Toda família tem segredos, toda família tem histórias, publicáveis ou nem tanto. A minha não foge a tal regra. O caráter ficcional com que encubro as presentes narrativas não pretende encobrir certos pecadilhos revelados e nem exime a ninguém por tê-los cometido. Quem não tem um prontuário assim meio embaçado? Aliás, como saber, de fato, da veracidade de muitas das histórias e das lendas que acompanham qualquer família, qualquer grupamento humano? O tempo, quando passa, faz esta estranha alquimia, de converter narrativas pitorescas em verdades inquestionáveis. Ou vice versa. Sendo assim, não me responsabilizo totalmente pelo que é dito aqui e neste aspecto me apoio em Manoel de Barros: do que conto, boa parte é inventado, a outra parte é mentira mesmo – ou algo assim. Vamos em frente, em busca da essência – não da verdade – de alguns desses possíveis segredos.
AS HISTÓRIAS…
Segredos de família
Ti’Totó
Um tiro de cartucheira
Apenas uma mulher
Toninho
Uma vida
Infância
Um moço de fora
Pereira procura
Vista Alegre
Meu Tio-Etê
Minha vida de cachorro
Visita ao Velho
Um personagem
***
Segredos de família
Eu fazia aquela viagem a cada quinze dias. Obrigação que a firma me impunha. Isso foi antes da era da internet, quando tudo dependia da presença das pessoas. Gosto muito mais das coisas como são hoje, mas naquele tempo era se submeter ou perder o emprego. E eu precisava do salário pingando na conta no final do mês. No começo ia de carro mesmo. Mas a firma, distribuidora de adubos e venenos do interior de São Paulo, começou a negacear com as notas de gasolina. Assim me restou o ônibus, noite a dentro, quinta feira sim, quinta feira não. E eu já ia me acostumando com aquilo. Nada como um homem que precisa de dinheiro para se acostumar com as agruras da vida – e do agronegócio.
O pior é que eu precisava também de um mínimo de sono, pelo menos que durasse a metade daquela viagem de seis horas. No dia seguinte tinha que enfrentar uma carreira de reuniões que não raro entravam pelas noites de sextas e sábados. Minto: nos sábados íamos todos beber cerveja – pelo menos até a hora de pegar o maldito ônibus de novo, para voltar para casa. Nessas viagens noturnas, o que eu mais queria era sossego, que nem sempre tinha, por exemplo, quando me surgiam por companhia, nas poltronas próximas, ou ao meu lado, algum daqueles proseadores incorrigíveis. Foi o que me aconteceu certa vez, e que me deixou marcas. Explico. Eram duas mulheres nas poltronas logo atrás de mim.
Pareciam bem íntimas, mas aparentemente estavam se revendo depois de algum tempo sem terem notícias uma da outra, como logo pude perceber pela conversa. Como o veículo estivesse com lugares vagos facilmente se ajeitaram para botar a conversa em dia – e bem atrás de mim, que tudo que precisava era dar uma boa dormida. Não seria daquela vez, portanto. Longa era a prosa delas, repleta de futilidades despertadas pelo reencontro. Eu não conseguia me desligar daquilo, elas falavam alto. Mas de repente, um personagem curioso foi adicionado ao papo e havia tintas de tragédia na história dele. Eu só queria dormir, depois de mais de duas horas de imersão nas histórias banais que até então ouvira, mas aí, fui capturado, de vez.
– Renato? Então você não soube? Faleceu…
– Nossa! Como foi isso? – Um acidente, terrível. E o pior é que não foi só ele…
– Como assim? – Morreu ele e um garoto, filho de um amigo. Uma fatalidade!
– Conta…
– Foi na praia. Saíram para caminhar, um grupo de gente que tinha alugado casa por lá. O garoto, de uns sete ou oito anos estava junto. E o passeio incluía uma escalada pelas pedras, para se chegar a uma praia mais afastada.
– Os pais do menino estavam junto?
– Espera que eu te conto. Renato, na falta dos pais, era o responsável mais próximo, embora, formalmente, não tivesse recebido tal incumbência. Aliás, eles nem eram muito próximos, mas no tal grupo, o adulto de verdade era ele. Os outros eram no máximo adolescentes.
– Nossa…
– Em certo momento aconteceu. No trecho mais perigoso o garoto escorregou ribanceira abaixo. E Renato se precipitou atrás dele. O garoto resvalou nas pedras e caiu no mar, lá embaixo. Renato atrás. As pessoas ainda viram o moço dando braçadas infrutíferas por ali, até que ele desapareceu também, no que parecia ser um redemoinho provocado pelas ondas.
– E então?
– O resto foi triste, você pode imaginar. Os bombeiros só encontraram os corpos no dia seguinte.
– Que horror!
Eu já estava arrepiado com aquilo. Mas felizmente havia chegado um ponto de parada e resolvi descer para ir ao banheiro. Percebi que uma das duas amigas, não sei bem se a ouvinte ou a narradora desceu também. Aproveitei para comer alguma coisa, quase ao lado da vizinha de poltrona e então pude vê-la melhor: uns quarenta anos de idade, relativamente bem-vestida, loura oxigenada. Mas qual o motivo de eu estar citando tantos detalhes, meu Deus! Deve ser a prolixidade que herdei da família de minha mãe. Não tem nada a ver. De toda forma imaginei que agora poderia tentar uma cochilada, nas quase quatro horas que ainda restavam da viagem. Mal sabia, entretanto, que a coisa ainda iria se prolongar…
– Que coisa horrorosa essa história… E logo o Renato, moço tão bonito, um partidão… Faz quanto tempo aconteceu?
– Uns quatro ou cinco anos. Mas você ainda não sabe de tudo, teve mais.
– Como? Morreu mais gente?
– Não. Não chegou a tanto. Mas houve desdobramentos.
– Como assim?
– Vou contar. Todos nós, da família, encaramos a perda do Renato como a de um herói, que entregou sua vida para salvar a de outra pessoa, mas apareceram informações novas. Imagina?
– Nem consigo imaginar o que possa ter acontecido depois!
– Os pais do garoto resolveram levantar mais informações sobre o caso. Natural, né? E foram atrás das testemunhas disponíveis, aquela meia dúzia de adolescentes que faziam a tal caminhada fatídica. Conversam daqui, conversam dali, alguém lhes disse que o menino na verdade relutava em ir, mas que Renato o havia estimulado, com o argumento que era preciso ser homem, perder o medo, essas coisas. E assim, nosso herói teve sua estátua dinamitada…
– Mas podia ser uma informação falsa, ou mal-intencionada. Sei lá.
– Infelizmente era verdade. Houve a confirmação de vários participantes. Ao que parece, num primeiro momento, se fez uma espécie de pacto de silêncio, depois desfeito pelas circunstâncias.
– E aí?
– Aí mais nada. Nada mesmo. Só dor, tristeza, e uma segunda morte para Renato, que passou de mito a um quase assassino…
Neste ponto, quem estava totalmente abalado era eu. Não somente por aquela tragédia, capaz de balançar os alicerces de qualquer família normal. Pobre Renato, que não poderia ter informação sobre o que viria pela frente e incentivou a macheza daquele garoto com a melhor das intenções. Eu o compreenderia, mas havia em mim outra questão, a me lancinar com intensidade. É que havia uma história parecida em minha família…
Não era coisa ligada a caminhadas junto ao mar ou escarpas pedregosas, mas sim um afogamento em que morrera uma criança, meu irmão mais novo, sob a guarda de outro mais velho, nosso primo. Os dois estavam em um barco, num açude da fazenda onde morávamos e ali se deu o afogamento de um, com o outro também perdendo a vida na tentativa vã de o salvar. Tudo parecia, ao longo dos anos, apenas uma fatalidade, algo inevitável. Era a história de um pobre menino mártir, que tivera junto a si um jovem malsucedido em seu provável heroísmo. Mas nossa mãe, minha e também do pobre afogado, alguns anos depois, em seu leito de morte, tentou colocar para fora algo que lhe corroía o peito por dentro. Para uma parente que a acudia, falou de forma confusa e um tanto perturbada pela agonia, sobre o acidente que lhe roubara o filho e o sobrinho. A mulher ouviu a palavra desobediência, sem que ela explicitasse se isso afetava os dois protagonistas ou apenas um deles. E mais não disse, ou balbuciou algo que ela não entendeu por completo, dada a fala da outra já embargada pela morte. A família guardou aquilo como um segredo que ninguém ousava perscrutar.
Agora, tanto tempo depois, aquela história ouvida em uma viagem de ônibus parecia trazer uma luz sobre os acontecimentos do açude, que deixaram uma marca de horror em minha família, ainda pulsante décadas depois. Me indaguei: será que a história daquele desconhecido Renato reproduzia o que de fato teria acontecido com meu irmão, tantos anos antes? Em outras palavras, surgiria ali também uma dolorosa mutação, de um herói que se transformava em vilão? Com a diferença que no nosso caso não houve inquérito, investigação, nada. Apenas a dor de uma mãe em sua expressão mais pura, feita, ao que parece, de silêncio e de revolta, por muitos anos a fio.
Minha noite de sono, mesmo precário, sobre rodas estava perdida. Agora era encarar as reuniões do dia seguinte. E suportar as brincadeiras dos colegas que viam em mim um dorminhoco contumaz. Mas, afinal, o que sabiam eles dos efeitos daquilo que não era apenas uma noite mal dormida, mas de uma fieira de dores e traumas carregados durante toda uma vida, não apenas por mim, mas por toda a família?
***
Ti’totó
Teotônio de Albuquerque e Possas. Um personagem de minha infância. Para todos em minha casa simplesmente Ti’totó, pois que era, de fato, tio de meu pai, irmão do meu avô Teófilo. Sujeito popular, sem dúvida, não só na família, mas também na vizinhança. Mas desde cedo comecei a perceber que talvez ele não fosse aquela maravilha de pessoa que todos acreditavam ver nele. Lembro-me, por exemplo, de certas brincadeiras sem graça que ele nos aprontava quando crianças, de nos dar pequenas pancadas na cabeça, acompanhadas da pergunta: – eu te coquei? Só para nos ver responder com a forma cacófona cocou. E ele assim se deliciava.
Mas convenhamos, teria sua graça na primeira ou na segunda vez que aquilo nos fosse impingido, mas lá pela décima ou décima quinta, quem é que ainda se divertiria com aquilo? E o pior era a força das pancadas, aumentada a cada vez que viesse aquela pergunta idiota. No final, para nós, a solução era sair de perto de tal cocador, o que não resolvia por inteiro a situação, pois ele costumava nos perseguir por onde andássemos. Teotônio era de poucos afazeres e responsabilidades, pelo menos no tempo que ele conviveu conosco, em regime de parede e meia. Ele era o dono da casa, dividida em duas moradias independentes, alugando uma delas para meu pai. Ao que parece, tinha ganhado algum dinheiro no comércio, negociando com cereais e porcos. Imagino que daí tenha surgido o real espírito que nos atormentava, através daqueles coques terríveis. A lembrança marcante que guardo dele é de sua figura vestida de pijama, às vezes por todo o dia, até mesmo para sair à porta de casa e mesmo ir além, para um dedo de prosa no armazém da rua de baixo, por exemplo. Com efeito, era um absenteísta completo em matéria de trabalho. Consta que tinha ganhado algum dinheiro com seus negócios suínos, mas logo depois que formou um pé de meia resolveu se aposentar, para usufruir daquele pijama, do ócio total e absoluto, de conversas fiadas aqui e ali e também daquelas brincadeiras abestalhadas com as crianças da família.
O tal Ti’totó tinha uma multidão de filhos, meus primos, ao todo dez, de todas as idades, desde adultos, alguns já casados, até os mais novos, quase da minha idade. Formávamos ali naquele canto de bairro um núcleo familiar relativamente harmônico aos olhos dos vizinhos, não totalmente separado por aquela parede-e-meia. Ao contrário, entrávamos e saíamos entre uma casa e outra, pela calçada ou pelo vão aberto no quintal, da mesma forma que de nossas galinhas e as deles, que comungavam ali milho e pasto. Sem maiores contratempos, diga-se de passagem. Salvo pela presença constante do patriarca em seu pijama e suas detestáveise habituais pancadinhas em nossos crâneos. Aquilo era de amargar… Porque não era apenas por aqueles piparotes que detestávamos aquele parente, havia mais coisas no cenário.
Entre os próprios filhos, aliás, ele não era unanimidade. Os mais velhos rendiam-lhe homenagens respeitosas, enquanto os mais novos pareciam demonstrar certo espírito crítico, sem perder o temor, porém imitando seu modo de caminhar, sempre a roçar a mão pelas paredes ou estar sempre a assobiar desconexa melodia entredentes. Minha mãe o detestava, acusando-o de insensibilidade face aos problemas dela, como aconteceu quando fomos morar ali e ele proibiu meu pai de construir uma coberta sobre o tanque onde ela se via obrigada a enfrentar chuva e sol para lavar a roupa da família. E ela sempre recorria a uma história antiga, quando a filha mais velha de Ti’totó foi obrigada por este a se casar com um sujeito que já havia mostrado suas garras de pessoa violenta e de maus bofes. O homem que ele escolhera para a pobre filha, sem apelação, vinha de vago conhecimento em seu mundo de barganhas agrícolas, transformando a vida da coitada em um calvário que durou muitos anos.
De minha parte, não posso negar, além das pancadas na cuca, outra lembrança desagradável que tenho dele foram algumas vezes em que ele era encarregado de levar meu irmão e eu às aulas, no grupo escolar e no jardim de infância. O local não era próximo de casa e havia várias travessias de ruas movimentadas a fazer. Mesmo naqueles tempos de pouco trânsito já havia perigo naquilo. Mas ele simplesmente navegava impávido pelas calçadas, com seu pijama, sua mão corrediça pelas paredes e seu assobio, sem se dignar sequer a verificar se o estávamos acompanhando, seja de perto ou de longe. Na beira de alguma via mais perigosa ele simplesmente estendia o braço para o lado, com a mão aberta, num sinal que nos cabia interpretar como pare. Nada de palavras, ele não conversava com crianças, ao que parece. Eu, já com meus nove ou dez anos não me sentia tão desconfortável, mas sem dúvida me via como responsável pela segurança do irmão caçula, que tinha quase três anos a menos. Escapamos vivos daquilo, mas sinceramente carreguei pelos anos seguintes um certo trauma de tal descuido. Minha mãe se solidarizava com a gente, mas meu pai, admirador confesso do tio, desprezava nossos cuidados: – é o jeito dele, não reclamem, está nos ajudando levando vocês para a escola; e nem é obrigado a tanto. Aliás, meu pai tinha o mesmo tipo de reação face a algumas atitudes esquisitas do pai dele e irmão de Ti’totó, o avô Teófilo, que castigava os filhos por qualquer incidente desprezível e que meu pai justificava – é uma maneira de educar, todos precisam ser educados. Acho que ele só não usava tal método com seus próprios filhos porque felizmente tínhamos uma mãe relativamente vigilante quanto a isso, além de mais bondosa.
Teve também a cena do barco. Foi assim: fomos visitar um parente que morava em um sítio, onde havia um pequeno açude. Dentro dele, um barco pequeno e tosco, daqueles de madeira, estreitos, com o fundo meio cheio de água. Eu e meu irmão, movidos pela curiosidade natural da infância, logo entramos ali, nos divertindo com o balanço que o tal barquinho fazia, por estar apenas com uma ponta do casco em terra firme. De repente, com pavor, nos vimos em pleno estado de navegação, com o barco já avançando por alguns metros pelo açude. E nós não sabíamos nadar. Logo nos demos conta do acontecido: lá no solo firme, Ti’totó, diante do nosso susto nos brindava com largas risadas. Ele simplesmente empurrara o barco com os pés e agora se divertia com o nosso pavor. Para tal sujeito aquilo parecia ser bem melhor do que uma boa dúzia de coques bem aplicados no crânio de alguém. Desta vez fomos salvos por meu pai, que assistia a cena de longe e resolveu intervir. Mas nem assim recriminou o tio pelo absurdo que ele acabava de perpetrar.
Ainda havia coisa pior do que tudo isso. Ti’totó era uma das pessoas mais preconceituosas que passaram pela nossa vida, mesmo naquele mundo em que reações de incorreção ética e política eram frequentes, por parte de grande parte das pessoas. Do primo que havia perdido um filho por assassinato ele chegou a dizer que a tristeza dele não se devia a isso, mas sim ao fato de ter uma das suas filhas se engravidado na mesma época, sem ser casada e sem se conhecer o pai da criança. Em relação a outro parente, viu nele, sem maiores evidências, uma depressão profunda, por ter uma filha namorando “um preto”, que na verdade, viu-se depois, era apenas um rapaz moreno, além de ser um sujeito bom sob qualquer critério.
Aqui e ali era possível perceber outros traços de seu modo de vida. Era uma pessoa sovina, minha mãe sempre notara este aspecto nele, lembrando que em situações em que cabia dividir despesas, por exemplo, em restaurantes, por ocasião de almoços de família, sua mão penetrava nos profundos bolsos das calças – sempre de linho – e de lá não saía, a não ser quando a conta já estivesse paga. Isso se não estivesse em pijamas, claro. A movimentação de pessoas fugidias e um tanto dissimuladas em sua porta, ao longo dos seus anos de aposentado precoce, já denunciava um outro aspecto de sua vida, a agiotagem. O sujeito mal-encarado, com que frequência andava ao lado dele, viu-se depois, era uma espécie de capanga, encarregado dos contatos mais penosos com credores renitentes. E assim aquele homem ia levando sua vida, visto por muitas pessoas em seu entorno, meu pai na primeira linha, como real “homem de bem”, embora conhecê-lo de perto, como uma parte da família e mesmo eu e outras pessoas próximas o faziam, não confirmasse tal impressão.
O fato é que Ti’totó viveu muitos anos, acumulou valores e propriedades, impôs a todos uma imagem de homem correto, só um pouco excêntrico. Morreu, já na casa dos oitenta anos de idade. Enterro concorrido, não só pelas dimensões de nossa família, com um tanto de primos em graus variados presentes. Mas também porque o sujeito, surpreendentemente, podia exibir uma vistosa rede de pessoas que talvez o admirassem. Haveria também o cortejo dos explorados pela agiotagem do finado, mas estes, naturalmente, não compareceram ao funeral.
Não é que uma espécie de mestre cerimônias que apareceu no velório, um parente remoto dos Albuquerque e Possas, depois de narrar uma breve biografia do falecido, resolveu convidar algum dos presentes a prestar uma homenagem a ele? Só faltava essa… Mas felizmente não apareceram interessados. Em algumas ocasiões, pelo menos, a vida parece mostrar alguma espécie de lógica. Que Teotônio de Albuquerque e Possas possa descansar em paz. A humanidade, sua legião de devedores, além de diversos crâneos infantis, muito agradeceriam.
