Chico Terêncio, por alcunha Chico de Sinhana, por não lhe ser reconhecido um pai com total certeza, ou ainda Chico Torresmo, por razão incerta. O fato é que por esses dias Chico está feliz, pois arranjou um emprego. Já andava cansado de ficar bestando por aí, entre a conversa fiada de sempre, com os amigos, na venda do Genéis, uma roçada contratada em algum lote vazio, uma derrubada de caixa de maribondo em algum canto da vila, uma entrega do requeijão da Sebastiana, sabe-se lá aonde.
Aliás, já fazia tempo que andava assim, na mais completa falta do que fazer e de responsabilidades. As pessoas sempre lhe disseram que era preciso estudar para melhorar de vida. Ele bem que tentou. Tirou o primário ali na vila mesmo, depois a série seguinte na cidade, ou quase toda ela, não fosse o prefeito ter cancelado o ônibus escolar que levava a cada noite a moçada mais adiantada para ali estudar.
Chico Torresmo até que ficou satisfeito, porque aquela rotina de pegar escola depois de um dia inteiro de trabalho na roça, voltar para casa sabe-se lá a que horas e ainda mais ter que levantar cedo no dia seguinte, para começar tudo de novo, era coisa de matar qualquer um. Isso quando o diabo da caranguejola do Mané Motorista não quebrava no meio do caminho. Teve dia que ele e os colegas tiveram que passar a noite toda na estrada.
Mas agora havia uma companhia de construção de estradas na cidade, e estavam reformando a rodovia, que andava caindo aos pedaços, com mais buracos do que um queijo. E tinha serviços para todos os gostos. Tudo de salário mínimo, mas pelo menos a pessoa podia escolher. Chico fez entrevista e a mocinha da empresa quis logo saber qual era a experiência dele. Ficou até com vergonha de dizer… Que mané experiênciaele podia ter, se até aquele momento de sua vida ele só conhecia de fato o cabo de uma enxada? Fizeram-lhe um teste de escrever numa folha em branco. Chico perguntou, já meio estremunhado, escrever o quê? Qualquer coisa, disse a moça. E não é que não lhe veio nada na cabeça? Ela, boazinha, lhe disse que escrevesse seu nome e seu endereço. Endereço? Ali na vila não tinha disso, era rua de cima e rua de baixo, casa de fulano ou sicrano, rumo da frente, da esquerda ou da direita, morro acima ou morro abaixo, tudo simples assim. Acabou por escrever seu nome, por indicação dela, Francisco Terêncio da Silva, mas estava tão abilolado que a linha da escrita começou no alto da página e desceu de esguelha, quase indo terminar no rodapé do outro lado da folha.
A moça sorriu, disse que estavam mais precisando era de gente para fazer anotações do movimento de caminhões e outras coisas que exigiam boa escrita, pelo menos de números, mas que ia ver se arranjava alguma coisa para ele. Muito boazinha a criatura, parecia um anjo ou uma santa de igreja.
E foi assim que lhe deram aquela tarefa, de segurar uma plaquinha, um lado verde e outro vermelho, para que ele controlasse o trânsito em trechos em obras da estrada. Torresmo entendeu logo o que devia fazer e ficou feliz, pois aquilo lhe parecia ser coisa de muita responsabilidade, além de simples de se executar. E além do mais ia lhe fazer pingar dinheirinho certo no final do mês, salário mínimo, por certo, mas pelo menos era coisa garantida, ainda mais para ele, que nos últimos tempos, entrava semana, saía semana, não via um puto no bolso.
E já no dia seguinte começou. Faltava ainda tirar fotografia e providenciar documento, por sorte um dos poucos que possuía. Mas o capataz falou que podia ser para a semana que entra. De cara lhe deram uma roupa para trabalhar, que lhe pareceu meio apalhaçada, calça verde e camisa laranja, com tiras brilhantes nas mangas e nas laterais das calças, mais um boné com um pano por trás para não pegar sol na moleira e na nuca. Duas mudas assim ele ganhou, uma muito maior do que ele, outra bem menor, mas quem era ele, Chico de Sinhana, para reclamar, àquela altura dos acontecimentos?
