Um homem recebe um visitante para uma longa conversa. Deste último, nada se saberá, exceto que vem da cidade, enquanto o anfitrião, também narrador, mora na roça. Mas se aquele se trata de pessoa letrada, com certeza interessada na longa conversa de que participa como bom ouvinte, pois não proferirá palavra, o anfitrião tem prosa rústica, porém articulada e fluida. Ele começa falando de generalidades, como de uns tiros que o visitante teria ouvido um pouco antes de chegar e aproveita para declarar seu gosto pelas armas, mas só para treinar a pontaria, pelo menos nos últimos tempos, pelo que se depreende. Fala das pessoas que lhe são vizinhas, da simplicidade e do modo tosco destas em relação às coisas do mundo; de um compadre que mora distante e que lhe traz inspiração espiritual, em relação à qual é muito respeitoso; de mulheres que ele paga para rezar para ele. Por que este homem precisaria de tantas orações assim? Já nesse momento o leitor começa a penetrar no universo denso e profundo da longa história que se desenrolará. Aqui e ali, já de início, o narrador coloca em pauta algumas dúvidas que tem, por exemplo, da presença de Deus na vida dos homens e também da contrapartida oferecida aos viventes por ninguém menos que o Diabo. Será que este de verdade existe, indaga repetidamente? Deixa no ar, em certo momento, uma frase que repetirá em vários momentos da conversa, a ser esclarecida só ao final: o diabo, na rua, no meio do redemunho.
Este homem é Riobaldo, atual fazendeiro e além disso, como se saberá depois, um antigo homem de armas, ou seja, um jagunço aposentado. Ele é o personagem central e também o único que tem voz em Grande Sertão: Veredas, romance épico de João Guimarães Rosa, livro que para mim é o mais essencial de toda a literatura brasileira. É dos amores de tal personagem que falaremos aqui.
Duas mulheres frequentaram, em diferentes tempos e maneiras, a sua movimentada vida. Otacília, esposa consagrada; Nhorinhá, meretriz e amor profano. Ana Duzuza, a mãe desta última, também está presente e é uma feiticeira capaz de ler o futuro das pessoas. São estas as mulheres mais presentes na narrativa de Riobaldo. Sua mãe, a Bigrí, também comparece, mas de forma muito menos constante ou relevante do que as acima. Dela há apenas quatro citações em todo o livro, contra mais de uma centena para Otacília, por exemplo. Dela sabemos pouco: era muito pobre, vivia como agregada de gente mais rica, usufruindo de suas sobras, por assim dizer. Riobaldo suspeita que seu “padrinho” Selorico era, na verdade, seu pai, expondo uma relação que certamente o envergonhava.
Mas entre aquelas três principais haveria algo que as uniria? Em termos físicos, não. Apenas o fato de Ana e Nhorinhá serem mãe e filha. Otacília esteve sempre apartada delas e não consta que sequer tenha ouvido falar de uma ou de outra. Mas na verdade a noiva e a prostituta representam diferentes perspectivas na vida do antigo jagunço e atual fazendeiro.
Otacília era a noiva prometida, mulher recatada, amor virginal de primeira visada, herdeira de terras no Urucuia a moça bem-criada para esponsais clássicos, figura de total pureza, sobre a qual Riobaldo não aceitava até mesmo que companheiros tocassem no nome, mesmo sem maldade. As referências a ela são respeitosas, românticas, revestidas mesmo de uma aura de pureza e castidade. O que empana o brilho de sua presença na vida do jagunço, muitas vezes, é a presença simultânea de Diadorim, seu amor de perdição, como se verá mais tarde. E há, quase todo o tempo, uma surda luta entre os dois amigos, fortes contradições, entremeando ciúmes e outros sentimentos negativos, que não chegam a ser redimidos por um grande segredo anunciado, mas nunca concretizado em seu esclarecimento.
Nhorinhá era o oposto de Otacília, embora também bonita na aparência. Nada virginal, ao contrário era mulher de muitos homens, de preferência estanhos à terra, por exigência da mãe. Enquanto a outra era daquelas mulheres que certamente baixaria o olhar na presença de outros homens, ela a eles se dirigia, não só com olhares provocativos e sedutores, mas com convites para entrar em sua casa, tomar café e refresco, além de ainda oferecer outros agrados, como aquele dente de jacaré e o bentinho oferecido a beijar para proteção de Riobaldo, homem que ela acabara de conhecer.
