Dos três grandes rios mineiros, São Francisco, Grande e Doce, este último aí se tornou bastante notório apenas por dar nome à grande companhia mineradora (a qual, aliás, até já mudou de denominação). Nada de atravessar vários estados, alimentar grandes projetos de irrigação, atrair turistas em várias de suas paragens, possuir uma cachoeira monumental em sua nascente, gerar megawatts de energia para o progresso do país – coisas assim. Em todos esses quesitos, o Rio Doce é bastante modesto. Mas em compensação, é em suas margens, a meio caminho entre suas nascentes nas encostas da Mantiqueira e sua foz no Oceano Atlântico, que a sabedoria, a generosidade e o espírito público de Sebastião e Lélia Salgado criaram o Instituto Terra, através do qual uma enorme área devastada pela pecuária e pela agricultura predatórias está sendo recuperada, não só em termos do resgate de sua cobertura vegetal original, mas também quanto à facilitação do reaparecimento de inúmeros mananciais. Além disso, um centro de educação ambiental e treinamento agroflorestal, um potente viveiro produtor de espécimens da mata atlântica, uma magnífica atração turística que a região até então não conhecia, para não falar na marcante promoção de cidadania e da consciência ambiental. E, principalmente, ter se constituído em empreendimento que enche de orgulho, alegria e esperança a quem o visita. Acho que são motivos mais do que suficientes para alguém, como eu, sair de Brasília, pegar um avião para BH e depois enfrentar (melhor dizendo, curtir) dez longas horas em trem de ferro para lá se chegar. De fato, valeu a pena, e aqui relato um pouco do que vi e senti por lá.
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O rio Doce. Este nasce nas proximidades da cidade de Barbacena, nas fraldas da Serra da Mantiqueira, aliás, parideira também de outro grande rio, cujo nome faz jus ao seu porte e à sua importância: rio Grande. Ele atravessa uma vasta região ao leste de Minas Gerais, recebe numerosos afluentes, dirige-se inicialmente para o ponto cardeal nordeste e depois para o leste verdadeiro e depois sudeste, já dentro do estado do Espírito Santo, até que se entrega ao mar, próximo ao município de Colatina.
Primitivamente nascia e corria por terrenos fartamente ocupados pela portentosa Mata Atlântica, mas tais paisagens, hoje, são apenas relíquias, presentes apenas em pequenas manchas, lembrando de um tempo já findado. Uma pena…
Por que o nome? Rios são sempre feitos da chamada água doce, mas ter recebido o nome que este tem remonta aos primórdios da invasão branca. Não fiz uma pesquisa profunda, mas imagino que isso possa se referir a um modo “doce” de fluir, em grandes trechos remansosos, embora entrecortados por outros pedregosos, mas mesmo esses sem corredeiras ou cachoeiras. Pode não ser a verdade histórica, mas desde já a elejo como minha preferida. Quando o avistamos pela primeira vez, pelo trajeto da estrada de ferro, pouco depois de Ipatinga, até as proximidades de Governador Valadares ele faz jus, literalmente, a tal nome. De GV em diante se alternam trechos lisos e pedregosos. Em Aimorés a intervenção humana provoca uma mudança radical em seu modo de fluir, mas isso é assunto para depois.
É sem dúvida um belo rio, mas o mesmo não se pode dizer das cidades à sua beira. A mais importante delas, em termos populacionais e econômicos é Governador Valadares, que acaba sendo mais uma daquelas típicas cidades médias ou grandes brasileiras, marcadas pela ocupação desenfreada do solo, pela desigualdade e consequente pobreza de sua periferia. Notável cidade, principalmente pela habilidade (ou seria simplesmente a necessidade?) de muitos de seus cidadãos migrarem aos Estados Unidos para ganhar a vida. Uma parte de sua pujança, reza a lenda, provém dos dólares que essa gente investe diretamente na economia local, além de remetê-los aos familiares que por ali ficaram. Valadólares é o conveniente apelido que alguns lhe conferem.
