Outras histórias

TÍTULOENREDO
ContinuaçãoFantasia sobre um conto de Guimarães Rosa, no livro Tutameia: “João Porém, o criador de perus”: um roceirinho, doente, à beira da morte vê o Amor lhe chegar.
Eu sou assimUm garoto, portador de doença genética rara reflete sobre vida, música e amizade.
Boi de carroReflexões sombrias de um velho clínico do interior, incapaz de se adaptar às mudanças da sociedade e da profissão.
O barbeiro ValdemarUm falso paciente psiquiátrico e suas peripécias, como testemunhado por um estudante de medicina.
Conversa de botequimUm velho de mais de noventa anos entrega a seus companheiros de boemia lições de vida, aprendidas de um mestre.
Amarcord de saboresUm diabético, embora internado por inadimplência dietética, não deixa de sonhar com as boas comidas de sua infância de sua família.
O apocalipse, segundo JBUm rapaz pobre, acometido por distúrbio paranoide, vê o mundo desabar em torno de si, ameaçando-o.

Continuação

(Fantasia sobre o conto “João Porém, o criador de perus”, de Joao Guimarães Rosa (in Tutaméia))

Não, Lindalice era a outra. Eu sou Gerismina. 

Foi assim: João vivia para seus perus. Mangavam dele os amigos, dizendo que havia, nas redondezas, uma moça loura que o olhava e queria conhecer, Lindalice. Esta, de verdade, não existia. Mas João, dito Porém, que só sabia de perus, milho e terreiro, transtornava-se. Queria porque queria. Os amigos, maldosos, não lhe diziam a verdade. Pelo contrário, traziam recados, propunham respostas, ofereciam para escrever cartas de amor. João deu de gastar, perfumes, terno de brim, botinas – coisas que nunca tinha usado na vida. E queria tertúlias com a amada que não via – e nem podia ver. 

Os amigos, apoiavam. Marcaram encontro, para dizer, à última hora, que Lindalice, adoecida, tivera que viajar para a cidade, atrás de doutor.

João penava, queria saber quando, e se, e onde. Descuidava da criação. Uma ninhada inteira de peruzinhos, solta no terreiro em altas horas, por puro descuido do dono, sumira, atacada por algum bicho da noite. O milho para as aves, antes negociado escrupulosamente com vizinhos, já mal se via nos improvisados cochos espalhados pelo terreiro. Os perus davam de invadir os quintais dos outros, onde se fartavam das abóboras ainda não colhidas ou maduradas. João Porém, na porta da venda provava de bebidas que até então desconhecia. E não poucas vezes foi visto cambalear pelas ruas da corrutela. 

Um dia, jogou pedras na janela da casa das professoras, julgando estar sua amada ali escondida. O cabo meteu-o no xadrez, o sujo banheiro da delegacia do vilarejo. Dalí, humilhado, foi solto ao romper do dia. Na rua, chusma de garotos gritava “João Porém, João Pooorém…” Ele, atormentado, ainda pálido e amarrotado pela carraspana, mais zarolho que nunca, corria atrás. E o escárnio se recolhia, para reaparecer adiante, atrás do muro da Igreja, de dentro das salas da Escola. 

Foi aí que vieram os amigos me buscar. Que eu fosse e passasse por ser aquela Lindalice de troça, mesmo sendo Gerismina. Que Porém não me conhecia e tinha, da outra, apenas imaginada, a visão de loura cabeleira, em tranças composta. Eu, bem sarará e de bexigas, além do mais ganhando a vida do jeito que todo mundo no arraial sabia, nunca que ia enganar ninguém, mesmo um peruzeiro caolho que nem João. E eles insistiam, propondo até me pagar, que eu aceitei, por que não? Sou pobre e honesta, mas um qualquer dinheirinho que entra faz bem, não é?  

Então fui. Era de tardinha e João, sentado num toco à porta de casa, olhava para o chão. Em volta, a peruzada ciscava e gorgolejava. Mesmo dentro da cafua era uma barafunda de penas e titica. Parei ali e fiquei olhando o pobre. Ele de repente me viu, o sol me pegando por detrás. A cara triste e amarela, de repente se iluminou. Ficou de pé e me olhava, olhava. No princípio, achei que não era comigo aquilo, mas logo percebi que era um olho apenas. O outro, me fitava sério, úmido, amoroso, como o de um cachorrinho no pé do dono. João me estendeu a mão, grossa, suada, fria. Me puxou para dentro de casa. Fez café, ofereceu cadeira. Pediu licença pra fumar, me ofereceu o pito. Quase não falava, só olhava com o olho são, o outro revirava a conferir o mundo em volta. 

João, num fio de voz, disse: “a gente ficamos aqui, de romances…”. Já escurecia. Um daqueles perus, ali perto, gluglulejou e João nem acabou o que ia dizendo. Minha suava junto com a dele. Daí, ele encostou a cabeça no meu ombro e uma peninha de peru me fez cócegas no nariz. Fiz força para não espirrar. Gostava daquilo. Assim vimos o dia nascer…

Semana passada ele se foi. Finou. Deu de inchar, ficou mais amarelo que o costume. O doutor, na cidade dizem, tirou dez litros de água da barriga dele. Voltou para ser enterrado, numa rede encharcada. A saudade aperta, mas não chega a maltratar de verdade quem tem ofício de herança. João Porém quis que eu continuasse sua lida, e eu me entendo com ele por meio de todos esses perus, aqui em roda, precisando de mim. Carecia dar essa ajuda a ele.

 ***

Eu sou assim… 

Quem quiser gostar de mim, eu sou assim. Ouvi isso no radio outro dia. Gostei. Parece comigo. Aliás, sempre gostei de música, queria até ter aprendido quando criança, mas minha família morava longe de tudo e minha mãe não tinha e acho que ainda não tem dinheiro para pagar um professor para me ensinar. Quando pego a batucar nas carteiras da escola, nas panelas lá de casa, ou em qualquer lata velha, ninguém me segura. Quando acho em algum canto algum objeto que eu considere musical, como um balde, caixotes, garrafas e até um penico, como aconteceu outro dia, não resisto em testar para ver o som que tem. 

Antes que me esqueça, meu nome é William, com dois “l”, coisa da minha mãe, diz ela que é nome inglês. Um dia descobri que este nome tem tudo a ver comigo, mas só depois vou contar. É surpresa.

A escola? Gosto de ir lá, mas acho que já aprendi tudo que podia, sou muito distraído. As tias gostam de mim, mas vejo que elas me tratam de forma diferente dos outros alunos. Ficam me paparicando e às vezes me cuidam como se eu fosse uma criancinha. E eu já tenho 15 anos! Mas já aprendi a ler e escrever, de um jeito que até acho que dá para o gasto. Fiquei bamba em fazer bilhetes e historinhas engraçadas, que boto para circular na classe, fazendo a turma morrer de rir. Sei escrever até bem, eu acho, mas ainda não aprendi a diferença entre sessão, seção, cessão e mais outra palavra parecida, que agora eu esqueci, mas me disseram que é difícil mesmo, pouca gente sabe. 

Será que não dá para levar a vida normal assim do jeito que eu sou? Acho que dá, normal mesmo.

Pois é, eu sou assim. Assim, como? Sei lá, não sei explicar direito. Mas quando vejo os outros garotos – e isso eu sei desde criança – vejo que eles são diferentes de mim. Ou eu é que sou diferente deles, quem sabe. Eles têm outras brincadeiras, sempre entre eles mesmos, parece que não gostam muito dos adultos, a não ser para pedir dinheiro. Eu sou o contrário, me sinto melhor perto de minha mãe, dos meus tios e das amigas dela, tudo adulto. Não falo de meu pai porque pouco sei dele. Ele vem me ver de vez em quando e quase não conversa comigo. Acho ele estranho. Eu nunca peço dinheiro para ele e nem para ninguém, a não ser para minha mãe, e mesmo assim é pouco. Vejo que minha mãe gosta disso, pois sempre me elogia.

Mas é realmente com os adultos que me dou melhor. Eles também me tratam bem, ao contrário das pessoas da minha idade que vivem fazendo troça com a minha cara e inventam para mim um tanto de brincadeiras sem graça. Contam umas piadinhas sobre meu jeito de andar, sobre meu rosto, meu nariz, minhas orelhas, sobre as coisas que eu digo, não sei que graça acham nisso. Mesmo quando curtem os bilhetinhos que eu fico passando nas aulas, desconfio que alguns ficam fazendo zoeira com a minha letra e as coisas que escrevo. Acho que não é porque gostam, de mim ou dos bilhetes, é apenas para zoar de mim. Eles são assim. Malvados.