***
Um tiro de cartucheira
Eu estava de volta àquele lugar, passados muitos anos. Não me lembrava de muita coisa dali. Mas aquela porteira, que de fato poderia ser a mesma de décadas atrás, me pareceu conhecida, assim meio bamba e desgastada pelo tempo. Também me pareceu familiar a vista daquele alto de estrada, com um largo horizonte alcançado. Eu voltava ali depois de tantos anos por circunstâncias especiais: ia fazer uma palestra na região e devido a uma interrupção acidental na via principal, me vi forçado a passar por aquela estradinha secundária. Aliás, ao trafegar por ali me lembrei, no início, apenas vagamente de ter estado lá, em circunstâncias que, logo em seguida percebi, se dependesse apenas de mim, seriam esquecidas. Mas o fato é que, se pudesse ou avisado fosse, eu certamente procuraria evitar tal trecho. No automóvel, tentando concatenar ideias para o meu palavrório da noite, os acontecimentos antigos foram se arranjando na minha cabeça.
Puxei da memória aquela semana de recesso escolar de trinta anos antes, que fomos passar, eu e três colegas de faculdade, no sítio da família de um deles. Ali nos divertimos à tripa forra, como é comum a quem tem duas décadas de vida e uma longa sucessão de anos pela frente. Noites de bebedeira, conversas intermináveis, incursões literárias e filosóficas, caçadas de tatu, andanças pelos matos em plena noite. E um permanente desejo de fazermos troça uns dos outros, por exemplo, com latas de água colocadas na porta do banheiro, que eram despejadas ao serem puxadas por cordões quando um infeliz saía do banho, naquelas noites serranas frias de se bater queixo. Ninguém se importava com aquilo, ao contrário, com mais entusiasmo se articulavam novos planos de tormentos ao próximo, tão logo fosse possível e favorável para tanto.
Zé Maria, o nosso anfitrião, filho do doutor José Maria de Benevides e Silva, o proprietário do sítio, era o campeão de tais brincadeiras noturnas, ao mesmo tempo que era imbatível nas discussões filosóficas, citando Kierkegaard e Schopenhauer com a intimidade de quem fala de algum Tonico da esquina. Os outros éramos eu, Dalton e Celso. Zé Maria liderava uma outra atividade, para ele um folguedo extraordinário, que era o de sair a caçadas noturnas ou mesmo diurnas, armado com uma cartucheira de calibre grosso, que acabava sendo disparada contra algum cupinzeiro, por falta de caça real. A única vez que atirou para valer em algo vivo foi no que lhe pareceu ser um ouriço-cacheiro mal divisado na noite, agarrado a um tronco de laranjeira, mas que em seguida se mostrou como morada de terríveis marimbondos, que atacaram impiedosamente o incauto caçador. Por sorte, só o agente da façanha foi atingindo pelos ditos, que esvoaçaram furiosamente ao redor do ninho semidestruído pela chuva de esferas de chumbo. Nós outros, o restante da malta, em distância cautelosa, fomos poupados, felizmente.
Geralmente não fazíamos companhia a Zé Maria nessas empreitadas armadas, salvo eu ocasionalmente, que por nunca ter atirado na vida, resolvi experimentar o gosto daquilo. Algumas vezes, por pura diversão, carregávamos a tal cartucheira com borra de café no lugar do chumbo e, com a pólvora restante nos divertíamos de dar tiros de festim uns nos outros, de efeitos curados por um bom banho, em uma guerra imaginária, que antecipava o esporte que iria se tornar popular muitos anos depois.
E assim corriam nossos dias, despreocupadamente, alterando banhos de bica, excursões de infrutífera caça, noitadas que intercalavam tertúlias intelectuais e filosóficas e peças maldosas pregadas nos desavisados. Havia um vilarejo próximo, ao qual fomos apenas uma vez, por carecermos de condução e de maiores alternativas de afazeres por lá. Como era época de festa junina, ou comemoração de Santo, estivemos em uma quermesse, onde nos fartamos de comer pamonhas e beber quentão. Mas acabamos saindo quase corridos dali, pois um dos nossos resolveu se engraçar com uma donzela local, o que fez que quase fôssemos linchados pelos parentes da moça. Já quase bêbados, saímos em louca carreira, tropeçando pela estrada esburacada e escura, e apesar do susto, nos sentimos recompensados pela pândega. Afinal, não custa lembrar, ninguém ali tinha mais de vinte anos e um estado de festa era permanente em nós.
Certo dia, nada falta de mais o que fazer, resolvemos ampliar nossos horizontes. Zé Maria, que por força de ser frequentador antigo daquelas paragens, tinha maior conhecimento da região, propôs a ida a uma mata relativamente fechada, que ficava a 15 ou 20 km dali. A pé, claro, pois nem carro tínhamos. E pôs naquilo grande empenho, como um grande estrategista a cuidar de cada detalhe da marcha, como se fosse uma empreitada quase militar, calculando hora de saída e volta, tempos de caminhada, flancos de abordagem do terreno, reservas de água e comidas, pontos notáveis no percurso, agasalhos etc. E mais o que não poderia faltar: a famosa cartucheira, devidamente municiada com munição de chumbo real, não mais de borra de café. Afinal de contas, segundo ele, aquela floresta prometia alguma caça, quem sabe até anta ou capivara. E para ele, a palavra de ordem era matar, sem apelação. Naquele tempo isso era quase banal e nisso o sujeito fazia profissão de fé.
E assim, às seis da manhã, num frio siberiano, fomos despertados por Zé Maria, aos gritos, para que iniciássemos a jornada, que mais parecia a expedição para livrar da forca um pai ou algum parente. E como a coisa havia tomado ares reais de expedição de conquista, começamos a brincar de guerra, de guerrilha, melhor dizendo, porque na época andávamos influenciados pela morte de Che Guevara e pelos escritos de Regis Debray. Tudo era festa. A ilustre cartucheira passou a ser agora uma espécie de galardão, cuja posse nos revezávamos a assumir, com muita honra. E andávamos com aquilo em riste, não a tiracolo, como se procurássemos inimigos nas moitas. Nos turnos de Zé Maria, a procura da caça, que mais uma vez se revelaria infrutífera, ganhava ares de missão, ou pelo menos de verdadeira atividade profissional. Em tal jornada, verdade seja dita, não se disparou nenhum tiro, até porque já não havia muita munição em nosso paiol. E muito menos caça nos territórios então palmilhados. E foi aí que aconteceu o fato que quase mudaria duas vidas. Uma, por fuzilamento, outra por remorso eterno.
A arma estava em minhas mãos e, de repente, teve um dos gatilhos acionado, sem que eu aparentemente o tocasse. Eu não a tinha armado para tanto e nem sei quem o fizera, talvez fosse aquele que a portava antes de mim, ou seja, o próprio Zé Maria. Mas por um milagre o cão batera sobre a espoleta do cartucho e não a deflagrou, embora chegasse a produzir uma marca pontual no metal. Eu conferi tal coisa, pessoalmente, em seguida. Um arrepio me percorreu a espinha, ou mais, da planta dos pés à raiz dos cabelos. O próprio dono da cartucheira estava justo à minha frente e a arma apontava para seus rins. Os outros nem perceberam. Eu fui a única testemunha por um momento, mas como não consegui disfarçar o impacto moral que aquilo me provocou, tive que compartilhar com os demais o anúncio daquele desastre quase acontecido. Tivemos alguns minutos de comoção compartilhada, descarregamos e travamos a cartucheira, com um silêncio fúnebre a dominar o ambiente. Àquela altura, diante do acontecido, talvez porque as duas ou três léguas anunciadas por Zé Maria pareciam invencíveis, também por uma chuva que se anunciava no horizonte, resolvemos desistir da expedição e voltar para o conforto do sítio do Doutor Benevides e Silva. Completamente sem graça ou ânimo, nós mal e mal tomamos uma sopinha de batatas e fomos direto para a cama, sem discussões literárias ou filosóficas, sem troças noturnas de qualquer espécie. De minha parte, tive uma noite de sobressaltos, com pesadelos com pessoas agonizantes, afogadas num mar de sangue e vísceras expostas.
A verdade é que tudo teria ficado por isso mesmo se não fosse a sequela que me apareceu tardiamente. Foi assim: coisa de quatro a seis anos depois, eu estava num jantar de família e de repente um parente mais velho, primo de meu pai, com o qual, aliás, eu não simpatizava muito, me indaga à queima roupa: conta pra todo mundo aquela história da carabina que quase disparou em suas mãos. Eu me fiz de desentendido, mas ele insistiu, citando o local, os personagens e até a data aproximada do ocorrido. De novo uma onda de frio e mal-estar me percorreu o corpo. Como podia ser aquilo? É bem verdade que nós, os diretamente envolvidos, não havíamos feito nenhum pacto de silêncio explícito na ocasião, embora isso parecesse óbvio. Mas como aquele intrigante ficara sabendo do que acontecera naquele dia fatídico? Não. Nenhum dos quatro participantes da excursão, com certeza o conhecia. Não pude confirmar isso diretamente com eles, pois nossa convivência já havia terminado após a formatura na faculdade, mas as probabilidades eram praticamente zero. Talvez ele soubera por uma terceira – ou quinta – pessoa, por sua vez informada por alguma das testemunhas diretas. Como saber? Indagar diretamente ao parente seria correr o risco de fazer com que a situação se agravasse ainda mais, porque ele era conhecido pela indiscrição e falta de noção nas coisas que dizia e fazia. Frequentava nossa casa por obra e graça de meu pai, que o respeitava, dados os laços familiares. Para ele, gente de seu sangue era sagrada. Mas não era, de alguma forma, querido por nós, seja por minha mãe ou meus irmãos. Um tanto grosseiro, eternamente desempregado, buscando e monopolizando a atenção nos grupos onde estivesse presente. E de uma escassez de repertório verdadeiramente chocante para se manifestar ou alimentar conversas.
Naquele momento fui salvo pela chegada de mais um parente, que logo atraiu as atenções da mesa – com a vantagem de ser este, pelo menos, uma pessoa tratável e querida por todos. Mas não parou por aí o meu temor. Na visita anual que o tal primo fazia a meu pai, por ocasião do aniversário deste ele fazia questão de retomar o assunto ao me ver, e o que é pior, geralmente na presença de outras pessoas, embora já na segunda vez eu lhe disse, com bastante energia na voz, não saber do que se tratava. Ele, no seu modo habitual, chegou a me ironizar, dizendo qualquer coisa como ora você está perdendo a memória muito cedo…
Suportei isso por anos a fio, até que um dia chegou a notícia que não deixou de me alegrar: o sem-noção morrera por um infarto agudo do coração. Fim do meu pesadelo, pensei. Descansei disso por vários anos, mas um dia, ao visitar um outro parente do meu pai a quem não via há muitos anos, que vivia na cidade natal da família, também primo do detestado novidadeiro, eis que aquele me brinda com uma acolhida inesperada: – é você o moço que quase matou um colega com um tiro de cartucheira?
Calei-me dessa vez, resignando-me ao fato de ter sido condenado por um crime que não cometi; aliás, que nem aconteceu. Achei que seria de bom tom rezar uma missa pela alma do meu indesejado parente. Quem sabe assim obteria o descanso de que eu me julgava merecedor?
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Apenas uma mulher
A moça nasceu e cresceu na pequena cidade, ainda uma vila, que só ganharia estatuto municipal bem mais tarde. Igualmente originários dali pai, mãe, avós e não se sabe quantos antepassados mais. Parece que o lugar já tinha começado com sua família, ali presente desde sempre. Um possível antepassado entrou para a história da pátria, por ter guiado as tropas nacionais na fuga dos ferozes paraguaios. Mas isso era apenas assunto sem confirmação, amplificado pela gente daquele lugar pacato onde nada acontecia, salvo a repetição das histórias do passado, verdadeiras ou não.
O moço que chegou de fora, para comprar uns novilhos do pai, botou nela uns olhos que a incomodaram de início, mas depois lhe abriram uma vaga esperança de que, aos dezesseis anos, quando muitas dali já se casavam ou de alguma forma arranjavam marido, talvez houvesse chegado a sua vez. E podia ser o caso. As conversas do moço com o pai lhe pareceram significativas. A mãe chamou-a mais tarde, lhe fez vestir uma roupa nova, calçar sapatos, e participar da conversa noturna, na pequena varanda da entrada. O moço apenas a olhava, não lhe dirigiu palavra. Ela, com os olhos no chão, tentava entender o que acontecia ao seu redor, mas só soube com certeza no dia seguinte, quando a mãe lhe revelou que o recém-chegado havia proposto ao pai que desse a ele sua mão. Um casamento! Entre assustada e feliz ela tentou entender. Negar, nem pensar, era a vontade do pai e quem era ela para dele discordar, nem que fosse por um átimo de tempo? Mesmo os irmãos, homens e mais velhos, não ousariam tal coisa, quanto mais ela. E assim se fez.
Com mais dois meses o moço apareceu de novo e aproveitando a rara presença do padre, celebrou-se o casamento. Na mesma noite partiram, ela e ele, em lombo de mulas, para uma vida nova e totalmente desconhecida. – Será que serei feliz? – pensava ela com esperança, mas sem poder afastar uma sombra de preocupação. Afinal, deixaria ali os irmãos mais novos, de quem cuidava com o carinho de uma segunda mãe, as amigas da escola, a professora a quem ela se apegara tanto. Mas a vida é assim, lhe disse uma comadre da mãe, a mais chegada, por sinal, cabia seguir tal sina. Quem seria capaz de negar o que seria o real destino de uma pessoa?
A mula a carregou para outras paragens, uma terra estranha, com pessoas pouco dispostas a conversar e dar atenção a quem viesse de fora, como era o caso dela. Lá o moço era popular, cumprimentava a todos na rua. Ela na mula, de olhos baixos, mal se dava conta do ambiente que agora seria o seu. A ninguém lhe foi dada a gentileza de ser apresentada como esposa. Quase um ser invisível. A mula recém adquirida lhe pareceu ter mais valor do que ela própria, tendo merecido elogios de seu porte e elegância por parte de homens que proseavam na sombra de um abacateiro, rodeados por suas montarias. Estes nem olharam para ela, por respeito temeroso, talvez. Mas nem era bem ali naquele povoado que estava o seu destino. O moço, quase todo o tempo silencioso, custou a lhe revelar que na verdade tinham ainda que viajar algumas léguas, para chegar à fazenda herdada de seu pai, onde ele morava e tocava a vida.
A moça não teve em outros tempos casa ampla ou confortável, de família apenas remediada que era. Mas as acomodações que o marido dispunha para viver eram diferentes – para bem pior – daquelas a que estava acostumada. Uma mesa de pés bambos, três ou quatro cadeiras, um catre que mal cabia uma pessoa, destinado agora a abrigar um casal – era tudo que havia ali. E, de quebra, uma cozinha minúscula e imunda, na qual o picumã acumulado talvez por décadas descia do telhado em negras volutas. O homem apenas lhe indicou com um gesto mudo que poderia pendurar suas escassas roupas em forquilhas rústicas colocadas nas paredes. Ela então percebeu o quanto sua vida já mudara e continuaria a mudar dali para frente. Suas noites eram aterrorizantes, com aquele ser bruto, suarento e cheirando a fumo por cima dela, sem trocar palavra, resfolegando como um cavalo. E ele vinha sem nada lhe indagar, nenhum cuidado com suas dores de virgem. E acabado o ato, virava-se na cama para roncar placidamente, enquanto ela fitando o teto começava a se perguntar se aquilo lhe tinha sido realmente uma boa escolha. Mas era tarde para se arrepender.
Salvou-a do desalento total a boa figura da mulher do vaqueiro, que morava próximo, em cafua ainda mais pobre e desmazelada, mas que se aproximou dela, indagando se precisava de alguma coisa, se podia ajudar. Ela agradeceu, mas logo percebeu que o maior auxílio que poderia desejar seria ter alguém que conversasse com ela, porque o marido era de um mutismo de pedra. O casal tinha dois filhos, tão pretos quanto eles e aquelas presenças lhe trouxeram lembrança dos irmãos, da vida em família que tivera, que mesmo modesta era bem mais interessante do que estar enfurnada naquelas brenhas. O resultado das investidas noturnas do marido logo se fez notar, com a parada das regras e a previsível prenhez. Um ano depois naquele exilio, sem tornar a ver o pai, a mãe e os irmãos, viu que havia chegado a hora de entregar sua contribuição ao povoamento daquele mundo. Na madrugada começou a sentir as dores e avisou ao marido. Este já estava de saída para a habitual ronda do gado e avisou à preta que viesse acolher a mulher. Contorceu-se por horas a fio, com a vizinha atarantada ao lado dela, pouco mais podendo fazer que aquecer uns panos para colocar sobre o ventre, àquela altura duro como pedra. Pela noite o marido apareceu, mas mal se interessou pelo andamento do parto. Na manhã seguinte levou-a, finalmente, à cidade, mas lá o que se pôde fazer foi induzir a expulsão de um natimorto.
Na volta ao lar, teve por parte da preta um desvelo de mãe. Acolheu-a, lavou suas roupas e lençóis, matou a galinha mais gorda para lhe preparar uma canja. Esteve ao lado dela por horas seguidas, dias a fio, até que a amiga e protegida, finalmente, começou a dar conta de suas tarefas. O marido, a esta altura, saíra de casa para mais uma viagem de compra de gado, com duração de dias sem conta. E os dias se seguiram imutáveis. Veio a chuva e a cafua principal, cheia de goteiras e com o chão de terra batida, só não se transformou em um brejo porque o preto fez nela alguns reparos, por espontânea vontade, não porque o patrão assim o decidira. Na volta do marido, nem bem passadas duas ou três semanas, os assédios noturnos prosseguiram e logo o resultado deles se fez novamente sentir. Desta vez, porém, conseguiu que o homem permitisse a vinda da mãe e alugou uma casinha na cidade, na qual ela passou as últimas semanas antes do parto. Desta vez veio um menino, dos mais saudáveis, por sinal. E este ainda nem começara a firmar a cabeça quando ela percebeu de novo a parada das regras. Mais alguns meses e um novo ser era trazido ao mundo, outro menino. O marido olhava os rebentos sem maiores comentários, incapaz de lhes fazer algum carinho ou mesmo um leve toque no macio dos cabelos. E assim foi pelos anos a fora.
Um filho por ano. Doze no total, dos quais pelos menos três nasceram mortos ou não sobreviveram ao primeiro ano de vida. O marido, sem proferir palavra, como sempre, resolveu aumentar a casa, acrescentando dois quartos toscos ao conjunto existente, sem maior cuidado com sua pintura ou conforto interno. Um tempo depois, concordou que fossem todos morar na cidade, não exatamente para maior conforto dos filhos, apesar de terem chegado à idade escolar, mas porque resolvera abrir um negócio na rua, deixando na fazenda o preto cuidando da engorda anual de bezerros. Pouco tempo depois chega em casa e anuncia a ela: – prepara as coisas que amanhã vamos nos mudar. – Para onde, ela quis saber. E ele: – negócios meus, pra melhorar de vida, você só me traz filhos, todo ano…
Foram para a cidade, ele abriu um armazém e sucessivamente mudou de ramo, com açougue, padaria, quitanda. Mudando de casa a cada ano ou menos, sem perder o costume de avisar da mudança apenas na véspera, a mesma frase exaustivamente repetida: prepara as coisas para amanhã… Ele era bruto, mas também trabalhador. Anos depois, com alguns filhos já emancipados, teve a gentileza de comunicar a ela com uma semana de antecedência: – vamos nos mudar; agora é para a Capital. Ela nem perguntou sobre o que iriam fazer lá. Não teria resposta mesmo. Desta vez a mudança foi dentro de malas, apenas as roupas e mesmo assim as melhores. Afinal ele tinha amealhado dinheiro bastante para comprar mobília, alfaias e panelas novas. Pela primeira vez em muitos anos ela se sentiu prestigiada.