As outras cidades, quase sem exceção, são de uma feiura exemplar. Tipicamente se estendem pela planície ribeirinha, que costuma ser de pequena amplitude e assim logo escalam os morros circunjacentes, em ruas inclinadas a pique, com um casario tosco e mal acabado, no qual a presença de alguma pintura, seja branca ou colorida, é completa exceção. Lembro-me, por exemplo, de Conselheiro Pena e Resplendor, que obedecem, rigorosamente, tal padrão. Aimorés talvez seja uma exceção, ma non troppo, como se verá adiante.
A fisionomia do rio Doce, pelo menos no trajeto ora percorrido é peculiar. Parte do que se vê são os calmos remansos, mas aqui e ali, principalmente depois de GV, isso dá lugar a um largo e extenso leito pedregoso, qual um gigantesco pé de moleque, dentro do qual muitas vezes mal se vê o correr das águas, perdidas em meandros em meio a rochas de tonalidade cinzenta. Em tais trechos algumas vezes temos a sensação que nem existe rio.
E por falar em pedras, aspecto de destaque em toda a região percorrida são as verdadeiras montanhas de pedra lisa e arredondada, lembrando o Pão de Açucar dos cariocas. Estão separadas uma das outras, como se fossem ilhas de pedra em meio à paisagem, donde lhes veio o nome técnico de inselberg, que em bom alemão significa montanha-ilha. Embora marquem presença, não são típicas daqui, pelo contrário, pelo que já observei são mais abundantes nos vales do Jequitinhonha e do Mucuri, mais ao norte.
Viajar pelo rio Doce desperta uma pergunta natural: de que vive, afinal, esta gente? Não há grandes lavouras, nem tampouco chaminés industriais visíveis. Os sinais de atividade econômica certamente advêm do primarismo agrícola, melhor dizendo, pecuário. Mas deve-se notar que a presença de instalações marcantes de tal setor da economia também não é muito visível pelo Vale a fora. Pelo contrário, o que normalmente se vê são pequenos currais e outras instalações igualmente modestas. Nada de silos, de galpões, de instalações de refrigeração ou algo parecido, mesmo moradias de melhor padrão. A indagação registrada acima fica praticamente sem resposta, portanto. Ou então sua explicação é simples: aqui se vive no limite (inferior) de uma economia rural, longe de ser realmente moderna.
Em outras palavras: se não há muitas favelas (mas é possível que haja), em GV, Resplendor ou Aimorés, por exemplo, pode ser apenas um sinal de que elas estão sendo “exportadas” para a capital do estado. Como, aliás, parece ser a regra no Brasil.
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A Estrada de Ferro Vitória a Minas. Ferrovia, no Brasil atual, é motivo de espanto, se não de admiração e esta não foge a tal regra. Originalmente se destinava a escoar minério, rumo ao porto de Vitória, mas acabou transportando gente também, o mínimo que poderia ser feito com real alcance social para o povo do Vale.
Não é pouca coisa, são 560 km de linha férrea, que se junta a outra operada pela mesma empresa, esta última entre Carajás, no Pará e São Luiz, no Maranhão, medindo outros tantos km.
É uma obra e tanto, não só pelo que mostra hoje em termos de tecnologia e capacidade de carga, mas também pela verdadeira epopeia que deve ter sido sua construção, nos anos 20 do século anterior, quando aterros eram amontoados por carrocinhas puxadas por burricos e túneis eram abertos a golpes de picareta. A gestão da ferrovia teve história atribulada, mudando de mãos algumas vezes, entre ingleses e norte-americanos, até que foi nacionalizada e abarcada pela companhia Vale do Rio Doce, fundada por Getúlio Vargas em 1942.
Deixem-me abrir um parêntese: a fundação da Vale, tem muito a ver comigo. Não é falta de modéstia, absolutamente. Acontece que neste mesmo ano meu pai veio trabalhar em Itabira, aproveitando a abertura de mercado de trabalho possibilitada pela nova empresa e daí, poucos anos depois, conheceu minha mãe. O resto é história previsível.
