A Morte acidental do Eletricista

Paródia inspirada em A Morte Acidental de um Anarquista, do autor italiano Dario Fo, peça de teatro que, por sua vez, parece ter sido inspirada em O Inspetor Geral, do russo Nikolai Gogol. E que os leitores perdoem tais liberdades com obras tão alheias como clássicas.

CENA 01 (Sala de espera de uma unidade típica do sistema de saúde no Brasil, com mobília barata, paredes descascadas, piso defeituoso, um único banheiro com a porta semiaberta. Nas paredes cartazes feitos à mão anunciam proibições e negativas diversas. Cinco ou seis pessoas (US) esperam, pacificamente. Uma mesinha no canto, aparentemente destinada a recepcionista ou alguém com tais funções, permanece vazia durante todo o tempo. Há um relógio na parede, de tipo comum. No canto, uma escada encostada na parede, junto a fios soltos descendo do teto. Ao fundo uma porta na qual se lê: “Entrada permitida apenas para o pessoal da Administração”. Um homem agitado (HR) anda para lá e para cá, consultando a toda hora seu relógio.)

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Visita ao Velho

Sim, era preciso visitá-lo. Ele, o Velho Tio, fazia parte de nossa vida, desde a mais remota infância. Da minha vida, mais do que da dele, meu irmão mais novo, que teve menos convivência com tal figura, para mim tão marcante. Ele morava longe, cumpria fazermos aquela viagem longa, que deveria ser premeditada, porém sem termos tempo para tanto.

Fizeram uma cachorrada comigo, era como ele explicava a origem dos acontecimentos que o derrubaram, sem apelação, na cama que poucas semanas depois o acolheu na morte. Falava da passagem atabalhoada do velho cão de fila da fazenda pela porta da cozinha, onde ele justamente tomava um café e acendia o cigarro de palha habitual nas manhãs. E sem mais se viu jogado ao chão, gerando um doloroso calombo na coxa, que ele mesmo, no ato, diagnosticou como uma fratura de cabeça do fêmur.

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Foi assim (Amor em tempos de pandemia)

Parecia em cena de filme. Eu dirigindo pela noite a dentro, tendo pela frente horas e horas de estrada deserta, para estar com aquela pessoa tão querida e especial, em seus prováveis últimos dias ou horas de vida. Eu vivia aquilo como um transe, desencadeado pelo telefonema que recebi ao chegar do trabalho. Sim, ela chegava ao fim.

Eu não a via havia algum tempo, seis ou sete semanas, mais exatamente, afastados que estávamos pelos terríveis acontecimentos que fizeram as pessoas guardarem distância umas das outras, por meses a fio. Falávamos, entretanto, quase todos os dias e eu acompanhava, de longe, os percalços de um tratamento médico que já há tempos era percebido, por ela a e depois por mim, como infrutífero e devastador.

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Menina na janela

Manhã de chuva, mas poderia ser também de sol forte e pleno. Lá estava ela. Na janela. O pai na roça, a mãe lavando roupa, os irmãos mais velhos na escola. Só ela em casa, triste, triste. Também, será por que dona Teresinha, a professora dos pequenos, tinha que adoecer justo agora? Nem a companhia de Malhada, a gata, era capaz de lhe trazer consolo, até porque a danada dera para namorar e mais ficava a andar por aí do que vir brincar com ela. E tudo demorava a passar, demais. A mãe queria ela quieta em casa. De outra vez tinha saído para dar uma volta e quase foi atropelada pela motoca do Zé Caxeiro. Para não dizer que não tinha nada para fazer, a mãe mandou vigiar a água na chaleira, para desligar, quando fervesse – vê se pode uma coisa assim. Ela era capaz de muito mais!

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Histórias de Segunda Mão

Estas são pequenas histórias, contos, ou, para ser mais modesto, se quiserem, uns simples escritos, se não desabafos. Por que as designo como coisa usada, que já passou por mais de um dono? Se tiverem um tempinho para escutar, eu explico. Começou assim: há coisa de uns 30 anos eu resolvi testar minha capacidade de ir além dos textos e relatos de natureza mais técnica ou circunstancial que até então representavam quase toda a minha produção escrita e foi assim que esbarrei com um personagem de Guimarães Rosa – desde então, ou mesmo antes, meu autor referencial – presente no livro Tutaméia, chamado João Porém, ao qual se adicionava o qualificativo: o criador de perus. Era um tipo humilde, morador de grotões, meio abilolado, sem outro derivativo na vida que não fosse sua criação de tais aves. Um personagem, aliás, em sintonia com outros tipos de pessoas alheias aos padrões dito normais da sociedade, prestigiados por Rosa, entre os quais se incluem, por exemplo, os Catrumanos (de Grande Sertão Veredas); o homem que abandona sua vida normal para passar o resto de seus dias em uma canoa (A Terceira Margem do Rio); a menina que tinha visões (A menina de lá); o homem recluso conhecido como Cara de Bronze (No Urubuquaquá, no Pinhém); a filha e a mãe de Soroco (Primeiras Histórias), além de muitos outros. E foi assim que resolvi dar continuidade à saga do criador de perus, com todo respeito pelo Rosa e mais do que isso, acreditem, querendo homenageá-lo. Adicionei, então, uma companheira ao pobre peruzeiro, trazendo também mais detalhes a sua pobre vida roceira, até sua morte no final. Daí nasceu Continuação, que faz parte desta pequena coletânea, como os leitores verificarão nas páginas seguintes.   O fato é que devo ter tomado gosto por tal coisa, embora a princípio não de forma assumida, até que em tempos mais recentes resolvi praticar tal arroubo como verdadeira missão, surgindo daí a dúzia de escritos que ora trago à luz.

