Foi assim (Amor em tempos de pandemia)

Parecia em cena de filme. Eu dirigindo pela noite a dentro, tendo pela frente horas e horas de estrada deserta, para estar com aquela pessoa tão querida e especial, em seus prováveis últimos dias ou horas de vida. Eu vivia aquilo como um transe, desencadeado pelo telefonema que recebi ao chegar do trabalho. Sim, ela chegava ao fim.

Eu não a via havia algum tempo, seis ou sete semanas, mais exatamente, afastados que estávamos pelos terríveis acontecimentos que fizeram as pessoas guardarem distância umas das outras, por meses a fio. Falávamos, entretanto, quase todos os dias e eu acompanhava, de longe, os percalços de um tratamento médico que já há tempos era percebido, por ela a e depois por mim, como infrutífero e devastador.

No início de tudo, porém:

Amigo, estou preocupara com esta febre, que não cede há semanas.

– Não há de ser nada, faça um exame de urina…

– Sei lá, com a história familiar que eu tenho, melhor não facilitar.

– Talvez seja o caso de procurar um médico, então.

– Este é o meu medo verdadeiro.

 ***

Muitos anos antes… Eu trabalhava naquela repartição de coleta de impostos, onde nada acontecia. Éramos um punhado de burocratas esperando apenas o relógio marcar as cinco horas para bater o ponto e cair fora. A chegada da nova funcionária, transferida da sede, na capital, nos trouxe alento e curiosidade. E ela não decepcionou, pelo menos a mim que encarava o trabalho com espírito diferente de uma parte daqueles ali, cujo expectativa real era de não se comprometer com nada, não ir atrás de complicações, como eles diziam.

Na verdade, eu sabia muito bem quem era ela. A bem dizer, havia uma ligação antiga, embora não exercida de fato, entre nós dois. Eu conhecia seu pai, meu professor no ginásio, mas que continuou ligado a mim e a outros colegas depois disso, embora nos víssemos raramente, como uma espécie de involuntário guia espiritual. Em uma das vezes que o reencontrei, diante de meus posicionamentos políticos, me disse: você precisa conhecer melhor a Maria Lucia, minha filha, vocês pensam igualzinho. Eu não a via senão raramente, mas nunca pude me esquecer do que me dissera o velho professor Jaques.

Na sua apresentação ao grupo, na chegada à tal repartição, ela se desculpou: – gente, vão me desculpando, mas sou muito intrometida

E logo demonstrou o que ela designava como tal. Insurgiu-se, de pronto, contra aquela nossa mania de anotar lembretes em cadernos, quando já tínhamos um sistema informatizado de registro de tais informações; as nossas reuniões sem hora para começar e acabar; a falta de protocolos relativa a decisões ali tomadas, bem como de prazos e personificação de responsabilidades. É claro que a maioria odiou e logo se indispôs contra ela, pelo menos às escondidas. Mas para minha mente aquilo era música, divina. Era uma sacudida que, mesmo sem o saber de fato, no fundo eu bem desejava.

Mas já então, não podia me enganar, havia nela algo mais a me tocar, além daqueles modos incisivos. Aquele seu jeito de olhar, fosse para mim ou para as outras pessoas, como uns olhos azuis que pareciam emitir fagulhas em alguns momentos, quando queria se fazer entender ou colocar ênfase no que dizia.

Ênfase… Penso que nunca tinha visto uma pessoa que colocasse isso de jeito tão marcante em toda minha vida de funcionário ou de pessoa comum. E eu vi que gostava daquilo. 

Daí para convidá-la a minha casa foi um átimo. Eu normalmente não fazia isso com os colegas de trabalho, com exceções muito raras e inconstantes. Mas com ela, fiz com prazer. E o que já era uma ponte de afeto no ambiente de trabalho se estendeu sem delongas ou obstáculos a minha mulher e meus filhos pequenos. Um deles, aliás, ao perceber aqueles inéditos olhos azuis, com a pupila escura bem demarcada ao centro da íris, indagou a ela: – por que você tem este furinho no olho? Rimos todos, e não era para menos. Ali começava uma longa história de afeto e presença, por anos a fio.