Mas admirável mesmo é este Trem da Vale, como é apregoado nas páginas da web da companhia, até com certo orgulho. São vagões modernos, com ar condicionado, poltronas estofadas, comida a bordo, tripulação bem treinada, tudo com conforto e dignidade. É impossível não imaginar que um dia poderíamos ter transporte ferroviário de passageiros por toda parte no Brasil, como acontece na Índia, por exemplo. Por que não? Não percamos as esperanças. De toda forma, nota-se que esta linha, de BH até as cercanias de Vitória, exerce uma função social verdadeiramente notável, pois é grande o movimento entre cidades durante todo o trajeto, levando e trazendo gente até mesmo de pequenos lugarejos, como um tal de Periquito, que fica próximo a GV, ou Ipaba, nos arredores de Ipatinga. Como nem tudo é perfeito, o Trem da Vale deixa a desejar em termos de velocidade, que não passa dos 60 km por hora, ou menos do que isso a maior parte do tempo. Mas o tempo consumido em uma viagem assim seria, certamente, variável de menor importância, havendo muitas coisas significativas para se ver e aproveitar em seu percurso.
Uma coisa é certa: o modelo exportador mineral para o qual a Vitória a Minas foi construída já dá mostras de esgotamento, pelo menos nesta província. Estima-se, aliás, que as minas de Itabira possuem viabilidade para apenas mais 15 anos. A cidade onde eu nasci já começa a respirar um ar de fim de festa, pelo que sei, antevendo aquela derrota incomparável de que falava Drummond. Resta saber se secos os morros de ferro (idem) esta maravilha de aço e rodas continuará a circular pelo vale a fora, levando e trazendo gente humana, na ausência de sua carga preferencial histórica.
Aliás, já é possível perceber que a presença daqueles trens quilométricos, pesadamente carregados com minério de ferro, já não é tão notória ao longo da linha.
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A cidade de Aimorés. É melhor deixa-la a salvo dos atributos de feiura que declinei em linhas acima, a respeito de outras comunas do vale. Ela é, sem dúvida, melhorzinha, por alguma razão que me escapa. Em primeiro lugar, ocupa uma planície mais larga e extensa, o que faz com que a escalada das construções pelos morros circunvizinhos não seja tão imperiosa como nas demais. É bem traçada, dentro de um desenho por assim dizer longitudinal, acompanhando em uma curva ampla, o curso do rio Doce, ou daquilo que um dia ele foi, como se verá adiante. Tem boas construções públicas e privadas, além de um comércio pulsante, no qual se destacam estabelecimentos de serviços, sejam educacionais ou de saúde. A estação da EFVM foi muito bem reformada e brilha como se tivesse sido inaugurada apenas na semana passada, embora só abra duas vezes por dia, quando lhe chega o Trem da Vale na ida e na volta de seu périplo entre Vitória e Minas.
Mas ter falado em curso do rio me obriga a abrir um parêntese, pois em Aimorés simplesmente acontece o seguinte: não há mais rio passando… Seria resultado das mudanças climáticas? De alguma ação desastrada do bicho-homem? A resposta está mais nesta segunda opção, mas podemos retirar daí o termo pessimista ou pejorativo, pois não é bem um caso de desastre, por certo.
Tal fenômeno começa a ser explicado a partir da própria visão janela do trem na chegada, quando vemos, pelo lado esquerdo da composição, que a formação pedregosa do leito do rio, dominante na maior parte do trajeto depois de GV, agora, por muitos km, se transformou em plácido lago. Logo adiante isso se explica: há uma barragem que detém radicalmente o rio. É longa, mas não é muito alta, mas o fato é que a partir dela o rio não corre mais, deixando a cidade de Aimorés, logo adiante, carente de ser banhada por suas águas. Trata-se de uma obra de engenharia curiosa: o rio, assim barrado, passa a correr ao revés por um afluente de sua margem esquerda e dali, canalizado, precipita-se por um desnível de terreno, no território do Espírito Santo, fazendo assim girar turbinas hidrelétricas. É claro que mais adiante, no município de Baixo Guandu-ES, o Doce volta a ser rio, mas Aimorés ficou assim para sempre privada de suas águas, à beira das quais muita pescaria, aventuras, belos crepúsculos e muitas cenas de romance devem ter acontecido.
