Agora eu acho que me ajeito, a mercadoria parece ser boa de verdade, e o lucro, certo. O Expedito, que viaja todo mês para o Paraguai, me ofereceu um caixote inteiro de carregadores de celular por uma mixaria. Esses vieram direto da China, me afiançou ele. Só exigiu que eu pagasse à vista, coisa de que eu não tenho costume. Mas fazer o quê, não podia perder a oportunidade. Uma coisa pelo menos eu acertei com ele, da próxima vez só vou pagar quando a mercadoria chegar. Porque já me aconteceu de ter feito uma compra dessas, pagando à vista e nunca ter recebido a mercadoria, não foi com ele, é verdade, mas aconteceu. No caso, eram umas sandálias chinesas de primeira qualidade, fáceis de colocar no mercado. Ou, pelo menos, eu acho que eram jeitosas e comerciais, não cheguei a ver ou experimentar.
Não dá para ninguém imaginar, a não ser quem está na luta, como eu, como essa vida de empreendedor no comércio ou na catira é difícil. Tem muito picareta por aí, muito aproveitador. Já me falaram de um pastor evangélico que dava tombo até nos fiéis de sua igreja, vendendo um tal de feijão abençoado. Depois anunciou também um carregamento de garrafas de água do dilúvio universal, depois de ter vendido pregos da Arca de Noé. E os paspalhos dos crentes caíram nessa conversa besta.
Mas cá entre nós, o comércio, mesmo pequeno, é uma atividade complicada. Você tem que contar com a confiança do freguês, mesmo que um produto não seja lá de muita garantia. O que sei é que, para nós, os pequenos, seria impossível sobreviver apenas com a venda de coisas que vêm embaladas de fábrica, com nota fiscal, diplomas de garantia, manuais de instrução, embalagens coloridas reforçadas e tudo mais. Pois é, tá ficando difícil ganhar a vida neste mundo cheio de picaretas, a enganar qualquer um a qualquer hora, inclusive esses que conseguem notas fiscais falsificadas, pagam gráficas para fazer os tais diplomas e manuais e ainda conseguem comprar de uns atravessadores caixas novinhas de produtos importados.
Eu me considero um cara honesto, mas que ao mesmo tempo precisa pagar aluguel e supermercado, botar gasolina no Fiesta, além de comprar os remédios para uma velha mãe. E de quebra levar uns agrados para a Keluene. Sim, Keluene é minha namorada, ou coisa parecida. Quando a coisa aperta ela me recebe em casa e me dá uns amassos (e algo mais) totalmente insanos, fora do comum. Eu nem ligo para suas gordurinhas fora do lugar e aquele sorriso incompleto. Acho que ela me ama de verdade. E cá entre nós, que baita tesão ela tem por mim!
Vou esperar o Dito chegar com os tais carregadores para cair na praça. Acho que vai ser moleza vender essa mercadoria importada, embora eu não tenha sido feliz em algumas das compras que fiz até agora.
Pois é, minha desgraça começou quando fui despedido do emprego. Aliás, um bom bico que eu tinha, sem carteira assinada, mas que rendia bem uns trocados. Eu trabalhava para um turco, o Moamede, sei lá, um nome assim, e minha tarefa era pegar um ônibus toda sexta feira, que atravessava um monte de lugar, várias horas de viagem, para no final pegar e trazer de volta duas ou três sacolas de mercadoria paraguaia. É bem verdade que eu ficava meio incomodado com umas coisas que aconteciam, por exemplo, mesmo chegando cedo no destino, às vezes eu me via obrigado a esperar até as duas da madrugada para pegar a mercadoria e só no dia seguinte poder tomar de volta o ônibus. Um dia eu estava na porta do fornecedor aguardando, como sempre em plena madrugada, então chegou a polícia e no final das contas até eu fui preso, para não falar do sujeito que guardava e ia me entregar os tais sacolões. Fiquei três dias no xadrez, até que veio um advogado e me soltou, sem deixar de me espetar uma conta. É claro que não paguei, nem tinha dinheiro para isso. Mandei ele cobrar do Moamede, que também não pagou. Acho que ficou por isso mesmo, mas pelo menos não vieram atrás de mim.