Chico viu logo que aquilo eram tarefas de responsabilidade, mas que ao mesmo tempo faziam que ele se divertisse um bocado. Quanto tipo de gente, afinal, passava por uma estrada como aquela, que ia por muitos e variados lugares. Pena que ele só podia assuntar os carros da frente, porque tinha que ficar segurando a tal plaquinha verde-vermelha e não podia saber o que se passava mais por trás da fila que se formava. Mas só aquela dianteira já lhe trazia coisas curiosas, por exemplo, a mulher que resolveu trocar de roupa – todas as peças mesmo, até as de baixo – ali mesmo, dentro do carro, mas totalmente à vista de Chico. O sujeito que ia com ela, dirigindo o veículo, nem aí… Isso foi logo no primeiro dia de trabalho e então ele percebeu que aquele emprego prometia.
E teve muito mais, nos dias que se seguiram.
Por exemplo, o casal que destampou uma briga feroz dentro do carro. Como a hora de mudar de sinal estava demorando, parece que tinham pressa de chegar em algum lugar, se irritaram, começaram a discutir e a gritar um com o outro, e até caíram nos tapas ali mesmo, ao ponto de a moça sair pela estrada a pé, que nem uma louca. Chico Torresmo só espiando aquilo tudo, sem saber se era pra fazer alguma coisa, ou não. Por sorte, logo que recebeu o comando para virar a tabuleta e os veículos começarem a se mover, ela entrou no carro como um raio, como se nada tivesse acontecido, e ele não pôde mais saber de nada. Mas também, de que adiantava saber?
Em outro dia foi pior ainda. O primeiro carro da fila mostrou a Chico uma cena estranha. Lá dentro estava um motorista, como em todos os veículos, mas no banco de trás, ele não acreditou no que via. Estava ali um homem deitado, mas como a parada desta vez deve ter durado uns quinze minutos, ele pôde reparar que alguma coisa esquisita havia com aquele, que simplesmente estava todo troncho, com a cabeça quase a tocar o assoalho do carro e as pernas retorcidas em posição certamente muito desconfortável, uma em cima do banco e a outra no chão, essa aí com um pé que parecia estar virado para trás. O que era aquilo, meu Deus? Ele ficou curioso e foi olhar mais de perto – não era para menos – mas de repente o motorista resolveu reagir: – o que há, cara, perdeu alguma coisa aqui? Chico se afastou, disfarçando o olhar, até com um pouco de medo, porque o sujeito do volante era muito mal encarado. Ainda ficaram por ali até virar a tabuleta, por uns quinze minutos, com o passageiro de trás absolutamente imóvel. Torresmo teve a sensação, ou melhor, a certeza, que ali estava um morto, de verdade. Mas aquilo não era de sua conta e além do mais a fila de carros andava, ele tinha que prestar atenção no movimento e na chegada do sinal de inverter a placa.
Mesmo para quem, como ele, estava apreciando a variedade que tal trabalho lhe oferecia, aquela cena foi demais. Ficou pensando nela por dias e dias, mas o Joel, seu colega de quarto (ele agora morava em um alojamento na cidade), lhe disse que era melhor não se preocupar, afinal ele não tinha nada a ver com aquilo. Se ele por acaso fosse se meter a denunciar ou contar para mais alguém as consequências poderiam até prejudicá-lo. Chico achou que os conselhos do amigo eram valiosos e preferiu, de fato, ficar calado.
Ali era movimentado mesmo. Uma tarde, quase no fim do expediente, um carro preto ficou parado por alguns momentos. Era um dos tais “de aplicativo”, havia um adesivo no para-brisa mostrando isso. Até aí, tudo bem, mas se ele viu bem – foi uma parada rápida – um passageiro, também no banco de trás, apontava uma arma para o motorista. Desta vez ele nem se preocupou se denunciava ou não, mal teve tempo de pensar nisso, porque mais tarde, no mesmo dia, soube que um carro da companhia havia resgatado, no meio da noite e em ponto mais adiante de onde ele estava, um motorista que fora assaltado e abandonado pelado na beira da pista. Aquele emprego ali era de ninguém botar defeito. Mas mesmo com tanta confusão Chico Torresmo se sentia protegido: afinal, quem iria querer assaltar um pé rapado que nem ele, que não andava nem com dez-real no bolso?