O homem agora montara um comércio de compra e venda de cereais. Viajava sozinho ou por intermédio dos filhos maiores para regiões agrícolas, dali trazendo feijão, milho e arroz para lucrativa revenda na capital. Dos cereais passou aos porcos e destes ao empréstimo de dinheiro a juros, agiotagem pura e simples. Sua ousadia e inquietação acabou por levá-lo a um ramo no qual não tinha nenhuma experiência, uma pequena empresa de transporte, juntando o capital de que alguns dos filhos homens já tinham posse, transformando-os em sócios do empreendimento. Não ficaram ricos, mas puderam levar uma vida mais confortável. O casal passou a morar em casas melhores, embora de aluguel, pois aquele homem apreciava mudar sempre, por força dos negócios ou por força de antiga compulsão. A mulher continuava a ser avisada dos novos planos do marido na véspera, mas nunca reclamava, por costume ou temor – ela já nem sabia mais o motivo.
Passaram-se os anos. Antes que completasse os cinquenta, a sucessão de partos conduzidos de forma precária, as longas jornadas de trabalho pesado com a casa, acrescidos do resultado das investidas de certo percevejo do mato, migrado para a cafua onde habitaram no passado, lhe afetaram as batidas do coração e mesmo o corpo como um todo. Em poucos anos estava inutilizada e não chegou a completar as cinco décadas de vida. Em seu velório, a penca de filhos se retorcia em dor e desespero. No quintal, o filho mais novo, temporão, mal saído da adolescência, mordia, nervoso a bainha da camisa, num choro crispado, embora sem lágrimas. Assim levaram-na ao cemitério, em um cortejo com poucos amigos.
Sobreviveram todos, o filho mais novo também. O viúvo usou uma tarja preta no paletó por algumas semanas. Mas um ano depois já tinha se enrabichado de uma turca solteirona e celebrou, alegre e agora mais comunicativo, um novo casamento, ao qual a maioria dos filhos compareceu e festejou.
***
Toninho
Quando entrei naquele ônibus, voltando do trabalho para casa como fazia diariamente, não prestei muita atenção na pessoa ao lado de quem tomei assento. Percebi apenas que era um homem negro, regulando comigo na idade, bem-apessoado, embora vestido com roupas modestas. Balbuciei o ligeiro cumprimento habitual de quem não conhece o outro, meio como modo de pedir licença, coisa discreta e formal, quase imperceptível, e me concentrei na leitura da revista semanal que acabara de comprar pouco antes de embarcar. Em poucos minutos pude perceber que meu vizinho de banco parecia disposto a abandonar a postura de paisagem, que assumira de início, e parecia me olhar como quem quisesse puxar conversa. Não dei trela, por não ter o costume de conversar com estranhos e também porque a Veja estava recheada de momentosas novidades, em uma semana de grande movimentação política e policial na capital da República. Mas minha indiferença frente a ele parecia infrutífera.
– Desculpe senhor, mas acho que lhe conheço de algum lugar… Dirigi a ele um olhar absolutamente vazio e inexpressivo. Mas o homem não parecia se dar por vencido. – De algum lugar… Acho. Há muito tempo atrás. Muito tempo mesmo. Comecei a me sentir incomodado por estar tentando ignorar aquele homem, que por trás de sua aparência modesta, tinha um olhar delicado e atencioso comigo. Vai ver que me conhecia mesmo, mas naquele momento eu seria incapaz de resgatar qualquer lembrança relativa à sua pessoa. Pensei, de imediato, em algum colega de colégio, mas isso não me abriu nenhuma frente de lembrança. De meus tempos de futebol: nada. Dos lugares onde trabalhei, também não. Absolutamente só um vazio me vinha à mente. O jeito era entrar na conversa.
– De onde você acha que me conhece, afinal? Ele, dando a mim um respeito um tanto despropositado, afinal não nos conhecíamos, além do mais desnecessário entre dois passageiros de um simples e democrático coletivo urbano, que afinal de contas nos igualava: – Desculpe se insisto, mas o senhor morou no Coração de Jesus? Ali estava uma pista. Eu de fato havia residido no antigo bairro proletário da cidade, nos primeiros anos de minha infância. Mas não seria possível que aquele sujeito ainda me reconhecesse já homem maduro, muitos quilos, centímetros e cabelos brancos a mais, depois de pelo menos seis décadas passadas. A não ser que tivesse me acompanhado pela vida a fora, o que sem dúvida era também muito improvável. – Seu pai não era dono de uma marcenaria? Não havia mais como fugir, ele sem dúvida sabia quem eu era. Mas a recíproca, por mais que eu me esforçasse, não acontecia de forma alguma. – Seu Manuel, o nome dele… Pronto. Conhecia não só a mim como também a meu pai. Mas aquela referência a ele me clareou algum desvão da mente. Seria algum empregado dele naquela época? Um aprendiz, talvez, pela faixa de idade? Aquela réstia de luz continuou a abrir caminho, tive a impressão que de alguma forma aquele homem já tinha cruzado o meu caminho.
E ele abriu novas clareiras: – Trabalhei com ele por algum tempo. Meu pai, Alcides, que era marceneiro profissional, também trabalhou. Mas eu tinha alergia ao pó de madeira e o Seu Manoel me botou para dar expediente no escritório. Aquilo aos poucos me abria certezas… – Antônio Carlos – Toninho – é meu nome… Nesta hora, a réstia de luz finalmente se abriu em clarão. Eu agora o reconhecia. A certeza da lembrança caiu em mim como um balde de água que se atira na calçada, bem na hora em que alguém desavisado vai passando. – Pois é, eu gostava do que fazia, aprendia muitas coisas e até pensava em estudar contabilidade ou administração…
A história estava me tentando a interagir, mas ao mesmo tempo me trazia certa angústia. – O pai do senhor parecia ter muita confiança em mim, mas acho que alguém sujou a minha barra por lá. Da noite para o dia, perdi o prestígio que tinha. Logo depois fui demitido, sem saber exatamente o motivo. E nem nunca soube. Caramba, agora me dei conta finalmente: ele não sabia o porquê daquilo; mas eu, infelizmente, sim… E carregava aquilo como um segredo, durante muitos anos, até que sumiu da minha memória, mas retornava agora. Toninho fazia reavivar aquela história, que eu tentei esquecer por muitos anos. Por pouco, por um pequeno atraso, meu ou dele, ou se houvesse mais lugares vagos no ônibus, nem eu nem ele estaríamos passando por tais lembranças.
– Agora estou de fato me lembrando de você. Bom te rever. Por onde anda na vida? O meu interesse procurava ser generoso. mas no fundo eu preferia que aquele encontro não tivesse acontecido. E que não houvesse perguntas, nem respostas. Mas isso não parecia ser o caso dele, que se mostrava feliz em me rever e indagar coisas. Voltas que a vida dá… – Acabei no ramo da marcenaria, graças a meu pai. Com alergia e tudo. Hoje trabalho numa fábrica de móveis. Ou melhor, trabalhava, pois acabou de falir. O senhor sabe, a crise do país… Ele era bom de conversa e depois de tal revelação sobre sua vida engatou mais esclarecimentos a respeito de suas experiências de vida e de trabalho. Mas a esta altura eu já estava perdido em lembranças sombrias e pouco prestava atenção na conversa.
Sim, aquele Toninho me marcara a vida, muitos anos atrás. Dois ou três anos mais velho do que eu, ele era filho de Alcides, o oficial marceneiro que trabalhava com meu pai, que na verdade nada entendia de tal ofício, apenas fizera um investimento financeiro naquilo, com algum sucesso, diga-se de passagem. O rapaz sempre aparecia na oficina, geralmente depois de sua aula, como eu também o fazia, para esperar nossos pais ficarem liberados e assim irmos para casa com eles. Eu e meu pai no Chevrolet Bel-Air, já decenário, eles dois de ônibus. Ocasionalmente jogávamos uma partida de futebol a dois, naquelas disputas de gol-a-gol que cobriam os momentos de folga da meninada da época. Ele, um pouco mais velho e mais experiente do que eu, ganhava todas. Mas era só, não tínhamos maior intimidade, nunca estive na casa dele e nem ele na minha, a não ser em uma única ocasião especial.
Foi em tal encontro que se deram os acontecimentos que naquele reencontro, décadas depois, acabaram por me trazer lembranças incômodas. Foi o seguinte: Toninho começara como aprendiz de marceneiro, mas pela tal alergia acabou no escritório da firma, na verdade um pequeno cômodo anexo ao galpão onde ficavam as máquinas e as madeiras em depósito. Ali cuidava das notas de compra e venda, anotava as horas dos empregados e ocasionalmente ia às ruas, para pagar ou trazer alguma coisa demandada por meu pai. Eu gostava de vê-lo ali se esforçando, de forma madura e responsável, creio que até desejava para mim alguma tarefa semelhante, pois isso me trazia uma sensação de importância e maturidade. Neste escritório havia um móvel de certa distinção, uma daquelas escrivaninhas antigas cuja tampa flexível, feita por finas réguas de madeira, deslizava de forma sinuosa e fechava o conjunto. Ali meu pai guardava talões de notas fiscais e outros documentos deste tipo, pelo que me lembro. Mas um dia, ao deparar com a tampa de taliscas aberta, coisa rara, tendo meu pai saído para atender um cliente na oficina, percebi que havia em meio aos papéis espalhados ali dentro um retrato de mulher. Uma foto que não era de minha mãe e nem de qualquer pessoa que eu conhecesse. Uma dama loura e cacheada, que me apareceu atraente, com os lábios bem delineados pelo batom e um pescoço coberto por um colar de pérolas. Havia qualquer coisa escrita também, que eu não pude ler porque a esta altura o coração me batia acelerado e eu temia pela volta repentina do dono da escrivaninha, o qual, devo dizer, eu tinha razões para temer mais do que tudo na vida. Mas é claro que aquilo já tinha produzido em mim uma marca, composta de curiosidade e um pouco de maldade.
Assim, passei a perseguir um momento para completar a revelação do segredo. E alguns dias depois isso foi possível, quando, num sábado ou domingo, meu pai me mandou ir até a oficina, que não ficava longe de nossa casa, pegar algum objeto – creio que um maço de cigarros – que ele tinha ali esquecido. Aquilo não estava dentro da tal escrivaninha, mas sim em uma mesinha anexa e eu rapidamente encontrei. Mas é claro que não resisti em abrir a tampa deslizante e ali dentro devassar o que houvesse. A foto já não estava no lugar em que eu a havia visto, até porque havia novos objetos e principalmente papéis em desordem por ali. Passei a examiná-los um tanto sofregamente, mas com cuidado, para não deixar rastros. Logo vi que boa parte deles estava dentro de uma bandeja de madeira, a qual procurei levantar para examinar também o que havia por baixo dela. Nesta hora aconteceu o desastre. Eu peguei a peça de mau jeito, ou o nervosismo da situação me afetou e assim a tal bandeja caiu ao chão, espalhando papéis, talões de cheque, clipes, rolos de fita de máquina de escrever, carimbos e outros objetos, por um raio dois metros ou mais. Com o coração saindo pela boca eu me pus a catar os despojos do desastre, já com a certeza que eu ia me dar mal com aquilo, pois meu pai certamente descobriria que lhe mexeram nos guardados. Mas a foto que eu tanto desejava encontrar não estava mais ali.
Voltei pra casa, fiz a entrega do que me foi solicitado e esperei, a partir de segunda feira, que o céu desabasse sobre minha cabeça. Eu tinha certeza que isso ocorreria. Mas não aconteceu, pelo menos comigo. No domingo seguinte quem apareceu em minha casa foi Toninho, convocado por meu pai. Eu e meus irmãos fomos intimados a ir para o quintal ou mesmo para a rua, pois haveria uma conversa de adultos, pelo que minha mãe nos disse. Como? De adultos? Toninho não seria mais velho do que eu, talvez uns três anos. Eu senti um desconforto por dentro, pois sabia que as admoestações iracundas que meu pai frequentemente dedicava a mim ou a algum irmão, o lugar favorito para que isso acontecesse era justamente a sala, onde o recém chegado fora instalado, ao lado de um copo d’água. A esta altura, eu já estava tomado por um misto de curiosidade e preocupação, até mesmo algum remorso antecipado, pois eu já pressentia qual seria o objeto de tal convocação.
E era isso mesmo que estava em pauta. Eu aleguei necessidade de ir à privada e fiquei por ali. Do banheiro me esgueirei ao corredor e dali pude ouvir toda a missa. Meu pai começou do seu jeito persuasivo, tentando ganhar confiança de quem lhe ouvia, de maneira um tanto forçada, exatamente como fazia comigo ou com meus irmãos, quando queria nos castigar, mas logo, num crescendo de voz e gestos, foi direto ao ponto: o que Toninho estava procurando – e por quê – quando provocou aquele furdunço nos papéis que estavam dentro da escrivaninha? Eu gelei por dentro e por fora e fiquei ainda mais ansioso quando pude perceber que Toninho não conseguia dar nenhuma resposta àquilo, mal e mal conseguia negar, repetindo não fui eu não fui eu até a exaustão, o que fazia a ira interrogatória de meu pai crescer mais e mais. De minha posição eu pude ver que seu rosto negro passara a cinzento, como acontece quando as pessoas pretas empalidecem. A tortura deve ter durado uma meia hora, ou mais, e dali o pobre rapaz foi despachado de volta, sem que pudesse nem mesmo beber da água que lhe fora destinada. E creio que ainda ouvi algo do tipo: vou pensar no seu caso, não sei se o senhor está falando a verdade… Meu pai era assim: em seus habituais momentos de ira, ou quando queria ofender alguém, tratava os interlocutores como senhor ou senhora, valendo-se disso até mesmo para mim, meus irmãos ou minha mãe.
Perdido em tais pensamentos eu apenas escutava uma ou outra palavra do que Toninho me dizia ali no ônibus. Pude perceber que ele tentara outros caminhos na vida, que fizera vestibular para Administração, mas abandonou a faculdade por não poder pagar, que tentou uma imigração para Portugal, mas teve que voltar ao Brasil pela dificuldade de se sustentar, gastando em Euros. Em certo momento, retive uma frase inteira: – eu tentei concorrer a uma vaga numa companhia americana, mas fiquei dependendo de uma carta de apresentação que nunca veio. Ele me negou, mais de uma vez, aliás… Sim, ele falava de meu pai. A verdade é que eu continuava perdido nas brumas de um passado que queria esquecer. Eu não fiz na ocasião devida aquilo que uma pessoa decente e honesta certamente faria: confessar ter sido o autor do desarranjo daquela escrivaninha e assim liberar o Toninho da culpa que meu pai colocava sobre ele. Apesar do interrogatório inconclusivo e das negativas do rapaz, ele pareceu não abrir mão de culpá-lo, tanto que depois de alguns dias despediu-o sumariamente.
E por que não fiz o que devia? Meu pai era um sujeito violento. Poucos dias antes do episódio da escrivaninha, houve a reclamação de um vizinho, acusando a mim, meus irmãos e mais meia dúzia de adolescentes das redondezas, de termos colocado uma bomba, daquelas grandes, chamadas cabeça-de negro, em um furo de drenagem do muro de arrimo de sua casa, fazendo-o rachar de alto a baixo. Meu pai chamou os filhos para uma daquelas conversas aterrorizantes, sem deixarem de serem moralistas, no sofá da sala e depois de gritos e ameaças, dispensou a todos, menos um: eu. E ato contínuo me aplicou uma surra completa, com a fivela do cinto virada para fora, me machucando bastante. E aos brados dizia: – seu cão! Você está apanhando para servir de exemplo! Naquele domingo do interrogatório de Toninho eu ainda tinha marcas da fivela metálica pelo corpo e receei receber novo espancamento e fiquei quieto no meu canto. E quieto continuei depois que soube da demissão do rapaz. O fato é que não tive a coragem de enfrentar a fúria daquele homem, mas acho que isso não me redime. E carreguei esta culpa por anos e anos a fio. Até que tive por companhia em um ônibus aquele homem negro, de aspecto bondoso e sofrido.
– Pois é, senhor – como é seu nome mesmo? – chegou minha parada, vou descer. Prazer em vê-lo… Apertei-lhe a mão, que me pareceu mole e fria. Os olhos se desviaram dos meus. Aquele encontro, realmente, parece ter sido pouco agradável, não só para mim, mas também para ele. Depois disso, nunca mais o vi, para minha felicidade momentânea, sem que isso afastasse de mim a culpa, que fazia parte da paisagem de minha vida. Rever Toninho e relembrar, mal e mal, sua história a fez reavivar meu sentimento de culpa. Quem teria ficado mais incomodado? Eu, por ver trazida de volta uma história que eu queria esquecer? Ou quem sabe ele, ainda em busca de uma explicação para acontecimentos que teriam mudado sua vida? Ou ofendido pela atenção superficial que consegui lhe dedicar, perdido que estava em um matagal de pensamentos cheios de culpa?
***
Uma vida
O pai não era pobre, pertencente que era, de nascença, à vasta categoria dos remediados, como de resto toda a sua família. A mãe, esta sim, vinha de um clã que se situava alguns andares acima. Como o pai tinha tino para negócios, logo se emancipou da família matriz, daquela vidinha rasteira de criadores de vaquinhas, bezerros e muares, que o acompanhava por várias gerações. Logo buscou o rumo do horizonte vasto que havia para além do paredão de montanhas de sua terra, arranjou algum dinheiro emprestado para se lançar na vida e saiu a negócios pelo mundo. Começou comprando bestas de carga, para aprumá-las e vender com lucros, para em seguida tornar-se ele próprio um pequeno – depois médio e até robusto – agente autônomo do comércio, com mercadorias buscadas nos centros mais pujantes, além das montanhas, até no litoral.
Aquele homem não estudara muito, sabendo apenas ler, escrever e, principalmente, fazer contas. Dotado deste último atributo é que, certamente, se deu bem nos negócios. Com menos de 40 anos de vida, já tinha fazendas, incontáveis semoventes, apólices em bancos, casas na cidade e até mesmo na Capital. Aos filhos augurava que vencessem na vida, com perseverança e honestidade, como ele próprio, mas preferia não vê-los a tomar chuva e sol nas estradas, levar coices de mulas, perseguir bons preços no mundo áspero e cheio de matreirices do comércio e muito menos correr atrás de devedores relapsos e contumazes.