Outro dia um desses garotos me perguntou se eu já nasci desse jeito. Não entendi a pergunta e ele só riu e me deu as costas. Deve ser da minha cara que ele falava. Quando me olho no espelho, pra falar a verdade, também me acho meio estranho. Se não, com quase 15 anos, minha cara parece ainda como a de uma criança. Sei lá como explicar: uma cara pequena para o tamanho de minha cabeça, com uns dentes meio tortos, nariz levantado pra cima, meio zarolho. Um desses chatos da escola me disse outro dia que meu nariz parece estar sempre cheirando pum. Sei lá o que é isso.

Sou pequeno também, aliás, o menor de toda a turma. Com a idade que tenho, só agora estou chegando a um metro e meio. Mamãe diz que eu ainda vou crescer. Mas não acredito. Ela é quase alta, meu pai também. Quando pergunto para ela quanto ela mede, nem me responde, apenas me pergunta por que isso me preocupa. Pois é, me preocupa mesmo. Parece que vou ficar pequenino o resto da vida. Mas eu queria ser grande, para ver se pelo menos os garotos da escola me respeitavam mais. 

Tenho amigos, sim. Poucos, mas muito legais. Como já falei, prefiro ter adultos por perto, mas tem a Aninha, que é da minha sala na escola, que faz parte, como eu, da turma dos diferentes. Ela é baixinha que nem eu, meio gordinha, tem os olhos puxados. Botaram o apelido nela de Japa, Japinha, coisa daqueles que também me perseguem. Mas ela não liga. Está sempre sorrindo pra todos, é boa para fazer amizades, não é como eu que às vezes fico zangado, principalmente quando abusam. Gosto de conversar com ela, embora não entenda muito bem o que ela diz, com sua língua presa. Sempre passamos o recreio juntos, dividimos nosso lanchinho e eu fico no lucro, porque o dela é sempre melhor que o meu. Quase todo dia tem presunto, requeijão, morangos. Bom demais. Ela está sempre de boa, mas se irrita quando acham que é sua avó, e não sua mãe, que vem trazê-la todo dia na escola. Bobagem se incomodar com isso, eu digo para ela, mas ela sempre fica nervosa e triste. 

Não é que eu não goste de crianças e adolescentes como eu. O problema, eu já disse, é que me tratam mal, fazem piadinhas comigo. Menos esta Aninha, claro. Os adultos me tratam melhor, bem melhor. Desde que me entendo por gente é assim. Minhas tias e primas mais velhas, e os amigos e amigas de minha mãe, sempre me rodearam, pedindo para contar alguma de minhas histórias, tirar um som em algum pandeiro ou tamborim. Gosto muito de música e decoro rápido as melodias, mesmo aquelas que têm uma letra enorme, Faroeste Caboclo, por exemplo. Sou fã de Renato Russo, quando vejo as fotos dele acho que até pareço um pouco com ele. Pena que já morreu. 

As pessoas amigas sempre me pedem também para fazer caras engraçadas e imitações, de gente, de bichos, de personagens da televisão. Eles se divertem e eu também. Uma tia minha falou que eu até podia ser ator. Quem sabe?

Outra facilidade que eu tenho é encontrar rimas para as palavras. Qualquer uma. É só a pessoa me dizer que eu acho logo, às vezes até umas coisas meio malucas. Outro dia minha prima pediu que eu encontrasse uma rima para Tijuca, para onde ela ia viajar, e eu falei açúcar. No começo riram, mas depois acharam que tinha tudo a ver. Para romântico encontrei atlântico, mas fiquei com inveja de Caetano Veloso quando vi que ele rimou esta mesma palavra com anti-com (putador). Isso é que é saber fazer rimas! Mas eu chego lá! 

Acho que sou assim desde menininho. Essa coisa de chegar nas rodas de adultos e logo ir puxando conversa e fazendo graça é comigo mesmo; às vezes acho que já nasci assim. Quando conto certas histórias para minha mãe, ela às vezes diz que não é possível eu me lembrar de coisas que aconteceram quando eu tinha menos de três anos de idade, mas eu sei que é verdade, apenas me lembro, não sei como, mas me lembro. Talvez isso venha de eu pedir muito a minha mãe para falar de coisas de quando eu era criancinha. Ela sempre me atende. Diz que eu custei pra andar, pra falar, parar de fazer xixi na cama e nas roupas. Com sete ou oito anos sempre acordava molhado, mas depois melhorei. Falava tudo errado até esta época e acho que ainda falo algumas coisas esquisitas até hoje, trocando as letras de lugar, mas às vezes faço isso de propósito, para me divertir e aos outros. E assim saem coisas como Bezolironte, paraxodo, embaixanha da espada, paulo de são folha, otondologia, esfizocrênico, merexica, acatadão e outras mais. E todo mundo morre de rir. Eu me divirto com isso.     

Só nunca consegui aprender a andar de bicicleta… Ah, e detesto barulhos também. Lá em casa já pedi à mamãe para vender ou dar para os outros aquele liquidificador velho que temos. Aspirador de pó – Deus me livre – nem pensar! A furadeira de meu vizinho de apartamento, que ele liga todo dia, nem sei para que, faz uma zoeira danada e também me incomoda muito.

Acho que sou muito curioso. Há tempos que tenho o maior gosto pela meteorologia. Minha mãe diz que desde pequeno eu era ligado na previsão do tempo, quando via aquela moça na TV falando sobre isso. E até me arriscava a fazer as minhas previsões também, sempre usando o palavreado que ouvia na TV, tipo amanhã chuvas esparsas formação de nuvens temperatura estável ciclone tropical inversão térmica El Niño – essas coisas que eles sempre falam. Dona Sônia, minha professora de Estudos Sociais conseguiu uma visita para mim no Centro de Previsão do Tempo aqui da cidade e já fiz boas amizades ali. Tem um cara lá, o Elisio, que é gente boa demais, que me disse ter nascido para meteorologista, pois o seu nome é um nome de vento. Ele me dá a maior atenção e às vezes me manda mensagens falando sobre mudanças do tempo que estão para acontecer e até me perguntando minha opinião sobre isso. Ele é muito legal, ficamos amigos de verdade!

É isso aí: vou à internet todo dia para saber se vai chover, qual é a velocidade do vento, a umidade do ar, onde está seco ou úmido, o movimento das massas de ar, máximas e mínimas. Acho sensacionais aqueles mapas do Brasil e do mundo com as massas coloridas de ar e de nuvens se movimentando pra lá e pra cá. Se um dia eu for fazer faculdade vai ser para meteorologista, não para o teatro, que para mim é só brincadeira. Mas meteorologia, que para farrear eu chamo de merateologia é uma coisa bacana. Eu até acho que tenho uma intuição para isso. Às vezes acho que vai chover e acontece de verdade. E eu, por via das dúvidas, nessas ocasiões sempre carrego um guarda-chuva comigo.  

Falar em guarda-chuva, outro dia eu estava com o meu no banco da praça aqui perto de casa e uma mulher puxou conversa comigo. Era uma moça, da idade das minhas primas, não uma mulher mais velha. Queria saber por que eu estava de guarda-chuva se fazia sol. Minha mãe sempre fala para eu não conversar com estranhos, mas ela tinha a cara tão boa e um jeito sorridente e tão camarada que resolvi bater um papo com ela. Expliquei o porquê do guarda-chuva e ela parece que gostou da minha explicação, tanto que danou de me fazer perguntas. Quis saber da minha família, da escola, dos meus amigos, se eu tinha irmãos, do que eu gostava e não gostava. Falamos de música, de batucada, de previsão do tempo, de minha amiga Aninha, dos chatos dos meus colegas e outras coisas da minha vida. Ela me falou que era psicóloga – psilócoga, eu logo brinquei com ela, que riu muito – e me disse que estudava pessoas assim diferentes que nem eu. Ela não usou esta palavra, mas sim outra, que não me lembro mais, mas que no fundo queria dizer a mesma coisa. Me falou que era muito interessada neste assunto porque ela também se sentia uma pessoa diferente – e logo me mostrou suas mãos com seis dedos em cada uma. Já gostei dela de cara, ainda mais depois de ver tal curiosidade. Perguntou se podíamos encontrar mais vezes e que, se fosse o caso, ela iria falar com minha mãe também, para tranquilizá-la. Falei que sim, eu estava adorando aquilo. 

Falando sério, depois dessa conversa com Anamaria, que é o nome dela, acho até que tenho facilidade de me entender com pessoas com este nome, é que resolvi escrever essas coisas aqui. Ela me fez achar que isso tem importância, pelo menos me ouviu com uma atenção tão grande que eu me senti prestigiado de verdade. E não é que Anamaria até está fazendo a revisão das páginas escritas que eu levo para ela, porque passamos a nos encontrar uma vez por semana. Minha nova amiga já foi lá em casa e minha mãe gostou muito dela. 