Mas pode-se dizer que houve um bom aproveitamento, ou pelo menos uma compensação, embora relativa, relacionada a tal intervenção humana. A cidade ganhou uma longa via “ribeirinha” (embora sem rio), ali denominada, embora impropriamente, de “cais”, na qual as pessoas fazem caminhadas no final de tarde e crianças pedalam suas bicicletas, em que pese o fato de que poucas benfeitorias extras estejam instaladas. A verdade é que o aproveitamento poderia ter sido mais completo, se não inteligente, já que o antigo leito pedregoso do rio, agora quase seco, mesmo assim permitiu crescer em seus bancos de areia e aluvião uma mata de porte até razoável que poderia ser aproveitada para abrigar trilhas, equipamentos de ginástica, churrasqueiras, quadras esportivas, camping, anfiteatros etc. Mas nada disso acontece, ao contrário, o que se tem é lixo, detritos diversos e resíduos secos da tal mata, atirados a esmo. Se fosse fácil, acredito, alguém já teria providenciado das andamento a estas minhas sugestões, mas mesmo assim indago: quais seriam tais dificuldades? Por que não o fizeram?
De toda forma, Aimorés escapa de uma sina comum das cidades ribeirinhas mineiras e talvez mesma brasileiras, qual seja a de os morros serem ocupados de maneira geralmente desordenada pelos segmentos mais pobres, com as melhores residências e a urbanização mais proeminente situadas nos baixios. Como disse acima, a escalada dos morros pela urbanização precária é aqui menos impactante, ao contrário de muitas outras cidades que conheço, entre as quais posso citar Manhuaçu e Teófilo Ottoni, que são paradigmáticas neste aspecto.
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O Instituto Terra. Já falei do misto da sabedoria, generosidade e noção de cidadania características do projeto existencial de Sebastião Salgado e Lélia Wanick, consubstanciados neste magnífico Instituto Terra, sediado em Aimorés. Nesta cidade não tem rio, nem inselberg, nem usina ou ferrovia que faça sombra a tal obra, humana ou natural, acima de tudo, essencial e transcendente, que faz uma enorme área devastada pelo predatismo agrícola seja recuperada em sua cobertura vegetal e geração de mananciais hídricos.
Não bastasse isso, ali estão instalados, um polo de educação ambiental e agroflorestal e um imenso viveiro de mata atlântica, somando a isso a constante promoção de cidadania e da consciência ambiental. De fato, é de encher de orgulho, alegria e esperança o coração de quem conhece o projeto.
A antiga fazenda da família Salgado fica situada logo ao lado da cidade, sendo sua antiga porteira de entrada justamente o término de uma rua, urbana e comum. A comparação entre o antes e o depois que algumas das fotos ali expostas nos permite é extraordinária. Creio mesmo que poucas intervenções na natureza, ao longo do mundo, foram capazes de realizar algo assim. É o tudo versus o nada; a floresta viva versus o descampado radical. É mais uma prova de que é possível transformar sonhos em realizações reais.
Para falar de pessoas iluminadas como Lélia e Tião, nada como versos de certos poetas, sintonizados com eles em termos de uma profunda consciência humana e social. Assim, disse, por exemplo, Fernando Pessoa, como se referisse ao Projeto Terra:
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce,
Deus quis que a terra fosse toda uma,
[…]
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
E não poderia faltar aqui a síntese de Bertold Brecht:
Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis.
Salve, pois, estes sonhadores e fazedores do impossível, verdadeiras pessoas imprescindíveis que são Sebastião Salgado e Lélia Wanick!
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Gente do rio Doce. Não creio que exista um cidadão típico do Vale do rio Doce, como aquele sertanejo, descrito por Euclides da Cunha, com suas tintas românticas e um tanto eugenistas.
Para falar dos tipos que construíram esta realidade, onde se contrapõem riqueza e miséria, modernidade e tradição, tecnologia e ferramentas rudimentares, tradições indígenas e de matriz europeia, resolvi tomar, um tanto aleatoriamente, alguns tipos ideais que compõem, diretamente ou através de suas influências históricas, a cultura e algumas das características da fauna humana do vale do rio Doce, desde já assumindo total responsabilidade pelas escolhas.
Sebastião e Lélia, de quem já falei acima, devem, naturalmente, encabeçar qualquer lista, embora somente ele tenha nascido em Aimorés. Mas ela não está distante disso, capixaba que é.