Enquanto se distraía com esses pensamentos, sem tirar os olhos da estrada, Deus do céu! O que ele agora via por ali, parado logo linha de frente? Um carro que não fazia barulho nenhum e mesmo assim andava normalmente, como os outros veículos. Como é que pode uma coisa assim, o pobre sinaleiro pensou, vendo o fantasmagórico automóvel desaparecer rapidamente na curva à frente. Imaginou que talvez fosse um dos tais carros movidos a eletricidade, que funcionavam como brinquedos a pilha, ou então enceradeiras ou cortadores de grama. Realmente, não havia mais nada para ser inventado nesse mundão de Deus.
As surpresas continuavam, nem todas perigosas ou misteriosas. Um belo dia apareceu por lá, aguardando a mudança de sinal, um grande e bonito ônibus prateado, com a pintura anunciando seus prováveis passageiros, Antônio e Antunes. Era a dupla sertaneja que fazia o maior sucesso no momento e que voltava de alguma apresentação ali no sertão. Bom mesmo foi conhecer os dois, assim pessoalmente, que desceram do ônibus e até conversaram um pouco com ele. Gente boa demais! Antônio (ou teria sido Antunes) lhe deu até um CD da dupla de lembrança, embora ele não dispusesse, em casa, de um aparelho que pudesse tocá-lo. Mas não seria por isso que ele deixaria de admirar os seus ídolos maiores, Rick e Richard, dos quais ele já tinha visto um bom show, postado bem na primeira fileira, uma coisa de nunca mais uma pessoa se esquecer.
Havia também um ônibus que passava todo final de tarde, de segunda a sexta, carregando uma tropa de gente da idade dele. Eram estudantes que faziam faculdade em uma cidade próxima. Em uma das janelas tinha sempre um ou dois engraçadinhos que gritavam qualquer coisa para ele, algo que Chico entendia como aparecida, rapariga, ou coisa assim, sem entender a razão. Seria um xingamento, uma ofensa a seus brios de macho? Um dia, porém, com a passagem mais lenta do veículo, percebeu: era paressiga ou parissiga, palavras cujo significado ele não compreendia, deixando-o ainda perplexo quanto a seu significado verdadeiro.
Neste dia rolou algo diferente. Enquanto Chico não virava a tabuleta, dois dos estudantes, uma moça e um rapaz, se aproximaram dele e começaram a conversar. Ele a princípio não queria lhes dar muita atenção, nem tanto por distrair sua atenção com o trabalho, mas porque desconfiava que o cara era um daqueles engraçadinhos da janela. Mas a moça lhe deixou mais à vontade, querendo saber o nome dele, falou o dela também; como era o trabalho ali, quanto ganhava, se tinha carteira assinada, se morava com a família – essas coisas. Chico de Sinhana não lhe negou as informações. O rapaz só olhando, sem dizer nada.
Foi aí que Chico criou coragem e decidiu encarar o rapaz: – o que é aquilo que você todo dia me xinga mesmo? A moça respondeu no lugar dele: – sossega Francisco, ele não xingou você e está aqui para se desculpar por essa brincadeira sem graça. Parissiga, ou pare-e-siga, era apenas uma brincadeira a respeito do que ele fazia ali, controlar para que os carros na pista parassem ou seguissem em frente. Disse ainda que na verdade não só eles, como a turma toda dos universitários, tinham consideração e respeito pelo trabalho de que Chico era encarregado. E acrescentou: – já pensou? Se não fosse por você muitos acidentes poderiam acontecer nesta estrada. Neste momento, o moço lhe estendeu a mão e até tentou lhe dar um abraço, do qual Chico se esquivou. A moça, se percebendo mais acolhida, deu em Chico um abraço longo, o qual, para felicidade dele, pareceu durar horas a fio.
E partiram em seguida.
Chico Torresmo, dito também de Sinhana, que gostava de pensar e refletir sobre o que via e ouvia no seu dia a dia desta vez ficou com a cabeça balançada. Aquela moça, Irene era o nome dela, era realmente uma pessoa muito legal. Ele não podia se esquecer de uma ou duas coisas que ela lhe dissera: que ele fazia um trabalho importante e que poderia crescer na vida se estudasse mais. E ainda, que em uma próxima parada mais demorada por ali ela iria lhe explicar sobre cursos noturnos e outras atividades que poderiam melhorar a vida dele.