No trabalho, as mudanças pressentidas começaram a acontecer. Logo desenvolvemos, ela, eu e mais uns dois ou três funcionários mais conscientes e cumpridores, forte cumplicidade em nossas tarefas rotineiras, algo que se por um lado nos deixava felizes e realizados, por outro lado nos trazia ciúmes e malquerenças. A hora fatal das cinco da tarde para o nosso grupo cúmplice logo se estendeu por mais quantas fossem necessárias. Saíamos do trabalho muitas vezes já com a noite feita e ainda prosseguíamos no mesmo ritmo em algum café ou botequim.

Na repartição, olhares atravessados. Em casa, comecei a notar, algo assim acontecia também. Hermínia, minha mulher, parecia ter gostado dela, sem explicitar algo como ciúme ou desconfiança feminina. Ela apenas dava prosseguimento a um costume já demonstrado desde os primeiros momentos de nossa convivência, de me querer a seu lado durante todo o tempo, coisa acentuada pelo nascimento de nossos filhos. Às vezes ficava amuada com as frequentes expansões de meus horários no trabalho. 

De repente em um daqueles serões aconteceram coisas. Havia a eminência de uma auditoria em nossas atividades e os agentes da mesma eram reconhecidos burocratas, para quem valiam mais o cumprimento restrito de alguma norma escrita do que uma solução viável e criativa, ainda dentro das regras oficiais. Não deu outra, pegaram pesado com os nossos processos de trabalho e ela, sensível como era, sentiu-se diretamente atingida com algumas medidas de repreensão que foram tomadas no calor dos acontecimentos, sem maiores chances de explicação ou defesa. Pior ainda, alguns dos nossos pares, justamente da turma que não queria mudanças, tomou partido dos auditores e os ajudou a culpar os demais pelas falhas detectadas. Minha amiga se recolheu ao banheiro, já com os olhos injetados e vermelhos, mal contendo sua indignação.

Quando a terrível sessão inquisitória terminou, eu me ofereci a lhe dar carona até em casa, pois já era tarde e ela, como de costume, dependia da passagem de um ônibus que cumpria horários apenas precariamente.

No meu carro, suas lágrimas rolaram e eu fui pego de jeito, pois dirigindo como estava me via impossibilitado de oferecer a ela um lenço ou, quem sabe, um ombro. Ela chorou um rio inteiro no trajeto até sua casa. Na chegada, me pediu desculpas e me convidou a entrar por algum tempo, para beber uma água ou um café, ou até que ela se recuperasse, segundo meu entendimento. Aceitei, de imediato, e nem podia negar: aqueles olhos azuis já haviam marcado presença em mim e eu estava disposto a assumir qualquer risco que isso trouxesse.

E o risco se fez acontecer. Antes de água ou café, paramos no próprio saguão de sua casa e ali, entre uma desculpa e outra, nos vimos frente a frente, com apenas alguns centímetros a distanciar nossos corpos. E assim aconteceu: primeiro um toque de consolo no ombro dela, um rápido carinho no braço e o passo seguinte foi justamente algo previsível, existente desde que o mundo é mundo e que existem seres humanos. Nos abraçamos longamente e um beijo molhado se fez presente entre nós, mais por lágrimas do que por saliva, ansioso de desejo, mas também de medo.

Depois disso, nada seria como antes.

 ***

Azar danado, eu pensava, enquanto dirigia pela estrada, naquela madrugada. Aquilo era uma fatalidade, eu e ela esperamos por um momento propício durante anos e agora vinha aquela doença. Aquela febre não parecia ser coisa importante, mas com o passar dos dias evoluiu para queda no estado geral e em pouco tempo estava diagnosticado um câncer, dos mais agressivos, por sinal. Quando recebi o fatídico telefonema, ela fazia quimioterapia há pelo menos um mês e os resultados não se mostravam promissores. Nos últimos dias entrara em decadência profunda e, pela informação que obtive, até mesmo às vésperas de um coma.