Ah, os famigerados Botocudos, primitivos habitantes não só do vale como de terras mais ao norte, no atual estado da Bahia. Em primeiro lugar cabe lembrar que esta é uma designação pejorativa, dada pelos lusitanos, que os consideravam mais feios ou estranhos do que os demais índios conhecidos, pelo uso dos batoques em lábios e orelhas (como aquele do cacique Raoní). O mínimo que os historiadores menos sensíveis e mesmo caretas falam deles é dado pelas palavras selvagens, bravos, brutos, ferozes, como tratassem de animais. Eles são também conhecidos como Aimorés, Boruns ou Guerens. Espalhavam-se, em séculos passados, por todo o Sul da Bahia, vales do rio Doce, Mucuri e Pardo, bem como todo o norte do Espírito Santo. Quando os portugueses chegaram, viviam da pesca, caça e coleta, além de pequena agricultura de subsistência. Foram eles o grupamento que opuseram maior resistência aos invasores brancos, sendo de fato muito aguerridos, defendendo seu território com determinação, não hesitando em tocar fogo em fazendas, igrejas e aldeias, não deixando por menos com outros grupos originários, como os goitacases, situados mais ao Sul. Não foi por pouca coisa que os portugueses passaram a tratá-los não só com violência desmedida, mas também com o apelido pejorativo. Os grupos do Rio Doce, sobreviventes destituídos de suas terras, foram, por assim dizer “aculturados” no início do século XX e assim recolhidos (reduzidos) a diversas localidades situadas no Espírito Santo e em Minas Gerais, como é o caso da própria Aimorés e Maxacalis.
Botocudo legítimo, melhor dizendo um Krenak, é o Ailton, que todo mundo conhece – ou deveria conhecer – no Brasil atualmente. Ele se tornou uma figura emblemática na época da Constituinte, quando discursou, de terno e gravata, mas com o rosto pintado de preto, em defesa dos direitos indígenas. Isso se transformou em peça chave na proteção dos direitos dos povos originários e de outras minorias. Ele também é notável e pulsante como filósofo, escritor, pensador, militante de boas causas, em atividade permanente, tendo sido eleito para a Academia Brasileira de Letras há dois anos. Não nasceu aqui na beira do Rio Doce, mas sim em Mantena, ainda no mesmo vale, alguns km ao norte.
A história dos Krenak, dos quais Ailton é legítimo e honroso representante, é uma narrativa de resistência e luta pela preservação da identidade cultural originária e dos respectivos direitos territoriais, respeitando a rica diversidade desses povos no Brasil.
Guido Marliére. Europeusnos trópicos são sempre “do mal”? Neste caso particular, rezam as lendas, ou melhor, os textos disponíveis, que este indivíduo de fato era um bom homem. Passado tanto tempo, quase de dois séculos, não se pode garantir nada, claro, mas este aí não deixa de ser dono de uma história bem interessante.
Marliére era francês e viveu entre 1767 e 1836, boa parte de sua vida neste mesmo vale do rio Doce, onde veio a falecer, depois de viver por aqui mais de 30 anos. Teve uma vida cheia de aventuras. Lutou nas guerras napoleônicas, tanto a favor como contra os franceses, o que o forçou a migrar para o Brasil. Foi militar e recebeu o cargo de Diretor dos Índios no Brasil, sendo responsável pela criação de diversos núcleos de povoação e por “pacificar” índios (eita! Cuidado!) de várias tribos diferentes. Mas consta que acabou conhecido por seu humanismo, em choque com as ideologias de conquista sangrenta próprias da época colonial, tendo sido até perseguido por dele desconfiarem os portugueses, que estavam em guerra contra a França de Napoleão.
Depois de cumprir prisão em Vila Rica, solicitou à Coroa Portuguesa – e foi atendido – designação para poder trabalhar entre os índios, a partir de 1813. De assim início ao trabalho de “pacificação” de índios, sobretudo dos Botocudos, inclusive no levantamento de usurpação de terras e outros abusos correlatos cometidos pelos brancos. Lutou pela substituição de administradores inadequados ao trato com o indígena; pela criação de escolas e abrigos hospitalares, sem descuidar, claro, de levantar a ocorrência de ouro na região.