– Os senhores terão tudo o que quiserem de minha parte, desde que estudem e se preparem para uma vida prestante, é o que sempre dizia aos três filhos homens. Para as duas filhas bastaria que arranjassem bons casamentos, para o que ele, com os cuidados atentos de pai, certamente agiria conforme os costumes. Em outras palavras, mediante vigilância estreita sobre quem viesse cantar serenatas a tais donzelas, sob as janelas do sobrado na rua mais nobre da cidade. Cumpridos os ritos escolares, escassos naquela cidade, pouco mais que uma vila perdida no Mato Dentro, fronteira com o território Botocudo, e sendo ele, o Moço dessa história, filho mais velho, o pai, com poucas palavras, como de costume, indicou-lhe o rumo da cidade grande, para que avançasse nos estudos e se formasse em alguma profissão de brilho. Queria-o médico ou advogado, foi bem claro. Para os filhos homens mais novos, pelo menos a formação em farmácia, magistério, seminário de padres. Para as filhas mulheres, já se sabe. E assim cabia fazer. Ordens de tal origem não se podia contrariar.
Na capital do estado, cidade recém-criada, ainda não havia tais facilidades, ou o que havia não era considerado apropriado. E lá foi o Moço para o Rio de Janeiro, em longa viagem, de muitas baldeações. Na capital ficou por dois ou três dias hospedado em pensão familiar, indicada por um tio que ali já morava há algum tempo. A acolhida lhe foi generosa, seja por parte da proprietária do estabelecimento ou de sua filha, moçoila de seus 15 anos, que ficava rubra quando o Moço por acaso lhe dirigia palavra. Ele, também, com seu tanto de timidez, acabava evitando interagir com ela, por percebê-la um pouco avexada com aquilo. Mas alguma coisa, talvez alguns olhares fugidios, já se fazia presente nos corredores da pensão, para logo se perder entre as mangueiras do quintal.
Havia ainda uma missão a cumprir, bem o determinara o pai e ele seguiu adiante. Mais um dia inteiro no trem de ferro, roupa e corpo cobertos de fuligem, ele desembarcou na capital do país à beira do mar, que ele viu pela primeira vez. Nem teve tempo de se espantar com tanta gente nas ruas, tantas carroças, a novidade dos automóveis, o cheiro de maresia, o calor. E mais aquela gente estranha, de olhar desabrido e fala sibilante. Carregando a própria mala, atravessou uma fieira de vielas, pulando as poças d’água e de imundícies, para finalmente chegar ao endereço que os amigos do pai na cidade, haviam indicado para colhê-lo durante seu período de estudos. O nome da rua, tirando de um país distante, já mostrava costumes diferentes daqueles de sua cidade, onde as ruas sem exceção, se nomeavam apenas como homenagem a pessoas gradas do local, no máximo um figurão do Império ou da jovem República. Nada de guerras além-fronteiras, de batalhas esquecidas.
Logo achou a pensão que lhe fora indicada. A dona desta, ao contrário da anterior, não tinha filhas, era viúva e só tinha por companhia um casal de gatos. Mas o ambiente era familiar, com a presença de outros estudantes, como o Moço, vindos de várias partes do país. Para ele não foi difícil se aclimatar, mas aquela cidade tão grande e tão diferente nos modos de se viver, na temperatura e nos odores, volta e meia lhe apresentava surpresas. Quando ele chegou a terrível Espanhola havia cedido, mas era rara a família que não contasse um punhado de mortos entre os seus. A moda era criar ratos em gaiolas, porque o governo pagava às pessoas por cada exemplar capturado. Depois vieram conflitos pela desocupação das pessoas que habitavam velhos pardieiros na região central, com mortos e feridos sem conta. Tudo culminou com grandes distúrbios nas ruas, com mais feridos e muitos mortos, em revolta contra a obrigatoriedade de se tomar vacinas. Tudo tão diferente de seu lugar natal.
No meio de tudo isso o carnaval, aquela orgia de gente se borrifando nas ruas com água e outros líquidos menos recomendáveis, as mulheres de braços nus e pernas quase totalmente descobertas, a profusão de máscaras, atrás das quais as pessoas faziam o que queriam, sem temor de serem identificadas. Ali se abrigavam, ao mesmo tempo, Sodoma e Gomorra. Começou o curso preparatório para a Faculdade de Medicina. Já na primeira semana de aula ao ser levado para conhecer o anfiteatro de anatomia, teve um baque que o afastou da profissão de forma inexorável. Um corpo exangue e formolizado, ao qual, para horror maior daquele projeto de médico, faltava uma das pernas, lhe tornou a vista escura de repente e quando (não) deu por si estava no chão – desmaiado. Com a risada geral dos colegas e os bons conselhos do professor resolveu, ali mesmo, procurar outra carreira, a de advogado, no que também contava com a simpatia do pai. No ano seguinte já estava matriculado na velha faculdade e durante o curso chegou mesmo a ser admirado pelos colegas e até louvado por um e outro professor, dada a acuidade de suas análises, traduzidas em provas vazadas com estilo e pertinácia. O trato com os textos vetustos e embolorados, o hermetismo da linguagem jurídica, as decisões lentas e sempre sujeitas a contestação, não o desapontaram, pelo contrário, logo se sentiu como que nascido para aquilo. Ao pai prestava contas semestrais de seus progressos, sempre incluindo nas cartas trocadas com ele, informações sobre seus boletins de aproveitamento.
E seguiu sua vida, sem usufruir de nenhum luxo ostensivo, com dinheiro certo e contado mensal, bastante para as despesas normais de um estudante na capital, onde a vida era, naturalmente, mais dispendiosa que em seu berço natal. Com os irmãos tinha contatos protocolares, ficando sem ver pessoalmente a maioria deles, principalmente as mulheres, durante todo o seu tempo na grande cidade. Exceção feita ao mais novo, especialmente afeiçoado a ele, para o qual enviava de vez em quando livros e almanaques, chamando a atenção do mesmo para autores e obras que considerava importantes.
Os anos passaram depressa, ao sabor de sua vontade de logo retornar ao convívio familiar, que às vezes fazia o tempo escorrer de forma lenta para ele. Mas a severidade do pai marcava o tempo: – venha para casa apenas quando se formar – e ponto final. Contudo havia férias, e em tal momento não poderia ser pecado, mesmo aos olhos severos do pai, as idas a um lugar que lhe era especial, em no meio e no final do ano, depois de morosas dezesseis horas de trem grimpando as montanhas.
Não havia na antiga hospedaria uma moça que tinha um olhar terno para ele? E assim com algum tempo se deu entre eles aquilo que a humanidade conhece desde o início dos tempos. A Moça, agora, já o esperava uma ou duas idas anuais dele à cidade. Passaram a trocar cartas, a princípio tímidas, depois cada vez mais declaradoras de fortes sentimentos. A mãe da Moça e dona da pensão, ele soube depois, vinha do sul do estado, onde seu marido fora promotor de Justiça. Entretanto, este havia adoecido gravemente, cardíaco. Um médico foi preciso no prognóstico: – senhora, seu marido viverá por no máximo seis meses. E assim aconteceu. A recém viúva fez a trouxa e carregou os cinco filhos para a capital, onde já viviam algumas pessoas de sua família. Para sobreviver em tal condição, alugou uma casa e abriu pensão, passando também a fabricar petiscos para festas, numa vida não chegou a lhe trazer fortuna, mas sim algo mais essencial: boas amizades.
A filha, a tal Moça dos olhos calorosos, foi estudar interna em tradicional colégio da cidade e ali, para ficar dispensada de pagamento dos estudos, ajudava as freiras a tomar conta das demais internas, tendo que se submeter, ainda, a trabalhos pouco adequados para sua idade, como acordar toda a turma às cinco horas da manhã, para o terço matinal. Assim, aos 15 anos, quando o Moço a conheceu, era uma menina apenas na idade, mas já uma mulher com responsabilidades plenas perante a vida, ajudando a mãe, junto com sua irmã, nos trabalhos de arrumadeira na pensão.
Foi assim que depois de uma dúzia de férias repetidas, quem um dia chegou à pensão, em caráter definitivo e com outras responsabilidades, não era mais o estudante em folga escolar, mas o jovem advogado, em busca dos primeiros passos em uma carreira, sem saber ainda onde e como cumpriria tal missão. Mas o pai se adiantara, que chegasse logo à terra natal, onde os negócios da família o esperavam, além da atuação profissional no Fórum da cidade.
O pedido de casamento com a Moça da pensão logo aconteceu e foi aceito, por ela e sua mãe. Uma vez casado, dois meses depois, com presença já reclamada pelo pai, com insistência e autoridade, rumou para sua terra, onde certamente ganharia o pão de cada dia, diante de sua nova situação de homem casado. Uma viagem se fez então, a cavalo, o Moço e a Moça, que pela primeira vez em sua vida usava tal meio de transporte. Daí pra frente tudo seria diferente para ela. As madrugadas no colégio de freiras seriam como um refresco diante de uma sequência de gravidezes e partos, cuidados com filhos, empregados, casas, moléstias e principalmente modos estranhos de se levar a vida que até então eram novidades para ela. O pai, tendo o Moço agora presente na cidade, procurou se afastar da vida agitada e dura que levara até então. Entregou aos filhos, o adventício e mais um outro, a gestão de suas terras, vendeu as mulas e transferiu a um primo a boa carteira de comerciantes que eram seus clientes, em vastas extensões da região. E assim o Moço, filho mais velho, procurou se ajeitar em suas tarefas de causídico, que gradualmente o libertaram, para seu contentamento, das tarefas comerciais e agrícolas que fizeram a riqueza do pai, agora destinadas aos irmãos mais novos.
Ali na cidade natal, o Moço se dividiu entre a advocacia, o magistério, a política e aquilo que viria a ser sua maior paixão: o trato com as plantas, os bichos e a natureza. Mas apenas depois de mais de duas décadas defendendo e acusando gente, sempre em torno de pequenas transgressões, é verdade, porque ali ninguém se atrevia a maiores barbaridades, salvo nas disputas por herança, assunto em que o Moço se tornou uma referência que ultrapassaria os limites locais, dada sua habilidade em negociar e fazer ajustes entre as partes. A esta altura, o Pai que antes relutara em se aposentar, mudou de ideia e se transferiu, junto com a Mãe, que andava muito doente, para a capital. Zeloso das formalidades de sua vida de negociante, reteve para si o cabedal indispensável para continuar vivendo, junto com a mulher, confortavelmente, graças às ações de banco e outros investimentos que acumulara com sabedoria ao longo da vida. Além do que transferiu aos filhos homens e um parente, às mulheres destinou boa soma de dinheiro, além de papéis, que lhes garantissem um dote significativo diante dos pretendentes eventuais. O Moço herdou do pai uma fazenda, de todas a mais próxima da cidade, talvez em respeito a seu hábito urbano de advogado.
O irmão mais moço, aquele ao qual presenteava livros, vivia agora na cidade grande, começando a se realizar como jornalista e aprendiz de escritor, longe, portanto das mulas, das terras e do escambo familiar e também de lides jurídicas. Com tal sócio de herança, como decidira o pai, morando tão longe, coube ao Moço –já não tão moço – tocar a fazenda, aos poucos fazendo com que a antiga propriedade, meio abandonada, se transformasse gradualmente em verdadeira fazenda-modelo, com maquinário tradicional movido a água abundante no terreno, rapidamente repleta de fruteiras raras, inclusive videiras das quais se chegou a produzir bom vinho, com terras sabiamente aproveitadas e seu notável casarão bem conservado. Plantou café, aos milhares de pés, mas antes mesmo de que colhesse a primeira safra a grande crise internacional paralisou este tipo de negócio, culminando com a queima obrigatória das plantações, a ser ressarcida, de acordo com promessa do governo, entretanto jamais cumprida. Teve boas ofertas para dispor da parte de mata que era abrigada na fazenda, para dali se retirar madeiras de lei ou carvão, mas recusou-as todas, por não ver sentido em entregar uma obra secular da natureza à sanha predadora de empresas.
Deixou marcas na cidade, fundador que foi, junto com outros ilustres conterrâneos, de um educandário misto, novidade em sua época, e também de uma Associação Comercial, honrando as raízes que recebera do pai. Enquanto isso a Moça vivia com o Moço um casamento que poderia ser chamado de feliz, com suas grandezas e misérias, como o da maioria das pessoas. Ou talvez fosse melhor que a média, pois afinal ele, apesar de seu jeito seco, era cuidadoso e até carinhoso com ela. Jamais lhe levantaria a voz e em toda a vida juntos jamais foram dormir agastados um com o outro. Os filhos vieram em sequência, dez ao todo, com apenas uma perda, pela moléstia então denominada de colerina, distinguindo a família das demais da época, quando perdas numerosas eram quase obrigatórias. Assim. com a prole crescendo, ganharam mais liberdade e quando os mais novos já frequentavam a escola acharam por bem se mudar para a capital, onde a sogra, de dona de pensão passara a quituteira, das mais afamadas, por sinal. O Moço, nessa ocasião, não vinha se sentido bem, atribuindo seus males ao permanente clima úmido da cidade natal. O médico da família, seu colega de infância, suspeitou de uma tísica e assim endossou sua vontade de mudar de ares. Também auguravam maiores oportunidades para os filhos. Na capital, contudo, a tuberculose não foi confirmada e o Moço, que ali tinha bons amigos, acrescidos daqueles que o irmão mais novo lhe deixara, em sua mudança para o Rio de Janeiro, encontrou nova atividade profissional, como redator de um jornal, cargo anteriormente ocupado pelo caçula da família. Não deixava de ser uma vida tranquila, embora nada ociosa. A faina de sobreviver e cuidar da família impunha sacrifícios em relação a qualquer tipo de luxo. Filhos em colégio interno, representavam fonte permanente de despesas. A tensão da grande guerra na Europa repercutia no dia a dia de qualquer família nos trópicos, ainda mais quando havia filhos moços correndo o risco de serem convocados, como aconteceu de fato com um deles, liberado à última hora, dado o encerramento do conflito.
Mesmo com tudo isso, o ímã da política, da terra e das amizades, em poucos anos o atrairia de volta à terra onde nascera. Ali na velha cidade a política o atraiu com maior intensidade do que antes, com as mudanças generalizadas derivadas dos anos de guerra, além da opressão da ditadura de 15 anos. Por este tempo, ao discursar numa cerimônia de recepção ao ditador, que fora até a terra lançar a pedra fundamental da grande companhia mineradora, fez um discurso histórico, que sem deixar de ser elegante, insistiu em cobrar a redemocratização do país. Com tal perfil intelectual e militante, era amigo pessoal de líderes da oposição ao governo ditatorial, sendo alguns deles colegas de faculdade no, que viriam a constituir um famoso partido político que tinha como lema o preço da liberdade é a eterna vigilância, embora o seu perfil, pessoalmente, fosse mais inclinado à liberdade do que a vigiar os outros. Sem dúvida comungava com eles os ideais de moralização, modernização e anseio pelo progresso material do país, além de alguma elitização da política, também.
A cidade que o acolheu de volta já não era a mesma. A Companhia, onipresente, estendia seu poderio sobre quase tudo ali, comprando, esburacando, demolindo, corrompendo, contagiando através de seus milhares de operários, chegados de todas as partes do país, os costumes tradicionais, sob o olhar assustado dos moradores. Com mais alguns anos, família criada e o nascimento recente de uma filha caçula, numa gravidez em total situação de risco dada a idade da mulher, o Moço, agora um Senhor, resolve se mudar, definitivamente, para a capital. Adquire então uma chácara, retomando ali a obra interrompida na fazenda, vendida à Companhia, numa espécie de rendição. O trato com a chácara e os netos que passam a nascer em sequência anual, passam a ser, agora, seus principais derivativos. A política e a advocacia se transformariam, então, em páginas viradas. Foi assim a vida que teve durante dez anos, até que faleceu, cercado pela família e pela legião de amigos. Foi feliz, realizado? Acima de tudo, foi um homem de seu tempo.
A literatura lhe fez tentações, que afinal cederam, mas que vigoraram o bastante para contagiar o irmão mais novo, que atribuía a ele, sete anos mais velho, sua iniciação literária, inclusive graças a livros que lhe enviava do Rio de Janeiro, nos tempos de estudante. Pouca coisa, entretanto, restou de sua lavra. Andou de namoro com o movimento dos chamados simbolistas e até mesmo publicou um estranha “Baladilha”, vazada em tal estilo, cheia de reticências, e no português esquisito da época, na qual se destacavam frases como: Imagino-te fria, esgalga, velada em mortalha … Faces engelhadas, o corpo escarnado num elance juncal, cabelos limalhados de nimbus argenteos: na fronte – um mysterio de brumas cinereas, nos labios – um rictus funebre de caveira nova. E mais: […] Julgo-te moça, creio-te octogenaria… Idealizo-te uma virgem, nublada num véo d’espumas de luar, pallida, expectral… a beijar na noite esponsalicia o cadaver do noivo, na alcova de lyrios, no thalamo de núpcias.
Ele próprio, ao que parece, fez desaparecer todos os testemunhos materiais de tal aventura literária, pois nunca mencionava isso aos que o rodeavam. Seu próprio modo de levar a vida, aliás, não combinava com expressões como esponsalícia, esgalga, elance e outras. Uma boa síntese dessa vida simples, mas de forte grandeza humana e cidadã, foi traduzida pelo irmão caçula, ao qual ele iniciou nas letras e que acabou se transformando em escritor, sem dúvida dos mais aclamados:
Anos e anos escoados na cidadezinha natal, entre problemas pequenos e grandes que nunca se resolviam. Tentou ajudar a resolvê-los na oposição. No governo era impossível; não tinha paixão bastante para ser injusto ou odioso. Outros disputassem esse ou aquele posto importante, ele nem vereador quis ser. Mudou de terra e de vida. No fim, espectador enjoado, dizia aos políticos: seria melhor que fizessem como eu, indo plantar, tirar formiga, limpar galinheiro.
O mesmo irmão escritor o definira antes, em poucas e acertadas palavras, como o doutor e bacharel da família, cujas melhores letras foram aquelas escritas no sangue e na casca das árvores; alguém que sabia o nome de flores e frutas, especialista em casamentos genéticos. Enfim um ser nostálgico, cidadão urbano que não perdia o ar agreste, ao mesmo tempo letrado e camponês, transformado pela vida em autêntico patriarca. Não foi uma vida qualquer, em meio ao torvelinho das muitas mudanças nas quais o país rural e agrícola de sua juventude, voltado para si mesmo, seguiu em direção à miscelânea urbana e industrial, perseguindo, nem sempre em vão, com tormento e esperança, um lugar no concerto da cultura e da economia mundial.
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Infância
Os dois garotos, pelo menos uma vez por mês, tinham permissão da mãe para acompanhar o avô nas idas ao sitio, em cidade vizinha à deles. Como já eram taludinhos tenham autorização para caminharem a pé até a avenida vizinha, por onde o avô passaria para pegá-los daí a alguns minutos, para a viagem que sempre tinha um sabor de aventura. Sentiam-se também muito prestigiados, pois havia outro irmão, este um pouco mais novo, mas que era considerado incapaz para uma coisa daquele porte. Era um dia feliz, geralmente um sábado, muito esperado.
