As ruínas do Cine Academia

Quem não se lembra do Cine Academia? Ali era possível ver bons filmes, ouvir boa música ao vivo, tomar um café ou um drink honesto, encontrar pessoas. Como nada é perfeito, o proprietário era um conhecido trambiqueiro, devedor do fisco e da previdência e seu estabelecimento acabou sendo fechado para pagar dívidas com o Estado, mas mesmo assim deixou saudades em muita gente – o lugar, não seu dono. Edgar, frequentador assíduo do lugar, se sentiu em completa orfandade. Aquele lugar sempre lhe oferecera coisas apetecíveis, filmes, por exemplo, mas não somente isso, pois no quesito “pessoas” ali colheu também ótimas lembranças. Aquela, a qual a mente lhe trazia de volta agora, a mais especial de todas.

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Matéria Médica

Medicina tem a ver com literatura, sem dúvida, no mínimo por fornecer no cotidiano de seus profissionais, principalmente para aqueles que são bons observadores, um manancial imenso de situações que certamente favorecem a produção de textos diversos, sejam romances, novelas crônicas, poemas – ou, em último caso, anamneses. Mas será que a carreira médica impele de fato seus praticantes, mais do que outras profissões, a serem escritores? De fato, há muitos médicos que se transformam em escribas, alguns até exponenciais, como Guimarães Rosa e Miguel Torga, por exemplo, mas há também advogados, engenheiros, professores, para não falar daqueles que não possuem profissão definida ou nem se lembram mais daquela que um dia exerceram, por se sentirem, desde sempre, escritores, pura e simplesmente. Drummond, por exemplo, era farmacêutico, Monteiro Lobato advogado e Jorge Amado nem formado era.  Alguns mais críticos poderiam dizer que os médicos, para além de sua profissão de origem, talvez se interessem mais pelas atividades agropecuárias, pela política, ou pelos negócios em geral, do que propriamente pela literatura.

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A paciente do leito catorze

– Doutor Belisário, a paciente do leito 14 quer falar com o senhor.

Lá vem Dona Julia de novo, ela adora arranjar tarefas para mim, sempre é isso. Aliás, todo mundo aqui no hospital parece que precisa falar comigo… E nesta enfermaria de desenganados é pior ainda. O que será que essas pessoas esperam de um médico? A capacidade de fazer milagres? A verdade é que para alguém que se mete neste raio de especialidade da oncologia, não poderia ser diferente. A culpa é mesmo minha… Bem que a minha mãe dizia, meu filho essa coisa que você escolheu para trabalhar vai acabar lhe fazendo mal, você devia ser ginecologista, ou quem sabe pediatra. De fato, acho que já está me fazendo mal, muito mal, depois de 10 anos inteiros vendo gente morrer. E sofrer. E o que é pior, pessoas chegando a mim como se eu tivesse um poder mágico de lhes restituir a vida, a saúde, a normalidade. Isso é para os fortes e eu começo a ver que não é, definitivamente, o meu caso. E que diabos, a paciente número 14 tem nome! E se chama Letícia…

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Otavita: Vida e Obra (Uma biografia não autorizada)

Nossa, já estou acordada há tanto tempo e nada de aparecer esta moça que vem me trocar. E nem adianta chamar, com a minha própria voz ou com a campainha. Aí é que ela não comparece – nenhuma delas, aliás. Vida difícil aqui. O Jorge Jr, meu filho, outro dia chegou a me dizer que eu reclamo demais, que devia me dar por satisfeita de estar nessa casa de repouso, que é das melhores aqui na cidade, nem adianta procurar por outra melhor. Mas ele, apesar carinhoso comigo, de sempre estar presente e me trazer quase toda vez que vem uns docinhos, umas balas, geleias, empadas e outras coisinhas doces que gosto tanto, não sabe de verdade o que se passa comigo, o tanto que eu sofro. Nem de longe… Ninguém, fora Clara, minha filha mais nova – esta talvez saiba alguma coisa. Aliás, pensando bem, acho que só eu mesmo sou capaz de saber dessas coisas.

