Otavita: Vida e Obra (Uma biografia não autorizada)

Nossa, já estou acordada há tanto tempo e nada de aparecer esta moça que vem me trocar. E nem adianta chamar, com a minha própria voz ou com a campainha. Aí é que ela não comparece – nenhuma delas, aliás. Vida difícil aqui. O Jorge Jr, meu filho, outro dia chegou a me dizer que eu reclamo demais, que devia me dar por satisfeita de estar nessa casa de repouso, que é das melhores aqui na cidade, nem adianta procurar por outra melhor. Mas ele, apesar carinhoso comigo, de sempre estar presente e me trazer quase toda vez que vem uns docinhos, umas balas, geleias, empadas e outras coisinhas doces que gosto tanto, não sabe de verdade o que se passa comigo, o tanto que eu sofro. Nem de longe… Ninguém, fora Clara, minha filha mais nova – esta talvez saiba alguma coisa. Aliás, pensando bem, acho que só eu mesmo sou capaz de saber dessas coisas.

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Sobre o Direito de Viver (e de Morrer)

Assisti recentemente um filme que me marcou profundamente: A Short Stay in Switzerland (Uma Curta Estadia na Suíça), no Brasil Escolhas da Vida, uma produção britânica para TV, de 2009, dirigido por Simon Curtis e escrito por Frank McGuinness. A protagonista é a atriz Julie Walters, no papel da Dra. Anne Turner, tendo sido vencedora do prêmio Emmy por sua performance neste filme, sendo também indicada a diversos outros prêmios. É inspirado numa história real, tendo como tema o direito à morte assistida e digna, como acontece na Suíça, onde o procedimento é legal, inclusive para estrangeiros.

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Segredos de Família

Toda família tem segredos, toda família tem histórias, publicáveis ou nem tanto. A minha não foge a tal regra. O caráter ficcional com que encubro as presentes narrativas não pretende encobrir certos pecadilhos revelados e nem exime a ninguém por tê-los cometido. Quem não tem um prontuário assim meio embaçado? Aliás, como saber, de fato, da veracidade de muitas das histórias e das lendas que acompanham qualquer família, qualquer grupamento humano? O tempo, quando passa, faz esta estranha alquimia, de converter narrativas pitorescas em verdades inquestionáveis. Ou vice versa. Sendo assim, não me responsabilizo totalmente pelo que é dito aqui e neste aspecto me apoio em Manoel de Barros: do que conto, boa parte é inventado, a outra parte é mentira mesmo – ou algo assim. Vamos em frente, em busca da essência – não da verdade – de alguns desses possíveis segredos.  

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Amor em tempos de pandemia (e cia.)

Amor, sempre amor. Em tempo de pandemia ou em épocas normais. Apenas imaginado ou vivido por inteiro – ou por partes. Amor com ventura ou com angústia; com alegria ou tristeza; com esperança ou desespero; com alivio ou dor. Sempre Amor, sempre o mesmo e sempre diferente. Aqui vão alguns exercícios que fiz, sobre tal tema. Algumas coisas eu confesso que vivi de fato, mas nem tudo é verdade. Minha nudez não mais me assusta e eu a compartilho com vocês.

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Vida de cachorro

Finais de tarde em muitos domingos, em certo período de minha infância, viajando por aquela rua longa e sinuosa, que nos levava aos confins da cidade, em uma sucessão de bairros que iam variando de razoáveis a pobres, de classe média a gente apenas remediada e, depois disso, a miseráveis e favelados. Mais do que indicativos sociais ou topográficos, para mim e meus irmãos era o retrato vivo de uma dor.

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Alumbramento

Saí de casa para aquela viagem com a sensação de que alguma coisa diferente ia me acontecer. Eu vivia em plena crise de um casamento que, fazia tempo, começara a dar sinais de cansaço. Melhor dizendo, a crise era, já há alguns anos, a expressão viva do que eu vivia ao lado de Maria Alice. Meus sonhos, havia tempo, apontavam para uma vida totalmente diferente e também para uma mulher diferente daquela que dormia ao meu lado e da qual eu mal sabia com o que sonhava. O que sei é que sonhávamos diferente, eu cheio de planos com foco coletivo, tanto quanto possível; ela aderida ao panorama do lar e da família, tratando meus devaneios sociais como se fossem coisa equivocada, ou pelo menos, incondizente com a vida familiar restrita com a qual ela se identificava.

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Fazer literatura…

“Fazer literatura” … Em outros países o desocupado caça, pesca, joga o murro. Aqui beletra. Rima sonetos, escorcha contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuais de literatura, onde se adjetiva sonoramente uma aparência de ideia, sempre feminina, sem pés e raramente sem cabeça, que goza a propriedade, aliás preciosa, de deixar o leitor na mesma.” (Monteiro Lobato). Continuar lendo Fazer literatura…

Matéria médica

Oh cousas todas vãs, todas mudáveis, qual é tal coração que em vós confia? Est’água que d‘alto cai, acordar-me-ia, do sono não, mas de cuidados graves. (Sá de Miranda). Enquanto espero a chegada deste voo várias horas atrasado, minha mulher fazendo suas eternas compras, por que é mesmo que me lembrei deste verso antigo, que me acompanha desde o colégio, graças àquela professora que gostava de autores portugueses? Sim! Já sei, são as coisas sempre mudáveis na vida da gente, além dos cuidados graves, dos quais, nesta fase da vida, bem passado como estou dos setenta anos, é difícil se livrar.

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Nós que amávamos a Revolução

Eram dois na noite escura. Esta era a primeira frase do livro que eu ia escrever. Na realidade, éramos dois que perambulávamos pelas ruas estreitas de nosso bairro de ruas calçadas em pedra, onde acordávamos todo dia com o apito da fábrica de tecidos, na nossa casa que pouco se distinguia da moradia dos operários, naquela cidade oprimida entre montanhas, em muitas noites escuras, que a singeleza das luminárias amareladas era incapaz de clarear. Passamos a ser três quando um primo de meu amigo se juntou a nós. Saíamos todas as noites, pela hora da novela, que então já “entorpecia as massas”, como rezava nossa cartilha militante, filosofando, tramando obras literárias, tentando equacionar o futuro da humanidade e, quem sabe um dia, participar da revolução no país.

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A Morte acidental do Eletricista

Paródia inspirada em A Morte Acidental de um Anarquista, do autor italiano Dario Fo, peça de teatro que, por sua vez, parece ter sido inspirada em O Inspetor Geral, do russo Nikolai Gogol. E que os leitores perdoem tais liberdades com obras tão alheias como clássicas.

CENA 01 (Sala de espera de uma unidade típica do sistema de saúde no Brasil, com mobília barata, paredes descascadas, piso defeituoso, um único banheiro com a porta semiaberta. Nas paredes cartazes feitos à mão anunciam proibições e negativas diversas. Cinco ou seis pessoas (US) esperam, pacificamente. Uma mesinha no canto, aparentemente destinada a recepcionista ou alguém com tais funções, permanece vazia durante todo o tempo. Há um relógio na parede, de tipo comum. No canto, uma escada encostada na parede, junto a fios soltos descendo do teto. Ao fundo uma porta na qual se lê: “Entrada permitida apenas para o pessoal da Administração”. Um homem agitado (HR) anda para lá e para cá, consultando a toda hora seu relógio.)

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