Principalmente nasci em Itabira

Para mim tal cidade, já há muitos anos (ou décadas) não é mais nem mesmo apenas uma fotografia na parede como disse Drummond. A foto que me ornamentou paredes, feita por mim mesmo em uma câmara pré-histórica, nos anos 60, há muito se perdeu, em algum pacote de mudança ou roída pelos cupins, da mesma forma que fizeram com a maioria das capas de long-plays que eu guardava fervorosamente, sem nunca ouvi-los. Mas voltemos à cidade. Frequentei Itabira, onde nasci em 1948, na minha primeira infância, por volta de 1954 ou 1955, passando dias memoráveis na casa de meus tios Virgílio e Marita. Depois, talvez pelos compromissos de meu pai, iniciando negócios próprios em BH, ficamos- toda a família – por alguns anos sem aparecer por lá.

Em 1961 ou 62, entretanto, lá retornamos. O velho Oldsmobile de meu pai – aliás, nem tão velho assim, talvez nem tivesse uma década de serviços prestados na ocasião – foi convocado e seguimos pela rodovia asfaltada recém-inaugurada, família completa, casal e cinco pimpolhos. Diga-se de passagem, sem cintos de segurança e com pelo menos um ou dois dos menores instalados no largo banco dianteiro da viatura, entre pai e mãe. Era assim que funcionava. A viagem foi sopa, como se dizia então.

Com efeito, as penosas seis ou mesmo oito horas dos tempos antigos, aliás, apenas cinco anos antes, agora pelo asfalto se resolviam em duas horas, ou até menos, dependendo de quão afoito fosse o motorista. Assim, a meros sessenta quilômetros ou pouco mais, menos de uma hora rodada a partir da capital, ao se dobrar a Serra do Espinhaço, no município de Nova União, já era possível avistar lá no fundo, à esquerda, o Pico da Conceição, um dos marcos de Itabira, que a Vale não conseguiu demolir. Daí, a pouco, em pouco mais de meia hora de estrada, já se adentrava em minha cidade natal.

Detalhe importante é que a rodovia, então chamada de BR 262 e depois convertida em 381, não tinha, nem de longe o volume de tráfego que tem hoje, pois ainda não alcançava as terras capixabas e uma parte dos empreendimentos siderúrgicos do chamado Vale do Aço ainda não tinham sido implantados. Era uma viagem tranquila, padrão mamão-com-açúcar em céu (e asfalto) de brigadeiro.

Uma cena de nossa chegada em Itabira naquela ocasião me marcou a memória. Já havíamos passado pela entrada da mina da Conceição, onde meus pais e eu mesmo, com menos de um ano de idade, moramos por algum tempo, quando minha mãe exclamou, ao contemplar o horizonte mais adiante: céus, o Cauê desapareceu! Com efeito, o pico que dominava o cenário da cidade ainda nos anos próximos ao meu nascimento, tinha sido simplesmente sovertido. O que havia em seu lugar era uma vasta plataforma, meio tapada pela poeira levantada pelos poderosos caminhões off-road, em seu afã de remover o minério até depositá-lo estrepitosamente nos longos trens da Vitória-Minas. Tudo em modo titânico.

Mesmo eu, que ainda poucos anos antes estivera várias vezes na cidade, tinha total dificuldade em reconhecê-la. É bem verdade que a casa de meus tios ainda estava como dantes, no mesmo caminho da Água Santa, com seu açude minimalista onde Virgílio criava suas rãs. Mas boa parte daquelas velhas ruas guarnecidas por vistosos casarões, com seus calçamentos de pedras vivas e brutas de hematita, que se enferrujavam depois das chuvas, eram agora asfaltadas. E me impressionei também com o fato de meu pai ainda ser reconhecido por onde passava, pois eu o achava completamente diferente daquelas fotografias que o mostravam nos anos da juventude.

Penso que este foi um marcante reencontro para mim, que havia, bem ou mal, transformado aquela cidade antes remota em algo mais próximo e familiar, idealizando-a romanticamente como aldeia ancestral. Isso talvez já me fizesse falta, por algum traço profundo de personalidade ou por ser um canceriano, cujos nativos, reza a lenda, são muito ligados a coisas assim.