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Segredos de Família

Toda família tem segredos, toda família tem histórias, publicáveis ou nem tanto. A minha não foge a tal regra. O caráter ficcional com que encubro as presentes narrativas não pretende encobrir certos pecadilhos revelados e nem exime a ninguém por tê-los cometido. Quem não tem um prontuário assim meio embaçado? Aliás, como saber, de fato, da veracidade de muitas das histórias e das lendas que acompanham qualquer família, qualquer grupamento humano? O tempo, quando passa, faz esta estranha alquimia, de converter narrativas pitorescas em verdades inquestionáveis. Ou vice versa. Sendo assim, não me responsabilizo totalmente pelo que é dito aqui e neste aspecto me apoio em Manoel de Barros: do que conto, boa parte é inventado, a outra parte é mentira mesmo – ou algo assim. Vamos em frente, em busca da essência – não da verdade – de alguns desses possíveis segredos.  

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Amor em tempos de pandemia (e cia.)

Amor, sempre amor. Em tempo de pandemia ou em épocas normais. Apenas imaginado ou vivido por inteiro – ou por partes. Amor com ventura ou com angústia; com alegria ou tristeza; com esperança ou desespero; com alivio ou dor. Sempre Amor, sempre o mesmo e sempre diferente. Aqui vão alguns exercícios que fiz, sobre tal tema. Algumas coisas eu confesso que vivi de fato, mas nem tudo é verdade. Minha nudez não mais me assusta e eu a compartilho com vocês.

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Vida de cachorro

Finais de tarde em muitos domingos, em certo período de minha infância, viajando por aquela rua longa e sinuosa, que nos levava aos confins da cidade, em uma sucessão de bairros que iam variando de razoáveis a pobres, de classe média a gente apenas remediada e, depois disso, a miseráveis e favelados. Mais do que indicativos sociais ou topográficos, para mim e meus irmãos era o retrato vivo de uma dor.

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Alumbramento

Saí de casa para aquela viagem com a sensação de que alguma coisa diferente ia me acontecer. Eu vivia em plena crise de um casamento que, fazia tempo, começara a dar sinais de cansaço. Melhor dizendo, a crise era, já há alguns anos, a expressão viva do que eu vivia ao lado de Maria Alice. Meus sonhos, havia tempo, apontavam para uma vida totalmente diferente e também para uma mulher diferente daquela que dormia ao meu lado e da qual eu mal sabia com o que sonhava. O que sei é que sonhávamos diferente, eu cheio de planos com foco coletivo, tanto quanto possível; ela aderida ao panorama do lar e da família, tratando meus devaneios sociais como se fossem coisa equivocada, ou pelo menos, incondizente com a vida familiar restrita com a qual ela se identificava.

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Matéria médica

Oh cousas todas vãs, todas mudáveis, qual é tal coração que em vós confia? Est’água que d‘alto cai, acordar-me-ia, do sono não, mas de cuidados graves. (Sá de Miranda). Enquanto espero a chegada deste voo várias horas atrasado, minha mulher fazendo suas eternas compras, por que é mesmo que me lembrei deste verso antigo, que me acompanha desde o colégio, graças àquela professora que gostava de autores portugueses? Sim! Já sei, são as coisas sempre mudáveis na vida da gente, além dos cuidados graves, dos quais, nesta fase da vida, bem passado como estou dos setenta anos, é difícil se livrar.

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Nós que amávamos a Revolução

Eram dois na noite escura. Esta era a primeira frase do livro que eu ia escrever. Na realidade, éramos dois que perambulávamos pelas ruas estreitas de nosso bairro de ruas calçadas em pedra, onde acordávamos todo dia com o apito da fábrica de tecidos, na nossa casa que pouco se distinguia da moradia dos operários, naquela cidade oprimida entre montanhas, em muitas noites escuras, que a singeleza das luminárias amareladas era incapaz de clarear. Passamos a ser três quando um primo de meu amigo se juntou a nós. Saíamos todas as noites, pela hora da novela, que então já “entorpecia as massas”, como rezava nossa cartilha militante, filosofando, tramando obras literárias, tentando equacionar o futuro da humanidade e, quem sabe um dia, participar da revolução no país.

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