O mundo seria melhor se não fossem esses picaretas, safados. Eles parecem ter preferência pela minha pessoa… Um tempo atrás conheci um que dizia saber ganhar dinheiro. Eu, sempre precisado, fui atrás. Parecia um negócio bom, no ramo dos investimentos. As pessoas depositavam certa quantia na conta de outras cinco ou seis e ao mesmo tempo recebiam depósitos feitos por um número cada vez maior de outros investidores. Lucro certo! Eu me virei para arranjar uma grana e fiz os depósitos combinados. Passando poucos dias recebi de fato alguma coisa na conta, porém bem menos do que eu havia depositado para os outros participantes. Depois disso, nada mais. Fui atrás do maldito financista e a única coisa que pude apurar é que ele tinha sido preso pela polícia. Seria por causa dessa fórmula mágica de ganhar dinheiro? A velho Zuza, vizinho e tio da Keluene, me falou que isso se chama pirâmide e que dá cadeia mesmo. Ainda bem que eu escapei a tempo, mas bem que gostaria de não ter gasto nem um tostão com aquilo. Mas pelo menos aprendi a desconfiar de determinadas pessoas.
O Dito é bom nisso, é um cara que sabe das coisas. Montou um negócio de vender pneus usados, que vêm da China. São quase novos, com todas aquelas riscas ainda bem profundas e saem barato, menos de trinta por cento do valor de um pneu novo. Propus a ele uma sociedade e o Dito ficou de pensar. Mas desconfio que não vai sobrar para mim, quando o negócio é bom mesmo ele cuida da coisa sozinho. Outro dia perguntei para ele como estava rendendo o tal negócio de pneus e ele desconversou, acho que realmente quer guardar só para ele mesmo os lucros. Mas eu ainda chego lá. Com essa transação dos carregadores acho que vai dar para conseguir um up-greide nessa minha vida azarada. Vam’ver.
Um dos grandes problemas que nós, os pequenos empreendedores comerciantes temos, é a fiscalização. Quando trabalhava com o Moamede, o tal cara que me entregava as sacolas me propôs vender para ele, separado do negócio do turco, um produto novo que estava fazendo o maior sucesso, um xampu americano para empretecer o cabelo branco das pessoas. Mas ele me falou para não vender aquilo às claras, porque a fiscalização podia dar em cima. São assim as coisas, para impedir a gente de ganhar um dinheirinho honesto vem a tal da fiscalização, a cobrança de impostos e outras coisas mais. Deve ser isso que chamam de liberdade de expressão. Difícil ser empreendedor neste país cheio de funcionários públicos parasitas, que só sabem “fiscalizar”.
Mas aquele xampu escurecedor de cabelo… Como minha mãe já está com a cabeça parecendo um novelo de algodão, comprei para ela experimentar. Depois de uma semana não aconteceu nada, ou melhor, ela começou a reclamar de uma coceira danada na cabeça. Achei melhor não prosseguir naquilo. Afinal, mãe, a gente só em uma.
Reclamei do sacoleiro e ele me explicou que para pessoas muito velhas o tal xampu não era apropriado mesmo, mas só para gente que estava começando a pretejar o cabelo. Mesmo assim achei melhor não dar seguimento. Ele aproveitou para me empurrar o que ele chamou de Endurex, um revigorante sexual. Apesar de não estar precisando de uma coisa dessas – afinal tenho a Keluene sempre no meu pé, a fim de fazer aquelas coisas – resolvi experimentar. Era uma pomada. Usei de acordo com as instruções do rótulo (em chinês, mas traduzido para o brasileiro) e o máximo que consegui foi um inchaço danado nas partes, além do mais doloroso, como se tivesse sido picado justamente ali por um marimbondo ou uma jararaca. E o que é pior, me obrigou a fazer um jejum de Keluene por quase um mês. Como é que eu vou vender uma coisa dessas? Tenho minha ética de comerciante, afinal.