Marliére é conhecido como o Pacificador do Vale do Rio Doce (coloquemos reservas nisso…) e até mesmo deu seu nome a um município situado nas proximidades de João Monlevade, Marlieria. Em 1828 vai fundar o atual município de Cataguases, já exercendo um novo cargo, o de inspetor de estradas, na região da atual Zona da Mata. Ele que era apenas um sargento, foi reformado no posto de coronel e terminou seus dias em um lugar chamado Serra da Onça, em uma fazenda Guidoval, nome também conferido em homenagem a ele, na região onde hoje está instalado o município homônimo.
Percival Farquhar, Grandes capitalistas, inclusive aqueles que põem seu dinheiro a produzir bens, e não apenas mais dinheiro, são normalmente figuras polêmicas, seja pela sua ousadia empreendedora ou, na pior das hipóteses, pelo seu desprezo por escrúpulos, econômicos, sociais ou ambientais em seus projetos, o mais das vezes megalomaníacos. O presente personagem é figura emblemática em todos esses aspectos. Ele nasceu na Pensilvania, EUA em 1865, filho de uma família abastada, vivendo até 1953, e se notabilizou não só como empresário, mas também como político. Suas atividades empresariais se deram em diversos focos, tendo concentrado suas energias capitalistas no ramo ferroviário e na exploração de recursos naturais, além de outros setores, com foco principal na América Latina. Estudou engenharia e se formou também em advocacia, de forma coerente, aliás, com sua política financeira.
Provavelmente ele nunca veio pessoalmente ao vale do rio Doce, à Itabira e nem mesmo ao Brasil, mas, como se verá, deixou por aqui profundas marcas, para o bem e para o mal.
Suas influências no Vale do Rio Doce ocorrem a partir da compra, por ele, em 1919, de uma companhia inglesa, a Brazilian Hematite Syndicate, fundada em 1909, dentro de um projeto em que havia grandes áreas adquiridas na região de Itabira, além das ações da primitiva Estrada de Ferro que ligava tal região ao litoral, e que mais tarde viria a ser a EFVM. Assim, em 1919, Percival Farquhar adquiriu a Itabira Iron Ore Co., empresa derivada da Brazilian Hematite Syndicate, com o objetivo de explorar e exportar o minério da região de Itabira. Sua intenção era de ali extrair minério de ferro, para exportá-lo com a construção associada de uma usina siderúrgica em solo brasileiro. Tal projeto, na verdade, ia mais além, ao incluir a exportação, através de navios da própria empresa, de minério de ferro, trazendo em seu retorno o carvão mineral dos Estados Unidos e da Europa, material este escasso no Brasil.
Tal projeto gerou embates políticos fortes no Brasil, polarizando visões conflitantes e irreconciliáveis, de um lado, o grupo liderado por Arthur Bernardes, mineiro e ex-presidente da República, interessado em formar no país um polo siderúrgico verdadeiro, arregimentando grupos nacionalistas, entre os quais se incluíam os tenentes de 1922 e os intelectuais de visão política mais moderna. Do outro lado, além do próprio Farquhar, o então presidente da República, Epitácio Pessoa, mais interessado na exportação do minério, partindo do pressuposto de que o consumo de aço no Brasil jamais justificaria a instalação de uma siderúrgica de grande porte e que os investimentos governamentais deveriam se concentrar no social, deixando para a iniciativa privada a função dos investimentos de risco.
Farquhar colocou-se assim, deliberadamente, no fulcro de uma calorosa e violenta polêmica nacional, que duraria até 1942 e que certamente lhe rendeu muitos inimigos. Seu primeiro tropeço ocorreu quando Arthur Bernardes se tornou Presidente da República, em 1922, promulgando uma lei que taxava fortemente o minério de ferro bruto que fosse exportado, inviabilizando, na prática, tal atividade.