O pior de tudo era a maldita pandemia, que nos mantinha a todos trancados em casa, sem poder fugir disso. A nossa velha comunicação telefônica funcionou, mas o certo é que queríamos mais. Muito mais.

Ela tinha ficado viúva, depois de duas décadas de um casamento tranquilo. Tranquilo, é bom dizer, em vários sentidos, pois de maneira geral não perturbou encontros nossos a cada dois ou três meses. Como a esta altura ela trabalhava na iniciativa privada, em cargo que lhe exigia viagens, isso facilitou com que nos víssemos sem maiores contratempos. Eu também me via liberado agora, pois meu casamento havia alguns anos fracassara e eu vivia de galho em galho, não me furtando a relacionamentos nem sempre muito honestos e dignos, mas deixando um espaço para aquele que já era um amor permanente.

Com os acontecimentos relativos a nossas vidas afetivas, a viuvez dela e a minha libertação de laços formais com alguma pessoa, passei a propor a ela que pudéssemos levar nossa história à luz do dia, por que não? Mas sua resistência foi grande, pois tinha se tornado amiga de Hermínia e temia que uma aproximação amorosa fosse mal vista, por ela ou pelos amigos comuns que tínhamos, inclusive por nossas famílias. Eu bem que tentei dissuadi-la, mas acabei vencido pelo seu argumento que do jeito que as coisas andavam, uma liberdade quase total já nos estava assegurada e não era preciso termos medo de quase nada mais.

É claro que isso, nos últimos tempos, ficara ameaçado pela pandemia. Neste momento, entretanto, tínhamos aprendido que o telefone era um instrumento que poderia ser utilizado não só para recados, negócios e conversações informais e gerais, mas também para coisas muito mais profundas e interessantes, inclusive envolvendo assuntos amorosos e interlocuções eróticas.

E ia tudo muito bem até que apareceu aquela febrezinha que em poucas semanas desandou em estrago muito maior, para nossa tristeza.

 ***

Porque toda aquela proximidade era algo que superava, claramente, toda e qualquer expectativa que pudéssemos ter de início. O pai, por exemplo, ao nos receber pela primeira vez, ou seja, eu, Hermínia e os filhos, junto com ela e o marido, ainda se lembrou de sua frase de anos antes, revelada agora como profética: – eu sabia que vocês iam se dar bem e fico feliz ver incluída nisso toda sua família, meu amigo.

Um dos irmãos, por pândega, chegou até mesmo a dizer em uma mesa de almoço, debaixo de risadas gerais: – temos que tomar cuidado, papai foi com a cara deste camarada; do jeito que vai vamos acabar tendo que dividir a herança com ele.

E assim fui vendo meu velho professor transformar-se quase que em um segundo pai para mim. Ele agora se dedicava a tocar uma fazendinha da família, bem perto da cidade e lá fui encontra-lo algumas vezes. Jaques era uma figura emblemática na cidade, no melhor sentido que esta palavra pode ter. Ex-Prefeito, ex-Provedor da Santa Casa, presidente do Lions Clube, vicentino militante – tudo o que faz de um homem em comunidade personalidade prestante e imprescindível. Nossas conversas, ele sempre respeitoso e carinhoso comigo, eram marcadas por forte simpatia mútua, embora nossa diferença de idade talvez ultrapassasse os quarenta anos.

Certa vez, já em momento mais recente, fui visitá-lo diretamente na fazenda, gozando o privilégio de ter encontrado, em plena madureza, aquela especial figura de pai e amigo. Havia, então, seis meses que não nos víamos. Ele estava doente, de câncer, com um prazo de vida indefinido pelos médicos, provavelmente curto. Acompanhava-o, entretanto, à distância, sabendo-o machucado pela moléstia, com o rosto alterado pela brutalidade da quimioterapia. Eu não queria vê-lo naquele estado.

