Nossa, já estou acordada há tanto tempo e nada de aparecer esta moça que vem me trocar. E nem adianta chamar, com a minha própria voz ou com a campainha. Aí é que ela não comparece – nenhuma delas, aliás. Vida difícil aqui. O Jorge Jr, meu filho, outro dia chegou a me dizer que eu reclamo demais, que devia me dar por satisfeita de estar nessa casa de repouso, que é das melhores aqui na cidade, nem adianta procurar por outra melhor. Mas ele, apesar carinhoso comigo, de sempre estar presente e me trazer quase toda vez que vem uns docinhos, umas balas, geleias, empadas e outras coisinhas doces que gosto tanto, não sabe de verdade o que se passa comigo, o tanto que eu sofro. Nem de longe… Ninguém, fora Clara, minha filha mais nova – esta talvez saiba alguma coisa. Aliás, pensando bem, acho que só eu mesmo sou capaz de saber dessas coisas.
O Jorge, meu marido, que estava aqui comigo até há uns dois ou três anos atrás – anos ou meses, nem sei mais. Quanto tempo faz mesmo que ele se foi? Para mim, tudo o que aconteceu de ontem para trás virou passado – e vai parar numa espécie de nuvem cinzenta e dentro dela não vejo mais nada e nem sei quando foi e até mesmo se aconteceu de verdade. Minha vida ficou desse jeito. Mas o Jorge… O que eu ia mesmo contar a respeito do meu marido? Ah, sim, também tinha lá suas reclamações, quase sempre de doenças. Mas na verdade ele nunca soube o que é adoecer de verdade, morreu sadio, por assim dizer. Para ele tudo foi ao contrário de mim, que conheço todas as misérias do corpo muito bem. Tantas doenças, e mais um parto complicado em minha vida. Não sei como estou quase chegando aos cem anos e viva ainda. Só minha Nossa Senhora da Conceição, que me protege desde sempre, é capaz de explicar. Mas acho que até ela se esqueceu de mim.
Nem preciso tentar encontrar o passado para me perder. Até quando falo de coisas do presente já não sei bem onde estou. De que eu falava mesmo? Acho que eu me lembrava de que Clara vinha aqui hoje. Ela é minha filha mais nova. Sem desmerecer dos outros filhos, acho que ela é a que me entende mais. Pelo menos me ouve por mais tempo, sem me interromper, sem me censurar e nem ficar tentando me convencer de que eu não estou certa. Nessas reclamações contra essas pessoas esquisitas daqui, por exemplo, é ela que me compreende, que sempre se prontifica a marcar uma reunião com a Dra. Fulana, que é a dona aqui da clínica, a quem eu chama, por trás dela naturalmente, de Dona Delegada. Não adianta nada, porque isso aqui é uma ditadura completa, mas Clara, pelo menos, tenta. Ela tem dó de mim. Tem gente que acha isso de ter dó é muito negativo, Monica, por exemplo, a outra filha, acha que é assim, mas eu não. Nesta fase da vida e vivendo o que eu vivo quero mais é que tenham dó de mim. Porque eu acho que mereço mesmo! E se eles, que são meus filhos não puderem ter dó de mim, quem mais teria? Somente minha Nossa Senhora da Conceição, que está ali no altar, mas mesmo ela parece que anda se esquecendo. Eu peço para ela me levar, mas não acontece nada. Quando adoeço só tenho umas bobagens que se curam sozinhas. Não chegam nem a alterar os exames que me fazem. Mas bem que eu tento, é isso quase toda semana e o resultado é que eu continuo viva. Sofrendo muito, mas viva. Nossa Senhora de fato se esqueceu de mim, logo de mim, que sempre tive tanta devoção a ela.