Os carregadores que comprei do Dito chegaram. Fui logo experimentar, porque comigo é assim, sempre experimento as mercadorias, para ver se prestam de verdade. Mas desta vez, pela cara do Dito, que veio pessoalmente fazer a entrega, percebi que havia alguma coisa muito errada. Eu só entendi bem quando ele abriu a caixa e pude ver, finalmente, que os tais carregadores eram de um modelo antigo, que não tinha aquela tomadinha achatada para enfiar no celular, mas sim um pino, redondo, de um tipo que não se usa mais. Ou seja, aquilo não servia para nada. Fiquei puto com o Dito, mas ele, que também fora enganado pelo chinês, me disse que fazia questão de reparar meu prejuízo. O problema é que ele só tinha uma parte do meu investimento e ficou de pagar o restante depois. O segundo problema é que nunca vi ninguém tão ruim em pagar dívidas como o Dito. Pela minha cara ele viu que eu não estava satisfeito, de jeito nenhum, mas me falou que tinha descoberto um negócio espetacular para a gente ganhar um bom dinheiro. Desta vez, não só ele, mas eu também, o Dito me garantiu.
O novo projeto do Dito era tentador. Ele tinha um primo, o Zorêia, que conseguira juntar umas economias e comprar um ônibus velho, com o qual fazia transporte escolar, pelas zonas rurais. Mas aconteceu que a Prefeitura recebeu uns carros novos em folha, vindos do governo, em Brasília e assim cancelou todos os contatos que tinha com particulares, como o Zorêia. Foi então que eles tiveram uma ideia e o Dito veio me convidar para me associar a eles.
E era uma ideia bacana mesmo. Eles iam fazer uma reforma no ônibus, de modo que a carroceria ficaria sem os bancos e seria dividida em duas ou três cabines separadas, cada uma equipada com uma cama. Ainda ia sobrar espaço para uma saleta de espera. Com isso iam contratar umas moças, não de família, mas de outro tipo, que o Zorêia já tinha apalavrado. Com isso, e com tal tripulação, a missão era percorrer as zonas de mineração de lítio, agora abundantes aqui no nosso município e nos outros vizinhos, de modo a fazer daquilo um serviço de socorros sexuais para a moçada trabalhadora, melhor dizendo, um puteiro ambulante.
Mas qual seria o meu papel em tal empreitada – perguntei. O Dito logo explicou que eu iria na frente, uns dias antes da passagem da tal estrovenga, fazer os contatos nos alojamentos, nos refeitórios e outros lugares onde a peãozada se reunia, para divulgar a ideia. Uma espécie de relações públicas, segundo ele. E meu ganho seria proporcional ao número de pessoas que procurassem os tais serviços sobre rodas. Achei que valia a pena, embora a história dos carregadores tivesse me deixado meio de pé atrás com o Dito, sendo o Zorêia também um tipo de não se confiar muito. Mas na pindaíba que eu estava, ainda mais tendo perdido dinheiro recente, topei a parada.
O Dito convidou para uma cerveja, para comemorar e discutir detalhes do empreendimento. Aceitei, desde que ele pagasse. Começamos pelo nome. O Dito propôs coisas como Motor-zona, Trem da Sacanagem ou Putaria Estradeira. Eu falei que com esses nomes a gente seria preso pela polícia logo na primeira parada. Então pensei em coisa melhor: Busão do Amor. Para a tripulação, o nome seria de Busettes. Ele aplaudiu e até pediu outra cerveja, o que me deixou feliz, porque o Dino não é de elogiar e muito menos de pagar uma cerveja para os amigos.
Mas para gente de pouco repertório como ele, pior ainda como o Zorêia, achei que ia dar muito trabalho explicar o que significava tripulação e que a palavra bus significava ônibus em inglês, muito menos a razão do trocadilho embutido dentro da palavra busettes, que alias soaria melhor se fosse escrita com dois “s”.
E fomos em frente.