Anamaria me falou que eu tenho um troço chamado Síndrome de Williams, mas eu não entendi bem como funciona. Parece que isso torna uma pessoa diferente, como eu, no tipo de corpo, na forma do rosto, na mentalidade. Me explicou que eu sou diferente, de fato, mas não sou anormal, que posso aprender muitas coisas e ser uma pessoa muito útil para os outros, que tenho até facilidades que outras pessoas não têm, na memória, na busca de rimas ou na facilidade para música, por exemplo, e que isso faz de mim uma pessoa não só diferente dos outros, como também especial. Disse que eu posso fazer faculdade e até me especializar em qualquer coisa que eu desejar, em meroteologia – hehehe – por exemplo.

Faz tempo que não falo com a outra Ana de minha vida – a Aninha – que também tem alguma síndrome assim especial, como me explicou minha nova amiga. Preciso contar para ela que nós não somos menos importantes que os outros, que acham que são “normais”. Ser diferente, como aprendi com Anamaria, significa também ser uma pessoa bacana e interessante, e quando temos por perto pessoas que gostam, curtem e compreendem a gente, isso é uma coisa muito boa, que faz a diferença num mundo que seria muito chato se só tivesse gente daquele tipo “normal”, que vive zoando dos outros que não são iguaizinhos a eles.

Cada um é cada um, da sua maneira, do jeito que sabe ser e gosta. É o que eu acho. 

  ***

Boi de carro 

Seu José? Não! Sou o Doutor José Adamastor da Fonseca. Médico! Sim, chefe deste Centro de Saúde. O que desejam de mim. Como? Entrevista para escola? Voltem outra hora, estou muito ocupado neste momento. Agora é assim, toda hora vem um pirralho me entrevistar. Será que esses professores do Grupo Escolar não têm outra coisa para pensar? Um dia, talvez, quando tiver mais tempo, explicarei tudo direitinho para eles, mas por enquanto, não me amolem.

Fico pensando… O que foram estes quarenta anos de medicina aqui nesta cidade? De fato, já vi muita coisa. A grande diferença dos meus tempos antigos é que não havia ninguém querendo saber detalhes das coisas que um médico faz ou deixa de fazer. Agora, toda hora vem um especular. Para não falar daqueles pacientes que já chegam aqui sabendo de tudo, porque consultam sei lá o quê na tal da internet, e já vêm com diagnóstico e até receita pronta. Como se aqui estivessem só para confirmar o que acabaram de descobrir. Quando não para contestar minhas receitas e diagnósticos. Mas aí eu ponho para correr. Não admito! 

Quando eu cheguei, tantos anos atrás, era tudo muito diferente. Mas muito diferente mesmo! Eu queria ter ficado na capital, tinha convites de professores meus para trabalhar com eles em hospitais de lá. Mas a herança de meu pai, aquela fazendinha que acabei vendendo porque só me dava prejuízo, acabou me arrastando para cá. Hoje já me conformei, com isso de morar no interior, pelo menos, porque o jeito moderno de fazer medicina, definitivamente não aprovo, não está em mim. 

Naquele tempo, um médico era respeitado de verdade. Mesmo quando a gente errava, o povo reconhecia que, pelo menos, ele tinha se esforçado. Achavam que era sempre melhor ter um médico um pouco atrapalhado do que não ter nenhum. Mas isso não era o meu caso. Aliás, pensando bem, sempre fiz o que pude pelos meus pacientes. Com a falta de recursos que era isso aqui, acho que eu até fazia milagres, ou quase. E não foram poucos. Aquelas mulheres que vinham da roça arrebentadas pelas parteiras, por exemplo. Cruzes! Quantas noites passei em claro esperando um parto se realizar com a força da natureza. Lá de vez em quando nascia um já morto, mortinho, mas não era culpa minha. E muitos que nasciam bem voltavam uma semana depois estropiados, com tétano, gastroenterite, o diabo. 

Com sinceridade digo: o grande mal do Brasil é a ignorância do seu povo. Fico desesperado quando essa gente da imprensa fica falando mal dos médicos, que nós isso e aquilo. É pura política deles! Comigo não, o buraco é mais embaixo. Essa combinação de política e gente ignorante não pode dar boa coisa mesmo. De política eu fujo, apoio sempre algum candidato para prefeito, vereador ou deputado, arranjo até uns votinhos para ele, mas definitivamente não me meto na política grossa. E não é por falta de convite, pelo contrário. Se fosse me envolver com essa gente estaria liquidado. Ou seria no mínimo prefeito ou vereador, mas fujo disso. 

Com os colegas, infelizmente, não posso ser lisonjeiro. Fiquei sozinho aqui na cidade por muitos anos e com sinceridade acho que era melhor assim. O que já apareceram aqui de médicos estranhos ou suspeitos, melhor nem dizer. Acho que alguns deles nem diploma tinham de verdade. Mas teve alguns de outra variedade, os que já nasceram sabendo de tudo e querem sempre botar regras nas coisas que a gente faz, quando não me criticavam diretamente junto aos pacientes. Safados também, estes. Vão enfrentar a barra que eu enfrento aqui, dia após dia, ano após ano, para verem o que é bom. 

Mas os piores mesmo são os que eu chamo de comunistas. Tem um agora atendendo aqui no posto que é desta raça. Ficam horas e horas proseando com os pacientes, fazem reuniões com eles e já fiquei sabendo até que perguntam para alguns que tipo de remédio preferem, se pomada ou comprimido, caro ou barato, injeção ou oral; vê se pode… E no final só sabem receitar caminhadas ou banhos de assento. Deus me livre, acho que não fazem a mínima ideia do que seja a autonomia do médico. É por isso que a nossa classe anda tão desmoralizada. E este sujeito aí, o tal do comunista, veio falar comigo que é preciso compreender e respeitar a cultura dessa gente, sem ficar querendo mudar isso. 

Ora me poupe… Para mim é um verdadeiro exagero chamar isso de “cultura”. O remédio para quem está errado é correção mesmo, não ficar tentando “compreender” alguma coisa neles. Não é à toa que aparecem estes tipos de clientes que já chegam sabendo de tudo e querem discutir – veja só – com o médico, como se eu fosse igual a eles. Eu passei por uma Faculdade, me respeitem! 

Este comuna ainda me apronta mais. Agora deu de trazer para o consultório um desses computadores de mão, aqueles que parecem uma televisão pequena. E fica com aquilo na mesa, datilografando coisas enquanto conversam com os clientes e segundo ouvi dizer, até mostrando para eles figuras e outras informações médicas. Cruzes, onde vamos parar? Eu sou do tempo em que os aparelhos médicos eram estetoscópio, aparelho de pressão, termômetro, essas coisas, não essas novidades que tenho minhas dúvidas se ajudam os pacientes em alguma coisa. E o tal sujeito ainda veio me falar que estão lançando uma bela novidade, que permite que o médico e o paciente se encontrem para uma consulta sem ser um na frente do outro. E o dito cujo achando isso a maior maravilha. Não acredito que isso funcione, definitivamente. Comigo é olho no olho. E nem precisa de muita conversa. Em quinze minutos eu mato qualquer charada clínica. 

Nada como a experiência, que essa gente nova não tem e nem sabe o que significa. Há poucos dias, por exemplo, o tal doutorzinho movido a computador estava encrencado com um paciente febril cheio de manchas pelo corpo. Isso eu sei porque me contou a Sebastiana, que trabalha comigo desde que cheguei aqui e parece que nunca vai se aposentar. Eu só de ver, de longe, já daria o diagnóstico: lepra. Fácil para mim que conheço a família toda, aliás, conheço todo mundo por aqui. Eu nem mandei avisar para ele, achei que era boa oportunidade para uma lição. Ficou um mês naquele rame-rame, naquele exagero de pedir exames para chegar naquilo mesmo que eu já havia diagnosticado. Espero que tenha aprendido a lição que conheço desde sempre: bom mesmo é a clínica, nada de computadores e reuniões desnecessárias, que fazem os clientes se sentirem os tais, aquelas considerações culturais e vai por aí a fora. Sejamos objetivos, ora essa. 

Acho que medicina é difícil mesmo, mas não é bicho de sete cabeças. Neste festival de novidades que virou minha vida, agora apareceu mais uma. A Secretaria mandou um dos tais computadores aqui para o Posto e determinou que toda a documentação que a gente manda para lá, no final de cada á mês, tem que ser d-i-g-i-t-a-d-a, que é como eles falam agora. Sebastiana já falou que não contem com ela. Comigo muito menos. E tem mais: a programação dos remédios que distribuímos aqui, tem que passar por igual processo. Os prontuários dos pacientes, também. E que no futuro vamos ter que conversar com os clientes usando o tal aparelhinho infame que o comunista tanto aprecia. Se for assim, peço minha aposentadoria. E Sebastiana já me disse que pedirá a dela também. Quero ver como vão se arrumar. 

