Finais de tarde em muitos domingos, em certo período de minha infância, viajando por aquela rua longa e sinuosa, que nos levava aos confins da cidade, em uma sucessão de bairros que iam variando de razoáveis a pobres, de classe média a gente apenas remediada e, depois disso, a miseráveis e favelados. Mais do que indicativos sociais ou topográficos, para mim e meus irmãos era o retrato vivo de uma dor.
Tinha eu 13 para 14 anos. Nós vínhamos, então, por aquela via de periferia, após a visita dominical a nossa mãe, internada naquele hospital lúgubre, lá no final, além dos últimos morros avistados, ainda com o triste augúrio de estar situado depois de um cemitério. Tudo longe o bastante para provocar em nós cinco a sensação de que nossa mãe agora vivia em outro mundo. Lá estava, ela, a pobre, com o corpo quase todo paralisado por doença ainda hoje misteriosa e especialmente desconhecida naquele tempo. O que mais nos impressionava, então, além de vê-la em uma enfermaria, cercada de gente com problemas ainda piores que o dela, era saber que, entre outras torturas, lhe haviam feito vários exames do “líquido da espinha”. Para o coração infantil, não podia haver nada pior.
É bem verdade, tudo tem sua compensação: tínhamos agora perto de nós algumas pessoas muito queridas. Além de tias e tios, nossa avó, recém viúva, com a morte de meu avô aumentando mais ainda o nosso desalento. Das tias que vieram cuidar de nós, duas iriam se transformar em figuras familiares essenciais, a quem pela vida a fora dedicamos boas lembranças e carinho. Um tio mais jovem, então, foi o grande companheiro naqueles dias difíceis.
Aquele hospital, de nome tão estranho: Baleia. Apesar do roteiro atribulado para se chegar lá, ficava fora da mancha da cidade, num agradável pé de serra, naquele tempo mata fechada. O lado bom termina aí, com toda aquela parte da cidade, mesmo ela, há muito demudada em favela, lugares por onde pouca gente hoje se arriscaria a passar. Mas éramos apenas crianças, e apesar do motivo da visita, que durava muito pouco para nossas expectativas filiais, encontrávamos tempo para brincar num parquinho, subir em árvores e aproveitarmos o clima de fazenda que ali dominava, com patos e carpas num açude.
Como tudo na vida, aos poucos fomos aprendendo, o bom e o ruim se misturavam. Ali tínhamos contato também com gente amputada, paraplégica, em coma, dada a natureza do tal hospital. O cheiro de desinfetante, ou não sei bem de quê, nunca me saiu das narinas. As cadeiras de rodas faziam estranho engarrafamento quando terminava a hora da visita, naqueles domingos fatídicos.
Tempos difíceis aqueles, agravados pela presença, em nossa casa, de forças do mal. No caso, personificadas numa empregada vinda do interior, trazida por um tio nosso, chamada Dalva, a quem apelidamos Darva, um tanto para imitar sua caipirice, outro para expressar nosso desprezo por ela. Esta aí fazia questão de nos brindar, quando meu pai chegava do trabalho, com um relatório copioso e detalhado do que fizemos e deixamos de fazer durante o dia. E ele, de hábito, tão machucado pela ausência da mulher como nós em relação a nossa mãe, executava sistematicamente as devidas penalidades por cada erro que éramos acusados de ter cometido.
E assim era a vida da gente, cinco crianças obrigadas a se preparar para a escola, se alimentar, tomar banho e tudo o mais, sem uma mãe por perto. E o que pior, expropriadas em seu direito de ter alguém que lhes oferecesse, como só as mães sabem fazer, aquela puxadinha no cobertor até a altura do queixo, nas noites frias daquele tempo.
Aqueles anos sessenta assim começaram para mim e meus irmãos. Na sequência desses acontecimentos, quando nossa mãe voltou para casa, já parcialmente recuperada, mudamos para um apartamento para fugir da escadaria de onde até então morávamos. De uma casa a outra; da mãe ativa que possuíamos até aquela de repente tão dependente; do abandono de uma velha turma de rua ao encontro de um vazio afetivo. De uma coisa não pudemos escapar, das manhas de aprendermos a nos virar e amadurecer meio à força. No meu caso, pelo menos, posso dizer que nem tive adolescência, pulei da infância a uma vida quase de adulto naqueles tempos difíceis.
Muitos anos depois vi que nossa vida nesses anos foi contada no cinema. Quem viu o filme sueco “Minha vida de cachorro” teve acesso a cenas completas de minha infância. Aquele menino curioso, meio trapalhão, a mãe doente, a família separada por conta de sua hospitalização, as primeiras descobertas sexuais, o tio barra limpa, o mundo chato dos adultos e as janelas para escapar dele, o início da corrida espacial, com a cadelinha Laika. Está tudo lá, como na minha vida também. Só não fica bem claro quem é o tal cachorro que dá nome ao filme, pois o único animal desta espécie no filme é a cadelinha russa, enquanto na minha história houve apenas um Nero, um cão discreto, que nunca mordeu ninguém e não chegou a deixar maiores lembranças, nem más, nem boas. E também a sensação de termos sido, em alguns momentos, por obra e graça da Darva, animais abandonados à própria sorte.
Sorte nossa ter uma rede familiar a quem fomos confiados. Eu, com 13 anos, liderava (se é que esta palavra se aplica) uma escadinha de quatro menores; na outra ponta, minha irmã mais nova com três ou quatro. Mais uma vez, como havia acontecido no nascimento tumultuado desta última, quando nossa mãe teve outros problemas graves de saúde, tal rede familiar se abriu e nos abrigou. E eu e meus irmãos não tivemos apenas a sorte de termos apenas um tio legal e camarada, como no filme, mas uma tropa deles, com especial destaque para as duas irmãs de minha mãe que praticamente se mudaram para nossa casa, deixando de lado compromissos de estudo, namoro etc, assim antagonizando o mal personificado por aquela maldita governanta.
Nossa mãe… Ela agora se movia em cima de uma cadeira comum, adaptada sobre uma plataforma de madeira, com rodízios de rolamentos – um verdadeiro carrinho de rolimã, apenas com o assento elevado. E assim era ela empurrada alegremente por nós, que até disputávamos a primazia de conduzir aquele estranho veículo. Aos poucos voltou a andar, Darva foi embora e a nossa vida seguiu seu curso normal.
Enfim, tudo passou, como acaba acontecendo. E sobrevivemos.