A roda da história girou com a chegada ao poder, em 1930, de Getúlio Vargas, de vertente nacionalista, contando com o apoio dos tenentes, a partir do que a exploração das jazidas minerais no Brasil passou a depender de prévia concessão do governo federal, a qual só poderá ser outorgada a empresas brasileiras, cujos acionistas fossem brasileiros. Isso, evidentemente, era tudo o que Farquhar não desejava. O norte-americano, todavia, não se deu por vencido e em 1939 criou a Companhia Brasileira de Mineração e Siderurgia (CBMS), numa jogada para continuar seus projetos, colocando tal empresa como nacional e dirigida por brasileiros, embora ele detivesse 47% das ações da mesma. Esta CBMS obteve concessão para operar a ferrovia Vitória a Minas. Em 1941, já no cenário da Segunda Guerra, Farquhar tenta novas jogadas, ampliando o escopo de sua empresa e obtendo financiamento estatal para o término da EFVM, que finalmente chega ao Pico do Cauê, em Itabira. Foram expedientes tardios que não surtiram os efeitos desejados pelo norte-americano, já que Getúlio Vargas conseguiu obter o apoio dos EUA para a construção de uma siderúrgica de grande porte no Brasil, a CSN, bem como a expropriação do patrimônio de Farquhar, dando origem a uma nova empresa, estatal, a portentosa Cia. Vale do Rio Doce.
Por que coloco Percival Farquhar na categoria das pessoas formadoras ou de alguma forma impulsionadoras do progresso da região do Rio Doce? Sem dúvida, este homem não é nenhum herói libertador nacional, tipo Simón Bolivar ou um Dom Pedro de Orleans e Bragança. Longe disso, naturalmente. Ele estava aqui para ganhar dinheiro e atrás de tal objetivo era capaz de fazer qualquer coisa, metendo-se, por exemplo, em vastos projetos de ferrovias e exportação de comodities, por exemplo, abrindo caminhos de ferro entre a capital da República e a fronteira Sul do país, e também a Madeira-Mamoré.
Mas ninguém pode negar que sua ousadia deixou marcas naquele Brasil atrasado, dominado por terratenentes, impregnado de extrativismo e recém saído da escravidão. O vale do Rio Doce teria outra feição não fosse pela criação e manutenção da ferrovia, pela geração dos royalties de exploração mineral, pela faceta integradora e de expansão econômica e cultural que bem ou mal o capitalismo carrega consigo. Percival Farquhar, sem dúvida, representa uma síntese de tudo isso.
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Depois de falar de tanta gente ilustre, que é em sua maioria personagem em livros de história e jornais, preciso falar de alguém que conheci pessoalmente e com quem, aliás, privei de intimidade e por quem tive grande admiração. Falo de José Teubner Ferreira (o Zecão), que por conta própria incluo, com muita honra, na galeria de personagens notáveis deste vale do rio Doce. Eu o conheci quando eu era residente no Hospital das Clínicas da UFMG e juntos acompanhamos pacientes operados por ele. Nenhuma vantagem em ficar amigo de tal figura; era simplesmente impossível não sê-lo. Era um tipo meio quixotesco, magro, alto, comunicativo, engraçado, portador de um gogó saliente e sempre de alguma boa história para contar. Zecão era, principalmente, dotado de um profundo senso de justiça social, demonstrada em qualquer circunstância, sem que isso o transformasse em algum chato politicamente correto.
Uma breve história que sua amizade me proporcionou, com consequências para minha vida daí em diante, é a seguinte: um dia, cerca de 1976, este eterno militante de causas progressistas e, ás vezes, perdidas, pediu-me um dinheiro “emprestado”, pouca coisa na verdade. Era sua maneira de envolver os amigos em uma nova causa: a assinatura de uma publicação, que um grupo de gente de esquerda estava fundando, para discutir a questão da saúde no Brasil. Assim me aproximei do CEBES, da Saúde em Debate, e também de muitas pessoas que tinham preocupações semelhantes às minhas e que vinham, bem ou mal, encontrando caminhos para ampliar e debater suas ideias, mesmo face ao ambiente de ditaduras (dos militares, do INAMPS, da medicina corporativa, da falta de perspectivas, etc.) em que nos encontrávamos. Foi por este caminho que eu me decidi, três anos depois, a abandonar os plantões, meu consultório, minha roupa branca, minha disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias na Escola de Medicina de Uberlândia, indo desembarcar no Rio de Janeiro, com família – três filhos pequenos! – e muita disposição em iniciar um novo ciclo de minha vida profissional, depois de um curso de planejamento em saúde na Escola Nacional de Saúde Pública.
Em 2010 ou 2011, voltando desta mesma Aimorés onde estamos agora, Zecão se transformou em mais uma vítima da BR 381. Trago ele aqui para lembrar in memoriam de uma pessoa formidável, mais um daqueles seres realmente imprescindíveis.
FIM