Com tudo isso, sinceramente, começo a me sentir que nem meu primo Aristeu, que era representante comercial, um dos tais viajantes, ganhou um bom dinheiro rodando interior com sua perua, visitando o comércio até que um dia descobriu que não precisavam mais dele, porque havia telefone, internet, computadores, redes e não sei mais o quê para fazer o que ele fez durante toda a vida. Seu ganha-pão foi extinto e ele agora anda por aí que nem alma penada, sem ocupação, sem destino, sem qualquer alegria de viver. 

Sem querer ser dramático, isso me lembra também a história dos bois de carro, Melado e Meloso, que sobraram na fazendola de meu pai. Ficaram sem função, quase que esquecidos num pastinho por muito tempo, até que um morreu picado de cobra e outro, quase só pele e osso, foi vendido para um açougueiro, por um preço que mal pagou o frete da entrega. Percebo assim que eu, o Doutor José Adamastor, com toda minha sabedoria, meus anos de faculdade, minha fiel Sebastiana, minha perspicácia clínica, vou ter que dar um jeito na vida. Perigo acabar apenas como um caixeiro viajante sem clientela, um esquecido boi de carro ou um abestalhado zé… Zé ninguém. 

Isso se eu não morrer antes.

 ***

O barbeiro Valdemar 

  • O doutor não tem medo de que um bichinho desses suba pelo canudo deste microscópio e lhe contamine os olhos? 
  • Não se preocupe, as lentes protegem. 

Depois de uma risada monumental, volta à carga: 

  • O senhor não percebe que estou de gozação? Meu jeito é assim mesmo, desculpe. 

O faxineiro estava ali, vestido com aquele pijama azul regulamentar do hospital psiquiátrico onde eu era estagiário no laboratório de análises. Fazia ali o que chamavam – ele logo me revelou, de forma crítica – de laborterapia. Mas acrescentou que seu caso era outro, não era nem louco nem empregado do hospital. Não, em absoluto. Apenas cumpria pena recolhido ali, admitindo, com certa candura, ter amigos influentes que o livraram de pegar vinte anos de cadeia em espeluncas. 

Que crime teria cometido aquele homem, para ter pena tão longa? Eu logo soube, por ele mesmo: havia flagrado sua mulher com outro homem e a matou, no ato, sangrando-a no pescoço. Não pôde fazer o mesmo ao amante, pois este lhe escapara. Mas dedicou à falecida meia dúzia de palavrões cabeludos. Valdemar, este era o nome do falso louco e faxineiro matador. Vinha todos os dias conversar comigo, sempre trazendo uma história nova ou um chiste, que eu acolhia com a maior atenção, afinal um refrigério naquelas jornadas de trabalho marcada por cheiros e manuseio obrigatório de sangue, urina e fezes. Sem dúvida, ali estava um sujeito inteligente, divertido e até culto; valia a pena gastar tempo com ele. Não raramente me trazia mangas e outras frutas colhidas no grande terreno do hospital. 

Contou-me que era barbeiro de profissão e que havia trabalhado em estabelecimentos que atendiam a elite da cidade. De tal contato vieram os tais amigos influentes, que ele contava às dezenas, como me disse. Aliás, era até convidado por alguns deles para participar de festas em suas mansões. Sabe-se lá a veracidade disso, mas bem que eu me divertia com suas histórias. 

Daí a propor que me atenderia para cortar as madeixas, já que barba eu tinha ainda muito pouca, foi um passo. E que o faria de graça! Aceitei logo, proposta melhor não haveria, ainda mais para mim, nada mais do que um pobre estagiário. E no salão improvisado, debaixo das mangueiras no grande quintal do hospital, eu me submetia aos cuidados do solícito Valdemar, em uma cadeira alta e larga que ele improvisara, não daquelas típicas dos salões de barbearia. E tais sessões se prolongavam em bate-papos intermináveis, cheios de detalhes picantes que sempre atraíam minha curiosidade. 

Invariavelmente ele me falava daquelas amizades importantes. Contava, por exemplo, que as cadeiras de uma barbearia eram como divãs nos consultórios de psiquiatria, pois as pessoas ali sentadas para um corte de cabelo ou um escanhoamento logo adquiriam a tendência de se abrirem e revelarem casos de suas vidas opulentas. 

– Sabe doutor, este negócio de mexer na cabeça as pessoas, parece que as estimula a revelar seus segredinhos… 

E assim, citando nomes que eu conhecia dos jornais e das colunas sociais, ia desfilando uma série de histórias de adultérios, desfalques, perversões, desvios sexuais e muita coisa mais. E acrescentava: 

  • Quanto mais rico, doutor, mais degenerado. Pode acreditar. 

Um crime que ficou famoso na cidade na ocasião, de um milionário libanês morto supostamente pelo sobrinho enquanto dormia, ainda não totalmente esclarecido pela polícia e pela imprensa, na sua voz ganhava tintas sensacionais: 

  • Este sobrinho aí estava de olha na herança do tio, sim, como dizem. Mas há muito mais por detrás disso! Segundo ele, a dupla trafegava em mão dupla nas suas preferências sexuais e participava de orgias tremendas, com rapazolas disponíveis e pagos para tanto. 

De maneira, dizia ele, que ali havia motivos de sobra para fazer uma “queima de arquivos”. E arregalava os olhos, mantendo a navalha em suspenso enquanto me fazia o “pé” no cabelo da nuca: 

  • O doutor não imagina como estes ricaços são safados… 

Perguntei-lhe sobre a navalha, guardada em caixinha de baquelite, que ele tratava com especial deferência, quase cerimonial, amolando-o em um artifício formado por uma tira de couro liso, sustentada nas duas extremidades de uma espécie de arco de madeira. Ele se animou com o assunto, contando que a mesma era da marca Solingen, alemã, importada, de um tipo que não tinha mais na praça. E acrescentou, para minha total surpresa: 

  • Foi com esta maravilha aqui que matei aquela filha-da-puta… 

Não deixei de me arrepiar, pois naquele momento a tal maravilha deslizava suavemente pelo meu pescoço. Ele percebeu meu incômodo e fez questão de me tranquilizar, dizendo ser na verdade um sujeito pacífico e incapaz de fazer mal sequer a uma mosca. 

  • Aquela, ali, doutor, era um caso perdido. Chifre ainda foi a coisa mais leve que deixou para mim. Ela me arruinou as finanças e a moral, pois vivia espalhando na vizinhança e entre os amigos que eu não dava conta dos meus deveres de marido. E era generosa com tudo quanto era homem que aparecia. Veja só… 

Neste tempo eu almoçava na casa de minha avó, que ficava próxima ao Hospital e ela era fã das histórias que eu trazia de meus ambientes de estudo ou trabalho, sempre curiosa a respeito da bizarrice e de detalhes escatológicos. Minha amizade com Valdemar, que eu revelei desde o início, como um fato curioso, era tratada com recomendações de que eu me cuidasse e não ficasse tão perto dele. As mangas que eu às vezes trazia para a sobremesa, presentes de meu amigo, eram recusadas por ela. 

  • Podem estar envenenadas… Vai saber… Ele é um louco, meu filho!

Quando lhe contei a história da navalha, foi com real horror que ela me falou, com os olhos arregalados de pavor:

  • Além de tudo, ele é um a-s-s-a-s-s-i-n-o, meu filho! 

A história foi a gota d’água, provocando nela pânico tão descomunal, que fez com que implorasse, alarmada, que eu me afastasse de alguém tão perigoso. Mas eu, é claro, não queria perder a oportunidade de usufruir de uma companhia como aquela, tão ilustrada e curiosa. Mas até então as revelações de Valdemar tinham como foco os escândalos familiares, quase sempre de cunho sexual. Mas ele logo entrou em uma seara ainda mais apetitosa, a da política. Vivíamos então no período imediatamente após o golpe militar e ele, associando informações talvez reais, obtidas em seu divã de barbeiro, com toda certeza também associadas a uma gloriosa imaginação, me trazia informações momentosas. Segundo ele, as tais amizades importantes continuavam lhe municiando de histórias, mesmo ali no hospital. Alguma razão ele tinha, pois por mais de uma vez vi pessoas visitarem-no, trazidas por carros luxuosas, com motoristas de terno e gravata e tudo mais. 

– Pois é doutor, eu fiquei sabendo da revolução uma semana antes. O general fazia a barba comigo e ouvi ele comentar sobre isso com o desembargador que estava na cadeira ao lado. E nem me pediu segredo! 