Outra coisa, ainda, me mantinha distante. Eu rompera o casamento de muitos anos com Hermínia e tinha medo de que o afeto que ele sempre dedicara ao casal, não sobrasse para mim, que trilhava agora outros caminhos. Ou que me recriminasse, por partir vínculos tão sagrados. Aquele homem nem poderia imaginar que meus vínculos agora eram com a filha, e o que é pior, de certa forma antevistos por ele mesmo, em tempos passados. O certo é que tal visita me deixava um tanto angustiado, com medo da reação que ele pudesse ter. Fui então encontrá-lo na fazenda, onde poderíamos usufruir da privacidade que a casa da cidade, na qual a família, numerosa e comunicativa, com certeza não nos permitiria.

Nada, porém, foi como eu temia. Recebeu-me com as honrarias de sempre. Mostrou-me as novidades no curral e os chiqueiros reformados, o novo trator, o viveiro para o qual havia adquirido um punhado de novos habitantes. Era daquele tipo de pessoa que, mesmo condenado por uma doença maligna, mandava plantar mais mil pés de café, reformar a casa e povoar um novo viveiro. Além disso, trocara o carro por um mais novo e mais veloz.

Notei, naquele dia, que apesar da disposição em me exibir as benfeitorias, ele ofegava ao caminhar. Suava, talvez, um pouco mais que o costume. Ao transpor o rego d’água, não armou o costumeiro pulo, majestoso, que apesar dos setent´anos, ainda lhe permitiam as longas pernas. Antes, preferiu passar pela prosaica pinguela, destinada, naqueles passeios, apenas às mulheres.

Chamavam-nos para o café, preparado ritualmente pelas empregadas, uma tradição nas casas da cidade e da fazenda, desde o tempo em que ainda era viva a esposa. Na mesa grande, três ou quatro quitandas diferentes, queijo de Minas feito em casa, além de, é claro, bom café plantado, torrado e moído ali mesmo.

Ao fim e ao cabo, na mesa, a sós comigo, dirigiu-me o olhar azul profundo, inquiridor, sem deixar de ser carinhoso: – e você, então… Falou de um modo que me deixava livre, para interpretar e responder a pergunta como quisesse. Resolvi encarar pelo lado que, até então, evitara. Abri-me, como nunca pensei ser capaz. Eu tinha com ele uma relação afetuosa e franca, mas, nunca antes me sentira capaz de confissões tão pessoais e íntimas. Falei de tudo, com foco na ruptura com Hermínia, mas não do essencial, que ali poderia soar chocante. Escutou-me calado, paciencioso. Creio que nem me fez perguntas. Apenas me deixou falar, sem qualquer gesto intempestivo. Quando percebeu minha loquacidade diminuída, atalhou, bondoso: vamos, ainda preciso mostrar muita coisa a você; aqui na fazenda não se para nunca, tem sempre novidades. E andando por ali prosseguimos a conversa longa e macia que, entre ele e eu, mesmo com tantos anos de diferença na idade, parecia nunca ter tido começo ou fim.

Entretanto, esfriava. Eu tinha pela frente quase duas horas de estrada que me separavam de casa. Na soleira da varanda, abraçamo-nos, com um contato físico breve e um tanto duro, como era de seu feitio. Por um momento, ficamos silenciosos e melancólicos, mas, principalmente, lembro-me bem, emocionados. Os olhos azuis tornaram a me fitar, com surpreendente profundidade e clareza. Disse-me, então: – ninguém pode julgá-lo, muito menos eu. O importante, na vida é ser feliz. Siga seu rumo, se você já sabe que a felicidade lhe espera. Isso é o que importa, não o julgamento de alguém, seja lá quem for. Deus há de te abençoar. Sábias palavras, que abrangeriam também aquela verdade que eu não revelava, nem naquele ou em qualquer outro momento

Não mais nos vimos. Três ou quatro meses após minha visita, veio a falecer durante uma pescaria com amigos. Vi-o no funeral, com a face serena de quem confiara a alma ao espírito das matas, dos rios e dos peixes. Alegrei-me por tê-lo presente em minha vida, meu quase futuro sogro, meu amado professor Jaques Monteiro.