E lhe disse mais: que ela própria era filha de um pai que trabalhava na enxada, tinha toda uma família assim, e que agora fazia até faculdade de pedagogia e já ia se formar no ano que vem. Sabia do que estava falando e que seria bom se ele a ouvisse de verdade.
Chico Torresmo ficou com a sensação que já havia ouvido palavras como aquelas, mas que sua vida sempre fora complicada demais para que ele cumprisse o que lhe diziam, com relação a estudos principalmente. Mas ecoava na mente dele a frase com que ela se despedira: – acredite em você mesmo, sempre! Aquilo ficou agarrado nele, como o resto de perfume que aquele abraço lhe deixara. Ninguém tinha falado assim com ele em toda sua vida, tão direto, olhos nos olhos.
Naquela noite, no alojamento, o sono custou a lhe chegar. De alguma forma sentiu que era hora de mexer nos ponteiros da sua vida. Ficar virando aquela tabuleta para lá e para cá não era, realmente, coisa que garantisse o futuro de alguém. Mas como se mover, sair daquele atoleiro que era a vida de todo mundo que ele conhecia? Tudo bem, devia estudar, mas isso significava horas de sono perdidas e, quando nada, noite em claro em alguma beira de estrada, por obra daquele caco de ônibus que a Prefeitura alugava para os estudantes. A manhã chegou e ainda o viu acordado. O saldo da noite foi sua percepção de que a vida devia ser e valer muito mais do que aquele miserável paressiga de todo dia. Pelo menos uma coisa ele agora percebia, que devia existir um jeito melhor do que aquele para se levar a vida. Somente não sabia como sair daquilo. Por enquanto, pelo menos.
Pensava ele: a vida devia ter coisas mais interessantes do que carros sem barulho, mortos ou mulheres nuas no banco de trás, brigas embarcadas de casais, ameaças à vida das pessoas e tudo mais que assistia no cotidiano. Um dia precisava realmente deixar aquilo para trás. O fato é que pela primeira vez em sua vida Chico Torresmo pensava sobre tais assuntos e também se poderia fazer alguma coisa para fazer mudanças, não para amanhã ou depois tinha que ser com calma. Mas sentiu enorme vontade de fazer essas coisas acontecerem.
A vida não parava, da mesma forma que o movimento de veículos no ponto onde Chico atuava. Passados poucos dias da visita dos estudantes, ele vê ali, encabeçando a fila de espera, um senhor de terno e gravata. Ele já o conhecia, já estivera em outro ponto de interrupção da via onde atuara, aproveitando a parada para distribuir folhetos que falavam da Bíblia. Por alguma razão veio falar diretamente com o operador de para-e-siga: – boa tarde rapaz, já conhece a palavra? Chico Torresmo não entendeu bem a conversa: – palavra? O homem falou então da palavra do Senhor, escrita na Bíblia, que todos deveriam passar a conhecer, porque o fim estava próximo. A palavra fim fez Chico lembrar do próximo término das obras por ali, quando ele seria deslocado para outro ponto, mais longe, o que não o agradava nem um pouco, principalmente frente às suas determinações recentes de mudar de vida e dispor tempo para frequentar escola. Tal homem, que se chamava Sostes, Sóstem, ou algo assim, era um sujeito insistente, queria que o Torresmo não só pegasse um daqueles folhetos, mas também que o procurasse no endereço ali escrito, para que ele o ajudasse a dar um jeito na vida, através do tal conhecimento da palavra e de outras coisas que prometia.
– Conhecer a palavra… Chico Torresmo, filho de Sinhana, sem pai conhecido, quase analfabeto, morador num fim de mundo, queria de fato entender melhor o mundo em que vivia, conhecer as letras, as palavras, as frases inteiras dos livros, fossem grandes e pequenos, de capa escura como a Bíblia ou coloridos. Aquelas leituras, ele desconfiava, podiam oferecer a ele e às pessoas o domínio das suas vidas e até do mundo. Isso era tudo o que ele queria. Guardou com cuidado o folheto no bolso da roupa verde e laranja. Quem sabe uma hora dessas procuraria o tal homem? Ele parecia ter mais poder de fazer a tal mudança que ele desejava na vida do que a aquela estudante do ônibus, a Irene, tão boazinha, mas também quase tão pobre igual a ele.