Como eu me mostrasse interessado em saber mais, não se fez de rogado, incluindo em suas narrativas detalhes de romances entre militares e filhas (e filhos) de políticos, de adultérios no primeiro escalão de governo, desfalques no Banco do Estado, orgias de figurões – coisas assim. 

Acabei me afastando de tão curioso personagem, o barbeiro Valdemar, porém a contragosto, não que o achasse de fato temível, mas porque minha bolsa no hospital acabou e não foi renovada. Algum tempo depois o vi na rua, bem junto ao local onde havia funcionado a barbearia onde ele pontificara. A esta altura, o hotel que a abrigava tinha sido desativado e o ponto entrara em funesta degradação, servindo de base para mendigos e viciados em crack. De alguma forma ele havia escapado da vida de falso louco e quase presidiário, por obra e graça dos amigos importantes, talvez. Mas agora a sorte não lhe sorria mais. 

Estava maltrapilho, sujo, com um olhar esgazeado que denunciava que lhe circulava no sangue, talvez, algo fora do normal. Aliás, botou os olhos em mim, mas vi que não me reconheceu, embora eu lhe tivesse esboçado um cumprimento. Os dias de glória de Valdemar, o barbeiro, haviam terminado, sem dúvida. Ali restava apenas um restolho daquela vida aventurosa da qual compartilhara algumas cenas comigo. O dinheiro apurado na possível venda da Solingen deve ter sido dispersado em fumaças perdidas no ar da metrópole engolidora de ilusões.

 ***

Conversa no botequim    

Meu amigo José Vespasiano de Mattos Alencastro, que em nossa roda de final de tarde, no Bar Alecrim, é conhecido como Matusalém e mais uma manada de apelidos, que nele pegam como visgo, tais como Vespa, Vespúcio, Alencoito e por aí a fora, pois que ele não se incomoda em absoluto com isso. Leva sua vida em harmonia com a idade e com o mudo ao redor. Viúvo há muitos anos tem por companhia apenas uma empregada, a Marieta, quase da sua idade, sobre a qual as piadinhas dos amigos são quase inevitáveis. Para mim ele é Matusalém, não apenas por sua idade, quase 90 anos, mas pela vontade e graça que encontra em tudo na vida, sua capacidade de enxergar “além” da realidade. Pessoa muito querida por todos, é uma espécie de conselheiro que temos quando bate em alguém um certo desgosto com a vida e particularmente com a idade, em um grupo que o mais novo já beira os 70. Por esses dias ouvi em tal patota a conversa seguinte, que tento reproduzir aqui.

  • Eita, Matusalém, qual é o segredo afinal?
  • Que segredo, sujeito? 
  • Este seu, de viver tanto e ainda achar graça em tudo…
  • Não tem segredo, acho que já nasci assim.
  • Vai, conta pra nós… Que elixir andas tomando, além dessas cervejinhas aqui? Porque umas louras todos nós apreciamos, mas ninguém aqui tem a sua disposição, ainda mais sendo o mais velho desta turma.
  • Querem saber mesmo?
  • Desde que você seja sincero…
  • Primeira coisa, não é por força de nenhum remédio. Aliás, tenho uma história para contar sobre uma pessoa que conheci na juventude. As novas gerações desta cidade, como vocês, talvez pouco ou nada sabem sobre ele. É aí que começa e acaba o meu segredo.
  • Vespúcio, você por acaso está chamando a gente de “nova geração”? Já começa com gozação, ou mentindo!
  • Deixa eu contar a minha história, hoje não posso ficar até tarde.
  • Vai marcar ponto com a Marieta, hahaha.
  • Seguinte: ele era médico, natural da outra banda do estado e trabalhou aqui na cidade desde sua formatura, ainda nos anos trinta. No começo, era radiologista, destacando-se também como esmiuçador de uma doença sofrida por muitos, chamada por aqui de mal do engasgo, um impedimento de que a comida ganhasse seu necessário curso no organismo, pelo menos passando do esôfago ao estômago. Coisa que inutilizou muita gente em toda a nossa região, veiculada por um percevejo do mato, em sociedade com tatus e gambás, mediante abrigo em cafuas de pau-a-pique. E a tarefa dele era de diagnosticar o mal, em seu equipamento radiológico, mas ele logo viu que só isso não bastava, tinha que tratar aqueles coitados também, que não conseguiam realizar nem mesmo a mais simples e essencial das funções necessárias à existência animal: comer. O alimento simplesmente lhes parava no meio do caminho, de algum ponto da pacuera, como diziam, e dali não prosseguia, devolvido à boca e ao prato com pesar e dor intensos. E isso lhes acontecia mesmo que passassem a tentar ingerir o arroz com feijão de cada dia em doses dignas de passarinhos. Comer carne ou qualquer coisa mais dura ou volumosa, como um bom pedaço de mandioca frita, ou uma boa manga Sabina, por exemplo, nem pensar. 
  • Mas então o que esse doutor fazia com seus pacientes??
  • Tinha um método de tratamento simples: amarrava uma camisa de vênus na ponta de um tubinho e fazia a pessoa engolir aquilo. Uma vez localizado o artifício no ponto certo, através dos raios de seu aparelho, adaptava na ponta livre do tubo a uma pera de aparelho de pressão e inflava aquilo, em sessões repetidas a cada semana, com um grau de dilatação cada vez maior. Não chegava a curar totalmente ninguém, mas produzia reconhecido bem-estar, que se traduzia pelo ganho imediato de peso para muitos deles, além da felicidade de voltar a comer quase normalmente, pelo menos por algum tempo. Depois era só repetir o processo de novo.  
  • Que coisa mais estranha…
  • Mas não pensem vocês que foi só isso. Aquela associação do mal do engasgo com o percevejo do mato não era reconhecida pela ciência médica da época, que atribuía o problema à falta de algumas vitaminas no organismo. Ele, entretanto, percebendo que a coincidência geográfica entre o tal engasgo e a dilatação do coração, esta já atribuída ao contato com o percevejo-barbeiro, poderia ter a mesma explicação, insistiu em tal tese, procurou sua confirmação através de alguns exames laboratoriais já disponíveis e apresentou seus resultados num congresso de luminares. Quase foi massacrado por certo catedrático da grande universidade paulista, mas poucos anos depois sua teoria provou ser a correta. Mas a esta altura ele já havia mudado de especialidade.
  • Conta mais, Vespa, conta! Parece que o caso é bom. Melhor ainda se for verdade…
  • Foi assim: ele já havia ficado famoso em tal tarefa, mas enfrentou um sério problema, dadas as muitas horas que passava exposto aos raios X, seja como diagnosticador ou tratador do mal do engasgo. Os efeitos deletérios disso ainda eram pouco conhecidos na época, mas ele esteve envolvido com tais tarefas por mais de duas décadas. No final suas mãos tinham verdadeiras chagas abertas, as queimaduras actínicas, conforme a linguagem médica, com risco de se agravarem e se transformarem em câncer, levando até à amputação. Foi assim que ele teve que parar com a radiologia e procurar outro emprego.
  • Mas me pareceu, Alencoito, que você não ia nos ensinar alguma coisa sobre viver bem, ou viver muito? O que tem a ver com esta história até agora? 
  • Esperem, eu chego lá. 
  • Fechou o consultório e empacotou o equipamento, que logo foi vendido ao hospital da cidade vizinha. Ficou a ver navios, literalmente, sem ter o que fazer da vida. Resolveu se dedicar à política. Como já tinha simpatia pela causa comunista, mesmo com todos os preconceitos de sempre no país, resolveu se candidatar a vereador pelo tal partido, sendo facilmente eleito, com o apoio, certamente, de uma multidão de engasgados e de seus familiares.  
  • O cara era ousado… Aliás, dizem que comunista quando dá para trabalhar ninguém segura. É tudo pela causa, pela ditadura do proletariado…
  • Pela abolição da mais valia, da propriedade, da família…
  • Seja como for, aquele ali não deixou por menos. Transformou-se em precursor da legislação sanitária na cidade, onde se costumava criar porcos nos fundos de quintal, se jogava lixo no meio da rua, até mesmo as placentas de quem nascia; e também abrigavam mulas e vacas nos terrenos domiciliares. Tudo isso era coisa comum. Curiosamente, seu parceiro nessas empreitadas era outro vereador, também médico, mas filiado à corrente oposta aos comunistas, o integralismo. As divergências de pensamento não impediram que os mesmos fizessem coisas boas para a cidade. 
  • Vespa, este aí não é aquele mesmo cara que dá nome ao viaduto sobre a BR?
  • Ele mesmo. Um dia veio a receber tal homenagem de suas excelências, mas só muito tempo depois de morto, sendo dado seu nome ao tal viaduto e a uma unidade de saúde, em bairro pobre da cidade, onde viria a atuar depois.
  • Antes tarde do que nunca…
  • Mas o fato é que extinto seu mandato pela proscrição do partido comunista, novamente desempregado, foi convidado por um colega a assumir as tarefas do Serviço de Lepra aqui na cidade, pois aquele começava a se firmar no território privado e tal emprego já lhe causava alguma rejeição na clientela. Assim, o médico desta história escapou da radiação ionizante, caiu na discriminação ideológica e ato contínuo foi dar no brejo do contágio e da estigmatização. Sobre isso apenas dizia, então: não quero é ficar parado.
  • E ficou nisso? Na lepra? Qual é afinal a moral desta história, Matusalém?
  • Se você tiver paciência, eu explico.
  • Ali na lepra esteve por uma dúzia de anos, ganhando simpatia e amizades. Os vizinhos se incomodavam, pois, era comum que alguns pacientes o procurassem diretamente em casa. Não tinha sossego aquele homem. Arranjou encrenca também com os burocratas do serviço, quando resolveram rebatizar a doença, agora a ser apelidada de hanseníase. Acatou a medida e nem tinha como deixar de fazê-lo, mas um comentário seu ficou famoso e repercutiu além dos limites de seu mundo interiorano: isso é igual vender o sofá no qual se surpreendeu a mulher em colóquio amoroso com outro homem.
  • Até que um belo dia, já passado dos sessenta anos, sentindo algumas dores e percebendo a presença de sangue nas evacuações, resolveu fazer um check-up. Foi-lhe então diagnosticado um câncer no intestino.

