Aquele homem

Que personagem! Por alguma razão, talvez por não desejar repetir sobre a terra o que a terra engolirá, não se casou, sem que isso significasse castidade ou celibato definitivos – aspectos, todavia, não declarados ao público em geral. Viveu uma vida de funcionário público modesto, depois de uma carreira como bancário, da qual se afastou muito antes de se aposentar, não tolerando, ao que parece, aquele ambiente de guichês, horários, gerentes e regras fiscais, além de motivos de saúde. Morou sempre em quartos de hotéis, variando na qualidade, sempre reduzindo-a, à medida em que ia ficando mais velho e com o salário encurtando cada vez mais.

Esteve em muitos lugares, sempre no fundo do país, das montanhas mineiras à Amazônia, experimentando climas, comidas, amizades, trabalhos os mais variados e abrangentes. Superou um alcoolismo extremo e disso se orgulhou, nos mais de trinta anos que sobreviveu longe do vício, e disso dizia, orgulhoso, como a arrematar suas desventuras com o álcool: agora só bebo guaraná.

Deixado o Banco, continuou burocrata, mas pelo menos em um cargo que lhe facultava viajar e fazer aquilo de que realmente gostava: a assistência técnica na agricultura. Depois de aposentado em órgão público, retornou à terra natal, de onde esteve ausente por muitas décadas, lá encontrando velhos amigos, que inclusive voltaram a chamá-lo pelo apelido de infância: Bizodô, ao que consta o nome de um xarope da época.

Em pleno gozo de seus direitos de burocrata aposentado, cuidando de uma plantação de tomates e pimentões, nas terras de um velho amigo, morreu com uma úlcera rompida na cavidade abdominal, por possível negligência médica.

Fizemos para ele, nós da família e alguns amigos antigos e recentes, um velório memorável, em seu reduto do interior. Velórios, afinal, fazem parte da vida e no dele, em particular, viu-se uma cena memorável, com o perdão de palavra talvez imprópria: hilária. Éramos mais ou menos umas doze ou quinze pessoas, entre irmãos e sobrinhos, que deixamos o velório por algum tempo para almoçarmos juntos. Eis que chega um amigo da terra, se aproxima de seu irmão à cabeceira da mesa, também morador da terra e ao se deparar com tanta gente naquela mesa tão cheia, e por que não dizer, animada, sendo apresentado a uns e outros, indaga pelo único membro faltante da família, àquela altura marcando solitária presença na capela mortuária do cemitério da cidade. Ao pobre homem, ignorando o motivo de estarmos ali reunidos, foi impossível barrar tal indagação. O Anfitrião da mesa não se deu por vencido: ele não está aqui porque faleceu, fazendo isso com a graça e a bonomia que lhe eram peculiares. – Quaaaando? – Ontem

A fisionomia do homem mostrou um quadro clássico da mudança súbita de expressão de uma pessoa, num misto de espanto, horror e incredulidade.

Mas o que me traz aqui é uma cena de minha infância, na qual ele foi o personagem central, uma de suas chegadas de viagem, no caso pela Amazônia, nos anos 50, quando ele ainda era funcionário do Banco do Brasil e fazia o acompanhamento de projetos do banco na região.

Pelo chão espalhavam-se as peles de lontras, onças e jacarés (naquele tempo ainda não era pecado matar um bicho aqui, outro ali).

Na gaiola um casal de papagaios meio glabros gritava e assobiava ininteligivelmente como se acabasse o mundo. Um dos louros, às vezes, chamava: “Carlos!”. Quem seria?

Dois alegres e onipresentes saguis, buliçosos, perigosos, malcheirosos, aos saltos e cabriolas, como pequenos mestres de cerimônia, a nos apresentar os segredos amazônicos.

Da canastra saíam variadas coisas e a sala se fartava de seus cheiros desconhecidos: mantas de pirarucu, pacotes de farinha puba, frutas em á, em í, em ú, dourada farinha de peixe.

De entremeio, uma babel de objetos de todo tipo e tamanho: escamas de peixe para lixar unhas; olhos-de-boi a nos espiar nos quatro cantos da mesa; arcos, flechas e, um imenso tacape emplumado, supostamente capaz de afundar cabeças; cocares e enfeites de penas em cores nem sonhadas; bastões de guaraná com sabor a serragem e terra molhada; malévolos pentes de espinhos de palmeiras; macacos de látex mostrando o que não devia, logo subtraídos à curiosidade das crianças; um remo de canoa; um mole chapéu de palha; leques que pareciam secas palmeiras aplastadas; vidrinhos com estranhos óleos perfumados; um pote de barro com banha de capivara; cabeleiras de raízes olorosas.

De tudo se contava uma história, casos cheios de aventura e mistério: ataques de malária brava, nuvens de vorazes muriçocas, chuvas que duravam meses, perigosos peixes elétricos, botos que roubavam moças, pescarias memoráveis, macacos churrasqueados, cachaças com raízes, índios flechando brancos, sete dias em canoa, noites passadas na rede, e uma baita caganeira que quase matou todo mundo.

A alma infantil descabia de si mesma e espantadamente percebia que a maior de todas as maravilhas, maior ainda do que aquele mostruário de cores, formas, perfumes e ação, que botava a selva dentro de nossa sala, era o fato de privarmos da intimidade de tão extraordinário personagem, de longe chegado com tal carregamento: Nosso Tio.

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