Nem bem saídos da cidade já começavam as brincadeiras do avô, feitas de adivinhas, trocadilhos e perguntas enigmáticas, que eles se esforçavam em decodificar, com alegria. Mais adiante na estrada rural, o avô decretava outro momento de alegria, que era o de apanhar no chão da estrada, pouco movimentada na época, alguns paus de lenha sempre caídos de algum caminhão ou de alguma forma abandonados por ali. E daquilo faziam renhida disputa, a ver quem era capaz de recolher mais lenha a cada parada do Jeep. Isso lhes garantiria, segundo o avô, a lenha para prepararem o almoço logo mais, sem precisar cortar sequer um galho de árvore na chácara, mas eles sabiam que estava aí incluído o combustível para uma fogueira que encerraria o dia, sempre muito desejada. E o avô completava: porque lá eu não corto lenha, já chega a que os vizinhos me levam, por isso vocês têm que pegá-la para mim na estrada, já que está cortada mesmo.
O anunciado almoço era apenas pão esquentado na chapa, mortadela e ovo fritos, uma sobremesa de frutas disponíveis, colhidas ali mesmo. Durante anos, ao longo de toda a vida mesmo, os dois lembravam daquilo como se fosse um banquete de deuses (ou anjos). Depois que o avô atendia e dava instruções ao empregado, recebia algum vizinho, e fazia uma inspeção geral na chácara, dependendo também de sua disposição, quase sempre presente, desciam para pescar no pequeno açude que ali havia. E cada um daqueles acarás ou piabas que vinha no anzol, mesmo que devolvidos de imediato à água, era comemorado com hurras de satisfação, além de alguma querela para ver quem os tiraria do anzol, no que o mais novo se dizia mais experiente, capaz de perfazer a operação sem machucar os pobres peixes. Não perdiam também, é claro, a oportunidade de disputarem com afinco e garra a captura do maior peixe ou da maior quantidade deles.
No meio da tarde, o pão que sobrava do almoço era submetido a uma passada na frigideira com manteiga e o café ralo que o avô lhes servia de motivo para outra rememoração, que se perpetuaria no tempo como coisa especial. Depois de um dia de folguedos e travessuras, suportados, a maior parte das vezes com bonomia pelo avô, cumpriam, então, um ritual ansiosamente esperado: a fogueira de despedida, brincadeira vedada quando os garotos estavam sozinhos. A lenha recolhida na estrada ou eventualmente debaixo das mangueiras, juntamente com o vasculho do pomar, era organizada por eles mesmos como uma pirâmide irregular, no local onde ainda jaziam cinzas de fogueiras anteriores. Varas do bambu fino, que formava vasta moita junto ao açude, já haviam sido trazidas, para serem queimadas e fazerem às vezes de foguetes, pelo estampido que provocavam ao se romperem com o calor das chamas. O avô lhes ensinara, também, a queimar os ramos de um pequeno arbusto, de folhas carnosas, que produzia estalidos e lançava fagulhas, fazendo grande efeito pirotécnico. Aquilo era outra das inesquecíveis maravilhas que o dia lhes trazia.
Terminavam assim o dia, à beira do fogo, agasalhados por recomendação da mãe, para evitar o frio pelas costas. O avô tomava suas últimas providências e não raramente tinha de ceder mais uns minutos aos meninos, que desejavam fazer a queima de uma vara recém encontrada ali por perto, que prometia tiros de arromba. No caminho da volta, extenuados e calados, mas acima de tudo felizes, amontoavam-se no banco da frente do Jeep, junto ao avô, cabeceando para lá e para cá, com o balanço do veículo. O velho, a esta altura, deixava-os quietos, sem puxar as tradicionais brincadeiras e adivinhas, parte obrigatória da viagem, pelo menos quando descansados estavam. Deixava, então, os netos entregues ao sono e às recordações do dia. No trotar do Jeep, misturavam-se os odores de gasolina e poeira, em estranha mistura com o cheiro ativo da mexerica enredeira, do limão cravo, das verduras recém colhidas, da terra fresca aderida às batatas doces e às mandiocas. Mal vedado pela capota de lona do veículo, um friozinho benfazejo fazia também sua presença.
Lá atrás, o sol se punha entre nuvens rosadas, como se o lençol de capim gordura dos morros tivesse se invertido e cobrisse, agora, o próprio céu. Para aqueles dois meninos o crepitar da lenha na fogueira; aquele odor a tangerinas, mostarda e terra fresca; o capim gordura manchando os morros, o sol se escondendo por trás de um lençol rosado, mais o friozinho das tardes de maio, mesmo passados agora mais de sessenta anos, ainda recuperam, magicamente, as cores, os cheiros, os sons e os sabores de uma meninice luminosa. Quem teve infância por certo entenderá.
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Um moço de fora
Naqueles tempos, tudo começava a ser diferente de antes, no país e no mundo. Havia na Europa aquela guerra monumental, que cobrava preço alto em vidas e destruição. Do lado de cá as coisas bem ou mal se moviam. A grande Nação do Norte tinha abandonado seu afastamento do conflito, depois dos ataques dos orientais ao Porto das Pérolas e se lançava, finalmente, à maratona que iria mudar de vez o mundo. Ou, pelo menos, era o que esperava, apressar tais mudanças. O País, entre a contingência de ficar recostado a seu berço esplêndido ou entrar de vez naquela peleja que alteraria a ordem até então posta, optou por esta última, não sem antes cobrar seu preço em moeda forte, em cessão de território, em ruptura com o Eixo, na abertura a negócios lícitos e ilícitos em borracha e minério.
Antes é preciso dizer que já em décadas anteriores à Grande Guerra, o berço esplêndido era sacudido pelo cataclismo da modernidade, com cada vez mais gente nas cidades, a fumaça das indústrias por toda parte, o advento de novas máquinas para tudo. Entre outras aplicações destas últimas, as máquinas de plantar e fazer a terra produzir. E a história do personagem passa por aí também, dado que o Moço que depois de criado em roças remotas, teve a chance, improvável em outras circunstâncias, de ir estudar na cidade que se muito destacava, àquela altura, nas novas tecnologias da agricultura. Ali teve portas abertas por parte de um conterrâneo, pertencente a um estrato mais bem situado naquela sua aldeia pobre e esquecida, mas que galgara degraus na escada social, virando professor e especialista nas novas técnicas agrícolas. Naquela cidade marcada pelo saber agrícola tudo resultava de influência política, não tanto da pujança local ou regional na arte de plantar e colher. Mas não seria sempre este o modo das coisas acontecerem no país? Se fosse para contemplar uma região de real vocação agrícola, esta seria formada pelos vales e vertentes de onde nascera o Moço desta história, com sua terra calcária e seu cerrado frondoso, verdadeiro padrão nacional em matéria de terras férteis e de produtividade, em que o milho era colhido à razão de cem por um.
Mas tudo isso ocorreu no país em que, se tudo estava mudando, muita coisa se transformava apenas para tudo continuar como dantes, conforme o dito da literatura. E assim o Moço filho daquela terra fértil, completada sua formação técnica, indicado pelo mesmo conterrâneo que o encaminhara para estudar agronomia, vai buscar emprego, na grande empresa mineradora recém fundada, dita A Companhia, empreendimento escorado pelo “esforço de guerra”, articulado entre a Grande Nação do Norte e a ditadura nativa.
N’A Companhia ele foi atendido pelo diretor geral em pessoa, que em rito deveras sumário, quis saber se ele tinha experiência em horticultura, pois o projeto das instalações de mineração incluía a produção de verduras para alimentação dos operários, que já então eram contratados aos milhares, vindos de todas as partes da nação. Ele mal teve tempo de digerir a pergunta, balbuciou um “sim” intimidado e afobado, saindo dali contratado. Poucos dias depois o Moço pegava o trem rumo ao desconhecido e de uma estação remota, em carona por caminhão, acabaria por chegar ao lugar onde iria produzir benfazejas verduras para alimentação de tantos peões.
Susto maior ele não poderia sofrer. Ao invés dos campos espraiados de seu Oeste natal, o que ele via ali era uma sucessão de montanhas encavaladas, encostas cobertas por uma mata escura e tão diferente daquele cerrado que lhe era tão familiar. Ali havia frio, chuva, além de nevoeiro, que duravam dias e até semanas. Tudo muito diferente do que ele até então conhecera. Só não voltou para a casa do Pai porque já não cabia, nem um quarto ou cama tinha ali para ele. Enquanto estivera fora nasceram mais dois ou três irmãos. Com tudo o Homem se acostuma, entretanto – e o moço não fugiu à regra. Principalmente por lhe pingar no bolso, ao final de cada mês, o sagrado dinheirinho do salário, coisa até então praticamente inédita para ele. De tal forma que do azedo fruto que encontrou na chegada àquela paisagem de montanhas e matas, talvez não tenha sido difícil fazer um bom refresco. Melhor ainda que naquele ambiente de forasteiros não parecia difícil fazer amizades, pois todos talvez aspirassem um mínimo de camaradagem para suportarem aquele exílio no meio de muita poeira, frio e trabalho pesado.
E assim o Moço, que de casmurro não tinha nada, acabou por se aproximar de pessoas da terra. Mesmo que por parte desses nativos houvesse razões, facilmente confirmáveis, aliás, para se desconfiar e até rejeitar os adventícios. Coisa boa, entretanto, ele fez talvez não de forma pensada, indo morar em uma pensão improvisada em casa de família legítima da terra. Isso, aliás, seria um caso rotineiro na vida daquela cidade fria e pouco acostumada a novidades e oportunidades de faturar algum dinheiro extra. O Moço, um tanto tímido, sem deixar de ter um temperamento se não comunicativo pelo menos curioso, acabou vendo lhe abrirem portas amigáveis entre aquela gente de aparência tão fechada. E assim, através de filhos coetâneos daquela família, o Moço acabou se aproximando e ampliando suas amizades com a rapaziada nativa. E, é claro, com abertura também para as primeiras insinuações de namoro, que mesmo vistas com desconfiança pelas famílias dali, representavam algo novo e tentador para as mocinhas, certamente enfastiadas com o ambiente endogâmico e repressivo que dominava o cenário local. E assim ele foi sendo deglutido, mas também incorporando os hábitos da cidade, os quais, com o passar do tempo, já lhe pareciam familiares, como se deles fosse partícipe desde sempre.
Não, isso não era tarefa difícil, feita afinal por costumes comuns ao pequeno (e ao mesmo tempo vasto) mundo do País interiorano. Entre tais hábitos comuns certamente estava o footing das noites em finais de semana. E a chegada das levas de rapazes propiciada pela Companhia certamente deve ter trazido variedade e densidade àquela atividade tão celebrada e, por que não dizer, tão necessária à boa vida social das comunidades humanas. Diferença possível é que enquanto em sua terra as ruas e praças eram mais amplas para a passeata da moçada, a exiguidade montanhosa da nova cidade fazia com que isso se desse ao longo de uma única rua, estreita por sinal, exigindo dos praticantes não mais um percurso em largos “círculos” (ou retângulos), como nas praças interioranas a que o Moço estava costumado, mas agora linear e curto, com pontos convencionados de meia volta-volver. E assim, do Largo até o Clube Atlético, numa extensão que talvez não chegasse a 300 metros, entre casarões centenários, nas tortas ruas calçadas em minério de ferro, dentro da neblina das noites brancas e sem horizontes que então escondiam o finado Pico onde a Companhia travava sua enorme exploração, a mocidade local, fosse nativa ou adventícia, perfazia o ritual do caminhar noturno aos sábados e domingos, com as devidas restrições, não apenas as geográficas e peculiares à cidade, mas também as derivadas da vigilância estreita das famílias, principalmente em relação à moralidade das suas estimadas donzelas.
Eis que numa dessas jornadas, olhares se cruzaram e o ferro das calçadas não empatou, botou ferrugem ou bloqueou a curiosidade, talvez simpatia, depois amor, a acometer mais de um forasteiro e uma nativa. Nesta ocasião o Moço já estava enturmado e um de seus melhores amigos era membro de tradicionalíssima família que representava um dos reservatórios morais e intelectuais da cidade, na qual, em verdade, do ponto de vista material e financeiro, a posse de numerário em dinheiro e bens já estivesse em outras mãos, totalmente estranhas ou estrangeiras. Num daqueles cruzamentos fugidios de olhares, ele resolveu consultar seu amigo sobre quem era a dona daqueles olhos tímidos, mas sem dúvida promissores. A resposta surpreendeu ao Moço: é minha irmã, fique longe dela, não é pra você! E nisso se demonstrava não haver qualquer receptividade. Afinal, companheiros de farra que eram, o provável é que tivessem intimidade suficiente para que soubessem de trampolinagens impublicáveis recíprocas. Coisa mais ou menos do tipo: este serve para ser meu bom amigo, mas para cunhado são outros quinhentos. Assim, certa etiqueta de bas-fond deve ter prevalecido e o Moço decidiu não insistir. Por enquanto, pelo menos. Ou talvez fosse hora de exibir algumas qualidades das quais o amigo até então não havia se apercebido. Sair melhor na foto, pensou ele, deveria ser o primeiro passo, o resto se veria depois.
Como nada resiste a um pouco de paciência e calma, tudo se acertou em seguida, sem muita conversa, mas com algumas atitudes, como convinha à boa índole daquela gente montanhosa e manhosa. O fato é que com algumas intermediações de amigos, talvez até com a participação do próprio amigo irmão da moça foi possível encetar o namoro, com todo respeito e sempre de acordo com os costumes. O Pai, Doutor e herdeiro do que havia de mais tradicional na terra, pelo menos antes da mineração começar, deve ter sido o último a saber, mas não chegou a causar problemas ao pretendente, pois ele não era disso e certamente deve ter estimado haver boas intenções no forasteiro.
Com a Mãe da Moça, entretanto, teve menos sorte. Quando já havia se tornado mais íntimo da família, na era do noivado, foi buscá-la na fazenda da família, em sua camionete de funcionário da Companhia. Um pouco por estar prestando atenção na estrada, mas talvez também por lhe faltar assunto, embargado pela timidez, se distraiu da presença da futura sogra na boleia e quando se deu por achado, simplesmente reparou que ela não estava mais ali e que a porta da direita do veículo abria e fechava no vazio. A pequena roceira que vinha de carona no assento ao lado murmurava, assustada: – seu Moço, a Patroa caiu lá atrás… Pelo retrovisor pôde enxergar a enrascada em que estava metido. Lá longe, a senhora futura sogra sacudia a poeira e já vinha caminhando, claudicante e contrafeita, em direção ao carro. Mas se raiva houve, foi só no momento, acabou logo. E tudo não passou de um susto. Mais do que isso, rendeu boas risadas na família por muitos anos.
Aos poucos, o fato real é que acabou o Moço muito bem assimilado pela família, seja por H., pelo Pai Doutor, pela Senhora Sogra, demais irmãos – e naturalmente também pela Moça que fora objeto de sua corte. Assim, nada mais natural, interromperam-se os estudos da moça, antes mesmo dos 18 anos e foram, a mãe e ela, nesta ordem, cuidar do enxoval. Na hora pedi-la em casamento ao Pai, imperou a formalidade da época e quem na verdade representou o Moço foi um terceiro, o respeitado Ti’Pedrico, amigo do futuro sogro e conhecido também – além de simpatizante – do Moço forasteiro. Em outubro de certo ano, no pós guerra, casaram-se na Igreja Matriz e em julho do ano seguinte, dentro da marca regulamentar dos nove meses – nunca menos do que isso! nasceu-lhes o primeiro filho.
A vida da nova família ali, contudo, durou pouco. O Moço era herdeiro de uma sanha negocista de família, com seu pai na dianteira, especialistas em fazer barganhas, com certo desapreço pelo trabalho assalariado comum. Assim, o Moço e a Moça, mais o primogênito com pouco mais de um ano e um segundo filho, prestes a sair da barriga da mãe, se mudaram para a Capital, cumprindo a sina genética de fazer negócios. Por algum tempo foram barganhas de compra e venda de cereais e porcos vivos, trazidos das regiões produtoras do Norte do Estado, com entrega aos mercados consumidores da Capital e cidades maiores. Ao Moço coube pilotar um destemido caminhão Chevrolet, recebendo uma percentagem nos negócios realizados. Como tudo devia mudar, sempre, veio depois a fase do transporte urbano, na qual se envolveram além do Pai e alguns de seus filhos, incluindo o próprio Moço. Trabalharam assim como mouros, até mesmo saindo da cama às cinco da manhã muitas vezes para pegarem, diretamente, o volante dos coletivos. Já o Moço e seu Pai logo se enjoaram daquilo – ou acharam demasiadamente trabalhoso – e foram tentar outras atividades. Mas ninguém nunca enriqueceu de verdade, de uma forma ou de outra.
E assim se encerra, para continuar noutra toada, esta história, feita de alegrias e sustos; glorias e misérias; vitórias e derrotas; sonhos e frustrações; perdas e ganhos. Como acontece na vida de todo mundo. Não há muito a acrescentar a isso.
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Pereira procura
Tinha verdadeira mania em procurar e rever amigos antigos e parentes em geral. Quando viajava, então, este traço se exacerbava. Mas não raro os procurava também em lugares inusitados, como em listas telefônicas, placas de túmulos, ou mesmo em convites de formatura, através dos sobrenomes dos formandos. Certa vez, na formatura de advogada de uma neta, atazanou-a durante vários meses para que indagasse se um José Pereira Neto era descendente de um primo distante, com o mesmo nome. A moça tentou ignorar o pedido, mas ele não lhe deu descanso, até que ela lhe disse que perdera o colega de vista, irremediavelmente. Mesmo assim, quando podia, voltava ao assunto.
Com a mulher isso era objeto de polêmica antiga, não raro fazendo piorar ainda mais o azedume que reinava entre os dois, casal antigo que eram, com mais de 50 anos de convivência. Em excursões que passaram a fazer juntos depois que os filhos se emanciparam, ela de costume se abespinhava quando ele, ao ver alguma placa de comércio, profissional liberal ou coisa assim, logo deixava escapar um pensamento, verbalizado mais ou menos assim: – preciso ver se este Valdomiro Pereira aí não seria aparentado com um primo do meu pai que migrou pra estas bandas na década de 30. Certa vez, quando foram à praia em Guarapari, ainda no tempo que ele dirigia seu próprio veículo, ao passarem pelo trevo que ligava a rodovia a uma cidade perdida nas brenhas da Zona da Mata, coisa de 50 km em má estrada sem pavimento, pronunciou a frase que lhe era contumaz e sempre objeto de fúria da patroa, dizendo que acabara de lembrar que na cidade próxima tinha tenho um colega de curso técnico, já pensando que valeria a pena revê-lo, para saber notícias.