Mas o que poso dizer com certeza é que muito apreciei tal experiência, de tal forma que, nos anos seguintes, já liberado para viajar sozinho e acossado pelos hormônios da adolescência, passei a cultivar de perto e por conta própria as minhas supostas lembranças itabiranas, fazendo da cidade uma praça de convites (ainda conforme Drummond), ou seja, palco de ingênuas namoricos e paqueras, celebrados naquele footing entre o Largo do Batistinha e o Clube Atlético Itabirano.

Mas como acontece quando a realidade da vida se impõe, um dia me cansei daquilo tudo. Eu já tinha meus dezoito anos e agora frequentava Itabira na companhia de dois irmãos, meus amigos, que também ali tinham raízes, pertencentes que eram à família Bretas. Eles eram dois caras vividos, enturmados, namoradores. Iam com frequência à cidade, onde tinham primos e principalmente primas, além de diversos amigos. Na ocasião, eu só tinha ali meu tio Heraldo, com seus filhos, bons primos-amigos, com cuja mãe eu não me dava muito bem. E foi assim que em um jogo de vôlei na rua, com as incontáveis amigas dos Bretas, uma delas se riu com as minhas furadas com a bola, objeto este, aliás, com o qual eu nunca tive qualquer intimidade, fosse com os pés ou com as mãos. E assim eu descobri o que era bullying antes, muito antes, de saber do real significado de tal palavra. Assim ofendido me retirei dali, passei na casa de meu tio, peguei minhas coisas e me mandei para BH, para somente voltar a Itabira muitos e muitos anos depois.

Assim, cerca de 1997 ou 98 fui matar saudades de meu querido Heraldo, o último tio materno ainda a residir na cidade. Levei comigo meu filho, Maurício. Com muito custo encontrei o alvo de minha visita, apesar de tê-lo avisado da ida, pois ele não estava nos altos do Campestre, onde ficava sua casa, mas sim em novo endereço, numa barafunda de ruas, pra lá da Estação Ferroviária. Impressionou-me o cômodo modesto que agora lhe servia de escritório, cozinha e, muitas vezes, aparentemente, também de dormitório. Tudo isso dentro de um terreno de uma serraria desativada. Coisas dele… No tal quartinho, me mostrou uma pasta cheia de escritos, poemas, crônicas, textos filosóficos, utopias – coisas assim. De repente ele me mostra um daqueles papéis onde escrevera um poema, que falava de terras compradas e defendidas com muito orgulho e tenacidade por ele, até que, na finalização, conclui: a terra não era minha, era da onça. Texto forte e sensível, de fazer orgulhosos os numerosos ecologistas da família.

Uma imagem dele, extensiva à cidade, me marcou profundamente nesta viagem. Fomos dar uma volta pelos arredores, passando pela antiga Fazenda Pontal, que foi de meu avô, (agora um autêntico “vale sinistro”, como previra Drummond), alcançando também uma propriedade dele onde havia uma bela cachoeira que lhe tinha despertado a ideia de ali construir um “clube da família”, tendo “viajado” nisso durante longo tempo. Já voltando para a madeireira extinta, em seu Fusca renitente, ao cair da tarde, eu apressado para pegar meu carro e enfrentar a BR 381 na volta para BH, noto que ele praticamente não mais acelerava o carrinho, antes o deixava descer livremente as eventuais ladeiras e depois deixava o mesmo estacar, sem mais nem por quê. Eu, com a pressa que estava, confesso que cheguei a ficar um pouco impaciente. Mas qual! Logo vi o que o movia (ou melhor, o que não o movia…) era a vontade de estender minha companhia e a de Maurício por mais tempo. Voltei para BH já com a noite fechada e não me arrependi.

É esta hoje a maior e melhor lembrança que tenho de Itabira.

Resumo da ópera: Hoje prefiro cultivar esta cidade não mais como uma fotografia na parede, mas sim no impressionismo da memória. Não dói nada, ou melhor, faz a gente se sentir bem através da consciência de ter raízes, mesmo que sejam aéreas e impalpáveis.

Um comentário sobre “Principalmente nasci em Itabira

  1. Oi, Flávio , que belas lembranças da nossa querida Itabira. Tenho ótimas lembranças das suas ladeiras que embelezavam as pernas das meninas. Uma vez, passando férias na casa tia Marita, ela foi fazer um doce de leite para mim. Era muito simples. Coloca-se uma lata de leite condensado na panela de pressão e, depois de um tempo era só deixar esfriar. Pois é, ela se esqueceu da panela e a cozinha toda, inclusive o teto, estavam lambrecados de doce de leite. Abraços.

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