 ***

E os pensamentos me corriam soltos, naquela madrugada fria, tendo nas mãos o volante do automóvel. Havia muito do que lembrar, dado o objetivo da viagem. Ah, Maria Lucia, que momentos luminosos tivemos… Falo de acontecimentos que não tiveram como ser totalmente vividos, pelo menos da maneira que as histórias de amor devem sê-lo. Nossos encontros, com efeito, eram geralmente furtivos e o mundo ao nosso redor jamais pôde saber de nada do que se passava entre nós. Mas foi tudo muito profundo e avassalador. Um dia, anos depois de tudo ter começado, por alguma razão, pus-me a refletir sobre as coisas que me haviam marcado a vida. É claro que no capítulo das pessoas, havia aquela especial, que me influenciou existencialmente, além de exercer um papel até então exclusivo: o de ser alguém a quem amei de verdade e de forma continuada. Eu pensava se teria sido capaz de estar com ela por inteiro e atento, já que me sentia a vida marcada pelo ímpeto e pela inquietação. Sentia assim, quando olhava para trás, que nem sempre me fora possível estar consciente de tudo o que me acontecia e seus desdobramentos, ou de assumir condutas adequadas, do ponto de vista afetivo. Era especialmente marcante em mim certa culpa, no campo profissional, de por vezes me sentir como alguém que pulava de um galho a outro, antes que encerrassem os ciclos das experiências que vivenciava. Na vida afetiva, então, nem se fala…

E me ative a um aspecto particular dessa minha inquietude crônica, relativo a algo de que não me curara e que me causava forte arrependimento, um sentimento que, eu pressentia, talvez me acompanhasse pelo resto de meus dias. Eu pensava, então, em Maria Lucia, aquele especial e verdadeiro privilégio que a vida me oferecera e do qual eu nunca pudera ou não conseguira desfrutar de forma inteira. Pensava também em ter faltado a mim a coragem necessária, principalmente quando me lembrava que a pessoa que representava a materialização de tal privilégio fora repetida vezes afastada por mim, embora em outras tantas ocorresse o contrário. E ela, em sua generosidade peculiar, certamente dotada de percepção consciente (que eu próprio não tivera de forma tão intensa) de que o que vivíamos era realmente algo inédito, raro e profundamente iluminador, a ser vivido como fosse possível, sempre me queria e me acolhia de volta. E mesmo que se passassem meses ou até anos entre tais momentos, cada encontro ou reencontro sempre se fazia como se fosse o da primeira vez, ou, pelo menos, como uma conversa que tivesse sido interrompida em sua melhor parte, mas apenas no dia da véspera. Para o bem ou para o mal. Mas o que seria, de fato, o bem e o mal nessa história toda?

De fato, eu não poderia jamais me queixar das muitas benfeitorias que a vida me trouxe. Ter sentido, por exemplo, pulsar em mim tantas vezes os disparos do coração, a sensação de sermos ela e eu pessoas certas em lugares idem, quem sabe em um tempo errado. Aquilo representou sempre para mim uma sucessão de imagens gratificantes, às vezes ternas, às vezes abrasadoras, às vezes até assustadoras. Mãos frias, lágrimas, coração a galope, toques de cotovelo, olhares, dedos entre dedos, pele, cheiros, procuras, comedimentos que se abriam em torvelinhos. Nós dois, raramente a sós, em tantos e diferentes lugares.

Uma cena particular, forte: a gente se amando em minha casa e lá fora caindo a primeira chuva do ano. Um bom vinho e sua música predileta no som da cabeceira. Ou então, daquele banho quente, juntos em espumante banheira, à luz de velas… O que sempre lhe pedi e fui correspondido, sem limites, foi que me dedicasse o carinho e a generosidade de sempre, me acolhendo para conversas a sós, sem hora de acabar, mesmo quando não nos víamos meses ou mais de ano. E, principalmente, que me recebesse e me ouvisse, com o afeto de sempre, para entender melhor as coisas que me passavam pelo coração. Quando não fosse para fazer, mais uma vez, aquilo em que éramos dois mestres consumados: a arte da boa conversa, o fluir da inesgotável luz que sabíamos despertar, o sentimento que todo o Universo se resumia e se concentrava em duas pessoas únicas e especiais, pelo menos na curta duração daqueles momentos extraordinários.