Foi atendido por um filho também médico que fora fazer residência nos Estados Unidos e por lá ficara. Este, valendo-se do proverbial pragmatismo norte-americano, recomendou-lhe cirurgia radical, executada sem maiores delongas. 

  • De volta à velha casa onde vivia com a esposa, ali na parte baixa da cidade, vocês sabem onde, portador de uma bolsa de colostomia temporária e sem maiores garantias de cura do tumor maligno, resolveu tomar iniciativas em relação à vida, como se ela não lhe fosse já suficientemente movimentada. Reformou sua casa, construiu um enorme viveiro para colibris, adquiriu equipamento fotográfico de última geração e começou a fotografar aves, paisagens, árvores e pessoas, ganhando inclusive sucessivos concursos de fotos artísticas.
  • E viveu para sempre depois disso?
  • Não. Morreu, mas apenas passados mais de dez anos, não de câncer e sim de ataque cardíaco. Com o quintal cheio de beija-flores e uma prateleira de medalhas e troféus de concursos fotográficos. Tenho quadros com fotos dele até hoje lá em casa.
  • Nossa! Aí entram os tais “projetos”, então?
  • Sim, aquele homem estava com câncer e tinha muitas incertezas sobre sua saúde. Mas uma coisa lhe era certa: seus projetos mais estimados precisavam ser iniciados ou continuados. Poderia ser chamado de “doente” alguém assim? 
  • Doente sim… Mas ao mesmo tempo sadio este aí? Sei lá…
  • Já concluo: já vi muita gente morrer em gozo da mais perfeita saúde, mas também viver em estado de decomposição física e mental. A história deste homem é bem demonstrativa disso. É assim que lhes revelo o meu segredo, sem medo de errar: a grande força que mantem as pessoas vivas é aquela que as leva a se imaginar no futuro, ou melhor, apostar sempre na capacidade de realizar algo dentro do tempo de que ainda dispõe nesta vida.  
  • Poxa, gostei do arremate, Vespúcio! 
  • Em outras palavras: o importante é ter projetos para manter a saúde. E eles podem ser materiais, espirituais, amorosos, políticos, oníricos, normais ou amalucados – sei lá quantas possibilidades existem. 
  • Eita, acho que você tem razão. Mas certamente não se aplica a todos os casos. Eu, por exemplo…
  • Seu caso individual não importa. A regra de vida deve ser: ter saúde é ter projetos. Tal frase não é minha, creio que foi um cientista que ganhou o Prêmio Nobel nos anos 60 que a pronunciou. Mas não importa, faço dela uma profissão de fé. Assim de memória até consigo lembrar de pessoas que levaram isso a sério, mesmo que não tivesse formulado explicitamente algo parecido. Trago a lembrança de São Francisco de Assis e de Betinho, para falar de dois santos do meu oratório pessoal. Mas a história nos oferece muitos outros exemplos de gente a quem a doença ou a proximidade da morte não retiraram a vontade de fazer as coisas acontecerem. Vocês mesmo devem conhecer alguém assim.
  • Eu que sou médico, Vespasiano, tiro disso o seguinte: acho que é preciso valorizar os projetos dos nossos pacientes. Acho que seria o caso de incluirmos em nossos interrogatórios uma simples pergunta: que projetos você tem para sua vida? Assim a gente poderia, quem sabe, levantar e programar como parte do tratamento dessas pessoas – com a ajuda de outros profissionais – o desenvolvimento de seus projetos pessoais, sejam de qualquer natureza.
  • Você toca em um ponto corretíssimo…
  • Resultaria disso um enorme benefício para os pacientes, com certeza. Afinal, quem tem projetos em vista possui, pelo menos potencialmente, muito mais saúde do que quem não os tem e disporá, por isso mesmo, de mais razões para continuar vivo e se cuidando, ajudando assim os médicos e suas balas  milagrosas se tornarem de fato mais efetivos. Um dia, quem sabe, isso se tornará realidade. Chega por hoje, é o que tinha a contar para vocês. 
  • Demais, Matos-Matusalém. Você é nosso ídolo!
  • Mas eu completo, além de tudo é preciso ter foco no que se faz e sempre buscar e acreditar nas coisas que a vida nos oferece. E se me dão licença, agora vamos para a saideira. 
  • Muito bem Vespa, aplausos para você!
  • Vou saindo, minha aula de dança grega – aquela do Zorba – me espera. 

 ***

Amarcord de sabores      

Deitado nesta cama de hospital, esperando uma alta que não sei quando virá, só me resta botar a cabeça a viajar, porque já não aguento mais essas luzes piscando, esse bib-bip infernal, essas pessoas gemendo, esses banhos de gato, esse cheiro não sei de quê.

Eles vêm aqui medir minha glicose e outras coisas a cada hora e me olham como uma cara que vai da lástima ao horror, e não adianta interpelá-los que não me contam o que está acontecendo. Mas eu bem sei, desta vez passei dos limites, essas festas de fim de ano são uma perdição para dos diabéticos, como eu. Querem me enganar, mas acho que eu engano essa gente muito mais do que eles a mim.

Esta enfermeirinha que acabou de sair é uma graça de pessoa. Ruiva com estes óculos na ponta do nariz – ninguém resiste. Nunca me diz o valor da dosagem, mas a cara com que me fita e olha a fita já diz tudo. Quando lhe indago alguma coisa, ela apenas demonstra pesar, me passa a mão de leve no ombro ou nos cabelos, e se vai para o seu posto. Quando eu lhe perguntei alguma coisa outro dia ela se voltou para mim e vi seus olhos cheios de lágrimas. Ai meu Deus, eu não mereço!

O pior são as coisas que ando sonhando, quase sempre no cochilo da tarde, porque nas noites não consigo dormir. Outro dia, por exemplo, sonhei estar na casa de meu irmão, cumprindo ritual que me é familiar e sempre me deu grande prazer: enfiar a cabeça na caixa aberta daquele velho piano e aspirar com sofreguidão o cheiro de madeira velha, tão peculiar, que entra ano, sai ano, continua ali guardado. Cheiro de piano não tem graça, claro, mas o problema é que isso abre portas para que me penetrem nos sentidos um sem número de aromas e sabores que marcaram minha infância, na casa ancestral de meus avós, onde aquele piano esteve estacionado por décadas. Não sei de onde fui tirar essas lembranças tão seletivas. A família me diz que tenho uma memória enorme para fatos, não sei bem se é assim, mas das comidas e dos perfumes de minha infância, realmente não me esqueço. 

Semana passada tive outro desses sonhos meio malucos. Eu ainda era criança e estava numa casa da família. Devo dizer que entre outras alegrias, tivemos, eu, meus irmãos e primos uma infância marcada pelas boas comidas e também por bons rituais em torno delas. Uma de minhas lembranças mais antigas é a da fabricação de goiabada na chácara de meu avô, em uma pequena cozinha anexa, na qual havia um fogão de lenha com um tipo de cavidade em formato de bacia, onde se encaixava perfeitamente o tacho de cobre. E eu sonhava com aquilo. Aquela pasta espessa, de tom marrom avermelhado, mexida com longas colheres de pau, em inquieta erupção que formava crateras aqui e ali, logo se desmanchando, um espetáculo inesquecível. Aquilo era nítido, como se fosse a realidade mais completa e até o cheiro da goiabada eu sentia. Fui acordado pela plantonista da noite que vinha medir minha glicose, apenas me acordando, mas entrando muda e saindo calada, como de hábito.