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Anjo da Morte

– Quem, eu? Eu? Nem sei direito de quem o senhor está falando… Ah, daquele sujeito? Infelizmente, conheci. Foi meu marido sim, ou alguma coisa parecida. Foi, não é mais. Deus levou ele, ou foi o diabo, nem sei. Era mesmo uma peste de homem, pergunte por aí. Não é somente eu que digo isso. Outras mulheres que ele teve também confirmam. E mais gente, uns que trabalharam com ele, fizeram negócios, até mesmo vizinhos. Não tem um que defenda.

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Feitos de Luis Miranda

Caramelo

– Sim, passou por aqui. Ficou assentado ali naquele canto, pediu uma cerveja, abriu o celular e logo desistiu dele, já que aqui não tem sinal e ficou durante uma hora por aí, aparentemente sem ter muita coisa a fazer. Ou melhor, foi ter com a cachorrada. Aqui geralmente se reúnem uns dez ou mais desses, vivem todos soltos por aí, os donos não cuidam, sabe como é. Tem uns mais ariscos, mas aquele grandão lá, o Caramelo, sem vergonha como ele só, logo se faz chegado a todo mundo que passa por aqui. Parece até que já nasceu junto com a pessoa, na casa dela, criado ali no angu de cada dia. Com este sujeito aí, a amizade parece que nasceu de imediato. O sujeito ficou agachado ali na beira do rio e logo o rodearam uns quatro ou cinco cachorros. No final ficou só ele com o Caramelo e ali estiveram por um bom par de horas, ele jogando pauzinhos para o danado do cachorro buscar, o bicho correspondendo. Pareciam de fato velhos amigos. Dali foi fazer uma caminhada e lá foi o Caramelo atrás dele. Deve ter dado uma volta grande, pois demorou bem mais de uma hora para aparecer de novo. O Caramelo sempre com ele, sem desgrudar. Voltou aqui e comprou um pacote de biscoitos de polvilho. Comeram juntos, ele e o cachorro. No final, dividia cada biscoito em dois e comia um pedaço e oferecia ao Caramelo a outra metade. A esta altura já tinha até botado um apelido nele, que o bicho aceitou como se já tivesse nascido com tal nome. Voltou à brincadeira dos pauzinhos, mas a esta altura o cão já queria outra coisa, parece que descansar, nada mais. Deitaram-se, então, na sombra daquela ingazeira e ali ficaram por mais de uma hora, num sono daqueles. Fiquei impressionado, o Caramelo é dado a intimidades com todo mundo que passa por aqui, mas daquele jeito eu nunca tinha visto. Quando desceu para conversar com as lavadeiras, lá foi o Caramelo atrás dele. Aquilo era amizade pra vida toda, parece. Deve ser um cara legal, acho que quem trata os bichos daquele jeito só pode ser gente boa.

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Estórias de rossa e certão

Aqui vão mais algumas histórias (ou estórias) inventadas por mim. Podem chamar de “contos”, mas não sei se chegam a merecer tal categorização. Todas elas têm como pano de fundo a vida no interior, ou melhor, nos interiores, do país, tentando captar nuanças da personalidade dos brasileiros que por opção ou descuido aí vivem ou de tais lugares procederam. O título meio esquisito devo a … Continuar lendo Estórias de rossa e certão

Não fica um, meu irmão… (Farsa sanitária em dois atos)

Personagens: Carlos Afonso (também denominado Cento e Cinco); Percília – auxiliar de enfermagem; Rosa Emília – enfermeira chefe; Moça da limpeza; Santa Eufrásia (voz em off); Doutor Rivadávia; Agentes policiais (1 e 2). Cenário: enfermaria de hospital, com duas camas típicas, em uma das quais está Carlos Afonso, vestindo um pijama listrado, visivelmente curto para o seu tamanho. Na cabeceira de tal móvel uma placa … Continuar lendo Não fica um, meu irmão… (Farsa sanitária em dois atos)

Na flor da idade

Meu Tio e amigo. Hoje me dei conta que a minha vida tinha que mudar. Saí de casa sem saber para onde ir. Por sorte tinha algum dinheiro. Fui para a Rodoviária e por ali vaguei, por horas a fio. Cheguei ainda com a manhã fresca e por ali fiquei até a noite. Procurava um lugar para ir, se afastar de lembranças ruins, de uma vida que me trouxe tanto desgosto, nestes meus vinte anos. Eu, de fato, não sabia para onde ir, queria um lugar bem longe, afastado daqui, para nunca mais voltar. Na bilheteria tive o ímpeto de pedir uma passagem para o esquecimento, se isso fosse possível. Mas de toda forma ficou tarde para voltar atrás, pode acreditar, Tio.

Aqui vão mais alguns contos meus, tendo como personagens jovens pessoas como este aí, com tudo a que têm direito…

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