Ana Duzuza pertence a outra categoria de relação. Não há atração ou devoção por parte de Riobaldo, mas sim respeito pelas suas capacidades sobrenaturais, de bruxa, feiticeira, Parca sertaneja. Enfim, figura especial de mulher capaz de deslindar o destino dos outros. E isso toca Riobaldo muito intimamente, eis que ele muito se inquiria a respeito dessas coisas do destino de si próprio. O encontro com Duzuza lhe trouxe alguém capaz de penetrar neste território totalmente ignoto.
Embora de naturezas próprias e presenças tão diversas na vida de Robaldo, é notável perceber que, cada uma a sua maneira, ela respeita muito essas mulheres. Elas representam bem uma síntese entre o sagrado, o profano e a inquirição do destino que compõe, na justa medida, as preocupações existenciais ex jagunço. E neste campo, a equação da vida do mesmo se torna ainda mais complexa – e quase irresolvível – pela presença de Diadorim na vida de Riobaldo, que ultrapassa a dimensão do sagrado / profano, para jogá-lo, de fato e de direito, numa encruzilhada tenebrosa, que antepõe o certo com o errado; o permitido com o proibido e, no limite, Deus e o Diabo. E não é por acaso que o desfecho, relativo ao caso de Diadorim, vai se dar no meio de um redemoinho de poeira e sangue, em luta que não teve nem Deus nem o Diabo como vencedores. Restou o homem humano através do qual Riobaldo explica sua passagem pelos acontecimentos.
Riobaldo salvou a vida de Ana Duzuza, quase executada por Diadorim, e confiou nela mais do que tudo. Dedicou a Otacília sua devoção, fazendo-a de verdadeira santa em altar, além do melhor de seu espírito de homem cuidadoso e provedor, dentro dos trâmites sociais sertanejos. Mas foi para Nhorinhá que ofereceu o que nenhum outro homem poderia ter feito, ou seja, uma fidelidade não estritamente carnal, mas de encantamento e respeito à verdadeira fêmea que ela sempre soube ser, em sua peculiar combinação de ao mesmo tempo ser santa e pecadora. Para Otacília o leito nupcial, de certa forma burocrático e previsível. Para Nhorinhá as alegrias todas de um amor sem peias. Otacília talvez invejasse a pobre meretriz se tivesse sabido de sua existência ou pelo menos conhecido algo parecido ao que era a vida daquela.
E é este homem humano (demasiadamente humano…) que vai mostrar sua força em relação a estas mulheres, no que poderia ser a síntese – mas não foi – de toda a sua travessia amorosa e existencial.
É que havia no cenário, Diadorim…
Ele o vê pela primeira vez ainda na infância, na beira do São Francisco. Um menino bonito, encostado numa árvore, chapéu-de-couro de aba abaixada, sorrindo para ele. Tinha um cigarro na boca, o que deveria ser comum naquele tempo, mas para o pobre e reprimido Riobaldo certamente não o era. Regulavam na idade e se aproximaram instintivamente, numa simpatia imediata, sendo descrito como um menino bonito, claro, com a testa marcada e grandes olhos verdes. De imediato, contou que ele e seu tio tinham vindo até aquele lugar, um pequeno porto fluvial junto ao Chico para comprar arroz, já que o tio não se precavera o bastante em plantá-lo, por ter se enviuvado recente. O resultado do encontro é visível: o narrador declara que olhava aquele menino com um prazer de companhia, como nunca por ninguém tinha sentido. Achou-o diferente, com finas feições, voz muito leve e aprazível, uma conversa madura e sensata, que nele deixou um desejo de que ele não fosse mais embora. E conclui a narrativa: senti, modo meu de menino, que ele também se simpatizava a já comigo.
Muitos anos depois, já engajados, cada um, no ofício de jagunço, embora em bandos diferentes e rivais, eles se reencontram, na barra do rio das Velhas, em sua foz junto ao rio do Chico. Ele reconhece surpreso, de imediato, como um moço variado e vistoso, aquele menino da barra do Rio-de-Janeiro, que havia atravessado o rio com ele numa canoa precária, instilando coragem ao medroso Riobaldo, tanto tempo antes. Revê emocionado aqueles olhos intensamente verdes, de compridas pestanas, bonita boca e afilado nariz. Não mede palavras para descrever tal momento: arvoamento desses, a gente estatela e não entende; que dirá o senhor, eu contando só assim? Quer abraçá-lo de imediato, mas lhe falta coragem, no que é correspondido pelo companheiro, num rejeito, de acanhamento, porém sem deixar de também reconhecê-lo. Neste momento é que ficamos sabendo o nome social do antigo menino: Reinaldo – mas será apenas provisoriamente que será chamado assim por Riobaldo.