Mas aquela goiabada continuou em erupção na minha mente. Lembrava-me que nós crianças era permitido, apenas, observar de longe, pelo risco de queimaduras. Mesmo assim, era muito divertido. E melhor ainda ficava quando, ao final, éramos autorizados a degustar a «rapa», nos próprios tachos já resfriados. Um de nós ao ser indagado sobre qual o doce que mais o deliciava, não teve dúvida: «é a rapa!»

Em outra noite não sonhei com goiabada, que era apenas uma delícia entre tantas outras. Neste dia o tema foi o doce de laranja em calda, pela qual tenho especial predileção desde a infância, embora tal iguaria, um tanto amarga, nem sempre fosse apreciada pelas crianças, com exceção de mim. No sonho eu fazia o tal doce e até me metia a poetizar sobre o mesmo, indo recitar, sob aplausos gerais da plateia familiar, a minha composição ad-hoc. O sonho ficou melhor ainda quando o tal doce, feito com a proverbial laranja-da-terra, foi moído, recozido e transformado em pasta de se cortar, a laranjada. E isso está há tanto desaparecido das mesas da família! Mas no meu sonho esteve presente. 

Doces de frutas era uma especialidade da família, seja na produção, pelas mulheres, seja no consumo, com destaque especial para o meu caso. E havia de tudo: doce de banana seja em pasta, em calda queimada, além da tradicional banana frita com canela e açúcar; doce de figo, em calda e em pasta (delícia!); doce de mamão, de espelho, em talhadas, enroladinho, com rapadura… Aliás, do mamão se fazia doce até do miolo branco do tronco do mamoeiro. E mais, doce de carambola, geleia de jaboticaba (na Chácara de meu avô os pés dessa fruta se contavam às dezenas), doce de manga. E se espremer a memória ainda vou me lembrar de mais variedades.

Teve uma noite – ou uma tarde, não sei mais – que me veio à mente um certo tipo especial de doce, modesto em sua origem, mas igualmente de eterna e adorável lembrança. Era aquele que resultava do aproveitamento de determinados alimentos em vias de serem jogados fora, uma espécie de subproduto dos mesmos, mas que apesar disso era saboreado em clima de festa. Exemplo disso era o famoso doce de leite talhado, assim meio encaroçadinho e um pouco azedo, queimado na medida. Uau! E não poderia ficar de fora, embora penso que não tenha entrado no tal sonho, a banana em calda, uma especialidade de minha mãe, que dava àqueles pedaços de banana caturra hiper madura, que de outra forma iriam para a lata de lixo ou para as galinhas, o auxílio luxuoso de uma calda de açúcar moreno-dourada. 

Tinha também o arroz-doce, mas este, coitado, acabou deixando lembranças menos agradáveis, pelo menos para mim, não sei se para toda a turma de irmãos. A história é a seguinte: nossa eterna caçulinha foi acometida durante seus primeiros anos de vida de dores de barriga atrozes (para ela e para os circunstantes…). Assim, a receita da época – e creio que ainda de hoje, que confirmem os pediatras, era ministrar aos pequenos doentes alguns litros de água de arroz por dia. E este produto provem do cozimento do arroz que «sobra» no processo, que, aliás, em nossa casa não sobrava, por ser logo transformado em arroz doce. E tome arroz doce. Não tínhamos o privilégio, à época, de sobremesa todos os dias, mas com o arroz-doce era outra história: podíamos comê-lo à vontade. Só que com pouco tempo, sobrevinha um efeito de overdose e ninguém mais queria saber dele. Mas agora, tantos anos passados, eu bestando nessa UTI lúgubre e monótona, daria tudo para saboreá-lo de novo. 

E por aí caminhavam minhas memórias gustativas. Cheguei até a ansiar pela hora de repouso, apenas para me deliciar oniricamente. E tome mais comidas. Para ficar não apenas no trivial, sonhei rabanadas, ovos nevados, pavês, docinhos de damasco, fatias de amendoim, pudim de pão (injustamente alcunhado de engasga-lobo), amor-em-pedaços, broinhas de milho, casadinhos e outros biscoitinhos diversos. E olha que em boa parte de minha vida meus quilos a mais e a minha insulina de menos me disseram que não convinha exagerar nos doces! 

Isso tudo sem esquecer do capítulo dos salgados – não menos refinado e variado, que vai do simpático maneco-sem-jaleco (as novas gerações nem suspeitam do que seja), passa pela proverbial torrada com pasta de espinafre com queijo e ovo, até chegar ao grande momento da sopa de bolinhas de queijo; para não falar das costeletas de porco fritas, da canjiquinha, do creme de milho. 

E mais a peça de honra: o (a) cake (queca) de minha mãe, que deixo para ser homenageada no final: divina, maravilhosa, suculenta, olorosa, sofisticada – cabem nela tantos adjetivos quantos são seus ingredientes.

Ainda bem que a natureza me deu vinte e dois anos para aproveitar tantas comidas condignamente, antes de ser traído pelas tais ilhotas. Mas eu confesso que enquanto pude, não perdi tempo! E mesmo sem poder, muitas vezes.

Agora estou aqui apenas podendo sonhar com tanta coisa boa, de que sinto às vezes até o cheiro e o gosto com tanta nitidez. Ainda bem que sonhar não requer nenhuma dose extra de insulina. Preciso criar juízo, bem sei, mas é duro ser diabético. Nem Sísifo, nem Prometeu, nem Hércules passaram por desafios como estes que enfrento no meu dia a dia.

Estava eu nesses devaneios quando a ruivinha veio me dar uma notícia: eu ia ter alta da UTI e passar para a enfermaria. Achei que ia para casa, mas ela me explicou que devido à minha bagunça metabólica eu ficaria mais uns quinze dias no hospital, para acompanharem de perto minhas dosagens. Não eram notícias tão boas ou, pelo menos, próximas das que eu esperava.  Nem tudo estava perdido: a moça não era enfermeira e sim médica residente e tinha vindo me dizer que ia cuidar pessoalmente de mim, pois tinha muito interesse nesta doença, tendo perdido seu pai por causa dela, com pouco mais de 40 anos. E de cara foi me mostrando o dedinho e dizendo, com ternura, mas fingindo de brava: mas comigo o senhor vai se cuidar direitinho, não admito enrolação!

Há males que vêm para o bem, pensei. De toda forma minha moral estava baixa demais para que eu contestasse qualquer coisa. Assim me entreguei à ruivinha, de muito bom grado. Mas preciso perguntar a ela se não existiria um remédio que fosse capaz de cortar os sonhos das pessoas…  

 ***

O Apocalipse segundo JB   

Bem aventurado aquele que lê, e os que ouvem as palavras desta profecia, e guardam as coisas que nela estão escritas; porque o tempo está próximo. Apocalipse 1:1-3

Caminhar pelas ruas da cidade era antigo costume de João Batista, JB para os mais íntimos. Desempregado, então, fazia daquilo quase um ofício. Andava pelos quatro cantos, procurando novidades ou coisas fora da rotina, quaisquer que fossem: construções inacabadas, praças e ruas em fase de reparos, lixo jogado em lugares inapropriados, automóveis abandonados, pneus e colchões em desuso jogados a esmo, algum vazamento de água ainda não corrigido. Em uma pequena caderneta anotava tudo, para dar parte, dizia ele, sem declarar quem seria o objeto de tal comunicação. Se houvesse alguma criança ou criação perdidas nas ruas, deixassem com ele também.

O que importava de fato era anotar, registrar, de alguma forma fazer aquilo ganhar substância. Depois haveria de procurar o que fazer de tanta acumulação. E havia muito trabalho a cumprir, naquela vila que ele via em total desmazelo, antes de um arremate de sua missão. Depois, um dia, se veria…

Passava repetidamente pelos mesmos lugares, em jornadas que apenas gradualmente se ampliavam, sem maior pressa, todavia. Era preciso prestar contas, talvez principalmente a si mesmo, de cada canto percorrido e da inspeção de cada lote vago, antes de ampliar sua exploração cotidiana.

E foi ali, debaixo do pontilhão da estrada de ferro que ele ouviu a voz pela primeira vez. E ela dizia qualquer coisa sobre um cavalo branco, cavalgado por um homem armado de arco e flecha. E mais ainda, que tinha sido dado a tal homem uma espécie de manto, para quando ele saísse vencedor de terríveis batalhas.

