Que caso mais esquisito o que eu tive com aquela mulher. Eu chamaria aquilo de um negro amor, não como uma expressão racista (porque hoje esta palavra exige cuidado pra ser usada), mas como uma coisa que mesmo durante toda sua presença em minha vida eu só queria que acabasse e que fosse esquecida. Um sentimento que se tem, quem sabe, pelos mortos desconhecidos e incapazes de outra vez se levantarem. Pedras de um caminho que cumpria serem deixadas para trás.
Amor blue, não em algum tom celestial, mas naquela variante musical a traduzir paixão e páthos. Na pior fase, malgrado meu, eu a via em toda parte, até mesmo na expressão de algum mendigo na rua e, doideira minha, como se este vestisse a roupa que um dia foi dela. Aquele tapete que ganhei, tão caro e tão raro, eu bem queria que voasse sozinho e a carregasse para bem longe e nunca mais abrigasse nossos corpos no chão da sala.
De há muito eu queria que ela fosse embora da minha janela e da minha vida. Que se mandasse na rapidez que preferisse. Deixei bem claro que eu não era a pessoa que ela queria e da qual realmente precisava. Não, não e não: eu era outro! Ela que procurasse alguém que nunca fosse fraco, mas forte como um leão, para protegê-la e defendê-la. Não era o meu caso.
Estar certa ou errada, não lhe importava em nada. Queria um serviçal que lhe abrisse portas, de maneira quase automática, quando ela passasse. Cansei de dizer para aquela criatura que este não era eu, definitivamente. Insistia: não era eu o sujeito que ela procurava e queria, de fato. Mas de nada adiantava.
Ela infernizou minha vida, esta é a verdade; não me dava folga. Pelas noites, rondava as ruas da cidade a me procurar, nos bares e onde mais lhe desse na telha. Voltava para casa abatida e frustrada, e não perdia a oportunidade de me chantagear com declarações estapafúrdias de amor, dizendo não se importar que eu estivesse com meus amigos, nas rodas de dadinho e bilhar, até mesmo com outras mulheres. Que a única alegria que tinha era trazida por sonhos nos quais eu estivesse presente.
Desiste, esta busca é inútil – eu lhe dizia. Mas isso só lhe fazia intensificar aquelas cenas de ciúmes, me ameaçando até mesmo de me matar em alguma esquina da cidade, em cena que viraria manchete de jornal. Mas seria por puro amor, dizia ela. Aquilo era, de fato, o embate de duas insanidades, amor de animais, de cães de rua.
Admito que quela mulher de passado cheio de charme e mistério um dia me seduziu. Ela que se vestia tão bem e era capaz de dar gorjetas miraculosas aos mendigos e aos garçons. Mas logo eu vi a verdade. E passei a repetir o que outros já tinham alertado a ela: cuidado, boneca! Você com certeza vai cair! Ela ria, com escárnio, pensando que tudo aquilo era apenas brincadeira. Depois, o que se viu foi a perda do orgulho e até mesmo a necessidade de ter que negociar o jantar e o café da manhã a cada dia de sua vida. Rolando ladeira abaixo como uma pedra solta.
Mas era apenas uma mulher. Apenas? Quem diz uma coisa assim não sabe o poder que tais criaturas possuem. Aquela ali me acolhia igualzinho a uma mulher, digamos, normal; era até capaz de sofrer como uma mulher. Mas diante das verdades da vida se entregava, choramingava e desmoronava feito uma criança, mimada.
E eu não cansava de dizer que estava cheio dela, que se mandasse, que juntasse tudo que pudesse ou quisesse levar, tudo que fosse dela e até meu também. Mas que caísse fora de minha vida.
Tantas fiz que um dia perdi as estribeiras. E fui denunciado por ela na delegacia do bairro. Humilhado, chorei, não procurei esconder, mas todos ali, e mesmo outros vindos de fora ou passantes na rua, assistiram aquilo. Alguns fingiram ter pena de mim, mas não precisava. Eu bem que merecia. Mas o certo é que ali onde eu chorei, qualquer um chorava. Tive que dar a volta por cima – e quero ver quem seria capaz disso. Mas eu me achava um homem de moral, a quem não cabia ficar no chão, derrotado. Ela veio me dar a mão, não aceitei. Reconheci a minha queda, mas com honra. Levantei por meus próprios meios, não foi fácil. Sequei as lágrimas, sacudi a poeira, me compus no espelho. Dei a volta por cima, jurando que nunca mais.
E assim vi que aquilo eram chamas fatais em meu coração. Não era amor, propriamente, era pirraça, veneno, cachaça. Um amor vindo do meio dos infernos, de meter medo até no padre eterno. Eu já não podia saber o que seria o dia de amanhã para mim. Relembrar o que ficou pra trás, desejar com firmeza que nunca, nunca mesmo, eu padecesse mais. Mas ao mesmo tempo, que diferença faria eu sem ela? Vivi assim dias e noites iguais, numa jornada longa e vazia. Eu queria de todo jeito a paz, nem que fosse aquela trazida pela morte.
E, acreditem, um dia ela me procurou. Queria me devolver um anel que eu tinha dado a ela. Zanguei-me: melhor você penhorá-lo, querida! Que ela recorresse a suas fantasias, elas a chamavam, sem chance de qualquer recusa. E disse mais: quem já não tem nada, não tem nada a perder, torna-se invisível, não tem nem mesmo segredos para esconder.
Vi que agora, de fato, ela rolava ladeira abaixo, como uma pedra solta na encosta. Qual seria a sensação dela naquele momento? Não sei dizer. Mas imagino, o que significaria para uma pessoa deixar de estar por conta própria na vida e de repente ver seu rumo perdido, sem nenhum caminho para casa. Como uma pedra rolando, é a imagem que sempre volta à minha mente.
Saí andando a esmo pela cidade. Não me importava realmente com mais nada. Enchia a cara dia sim e outro também. Certa vez, em uma praça, roubaram minha carteira. Tinha um punhado de dinheiro, tudo que me restava. E também um retrato meu com ela, em tempos mais felizes. Fiquei sem a carteira e a grana, mas achei de bom tamanho a vantagem que aquilo me trouxe. E me saiu barato, pensando bem! Aquela foto era a algema que ainda me prendia àqueles tempos terríveis e só agora me dava conta disso. Roubado fui, mas pra sempre libertado depois disso.
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Dedico esta história a dois mestres da arte de narrar amores fracassados ou mal arranjados: Bob Dylan e Paulo Vanzolini.