– Ora deixa disso, Apolinário, uma pessoa que você não vê há décadas, vai ver que nem se lembra mais de você! Ele não se fazia de rogado, acostumado a não dar ouvidos à mulher e ela, cansada de entrar em querelas que não levavam a nada, se não desgosto e mau humor, se deixava levar. Desta vez, porém, o infortúnio foi grande e memorável. Embora tenham localizado o tal colega pelo nome, no posto de gasolina da cidade, porém residindo em uma fazenda a 20 km do centro, erraram mais de uma vez o caminho e gastaram mais de hora para chegar ao destino. Não bastasse isso, o carro, pouco preparado para estradas daquele tipo, atolou no barro outras tantas vezes, dando um trabalho louco, com grande perda de tempo adicional, fazê-lo rodar novamente.
Finalmente, na chegada à fazenda do suposto colega a cena foi mais ou menos a seguinte: – Olá como vai, Nestor! – Bem. O que o senhor deseja? – Que bom revê-lo! Estava passando por aqui e resolvi fazer-lhe uma visita, para botar os assuntos em dia. – ? – Não se lembra de mim? – ?? – Sou Apolinário Pereira seu colega de escola agrícola… – ??? – Eu estava, na verdade, em série mais à frente da sua, mas participamos da Semana do Fazendeiro de 1940. Tomamos até um café no stand da cooperativa de leite. Não se lembra? – Não. Não me lembro. – … – Agora, se o senhor me dá licença, preciso tratar dos porcos e voltar para a cidade, pois tenho alguns compromissos lá ainda hoje.
Retomaram a viagem, já atrasados em várias horas em relação ao cronograma almejado. Diante da impossibilidade de chegarem ao litoral no mesmo dia, tomaram um hotel de beira de estrada, na verdade o primeiro que apareceu e ali a patroa teve um choque ao ligar a TV e ver o que viu, aquelas coisas feitas entre homem e mulher que ela nem imaginava que existissem. No mais quase não conseguiram dormir pela intensidade do ataque de pernilongos e também pela agitação permanente e ruidosa provocada pelo entra e sai (de gente!), por toda a noite, no estabelecimento. Era uma sexta feira ou véspera de feriado, ocasião em que, como se sabe, as pessoas saem de casa para se divertir, sejam solteiras ou casadas, sendo aquela espécie de hospedaria passagem obrigatória para diversão e prazer, nem sempre no estilo familiar.
De outra feita foi visitar o filho mais velho que morava em cidade distante. Passou com ele dois ou três dias e então lhe anunciou que no dia seguinte iria fazer uma viagem, já tendo comprado a passagem, de ônibus. O filho quis saber onde e o que iria fazer lá. Era uma cidade sertaneja, famosa pela violência urbana e fundiária e o motivo era visitar um velho amigo. – O fulano de tal, você não se lembra dele? Foi nosso vizinho quando você era mocinho. O filho mal se lembrava daquele vizinho mal-encarado, que tinha por hábito lavar pachorrentamente um velho carro bem na porta da casa onde moravam e que fazia um lamaceiro geral toda vez que isso acontecia. Apenas de maneira vaga, lembrava-se também de ter visto o pai trocar com ele conversas rápidas ali na porta. Para completar, a implicância da mãe com a esposa do dito cujo, que segundo ela era uma “sirigaita”, muito “dada” e usava roupas provocantes. Eram as lembranças que conseguia reunir a respeito do tal vizinho.
– Ok, pai, mas olha lá se não vai se perder por lá. Não devem existir muitos horários de ônibus ao longo do dia. – Deixa comigo! – Mas ainda que mal lhe pergunte, o que você vai fazer lá? Deve algum dinheiro a este homem? Ou, quem sabe, ele lhe deve? – Nada disso, meu filho. É meu hábito de cultivar amizades. Acho que você não sabe o valor que isso tem!
Diante de tanta tranquilidade o filho relaxou e quando se deu conta já passavam de dez horas da noite e nada do pai aparecer. Começou a ficar preocupado. De repente, o telefone toca, era a Policia Rodoviária comunicando que num posto de beira de estrada a 60 km dali o senhor Apolinário havia chegado de carona e agora se via sem condução para alcançar a cidade. Era necessário que o buscassem, uma vez que não competia aos policiais de plantão este tipo de serviço. E lá foi o filho pela noite a dentro, resgatar o procurador de parentes e amigos.
– E que tal foi, Seu Pereira, a visita ao fulano de tal? – Não o encontrei, parece que não mora mais por lá. – Lamento… – Não precisa se lamentar. Aproveitei para cortar o cabelo e fazer a barba. Sabe quando paguei? Menos da metade do que costumam cobrar na cidade grande. Pensando bem, até lucrei com esta viagem. Não posso me queixar.
Outro momento especial se deu quando o filho mais novo o convidou a viajar com ele, para assistirem uma feira de maquinário agrícola, assunto que era a especialidade profissional do mesmo. Já de saída foi avisando que estava bastante feliz de ir até aquela cidade, famosa pela sua pujança agrícola, pois ali… morava um colega de turma. E falou naquilo por vezes repetidas durante a viagem. Chegando ao local, não foi difícil ao filho localizar o dito amigo, pois se tratava do patriarca de alguns dos maiores fazendeiros e plantadores da região. Pelo telefone, falou com uma filha dele, que se mostrou surpresa, mas agradecida pelo contato, embora alertasse que o pai sofria de Alzheimer e já não andava reconhecendo até os próprios filhos. Mas que certamente faria bem a visita, seria inclusive uma boa oportunidade para que ele saísse um pouco de casa, para o que colocariam à disposição motorista e carro da família. Assim transcorreu o dia, sem que o pai desse maiores notícias. Depois o filho soube que o mesmo rodara pela cidade demoradamente no carro dos anfitriões e que fora almoçar e tomar o café da tarde na companhia da família. À noite mal se viram, pois, o filho se metera numa convenção de vendedores e o pai, certamente, cansado pela movimentação intensa do dia, preferira se recolher ao hotel.
Na viagem de volta: – E aí, Seu Pereira, como foi a visita ao colega e amigo ontem? – Ficou muito feliz de me ver! – Conversaram muito? – Bastante. – Relembraram os velhos tempos, então? – Muito pouco. Para falar a verdade, preferimos abordar as coisas do futuro, principalmente relacionadas ao desenvolvimento agrícola. Quem vive olhando pra trás é farol de ré. – Ficaram de se encontrar de novo? – Não falamos sobre isso, mas um dia, quem sabe...
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Vista Alegre
Tudo passei; mas tenho tão presente a grande dor das cousas que passaram. Luís de Camões
Lembro-me sempre de uma cena que bem representa uma parte luminosa de minha infância e adolescência, no final dos anos cinquenta e início dos sessenta. A família reunida em torno de farta mesa, em ambiente campestre, com conversas animadas por todo lado, parecendo estarmos dentro de um filme italiano ou de uma novela romântica. No centro de tudo o anfitrião, meu tio Quincas, figura fortemente simbólica em minha vida. Era um tempo especial, não só ali como no país e até no mundo. No Brasil, inauguração de Brasília, vitórias no esporte, anos JK, trazendo a todos a sensação, logo frustrada, de que finalmente o país daria certo. Mais ao Norte do globo, crise dos mísseis, Guerra Fria, minissaia, Beatles, a solidez de muitas coisas desmanchando no ar. Tudo em movimento.
Fazenda da Vista Alegre. Ela ficava e ainda fica, a menos de trinta km daqui da capital e lá residiu, em mais de um período, este meu tio e sua família. Mas, o que aconteceu com ela é outra história. Ele não era o dono, mas sim empregado de J. Rodrigues, o real proprietário, homem de dinheiro, que semeava seu capital em atividades diversas, que iam do zebu à construção de estradas e obras públicas. Amigo de JK, isso já diz tudo. Tio Quincas já morara ali no início dos anos cinquenta, como simples gerente, adaptando sua formação de agrônomo à lida zebuzeira. Ao que parece, logo conquistou a confiança de J. R., que o enviou para fazendas de gado suas em Uberaba e no norte de São Paulo e em seguida passou a designá-lo para comandar obras viárias que sua construtora amealhava em vários cantos do país.
Na época de nossos encontros familiares, Tio Quincas mantinha ali apenas a residência da mulher, Alzira, e dos filhos deles, passando a maior parte do tempo ocupado com as empreitadas de seu patrão. Mas quando vinha ver a família e promovia aqueles encontros debaixo dos eucaliptos, em torno da casa em que moravam, ou então na mansão senhorial que era a sede da fazenda, era tudo realmente memorável. Ali se comia do bom e do melhor, particularmente os quitutes preparados por esta minha tia Alzira, dita Zizi, a melhor cozinheira que já conheci, inigualável. Isso sem desmerecer outros quitutes preparados por minha mãe e minhas tias suas irmãs, cada uma delas se esmerando em uma determinada especialidade. Quincas, nessas ocasiões, não deixava por menos, nos brindando com seus corriqueiros mots d’esprit, habilidade em que ele teve inúmeros seguidores na família, mas que nunca foram capazes de superá-lo, entretanto. A particularidade de repetir vezes incontáveis a mesma história nunca tirava o brilho delas, porque ele sabia como conduzir um caso com enorme maestria, dando sempre ao mesmo uma vestimenta inaugural.
Havia também outros personagens notáveis naqueles convescotes familiares, como meus tios Braulio e Daniel, maridos, respectivamente, de minhas tias Antônia e Clorinda. Cada um à sua maneira, mas nunca ameaçando o protagonismo do inigualável Quincas, eles eram dois mestres nos chistes e piadas de improviso, mas sempre de maneira muito refinada e incapaz de ofender quem quer que fosse naquela família que era um tanto conservadora em matéria de gestos e palavras. E aqueles almoços ao ar livre inevitavelmente evoluíam para brincadeiras entre primos e primas, à beira dos açudes da fazenda, nos currais, nos galpões de silagem. Muito namorico de ocasião rolou por ali, mas lamentavelmente não aconteceu nada disso comigo, que até achava algumas daquelas primas, embora um tanto mais novas do que eu, bastante interessantes, como era o caso de Rosalinda, filha de um outro tio, este mais circunspecto, a qual, entretanto, não me concedia a mínima bola. Mas aquilo, caso se concretizasse de alguma forma, não passaria de um simples namorico entre crianças.
Entre tantas alegrias, a Vista Alegre também nos ofereceu uma tragédia: o afogamento simultâneo de meu tio Zé Roberto e de meu primo Tiago, aquele tentando, em vão, salvar o outro, mais moço. Aliás, este episódio veio a interromper, definitivamente, o circuito das nossas alegrias lá, mostrando a todos nós, particularmente às crianças e adolescentes, a face dura da vida.
E o tempo passou, eu me mudei de cidade; meus tios, Quincas incluído, foram morrendo um a um; eu próprio envelheci; os primos se dispersaram. Apenas se impôs a rotina da vida. Foi também duro o golpe de ter voltado a Vista Alegre mais de cinquenta anos depois, como temerariamente fiz um dia. Já a velha estrada vicinal, outrora bucólica e auspiciosa em relação ao que nos augurava mais adiante, havia se transformado em via estreita entre favelas, com esgoto correndo nas ruas, cães vagabundos e lixo atirado por todo lado. Vi depois que as estatísticas mostravam ser aquela parte da cidade campeã absoluta na violência criminosa.
E assim cheguei à Vista Alegre. A antiga fazenda ainda estava lá, sobrevivendo em meio ao caos, mas as marcas de decadência eram terríveis, com os pastos raspados e uma antiga aleia de bambus, que subia e descia morros dando entrada à fazenda, agora totalmente extinta. Os açudes aparentemente secaram, como pude depreender da visão do ribeirão que corta a estrada de acesso, virado agora em ralo e poluído fio d’água. O pequeno arraial vizinho, que dava nome à fazenda, ainda existia, sendo agora nada mais do que um apêndice do horrendo favelão que se estendia da beirada da cidade até ali.
A vida seria assim mesmo? Não sei. Mas preferiria ter ficado quieto em casa, ao invés de me aventurar em tal passeio, não à velha fazenda da Vista Alegre, tão triste agora, mas ao passado. Mas não deixa de ser uma lição para quem vive com um pé – ou uma parte da mente – no passado, o que não chega a ser o meu caso. Na presente história fui movido apenas pela curiosidade, mas mesmo assim, em próxima oportunidade, vou me precaver. Querer retornar ao que já passou é sempre traiçoeiro. Melhor é filtrar e selecionar as lembranças, deixando pra trás, antes que nos assole, a grande dor das coisas que passaram.
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Meu Tio-Etê
Eu o conheci ainda na infância, sendo ele irmão pouco mais velho do que minha mãe, muito ligado a ela. Sei que neste campo, dos tios, há exemplares famosos por aí. Jacques Tati tinha o dele; Tchekov curtia seu Tio Vanya; Guimarães Rosa imortalizou certo Tio Iauaretê. Mas penso que este meu personagem é tão bom, ou até melhor, do que todos estes. Ou, pelo menos, este é não somente único, mas também próximo a mim.
Para dar conta da multidão que nele habita, me aventuro nos dicionários, à procura do significado de seu nome. Vejo que ele indica, entre outras coisas dignas de nota, o oficial que na Idade Média tinha a seu encargo transmitir mensagens importantes, além de organizar as festas de cavalaria e cuidar dos registros da nobreza. É um nome masculino de origem germânica, significando o mesmo que “Rei de Armas”, podendo ser simplesmente um mensageiro, aquele que anuncia algo ainda por acontecer. Parece que o nome tem a ver também com algo no latim, daí derivando herói, heroísmo, heroico. Um cara como ele, ainda mais com tal nome, não poderia, de fato, ser de pouca importância. Mas penso que posso dar este tipo de pesquisa por finda, pois estes caminhos de armas, cavalos, guerras, tropelias, brasões, ambientes cortesãos, heroísmos etc não nos conduzirão, definitivamente, à verdadeira pessoa que ele é.
Em seus setenta anos – e cem de seu pai – recebeu de um sobrinho metido a poeta, no caso, eu mesmo, uns versos que bem o definem, comparando-o com o pai, assim: este outro é tal qual ver-te / se não no corpo, no gesto, / fez teu percurso ao contrário / envelhecendo no berço / da terra que o viu nascer. / Fazendeiro das ideias, / suas lavouras aéreas / fazem grande latifúndio.
Uma pessoa de histórias tantas. Por exemplo, aquela contada por seu irmão caçula, que recebeu dele, em certa ocasião, uma mula para sua locomoção pelas ruas da cidade onde morava, onde fora passar uns dias. Ótima montaria, mansa e educada, de bom trote. Só tinha um problema, parava a toda hora nas ruas, bastava ver alguém a pé ou montado em direção contrária. Não era uma besta empacadeira, contudo. Apenas, em sua rara inteligência muar, agia conforme os hábitos de seu ginete habitual, que dedicava um dedo de prosa para todos que passavam –que conhecia todo mundo ali naquele lugar. Assim, uma missão montada que deveria durar no máximo meia hora, demorava muito mais do que isso para se concretizar.
Certa vez, eu já maduro e ele quase idoso, fui visitá-lo em sua cidade do interior, em um novo endereço, até então desconhecido para mim. Fui encontrá-lo numa barafunda de ruas, pra lá da estrada de ferro. Me impressionou o cômodo modesto que agora lhe servia de escritório, cozinha e, muitas vezes, também de dormitório. Só ele mesmo… Tudo isso dentro de um terreno de uma serraria desativada. No tal quartinho, me mostrou uma pasta cheia de escritos, dos quais não pude identificar o inteiro teor. Mas de repente me deu pra ler um daqueles papéis, que registrava um poema, cujo tema eram terras defendidas com tenacidade, até que, na finalização, ele arremata dizendo que aquilo não lhe era de direito, mas sim de uma onça, que ele por muito tempo perseguira para espantar ou abater. Texto forte e sensível, de dar orgulho a ecologistas militantes.
Era bom de conselhos, também, o tal cavaleiro de armas. Certa vez me disse que se um dia em comprasse terras, devia preferir aquelas que estivessem em mãos de herdeiros, melhor ainda se brigados entre si. Segundo ele, bastava ter paciência, saber esperar, para comprar por menos da metade do preço, negociando com cada um. Pena que não pude aproveitar por inteiro o ensinamento, o que me instilaria virtudes que sempre estiveram à distância de mim, mas nele sobejavam: paciência e habilidade – para conversar, negociar e, acima de tudo – e nisso ele atingia a perfeição – fazer amigos.
Naquele dia de minha visita, as despedidas foram sendo empurradas para depois. Vi em certo momento que ele praticamente não mais acelerava o Fusca em que me levou a passeio pela cidade, tal e qual aquela proverbial mula. Eu, apressado que estava, cheguei a ficar mesmo impaciente, até que percebi que o movia (ou melhor, não o movia…) era a vontade de estender minha companhia por mais tempo. Voltei pra casa, com mais de cem km de estrada pela frente, já com a noite fechada. Mas não me arrependi.
Resumindo este sujeito: meio fazendeiro, meio poeta; muito prático, mas intelectual na medida; fazendeiro do ar e da terra; um tanto de monge zen, outro tanto de empresário; um contador de histórias que conta o que viveu, mas se por acaso vier a inventar, fará dessas histórias algo ainda mais acreditável; homem portador das armas da palavra fácil e abridora de caminhos; cavaleiro de mulas que não sabem o que é pressa e param a cada esquina.
E tudo isso sem esquecer uma porção romântica e ousada que certamente ainda vive nele. A do jovem elegante e bem-querido dos anos 40 e 50, que não titubeia em organizar uma fuga rocambolesca, junto com seu Amor, a bordo de uma perua Peugeot cinquenta e um, pelas malévolas estradas do Brasil, até dar em terras paraguaias, o lugar mais remoto com que podia sonhar – e chegar!
Pena que a vida lhe foi ingrata. Um acidente vascular emudeceu o contador de histórias e paralisou o ativo empreendedor, mas mesmo assim meu personagem sobrevive. Ele não é um Iauaretê, maligno e vingador, mas sim um ser amorosamente inventado, meu eterno Tio-etê, que sempre transpirou bondade, inteligência e bem viver. Viva ele!
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Minha vida de cachorro
Nos finais de tarde em muitos domingos, em certo período de minha infância, viajávamos por aquela rua longa e sinuosa, que nos levava aos confins da cidade, em uma sucessão de bairros que iam variando de razoáveis a pobres, de classe média a gente apenas remediada e, depois disso, a miseráveis e favelados. Mais do que indicativos sociais ou topográficos aquilo era para mim, com 13 anos, e meus quatro irmãos, mais novos do que eu, o retrato vivo de uma dor.
Nós vínhamos, então, por aquela via de periferia, após a visita dominical a nossa mãe, internada naquele hospital lúgubre, lá no final, além dos últimos morros avistados, ainda com o triste augúrio de estar situado na mesma região de um cemitério, chamado – significativo nome –Saudade. Tudo longe o bastante para provocar em nós a sensação de que nossa mãe agora vivia em outro mundo, onde estava ela, a pobre, com o corpo quase todo paralisado por doença ainda hoje misteriosa e especialmente desconhecida naquele tempo. O que mais nos impressionava, então, além de vê-la em uma enfermaria, cercada de gente com problemas ainda piores que o dela, era saber que, entre outras torturas, lhe haviam feito vários exames do “líquido da espinha”. Para o coração infantil, não podia haver nada pior.