A voz o chamava pelo nome, mas dizendo apenas João, sem usar o Batista, nome pelo qual era mais conhecido. Ele olhou em torno, espantado. Não por ter ouvido a voz, pela qual ele afinal já esperava há tempos, mas por não imaginar que ela lhe chegaria em lugar tão estranho, com tanto lixo atirado, cheirando a esgoto, com ratos e moscas por todo lado. Mesmo assim se regozijou, pois afinal de contas algo há muito augurado lhe alcançava.

Depois de anotar as condições do local na caderneta, se assentou no chão para ouvir melhor. Sem deixar de se preocupar com as condições do local, viu que havia muito a ser compreendido naquelas longas e complicadas sentenças que a voz lhe trazia, apontando terríveis acontecimentos. A menção repetida a palavras como “revelação” e “anticristo” lhe sugeriu que aquilo tinha ligação com algo de fundo mais religioso ou espiritual. E a voz também lhe dizia, repetidamente: “são quatro, são quatro”! Quatro o quê? Indagou a si mesmo, pensando se poderiam ser quatro cantos, quatro ventos, quatro queijos. O que significaria isso, afinal?

A voz parecia se alterar, em modos de irritação e ameaça. Falou também de um cordeiro degolado, além de peste, de guerra e de fome. Aquilo fazia sentido para ele, ao lembrar daquela imagem inicial do cavaleiro armado e montado em uma mula branca. E a voz agora sussurrava: “João, atenção! Este é o que traz a peste em seu cavalo branco, a peste! Mesmo os que se cuidam não escaparão”.

JB ficou de fato perturbado, a cabeça agora lhe latejando com intensidade. Resolveu caminhar para fora daquele lugar, temendo que aquela voz cada vez mais ameaçadora se voltasse contra ele. Saiu dali a vagar fora de seu domínio habitual, até que se recostou à parede de uma oficina abandonada e adormeceu ali. Exausto.

Mas logo se viu desperto. Seus ouvidos, tão próximos àquela parede nua e fria, a ouviam de novo. E a voz agora falava em grandes acontecimentos, com o número quatro sendo substituído pelo sete: sete pragas, sete selos, sete pecados. E mais, agora chamando alguém: “Daniel, Daniel, Daniel, onde está você?” Uma coisa nova era pronunciada, lembrando mais uma vez o tom místico da conversa de antes: “um cordeiro foi morto, pode ser uma coisa assim, João? E muita guerra virá”, dizia ainda a voz. 

Não saberia dizer se dormiu de novo, se vagou mais ainda pela cidade, se voltou para casa. Só se lembrava de ter estado por outros diversos lugares, agora de volta a seus percursos habituais. Passava então por uma chácara já conhecida, na periferia da vila, quando novamente ouviu: “João, meu filho… sim, você mesmo!” E aquilo parecia partir agora de dentro de um muro de pedras que cercava a propriedade.

E prosseguiu a voz, falando agora de um cavalo vermelho, cujo cavaleiro, ameaçador, armado de uma grande espada, seria capaz de extinguir toda a paz da terra, fazendo com que os homens se tornassem inimigos entre si. O tom ameaçador era cada vez mais assustador e isso o fez estremecer. Mesmo assim, ou por isso mesmo, resolveu seguir adiante.

Agora a voz parecia o perseguir, brotando de cada muro, mureta, cerca e até mesmo do chão cru. Às vezes apenas dizia seu nome, de forma ácida, se calando em seguida. E seguiu falando de um profeta que iria reunir seu rebanho e ao mesmo tempo travar batalhas contra os inimigos ameaçadores. E a alusão ao cordeiro morto voltava a ser repetida, inúmeras vezes, como se buscasse a vingança de um crime terrível. Um cavalo negro foi anunciado e galopando com ele o flagelo terrível de uma fome como nunca se viu antes. “Como nunca ninguém pode ter visto, João, em nenhum lugar deste mundo de Deus”.

Seguiu adiante, assustado, cada vez mais afastado de seu território habitual. A velha igreja, há tempos fechada por falta de padre, lhe pareceu bom lugar para repouso e distância daquilo que certamente lhe movia alguma perseguição. E ali ouviu mais, a referência a um cavalo preto, cavalgado por um homem que portava uma balança de peixeiro em uma das mãos. E a voz, sempre ameaçadora, dizendo algo ainda mais misterioso, como trocar partidas de trigo e cevada por dinheiro, com azeite e vinho como parte de tal negociação. “João, presta atenção, tudo isso é muito sério, é o Senhor que quer assim!” E ouviu chamar novos nomes, além do Daniel já citado, como Zacarias, Ezequiel e Oziel, fossem lá quem fossem. Ele realmente não sabia quem seriam e qual papel teriam naquela provação que agora lhe chegava. 

Seguiu em frente, cada vez mais esbaforido. De novo no pontilhão da ferrovia julgou ser possível se proteger ali. E ali a voz, mais uma vez, cresceu em tonalidade e ameaças. O personagem equino era agora uma mula ou amarelo esverdeada. “João: este é da mesma cor de um cadáver que se decompõe!” E era o quarto e último, assegurou a voz, com tal montaria sendo portadora de morte e tragédias diversas. Talvez não fosse uma mula, mas uma égua esquálida, pela hora da morte. E seu ginete era simplesmente a Morte, com todo um cortejo de seres enviados ao inferno e destinados à extinção eterna a seguindo de perto. 

A voz, cada vez mais insistente e tenebrosa dizia que aqueles quatro cavaleiros e suas montarias branca, vermelha, negra e baia, estavam chegando para anunciar o fim dos tempos. “Presta atenção, João, seu pecador infeliz!” Esses aí eram os escudeiros do Anticristo e para quem bem soubesse entender representavam Peste, Guerra, Fome e Morte. Seus ginetes não salvariam ninguém de nada, pois eram os verdadeiros e últimos carrascos a punir a humanidade em pecado.

Ele então percebeu que não seria possível alcançar salvação para ele, aliás, para ninguém, ninguém mesmo. Tinha que escapar, no mínimo para algum lugar onde não houvesse paredes ou muros, entidades que carregavam não só aquelas notícias tão más, mas junto com isso uma feroz capacidade de executá-las. 

Tomou assim a estrada principal e por ela caminhou, noite adentro e também no dia seguinte, apesar do sol, da poeira, da canícula opressiva daquela época do ano. Era preciso escapar. Ele sabia que era inocente absoluto em relação a tudo o que a voz apregoava. Não! O filho de sua mãe não seria pego, com certeza.

No dia seguinte, já ao crepúsculo, alguns trabalhadores rurais o descobriram e os homens da ambulância municipal o resgataram em seguida. Estava caído numa valeta lateral da estrada, com a cara suja de lama, língua seca como uma canela de ema, olhos vidrados. E balbuciando sem parar palavras com sentido misterioso e desconhecido, como Apocalipse e Armagedon, além de outras, entre as quais a palavra Besta se destacava. Murmurava cheio de ira e ansiedade se alguém vira por ali quatro cavalos, ou mulas, cada qual de uma cor diferente. E invocava sem parar a proteção de São João, jogando nomes feios sobre uma desconhecida Salomé, jurando vinganças terríveis contra o ser que ele denominava Anticristo.     

No terceiro dia sua mãe, uma humilde lavadeira que morava longe, veio visitá-lo no hospital psiquiátrico. E trouxe para o filho, um livro, a Bíblia, que ele, segundo ela, costumava ler com avidez havia meses, passando assim até noites em claro. Para a mãe, João Batista sempre fora uma pessoa calma e normal, sempre muito rigoroso e cumpridor de seus afazeres. Começou a ter mudanças de atitudes depois que perdeu o emprego de frentista em um posto de gasolina e se separou da mulher. Por causa disso começou a frequentar uma igreja evangélica, sendo acolhido como uma espécie de protegido do Pastor, que lhe influenciava naquelas leituras da Bíblia. Ela precisava comunicar a este homem sobre os acontecimentos dos dias anteriores, aquelas mudanças tão graves de comportamento do filho, quem sabe ele o ajudaria. Precisava só arranjar um dinheirinho para colocar o dízimo da igreja em dia, atrasado desde que JB perdera o emprego. 

Com relação às palavras que ele repetia sem cessar, “Margedão” e “Apocalipes”, a mãe desconhecia o significado delas, mas sentia que era coisa que parecia importar muito ao filho. Ela só queria que fosse curado daquilo, precisava dele demais, não só como companhia para sua velhice, mas também pelos trocados que bem ou mal ele lhe trazia no final de cada duas semanas.  

Ficou ali no hospital por alguns dias, medicado e recuperando a serenidade habitual, sendo isso percebido com alegria pela mãe. Depois da alta, entretanto, passou a se mostrar angustiado ao extremo, quando por acaso ouvisse um eventual tropel de equinos nas ruas da cidade.

 

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