A narrativa segue em direção aos embates antevistos desde o princípio da narrativa e logo se verá o significado daquele enunciado o diabo na rua no meio do redemunho, presente já nas primeiras páginas do livro. Acontecimentos se sucedem: Reinaldo, finalmente declina seu verdadeiro nome, ou apelido, que é Diadorim; combates acontecem em toda parte, inicialmente entre os bandos rivais, depois unificados, sob a chefia de Zé Bebelo, para vingar o assassinato de chefe primordial, Joca Ramiro; um recado misterioso é entregue a portadores tropeiros; há uma carta para a noiva Otacília, entretanto só entregue muitos anos depois; Riobaldo, ascende à chefia do bando na luta contra traidores e se acredita pactuado com o Tinhoso e assim quase mata inocentes; os bravos urucuianos, ditos Catrumanos das Gerais, que haviam se juntado ao bando desertam da luta; um cerco feroz se estabelece em uma fazenda abandonada e é superada com finezas estratégicas por Zé Bebelo; as andanças pelo sertão ficam cada vez mais frenéticas; a luta se cristaliza na inação em certo momento, agravada por uma epidemia de varíola. No calor de tais acontecimentos, Riobaldo, atormentado pela culpa e pelo desejo, reflete: De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a culpa?
Diadorim, no calor de uma refrega, revela a Riobaldo algo muito importante, um segredo que logo se tornará claro, embora de maneira dramática: … quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você.
Na sequência, o terrível deserto do Liso do Suçuarão é atravessado pela segunda vez pelo bando, agora com sucesso. O objetivo é acossar de surpresa o Hermógenes, o Judas que executou Joca Ramiro, em sua fazenda às margens do rio Carinhanha, já em terras da Bahia. Na empreitada é feita prisioneira sua mulher, que passa ter um papel importante na história. É iniciada uma grande marcha, por sertões de Bahia, Minas e Goiás e a ação se acelera. Riobaldo surpreende uma conversa misteriosa entre Diadorim e a mulher feita prisioneira pelo bando, parecendo haver nela mais simpatia do que revolta ou desprezo diante da situação. Notícias chegam, informando sobre a vinda do Hermógenes, em busca de vingança e resgate da esposa. Os baixios do Tamanduá-Tão, onde se situa a vila do Paredão, definem o cenário de coisas pavorosas que acontecerão em breve. O plano da guerra que se aproxima é traçado como se fosse um capítulo de estratégia militar. Um dos Judas, o Ricardão, é logo encontrado, cercado e fuzilado no ato por Riobaldo.
Riobaldo percebe, na ocasião que a guerra agora é total e final, descambando fora do seu poder, vendo tudo pendurado para o fim. No avanço final dos combates, agora na fatal etapa de corpo a corpo, ele vê o que não queria: Diadorim a vir – do topo da rua, punhal em mão, avançar – correndo amouco. Contra ele, o Hermógenes, que logo rola com ele no chão, encarniçados, dobrando para fora e para dentro, com braços e pernas rodejando, como quem corre, nas entortações. A frase emblemática, anunciada desde as primeiras páginas do livro, finalmente se explica: O diabo na rua, no meio do redemunho. O cenário é de sangue espalhado na areia da rua, couro humano retalhado, carnes esfaqueadas sem pena, corpos de homens caindo como se estivessem remando no vazio, como porcos sapecados e rapados. E assim Riobaldo viu Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes. Mas não era tudo. O resultado foram os dois mortos, com a história acabada. O segredo de Diadorim se revela, mas isso se viu apenas na mesa mortuária: seu nome era, na verdade, o apelido de guerra de uma mulher perfeita, muito bem disfarçada num núcleo totalmente masculino.
Num suspiro sentido, Riobaldo declina: Diadorim tinha morrido ― mil-vezes-mente ― para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejaram. […] Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de verdes. […] será que a mereci só por metade?
E vai atrás das origens do ser amado, encontrando um registro no batistério da matriz de Itacambira, onde tem tantos mortos enterrados, na qual ela foi levada à pia e registrada, num setembro dos anos mil e oitocentos. Ela, Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins― que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor.
E encerrando a saga, Riobaldo faz uma síntese e diz como se entende diante de acontecimentos tão dramáticos: Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.
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