Edgar não sabia o que fazer. Tinha pedido desculpas, ela não aceitou. Tentando inquiri-la sobre os sintomas, só obteve respostas vagas. Encorajou-a a tomar uma atitude e viu o mundo desabar sobre si. Quando o terremoto amainou, tentou retomar com ela uma conversa civilizada: recebeu apenas o silêncio ou respostas lacônicas.

A viagem não foi a mesma daí em diante. Melhor dizendo, se encerrou simbolicamente ali, sem qualquer possiblidade de entendimento entre os dois e nem mesmo mediante os reiterados pedidos de perdão por parte de Edgar, que Antonieta se negou peremptoriamente a conceder. Não havia clima também para conversarem sobre o problema. Na saída do hotel, contrariando um hábito estabelecido entre eles, que se revezavam na cobertura de despesas comuns, ela pagou sua despesa de forma isolada, sendo ele surpreendido, ao tentar pagar a conta inteira, com informação, pelo moço da portaria, que a parte dela já havia sido quitada. 

Não foi o bastante. No dia seguinte, sem se abrir ao diálogo, Antonieta pegou um avião, em passagem comprada diretamente no balcão da companhia, embora tivesse retorno pago e garantido na data original para três ou quatro dias depois, correndo de volta à casa e assim abandonando Edgar sem que a viagem sonhada tivesse sido sequer iniciada. Ele se sentiu revoltado com a insensibilidade dela, mas principalmente entristecido. Somente voltou para sua casa no dia previamente estipulado, obrigado a ficar por mais três ou quatro dias naquele lugar que não era o seu, frustrado pela interrupção da tão sonhada jornada a dois.

Passados alguns dias, sem outros contatos com Antonieta, Edgar propôs a ela, por mensagem, um encontro pessoal, uma conversa sincera, que pudesse fazer justiça à vida em comum que eles tiveram, segundo ele, nem que fosse para dar a ela um término digno. Ele sabia, de antemão, que tal conversa teria Antonieta a se colocar como vítima, mas resolveu correr o risco mesmo assim. Ele esperava, realmente, que ela ou lhe concedesse um perdão explícito ou, pelo menos, tivesse mais generosidade e abertura na compreensão dos fatos. Tudo em vão, todavia.

Tudo o que passava na cabeça de Edgar eram cenários sombrios. No mais provável, ela insistiria em realizar aquelas intermináveis DR que tanto apreciava, na qual ela atacaria, sem maior consideração, a suposta falta de sintonia espiritual entre os dois, além da falta de compreensão dele às complexidades dela. Certamente entrariam em cena os questionamentos de Edgar ao modo ingênuocom que ela percebia o mundo e a própria espiritualidade, além da crítica feroz ao que ela denominava de materialismo dele, desqualificado como atributo moral e não como princípio filosófico. Acima de tudo, Edgar percebia que os acontecimentos dos dias anteriores tinham sido tratados por ela como erros inafiançáveis e não como escorregões humanos, demasiadamente humanos.

Edgar começou a admitir que talvez o melhor para eles seria que seguissem caminhos separados, junto com as lembranças boas ou más que pudessem carregar. Ele não queria mais viver submetido àquela verdadeira Espada de Dâmocles, prestes a lhe desabar sobre o pescoço. De maneira um tanto rude comparou as atitudes dela às do escorpião que ferroa o sapo que lhe dá carona para a travessia do rio, como um gesto próprio à sua natureza. Mas acima de tudo, deixou claro para ela que tinha certeza de serem positivas as lembranças dos anos que passaram juntos, que considerava parte especialmente boa de sua vida, embora lamentasse que para ela parecesse ter sido bem o inverso.

Dar uma chance aos dois? A frase que um dia lhes abriu um caminho luminoso tinha perdido totalmente o sentido.

Quando Edgar finalmente se deu conta do desastre, do buraco que se abriu em sua vida, do tamanho da destruição que acabara de envolvê-lo e para o qual, em parte, também dera sua contribuição, lembrou-se de um antigo poema de Vinicius de Moraes: de repente, não mais que de repente, fez-se de triste o que se fez amante e de sozinho o que se fez contente; fez-se da vida uma aventura errante, ao qual mais tarde acrescentou, por conta própria: e da alegria uma dor cortante.

Nos dias e noites frios e vazios que se seguiram, Edgar tentou, mas não conseguiu ir além de perguntas feitas ao vento, todas sem resposta. O que acontecera com eles afinal? Onde e como teria ocorrido seu erro? O erro, se ocorreu de fato, seria realmente dele mesmo? Como explicar que uma pessoa, que até a véspera era a personificação do amor com ele e por ele, se transmutara daquela forma? Por que não conseguia penetrar na lógica e na essência dos desejos e dos atos dela? Pedir perdão não seria o bastante? Seria realmente da natureza de Antonieta, agir como um escorpião, fazendo algo tão radical e ofensivo? A história deles justificaria atitudes como aquela? Perdoar não seria o remédio melhor e necessário para quem, até a véspera, ela dizia amar? Haveria algo na história deles, como um ovo de serpente em gestação, que ele, ingênuo, fora incapaz de detectar? Para ambos, que vinham de relações desgastantes, não haveria modo de fazer com que as parcerias amorosas fossem mais bem sucedidas? Valeria a pena insistir em outras procuras? A vida das pessoas se comporia, de forma obrigatória, dentro de um sistema de erros, tal qual ele experimentara várias vezes e agora mais uma?

Na sua eterna mania de recorrer à poesia, Edgar se lembrou de um verso de Drummond: os dias consumidos em tal lavra significam o mesmo que estar morto. Uma associação de consunção e morte, um desejo de morte ou de dor, era bem isso o que ele sentia.

Mas ele estava vivo, e a vida prosseguia, para todo mundo. Um dia Edgar foi levar um amigo a um hotel próximo ao famoso Cine Academia, que não existia mais, assim como toda aquela área nobre que o rodeava, um dia nomeada como Academia de Tênis. Ali ele viu tudo tomado por um matagal invencível, no qual os pés de mamona, capim de elefante e leucenas já formavam uma espessa floresta. Aqueles prédios, antigamente harmônicos e sólidos, haviam se transformado em ruínas verdadeiras. No conjunto que abrigava os cinemas o que restava era total destruição, como em cidades bombardeadas na Ucrânia ou nos restos de uma Chernobyl. O teto do prédio, que um dia havia abarcado a exibição de filmes, audições musicais, cafés, livrarias, uma alegre multidão de amantes do jazz, cinéfilos e leitores e até mesmo uma ou mais cenas românticas de enamoramento, estava agora parcialmente desabado. Tal visão de um mundo em ruínas traduziu, para um compungido Edgar, o roteiro daquela história na qual ele teve um papel marcante, iniciada bem ali – e que perdurou até se arruinar também. 

Aos leitores caberia indagar, à maneira flaubertiana, todavia sem garantia de resposta: mon cher auteur, est ce que Edgar n’est pas que toi même?

C’est fini.

Um comentário sobre “As ruínas do Cine Academia

  1. Conto digno de alguém da linhagem de Drummond!
    …pode-se dizer que, felizmente (a depender por qual ângulo se olha) veio a história com a (belíssima [idem]) história com a Letícia?!

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