E eu me perguntava o que fazer disso tudo, dessa bagagem, desse patrimônio amoroso e afetivo tão raramente acumulado entre as pessoas? Carregá-lo apenas na gavetinha mais escondida das minhas e das nossas lembranças? Cada um cuidando do seu pedaço? Ou então perseguir, de alguma forma, a utopia da permanência de tais coisas lindas? Não tenho e nunca tive resposta para tantas perguntas… E mais esta ficou sem ser respondida: foi justo sufocar sentimentos sendo a vida tão curta e tão dura?

Recebi dela, em todo tempo que nos relacionamos, uma única mensagem escrita. Assim dizia: nem anjo nem demônio, você mesmo. Muitas vezes doce, outras severo. Sempre com opinião sobre tudo. Sabe dizer a vida em versos sempre que alguma coisa desata em seu coração. Recebe com coração e comidinha quente. Tem a casa iluminada na medida certa, nem mais nem menos do que o necessário para se ver o essencial. Sabe guardar as relíquias da vida na memória, que pode ser reativada sempre que a saudade traz lembranças gratificantes. Enfrenta o desafio de “resignificar” a rotina e os pequenos detalhes da vida. É este homem que gosto. Beijos.

Mas a vida real falou mais alto. Não podendo nomeá-la de forma frontal – dado um compromisso que com ela assumi – dei-lhe um nome, clandestino, mas apropriado, de deusa grega: Atheneia.

 ***

Os quilômetros eram devorados, mas de certa forma eu preferia que se estendessem mais. Eu bem sabia do que me aguardava no final da linha.

Finalmente cheguei. A primeira impressão já me foi marcante, para não se esquecer nunca. Ela estava sentada no sofá da sala, magra, quase esquálida, cabeça já glabra pelos efeitos da quimioterapia. Aquela face já não era a dela, mas de um espectro que ocupara seu corpo. Os olhos azuis continuavam os mesmos, parecendo ainda mais fulgurantes. Vi em seu rosto, naquele momento, o mesmo de Jaques alguns anos antes, também devastado pela doença. Mas apesar de tudo era a minha Maria Lucia de sempre.

Ela não conseguiu levantar do sofá para me abraçar, mas eu me sentei do seu lado, tomei-lhe as mãos entre as minhas e assim estivemos por um bom tempo. Mesmo com outras pessoas em casa, parentes e cuidadora, fiz isso como ainda não tinha feito antes, dados os cuidados que tínhamos em não denunciar nosso afeto frente a outras pessoas.

Fiquei por ali, ajudei no que pude, pouco é verdade, porque sua rede familiar e afetiva cuidava de tudo. Mas conversamos, rimos um tanto, relembramos velhas histórias lembráveis. Eu ia pernoitar em outro lugar, mas acabei ficando para passar a noite por lá mesmo.

Com a chegada da noite ficamos na casa somente ela, eu e uma amiga, que era enfermeira. Foi então que aconteceu a cena inesquecível, que até me hoje me provoca arrepios de emoção. Fomos dormir juntos, abraçados, trocando carinhos sem fim, com o beneplácito da amiga. Pela primeira vem em nossas vidas fazíamos isso diante da presença de outra pessoa. Se alguém disser que apesar de tais condições fizemos amor, eu diria que foi isso mesmo. Aliás, o fizemos ao nosso modo, de um jeito que nunca havíamos experimentado antes, medido não pelos arroubos do corpo, mas pela sintonia absoluta das nossas almas.

Tudo que vivemos, por anos, mesmo de forma descontínua, não poderia ter se encerrado de maneira melhor. No dia seguinte, estive com ela mais algumas horas e depois parti, de volta para casa.

Passado pouco mais de um mês uma mensagem em meu celular, em plena madrugada, trouxe a já esperada, mas indesejada notícia. Ela partira em paz, depois de mais de uma semana desligada do mundo.

Foi assim, foi o melhor que a vida poderia ter me oferecido. Sou grato por esta dádiva.

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