É bem verdade, tudo tem sua compensação: tínhamos agora perto de nós algumas pessoas muito queridas. Além de tias e tios, nossa avó, recém viúva, embora a morte de meu avô aumentasse ainda mais o nosso desalento. Das tias que vieram cuidar de nós, duas iriam se transformar em figuras familiares essenciais, a quem pela vida a fora dedicamos boas lembranças e carinho. Um tio mais jovem, então, foi o grande companheiro naqueles dias difíceis.
Aquele hospital, de nome tão estranho: Baleia. Apesar do roteiro atribulado para se chegar lá, ficava fora da mancha da cidade, num agradável pé de serra, naquele tempo mata fechada. O lado bom termina aí, com toda aquela parte da cidade, mesmo ela, há muito demudada em favela, lugares por onde pouca gente hoje se arriscaria a passar. Mas éramos apenas crianças, e apesar do motivo da visita, que durava muito pouco para nossas expectativas filiais, encontrávamos tempo para brincar num parquinho, subir em árvores e aproveitarmos o clima de fazenda que ali dominava, com patos e carpas num açude.
Como tudo na vida, aos poucos fomos aprendendo, o bom e o ruim se misturavam. Ali tínhamos contato também com gente amputada, paraplégica, em coma, dada a natureza do tal hospital. O cheiro de desinfetante, ou não sei bem de quê, nunca me saiu das narinas. As cadeiras de rodas faziam estranho engarrafamento quando terminava a hora da visita, naqueles domingos fatídicos.
Tempos difíceis aqueles, agravados pela presença, em nossa casa, de forças do mal. No caso, personificadas numa empregada vinda do interior, trazida por um tio nosso, chamada Dalva, a quem apelidamos Darva, um tanto para imitar sua caipirice, outro para expressar nosso desprezo por ela. Tal criatura fazia questão de nos brindar, quando meu pai chegava do trabalho, com um relatório copioso e detalhado do que fizemos e deixamos de fazer durante o dia. E ele, de hábito, tão machucado pela ausência da mulher como nós em relação a nossa mãe, executava sistematicamente as devidas penalidades por cada erro que éramos acusados de termos cometido.
E assim era a vida da gente, cinco crianças obrigadas a se preparar para a escola, se alimentar, tomar banho e tudo o mais, sem uma mãe por perto. E o que pior, expropriadas em seu direito de ter alguém que lhes oferecesse, como só as mães sabem fazer, aquela puxadinha no cobertor até a altura do queixo, nas noites frias daquele tempo.
Aqueles anos sessenta assim começaram para mim e meus irmãos. Na sequência desses acontecimentos, quando nossa mãe voltou para casa, já parcialmente recuperada, mudamos para um apartamento para fugir da escadaria de onde até então morávamos. De uma casa a outra; da mãe ativa que possuíamos até aquela de repente tão dependente; do abandono de uma velha turma de rua ao encontro de um vazio afetivo. De uma coisa não pudemos escapar, entretanto, de aprender a nos virar e amadurecer meio à força. No meu caso, pelo menos, posso dizer que nem tive adolescência, pulei da infância a uma vida quase de adulto durante aqueles tempos difíceis.
Muitos anos depois vi que nossa vida nesses anos foi contada no cinema. Quem viu o filme sueco “Minha vida de cachorro” teve acesso a cenas completas de minha infância. Aquele menino curioso, meio trapalhão, a mãe doente, a família separada por conta de sua hospitalização, as primeiras descobertas sexuais, o tio barra limpa, o mundo chato dos adultos e as janelas para escapar dele, o início da corrida espacial, com a cadelinha Laika. Está tudo lá, como na minha vida também. Só não fica bem claro quem é o tal cachorro que dá nome ao filme, pois o único animal desta espécie no filme é a cadelinha russa, enquanto na minha história houve apenas um Nero, um cão discreto, que nunca mordeu ninguém e não chegou a deixar maiores lembranças, nem más, nem boas. E também a sensação de termos sido tratados, em alguns momentos pelo menos, por obra e graça da Darva, como animais abandonados à própria sorte.
Sorte nossa ter uma rede familiar a quem fomos confiados. Eu, com nada mais do que 13 anos, liderava (se é que esta palavra se aplica) uma escadinha de quatro menores; na outra ponta, minha irmã mais nova com três ou quatro. Mais uma vez, como havia acontecido no nascimento tumultuado desta última, quando nossa mãe teve outros problemas graves de saúde, tal rede familiar se abriu e nos abrigou. E eu e meus irmãos não tivemos apenas a sorte de termos apenas um tio legal e camarada, como no filme, mas uma tropa deles, com especial destaque para as duas irmãs de minha mãe que praticamente se mudaram para nossa casa, deixando de lado compromissos de estudo, namoro etc, assim antagonizando o mal personificado por aquela maldita governanta.
Nossa mãe… Ela agora se movia em cima de uma cadeira comum, adaptada sobre uma plataforma de madeira, com rodízios de rolamentos – um verdadeiro carrinho de rolimã, apenas com o assento elevado. E assim era ela empurrada alegremente por nós, que até disputávamos a primazia de conduzir aquele estranho veículo. Aos poucos voltou a andar, Darva foi embora e a nossa vida seguiu seu curso normal.
Enfim, tudo passou, como acaba acontecendo. E sobrevivemos.
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Visita ao Velho
Sim, era preciso visitá-lo. Ele, o Velho Tio, fazia parte de nossa vida, desde a mais remota infância. Da minha vida, mais do que da dele, meu irmão mais novo, que teve menos convivência com tal figura, para mim tão marcante. Ele morava longe, cumpria fazermos aquela viagem longa, que deveria ser premeditada, porém sem termos tempo para tanto.
– Fizeram uma cachorrada comigo, era como ele explicava a origem dos acontecimentos que o derrubaram, sem apelação, na cama que poucas semanas depois o acolheu na morte. Falava da passagem atabalhoada do velho cão de fila da fazenda pela porta da cozinha, onde ele justamente tomava um café e acendia o cigarro de palha habitual nas manhãs. E sem mais se viu jogado ao chão, gerando um doloroso calombo na coxa, que ele mesmo, no ato, diagnosticou como uma fratura de cabeça do fêmur.
Os dias, aliás, as semanas que se seguiram foram atrozes. Na pequena cidade não puderam fazer outra coisa se não lhe acalmarem as dores. A solução foi enfrentar longas horas de estrada esburacada na velha ambulância municipal. Na chegada à capital, duas penosas horas de engarrafamento.
Mas ele escapou vivo neste primeiro momento, foi operado e se viu enviado de volta à fazenda, com uma haste de aço atravessada no grande osso da coxa. Para voltar andar, lhe disseram, era questão de tempo e paciência.
O tempo passou a paciência ficou cada vez mais reduzida. O filho lhe substituiu na lida diária de administrar a colheita do café. Por sorte já estava preparado para tanto. O neto, adolescente, veio lhe servir como “enfermeiro”, o que significava lhe trazer o marreco de urinar algumas vezes por dia e mais as refeições, que ele sistematicamente recusava. Era um bom menino e procurava distrair o avô com alguma conversa, que não se sustentava por mais do que alguns minutos, sendo frequentemente interrompida pelo avô com um gesto impaciente ou até mesmo com um cochilo extemporâneo.
Diante da preocupação do filho e da nora de que precisava se alimentar melhor, na ausência destes engabelava o neto a lhe trazer, com disfarces, uma exótica mistura de suco de frutas, melado ou mel, mais aguardente, em partes praticamente iguais, uma ou duas vezes ao dia e em pouco tempo com frequência ainda maior. Ao filho, que lhe reprovou tal expediente, alegou que havia lido em uma “revista médica” que aquela era uma fórmula perfeita para pessoas acamadas, que precisariam, acima de tudo, de soluções energéticas, como aquela. O filho e a nora lhe proibiram de se alimentar – ou se “energizar” – assim, mas o neto, despido de maior autoridade sobre o avô, um tanto temoroso dos ataques irados dele e, principalmente, ansiando se ver livre de pressões e chamados constantes ao leito, através da campainha que o velho mandara providenciar, facilmente se viu convencido a atender tais pedidos, incluindo nisso não revelar aos pais o verdadeiro andamento de suas práticas de enfermagem.
Para nós, sobrinhos, de fato não havia como esquecê-lo. Passados tantos anos ainda eram fortes aquelas lembranças de infância, o homem claro e alto, para nós, crianças, maior ainda, a nos trazer o cheiro de currais e as histórias de lugares de nomes e paisagens extraoordinários. A cada ano éramos apresentados a um novo primo. Aqueles almoços de família regados a conversas, brincadeiras e a comida inigualável da esposa, nossa Tia. As tragédias que nos espreitavam no meio da alegria: meu avô, em seguida, um tio ainda jovem, depois um primo, filho dele, que se afogou ainda adolescente, ou nem isso, o que nos fez, anda crianças, a sentir o cheiro da morte. Mas acima, bem acima de tudo isso, pairava a figura daquele Tio, que bem representava vida e exuberância em nosso cenário infantil.
Mais tarde, o cheiro dos currais e as histórias de lugares distantes mudaram de cenário. Ele agora abria estradas e rodava por toda parte em sua camionete amarela. Sempre personagem de nossa infância. E tudo teve seguimento quando eu, já estudando na universidade, buscava fugir da cidade nos finais de semana, pegando um ônibus na rodoviária, quando o sabia presente no povoado vizinho, onde a família agora residia, entre uma viagem e outra do chefe, para encontrá-lo, sempre receptivo. Primeiro, o jantar copioso da Tia e o doce de leite com queijo das búfalas que ele mantinha por acreditar em tal tipo de pecuária, segundo ele muito mais vantajosa do que a do gado comum. Depois a varanda, onde a nossa conversa escorria alternando ênfase, agitação, placidez, indo da literatura à agricultura, da ciência à política, das coisas do espírito a alguma anedota picaresca.
No meio de tudo o ingrediente da Poesia que nunca lhe faltou. Em alguma pausa da conversa, ele se levantava e pegava um livro na estante, não raramente aproveitava para nos servir de algum destilado especial e dava início a uma récita poética, que ele fazia boa parte de cor. O Padre e a Moça, por exemplo. Nunca ninguém traduziu pela palavra falada este poema de Drummond, com tanta verve e com tanta emoção. E não poucas vezes o sol nos alcançava ali na varanda, trazendo luz e certeza de que conversas como aquelas eram a essência da vida.
Um lema que bem caberia a ele: conversar é preciso; já viver, que seja da maneira possível, nada mais.
Mais recentemente, ele já Patriarca, em seu refúgio sertanejo, entre alguns milhões de pés de café, irrigados com tecnologia de ponta, estive com ele por algumas vezes, sem levar em conta a distância. Sua vitalidade custava a ceder, parecia não se abalar com o fumo e as muitas cachaças. Com tanta tecnologia agrícola em volta, ele, de outra geração, às vezes parecia até ter nascido em tal ambiente. À noite, as conversas iniciadas na minha juventude ainda mostravam inesgotável fôlego. Só que eu, nos meus cinquenta, já não encontrava disposição para encarar o sol chegar; mas ele, vinte e tantos anos mais velho, sim. Para dormir, muitas vezes, usava apenas um banco de madeira. – é a porcaria da coluna, dizia, mas mesmo assim já amanhecia com profunda disposição para retomar a conversa, entre um cigarro e outro, fosse sobre o tema da véspera ou algum poema que ele descobrira em seus livros, passando pela flutuação dos preços dos insumos agrícolas, com a devida ressalva sobre suas discordâncias relativas às tecnologias médicas ou a política econômica do governo. Sujeito opinioso!
Entretanto, naquele momento, pelo que sabíamos mesmo à distância, meu irmão e eu, as coisas iam de mal a pior com ele, que não voltara a andar, tinha dores cada vez mais fortes, além de um constante estado de espírito deprimido, miserável. Então cabia visitar o Velho, mesmo de improviso, pois não sabíamos se ainda o alcançaríamos vivo se adiássemos a viagem.
E lá fomos, para enfrentar aquelas centenas de quilômetros, quase a metade disso por estradas suspeitas, como disse alguém, praticamente “solúveis em água”. E era tempo de chuvas, um mês de janeiro típico na região. Seguir em frente era a única opção, eu queria muito ver o Velho ainda vivo.
Tudo conspirava, tanto em relação ao estado de saúde do Velho, como em nosso desfavor. Saímos de casa debaixo de um chuvaréu de se cortar com faca. É bem verdade que a chuva se acalmou daí a pouco, mas nosso pensamento se fixava nos muitos quilômetros ao final da jornada, naqueles trechos de estrada, por assim dizer, solúveis em água. E esta parte, apesar das horas decorridas, chegou mais depressa que esperávamos,
Era um caminho ainda não conhecido por nenhum de nós. Em determinado trecho, diante da informação de um policial de que “nos eucaliptos tomássemos a esquerda”, eu havia entendido assim, mas meu irmão pela mão contrária. E por aí fomos, no meio de um lamaceiro bíblico, intensificado pela chuva que voltara a cair sem tréguas. Nos demos conta que a estrada tinha cada vez menos movimento de carros e que os buracos e valetas, além da própria lama, só faziam nos ameaçar, cada vez mais. Pensamos em retornar, mas um caminhão atolado, em sentido contrário, logo diante, nos demoveu de fazer a meia volta.
O erro agora estava evidente. Na pequena cidade que nos apareceu inesperadamente, por não constar do nosso roteiro original, pedimos informação sobre o prosseguimento da jornada. Havia um magote de gente na praça principal, aparentemente esperando alguma coisa. A informação que ali nos deram foi de que se tratavam de trabalhadores das plantações e café, que estavam ali desde o começo do dia esperando um caminhão que viria para trazer-lhes o pagamento da semana e também conduzir alguns deles de volta a suas casas, para passarem o final de semana. Em relação a um possível trajeto de retorno foram taxativos: já havia pessoas dali que haviam tentado nos últimos momentos e estavam de volta.
Fazer o quê? Seguir em frente.
E seguimos. Na primeira ladeira que enfrentamos, um ônibus atolado já nos fez perder quase uma hora, depois de termos descido do carro para ajudar a empurrá-lo. A cena se repetiu mais duas ou três vezes, com outros veículos, até mesmo um trator.
Até que a noite chegou.
Para resumir, fomos saltando de cratera em cratera, de poça de lama em poça de lama, raspando a lataria do carro nos barrancos da beira da estrada, parando de vez em quando para desenlamear os faróis do carro, até que avistamos ao longe as luzes de uma cidade. Não era ainda o nosso destino, mas às dez horas da noite, cansados, sujos e esfomeados que estávamos, resolvemos parar por ali mesmo, para dormir, comer qualquer coisa e seguir viagem no dia seguinte, se encontrássemos abrigo.
Por sorte, no pequeno hotel, modesto, mas digno, havia um quarto com duas camas, além de chuveiro quente, lençóis e toalhas acolhedores.
A aventura do dia seguinte foi mais rápida, apenas umas poucas horas, mas mesmo assim não nos vimos livre de dois ou três atolamentos, além de paradas para ajudar terceiros a se desatolarem,
Pelo meio da tarde pudemos, finalmente, encontrar nosso personagem e abraçá-lo, não sem antes esperar que ele acordasse de um sono sepulcral. O enfermeirinho nos contou que antes de dormir ele havia ingerido uma boa garrafada daquele preparado miraculoso, supostamente recomendado pela tal “revista médica”. Teria valido a pena tanto sacrifício, tantas horas naquele inferno de lama e buracos?
Seu despertar não nos trouxe melhores presságios. Onde tinha ido parar aquele o homem claro e alto, através do qual nós crianças tínhamos a visão de tantos lugares estranhos e ouvíamos histórias mirabolantes? Ele já não estava mais ali. Ao contrário, era apenas um homem esgotado, e mostrava agora outra fisionomia. Tinha se transformado realmente em um velho, este agora real, prostrado em uma cama, numa atmosfera impregnada de cheiro de cigarro, urina e suor pisado, debaixo de uma ladainha de queixumes, relativos aos médicos, à família, à sorte, à vida, enfim.
Por ali ficamos apenas quatro ou cinco dias, para cumprir a obrigação a que nos impusemos, mas ele pouco se somou com a nossa presença, passando a maior parte do tempo a cochilar, ou mesmo entregue a devaneios alcoólicos.
Na nossa despedida, em raro momento de vigília, solicitou ao neto que fosse lhe trazer algo, guardado, ao que parece, numa gaveta recôndita. Era uma caixa de camisa, pesada de papéis, que ele me entregou dizendo apenas: leia isso quando puder. O tom de sua fala não me autorizava a fazer alguma indagação. Apenas tomei o volume e o coloquei na mala, mais nada, deixei para depois entender o que seria aquilo.
A estrada de volta já estava seca e empoeirada, denunciando os efeitos da mudança do tempo, nem sempre para melhorar as coisas, como aquele céu azul que se exibia, dominante, mas também em prenúncios de sentido contrário.
Dias depois ele teve que ser removido para nova internação na capital, nova cirurgia, novo círculo de seu inferno particular. Teve a sorte de que esta nova fase durasse apenas algumas semanas, antes de seu descanso definitivo.
Como lembrança mais perfeita dele, o recital de O Padre e a Moça, de Drummond, que ele sabia fazer como ninguém. O livro aberto à sua frente era só para dar apoio, pois o texto lhe era quase todo conhecido, de memória.
Frase sua que guardei, relativa a um personagem poderoso, com o qual mantinha amizade histórica: não lhe devo obrigações, apenas finezas. Dele, do Velho Tio, eu poderia dizer algo semelhante, pois cumulou-me de tais finezas por toda a vida. Por exemplo, de saber dizer o que pensava, de forma tão desabrida, mas ao mesmo tempo atenciosa; pela coragem em enfrentar os desafios que a vida lhe trouxe: perdas de filhos, mudanças de lugar e a sistemática destruição das coisas que produziu; por sua sabedoria de inventar coisas quando delas não sabia quase nada, como lhe criticava a mulher; pela inteligência criadora, prática e abrangente; pela capacidade de carregar o mundo dentro de si e jamais ter sido sovina em compartilhar suas lembranças.
Para mim, sem medo do lugar-comum, mesmo sentindo seu fim bem próximo, eu ainda o sentia bem vivo, em sua verve, em sua sabedoria, em suas contradições. Uma existência luminosa, para além da dor e da decadência física.
Somente quando cheguei em casa, e mesmo assim alguns dias depois, resolvi abrir aquela misteriosa caixa de camisa. Como eu suspeitava eram papéis que ele guardava ali dentro. Manuscritos, em sua letra firme e perfeitamente regular. Aqui e ali uma palavra ilegível, bem poucas, no total. No final, uma página rasgada ao meio, com provável intenção de cancelar algumas linhas, possivelmente de arremate, por algum motivo – quem poderia sabê-lo? De imediato me pus a ler aquilo, repleto de curiosidade e afeto.
***
<<I’m old, but I am happy. Escutei isso no radio outro dia. Não sei inglês quase nada, mas o bastante para perceber o sentido da frase, afinal formada por menos de meia dúzia de palavras banais. Quem cantava, quem compunha, de onde vinha aquela canção, o restante da letra: era impossível saber, para mim, pelo menos. Mas o que captei era o bastante para gostar da mensagem. É que ando pensando em coisas assim ultimamente. Eu tenho me dado conta que estou velho– e me sinto cada vez menos capaz, para tudo. Mas, e sobre a felicidade? Algum dia será que eu [ilegível]?
Nos dias de hoje, eu vivo dias de muita solidão na fazenda. O filho que me acompanhou na lida por muitos anos agora toma conta de tudo e diz querer me poupar de preocupações, mas com isso só me faz suspeitar de que me esconde algo, quando nada, para fazer as coisas lá do jeito dele, que eu acho serem simplesmente malfeitas. Sempre fui assim, exigente. Do neto que me assiste de perto, adolescente, rebelde com os pais e com os irmãos, mas muito atencioso comigo, não posso me queixar. Me atende sempre que é chamado, até mesmo para coisas tão prosaicas como me trazer a vasilha de urinar. Ou mesmo, cheio de cumplicidade, me providenciar a boa dose diária de boa cachaça, que gosto de tomar adicionada a suco de goiaba ou outras frutas da estação. Porque aqui nesta cama, corpo imobilizado por uma fratura de fêmur, a mim realmente falta disposição para comer qualquer coisa. Acho de verdade que esta mistura de álcool e suco, com bastante açúcar ou melado, já seria o bastante para me dar o suporte que preciso, ainda mais imobilizado e sem poder nem mesmo dar um giro pelo quintal.
Me vejo jogado em tal situação já se vão vários meses – eu até perdi a conta. Mas sem dúvida, eu já soube o que é dispor da felicidade, já havia sentido isso muitas vezes [palavra ilegível]. E mesmo nesse momento, diante da situação em que vivo, penso muito nisso, não ainda como perda irreparável, mas sem dúvida como um estado ou uma pulsação que cada vez menos me sinto em condições de recuperar. Ainda mais beirando os oitenta…
Ultimamente dei para lembrar com frequência – e até sonho com isso – de meus tempos de juventude na escola agrícola, para onde meu pai me enviou para ver se eu tomava jeito na vida, até os dezoito anos dedicada inteiramente a amizades que ele considerava pouco apropriadas. E por causa também de algumas aventuras não muito ortodoxas, pelo menos para o padrão de uma família tradicional como a nossa. Mas o que meu pai não poderia sequer desconfiar era de que, na verdade, eu viria a conhecer um verdadeiro paraíso naquele novo paradeiro. Amigos aos montes, farras ao alcance das mãos, gente acolhedora, pelo menos em relação a minha pessoa e o que era mais inédito, a descoberta de um antes insuspeitado gosto pela carreira agrícola. E assim ao longo de três anos, farreei, fiz amigos, namorei com quem quis e ao final, de forma gloriosa e para a maior satisfação do velho, obtive meu diploma de técnico agrícola – e com louvor. E, ato contínuo, ainda saí dali empregado.
Ali, na velha escola agrícola, bucolicamente instalada na velha cidade sem maiores atrativos, vejo hoje que vivi momentos realmente felizes. Mas certamente houve outros. O emprego obtido naquela repartição pública supostamente voltada para a pesquisa em agricultura, serviu mesmo foi para me abrir portas para novas oportunidades. Fiquei ali pouco tempo, por não me resignar aos burocratas do serviço público, um tanto desatualizados nas técnicas agrícolas, sempre a me impor regras obtusas. Mas eu não queria me indispor com ninguém, não era [palavras ilegíveis – possivelmente “meu feitio”]. E sempre atento ao que se passava no cenário externo àquele mundinho, descobri um anúncio em que uma empresa procurava funcionário para atuação em ramo de atividade que de certa forma me era próximo. Era uma empreiteira de obras públicas, que se dedicava também à criação de gado de raça. Eu, embora pertencesse ao ramo vegetal, não me intimidei com a natureza do trabalho. Fui para uma entrevista, que se prolongou muito além do que aquelas a que se submeteram os outros candidatos e saí de lá contratado. Mais do que isso, como se fosse eu um amigo de longa data dos entrevistadores. Sem grande esforço, diga-se de passagem.
Na despedida da estação de pesquisa levei comigo, para minha incontestável felicidade, o olhar especial de uma das moças que vivia ali, filha de um dos antigos funcionários, com o qual eu tinha boas relações. E se a tal estação não fora capaz de produzir grandes frutos para mim, aquele olhar, sim. Em pouco tempo estava formado um casal, que ao contrário daquele ambiente improdutivo, iria logo reproduzir-se, com fecundidade, ao modo dos matrimônios daquela época e lugar: filhos, filhos, filhos. Nove no total, já nos primeiros dez ou doze anos de casamento. Ali, e na sequência, com certeza me sentira feliz mais uma vez. Como, aliás, ainda não tinha sido, porque agora tinha uma bela mulher a meu lado – é bem verdade que sempre ocupada com o nascimento anual de uma nova criança. Mas eu ganhava bem, morava em boa casa, tinha carro e conforto e cuidava daqueles zebus com verdadeiro gosto, chegando mesmo a pensar que eu nascera para aquilo, não propriamente para cultivar hortaliças. E feliz mais uma vez me senti, logo cativando a amizade dos donos e de seus amigos, que viram em mim, mais do que um funcionário dedicado, um sujeito bem informado, de boa prosa, repertório variado e também portador de capacidade de se relacionar, entretendo-os em conversações que muito apreciavam.
Sempre fui assim desde os meus tempos de menino. E ali na empresa isso fazia com que não raramente eu fosse convocado para jantares na sede da fazenda, onde fazia boa figura diante de camaradas notáveis da pecuária, da política e das finanças, que ali acorriam frequentemente, em regabofes memoráveis, nos quais muita coisa era decidida, para o bem (deles) ou para o mal (do Estado). Chegou ao ponto mesmo de o patrão me dizer, certa vez, que gostava de contar sempre comigo à mesa de tais jantares festivos, opinião também de alguns de seus convidados, pois todos me prezavam – e muito. Não seria pura [palavra ilegível] minha? Talvez… Mas pensando bem, o que mais uma pessoa poderia querer na vida a não ser o reconhecimento de suas reais qualidades?
Vida seguindo, o patrão decidiu que eu seria mais útil na empreiteira de que também era dono. – Você tem talento para fazer a peãozada trabalhar, me dizia, entre gargalhadas. E assim eu pulei dos zebus aos moto-scrapers Caterpillar de muitas toneladas. O homem tinha razão: em comum entre uma tarefa e outra tinha a tal da peãozada, com os mesmos hábitos de fazer corpo mole, a mesma vontade de levar vantagem. E ali também pude dar meu recado, sendo até bem acolhido pelos ditos peões, apesar de frequentemente tomar medidas severas em relação aos faltosos e relapsos no trabalho. Trabalho de empreiteira de obra pública, como se sabe, tem que ter produtividade, medido que é em metros cúbicos, horas trabalhadas ou algo assim, não tem como enganar o governo. Ou melhor, até se engana bastante, mas tem que ter método…
Alguns anos passei nessa lida. Rodei pelo menos cinco estados do país, fazendo ponte, ferrovia, estrada e barragem. Nem tudo que se começava, prosseguia ou era concluído, pois muitas vezes no meio do caminho o [ilegível] era interrompido. Obra de governo, sabe como é… Vi muito equipamento sendo abandonado à ferrugem e ao crescimento do mato. Mas eu não era pago como fiscal, mas sim como operador. Um dia tudo aquilo foi por água abaixo. A empresa, acumulando uma dívida gigantesca, não suportou uma entressafra prolongada de obras canceladas, numa mudança de governo. Os credores, que até ontem eram também sócios financistas nas obras públicas, vieram e tomaram tudo. Fui despedido, tive até direito a uma boa indenização, mas ela ficou retida na massa falida da empresa e fiquei esperando uma decisão judicial que caducou sem ter nunca acontecido. Mas nem por isso me considerei infeliz, pelo contrário, sempre achei que era sorte trabalhar com algo que realmente gostava e sabia fazer, apesar do sacrifício que isso representou para minha mulher e para os seis, depois sete e depois nove filhos, que foram nascendo durante tal período.
Não fiquei desempregado, salvo por alguns poucos meses. Amigos meus ainda no tempo do curso técnico eram agora responsáveis por grandes projetos agropecuários, construídos à base do que se chamava na época de incentivos fiscais. Uma verdadeira máquina de captar e aplicar dinheiro. E tome empreendimentos de plantar pêssegos, mangas, abacates, nogueiras – o que tivesse cotação em dólar e representasse abertura para a pauta de exportações do país, naquela época de milagre econômico. Um por um, entretanto, aqueles [ilegível, possivelmente “empreendimentos”] agrícolas de proporções faraônicas foram sendo planejados, plantados, adubados e depois abandonados às formigas e às ervas daninhas. Como me disse um diretor de companhia: nossa especialidade é a captação de dinheiro, não a venda de óleo de abacate no mercado internacional. Isso é problema do governo. Faltou dizer do enorme potencial daquilo em alimentar formigas e também uma vasta cadeia de fornecedores e insumos e máquinas, além de políticos de diversas extrações.
Depois veio o café, desta vez com uma empresa familiar, que não dependia dos tais incentivos, mas sim de financiamento bancário normal. Eram outros tempos. Neste novo emprego passei bons anos, até me ver meio aposentado. Pelo menos pude ver, finalmente, resultados de meu trabalho se tornarem concretos e reais, sob a forma de mais de dois milhões de pés de café, numa região onde tal planta mal e mal era conhecida, mesmo assim apenas nos fundos dos quintais. E aquilo foi tarefa de gigantes, chegamos a ter na fazenda mais de quatrocentas pessoas trabalhando, sendo este povo todo alimentado, transportado e também, na medida do possível, cuidado em sua saúde. Chegamos a contratar e instalar uma tecnologia israelense de irrigação, coisa nunca vista por ali e, aliás, em todo o país.
Eu não podia me considerar infeliz diante de uma empreitada assim, podia? Cereja no meu bolo foi a homenagem que me fizeram como cidadão honorário no município em que se situava a sede da fazenda. Passei uma semana sendo festejado, fiz um discurso que foi reproduzido no jornal local e mesmo fora dali e até passaram a me chamar de doutor, coisa que eu não pedira a ninguém. O Prefeito da cidade, talvez à falta de gente mais disposta ou qualificada, me convidou para ser Secretário de Agricultura, depois estendendo minhas tarefas à Indústria e Comércio, Ação Social e até mesmo na Educação. Eram glórias em terra de cego, certamente, mas levei tudo a sério e, modéstia à parte, penso ter dado minha contribuição àquela gente simples e de bons modos.
Não tinha como ser mais feliz, de fato. Aqueles momentos constituíam um verdadeiro [ilegível] na vida de uma pessoa. Ver sair caminhão após caminhão, carregados de sacos de café lavado, seco e protegido de pragas, era como o gran-finale de uma sinfonia para mim – e nem poderia ser diferente. O filho que me ajudava, vindo adolescente para minha companhia, mais para ser consertado de uma vida meio vaga, como eu um dia eu também o fora, agora já homem maduro, assumira todos os grandes encargos da propriedade. Agora meus dias podiam ser consumidos mais à sombra de um escritório, entre planilhas e mapas de programação de irrigação, já não dependendo diretamente de minhas visitas e dos embates com a peãozada.
Aliás, pensava eu, já não seria hora de finalmente aproveitar a vida? Mas, na verdade, eu não tinha a menor ideia de como poderia fazer tal coisa. Até que me aconteceu o inesperado. Eu tomava um café à porta da cozinha, antes de sair para o escritório, e um dos meus cães, enorme animal, resultado de cruzamento de um fila com outro cachorro grande, em perseguição a um vira-lata invasor, passa por mim como um furacão e, na força de suas três ou quatro arrobas, me derruba, com força, ao chão. Antes mesmo da dor chegar, eu escutei o ruído de meu fêmur esquerdo se partindo. Na sequência, dias e semanas de dores horríveis; uma viagem inominável na ambulância municipal; uma cirurgia realizada depois do momento mais adequado, na capital; o resultado sofrível e previsível disso tudo. E como finalização esta cama, esta imobilidade, estes dias que não têm fim nem começo… E principalmente estes pensamentos, que se traduzem na dúvida se seria eu, nos dias de hoje, uma pessoa ainda feliz, como fui em outros tempos, tendo que compactuar agora velhice e incapacidade física.
Isso não é nada, entretanto. Os momentos de alegria que tive começam a ser eclipsados e [ilegível] por enorme sensação de perdas. Perdi em minha vida muito mais do que ganhei, certamente. Os filhos que mais se criaram do que foram criados; a companheira que quase nunca me teve como um verdadeiro marido, presente e solidário; os dois filhos que perdi para a Inominável, sem que pelo menos eu pudesse estar junto deles nos momentos cruciais do ocorrido, para consolar os demais membros da família. As coisas que fiz – e não foram poucas – apenas para serem destruídas, pelas formigas, pela ganância, pela incúria administrativa de terceiros, pela geada, pela inconstância política e econômica do país. Da felicidade mesmo, só percebi breves lampejos. Acho mesmo que a chamada vida real seria apenas o grande e doloroso intervalo entre tais … >>>
Aqui, a página rasgada quase ao meio subtrai talvez um parágrafo ou mais, suprimindo, aparentemente, o arremate do texto.
Sim, assim é a vida, a vida real, um grande e doloroso intervalo… Entre que tipo de acontecimentos? Fica aqui a indagação do velho…
***
Um personagem
Por alguma razão, talvez por não desejar repetir sobre a terra o que a terra engolirá, não se casou, sem que isso significasse castidade ou celibato definitivos – aspectos, todavia, não declarados ao público em geral. Viveu uma vida de funcionário público modesto, depois de uma carreira como bancário, da qual se afastou muito antes de se aposentar, não tolerando, ao que parece, aquele ambiente de guichês, horários, gerentes e regras fiscais, além de motivos de saúde. Morou sempre em quartos de hotéis, variando na qualidade, sempre reduzindo-a, à medida em que ia ficando mais velho e com o salário encurtando cada vez mais.
Esteve em muitos lugares, sempre nos fundões do país, dos cerrados centrais à Amazônia, experimentando climas, comidas, amizades, trabalhos os mais variados e abrangentes. Superou um alcoolismo extremo e disso se orgulhou, nos mais de trinta anos que sobreviveu longe do vício, e disso dizia, orgulhoso, como a arrematar suas desventuras com o álcool: agora só bebo guaraná.
O Banco do Brasil foi seu abrigo profissional, mas apenas temporário. Logo que o deixou, continuou burocrata, mas pelo menos em um cargo que lhe facultava viajar e fazer aquilo de que realmente gostava: a assistência técnica a pequenos agricultores. Depois de aposentado, retornou à terra natal, de onde esteve ausente por muitas décadas, lá encontrando velhos amigos, que inclusive voltaram a chamá-lo pelo apelido de infância: Bizodô, ao que consta o nome de um xarope da época.
Em pleno gozo de seus direitos de burocrata aposentado, cuidando de uma plantação de tomates e pimentões, nas terras de um velho amigo, morreu com uma úlcera rompida na cavidade abdominal, por possível negligência médica.
Fizemos para ele, nós da família e alguns amigos antigos e recentes, um velório memorável, em seu reduto no interior. Velórios, afinal, fazem parte da vida e no dele, em particular, viu-se uma cena memorável, com o perdão de palavra talvez imprópria: hilária. Éramos mais ou menos umas doze ou quinze pessoas, entre irmãos e sobrinhos, que deixamos o velório por algum tempo para almoçarmos juntos. Eis que chega um amigo da terra, se aproxima de seu irmão à cabeceira da mesa, também morador da terra e ao se deparar com tanta gente naquela mesa tão cheia, e por que não dizer, animada, sendo apresentado a uns e outros, indaga pelo único membro faltante da família, àquela altura marcando solitária presença na capela mortuária do cemitério da cidade. Ao pobre homem, ignorando o motivo de estarmos ali reunidos, foi impossível barrar tal indagação. O anfitrião da mesa não se deu por vencido: ele não está aqui porque faleceu, fazendo isso com a graça e a bonomia que lhe eram peculiares. – Quaaaando? – Ontem…
A fisionomia do homem mostrou um quadro clássico da mudança súbita de expressão de uma pessoa, num misto de espanto, horror e incredulidade.
Mas o que me traz aqui é uma cena de minha infância, na qual ele foi o personagem central, uma de suas chegadas de viagem, no caso pela Amazônia, nos anos 50, quando ele ainda era funcionário do Banco do Brasil e fazia o acompanhamento de projetos do banco na região.
Era assim:
Pelo chão espalhavam-se as peles de lontras, onças e jacarés (naquele tempo ainda não era pecado matar um bicho aqui, outro ali).
Na gaiola um casal de papagaios meio glabros gritava e assobiava ininteligivelmente como se acabasse o mundo. Um dos louros, às vezes, chamava: “Carlos!”. Quem seria?
Dois alegres e onipresentes saguis, buliçosos, perigosos, malcheirosos, aos saltos e cabriolas, como pequenos mestres de cerimônia, a nos apresentar os segredos amazônicos.
Da canastra saíam variadas coisas e a sala se fartava de seus cheiros desconhecidos: mantas de pirarucu, pacotes de farinha puba, frutas em á, em í, em ú, dourada farinha de peixe.
De entremeio, uma babel de objetos de todo tipo e tamanho: escamas de peixe para lixar unhas; olhos-de-boi a nos espiar nos quatro cantos da mesa; arcos, flechas e, um imenso tacape emplumado, supostamente capaz de afundar cabeças; cocares e enfeites de penas em cores nem sonhadas; bastões de guaraná com sabor a serragem e terra molhada; malévolos pentes de espinhos de palmeiras; macacos de látex mostrando o que não devia, logo subtraídos à curiosidade das crianças; um remo de canoa; um mole chapéu de palha; leques que pareciam secas palmeiras aplastadas; vidrinhos com estranhos óleos perfumados; um pote de barro com banha de capivara; cabeleiras de raízes olorosas.
De tudo se contava uma história, casos cheios de aventura e mistério: ataques de malária brava, nuvens de vorazes muriçocas, chuvas que duravam meses, perigosos peixes elétricos, botos que roubavam moças, pescarias memoráveis, macacos churrasqueados, cachaças com raízes, índios flechando brancos, sete dias em canoa, noites passadas na rede, e uma baita caganeira que quase matou todo mundo.
A alma infantil descabia de si e espantadamente percebia que a maior de todas as maravilhas, maior ainda do que aquele mostruário de cores, formas, perfumes e ação, que botava a selva dentro de nossa sala, era o fato de privarmos da intimidade de tão extraordinário personagem, de longe chegado com tal carregamento.