Hora do lanche, a criatura acaba de me avisar. Essa aí, tá na cara, não gosta de mim. Do contrário, por que se dirige a mim para avisar que está na hora do lanche – ou melhor, dessa coisa a que eles dão tal nome – com esta fisionomia enfezada, como se estivesse condenando alguém ao inferno? Aqui é tudo assim, Monica me disse que pode ser culpa minha, porque eu não trato bem as pessoas. Mas ela se engana; eu é que sei. Pelo contrário, tem pessoas que eu gosto muito aqui e elas também me apreciam. Mas esta lancheteira aí, desde o começo aqui me faz pirraça. Acho que não ficou satisfeita porque um dia eu chamei a atenção dela, que foi me servir o café e acabou derramando em minha mão, aliás, na minha roupa, na manga da blusa branca que ganhei da Luiza, minha nora. Este povo é assim, não tem noção de responsabilidade, de hierarquia. Deve ser por isso que no meio deles ninguém consegue subir na vida. A pessoa começa lavando privada e depois “sobe” de posto para empurrar este carrinho de café. E ficam nisso.
O que sei é que meus filhos, com exceção de Clara, tão querida, às vezes me censuram por causa de certas implicâncias minhas, as quais admito que de fato existem. Essa aí, de fato me compreende. Até me faz lembrar de uma amiga, esqueci o nome, que foi minha colega no colégio interno e com a qual eu tinha uma verdadeira relação de amizade, de total compreensão uma da outra. A gente não brigava nunca, nunca mesmo. Um dia eu descobri que ela era uma grande puxa-saco da Madre Superiora e que entregava todos os malfeitos das colegas para ela. Não os meus, claro, porque eu só fazia coisas certas. Um dia eu troquei a vasilha do sal pela de açúcar, na mesa do café, mas ninguém descobriu que fui eu. A primeira vítima da troca foi uma freira novata que todo mundo detestava, inclusive eu. Mesmo apesar de ter feito uma coisa boa para todo mundo, mesmo assim resolvi não me denunciar, sabe-se lá o que poderia acontecer comigo. Aquele Sacré-Coeur, com suas freiras metidas a francesas, não era brincadeira em matéria de disciplina. O mínimo que faziam com uma aluna recalcitrante era proibir a saída semanal por três ou quatro semanas. Lembro que depois disso a tal minha amiga, ou quase isso, me veio com umas perguntas embaraçosas, mas nem para ela eu abri o jogo. E tudo ficou por isso mesmo.
Clara está demorando – e é sempre assim. Mas sabe cuidar de mim. Coitada dessa minha filha, tem uma vida tão dura! Formou-se na faculdade, mas não conseguiu exercer a profissão porque logo lhe vieram as filhas, uma em seguida da outra. Ficou em casa, como uma galinha choca. Por sorte – ou por azar – depois foi ajudar o marido, no escritório dele. E por lá ficou, ano após ano. Mas sei lá, Deus deve saber o que faz. Em compensação, pôde ajudar pra valer duas pessoas que precisam muito dela: o marido e eu. Além das meninas, é claro. Mas coitada dela, que tem vida tão dura. Acho que não é bem compreendida pelos irmãos, que parecem ser mais bem sucedidos do que ela. Eu bem que queria ajudar, mas não sei como. Ofereço para cuidar das crianças, mas a família deles é bem ajeitada, tem outras crianças, tios e tias que as adoram e sempre dão os melhores presentes para a turminha. Aí não sobre para mim poder agradar. Me sinto às vezes meio desprezada. Clara não gosta que eu fale assim, mas para mim é a pura verdade.
Eu não deveria me queixar da vida, claro. Meu filho, Jorge Jr, sempre me lembra disso. Ele nem precisa dizer, mas o melhor exemplo é dado por ele mesmo, que passou por tantas dificuldades, foi até preso e torturado pelos militares, há muitos anos atrás, e leva sua vida com galhardia, mesmo com as dificuldades que tem com a ex-mulher. Mas se ele tem suas razões, eu tenho as minhas; também passei e ainda passo por poucas e boas. Eu fui criada como uma princesa, a mais velha das mulheres em uma penca de filhos, tive um pai que me respeitava e uma mãe que nunca foi injusta comigo. Até que apareceu aquele moço de fora, bonitão, gentil, vindo de uma vida tão diferente da minha, e eu caí na conversa dele. Larguei até meus estudos. No começo era tudo uma lua de mel. Mas logo depois veio um filho, outro filho e mais outros: cinco no total. Quando fui conhecer a família do tal moço de fora, em outra cidade, uns anos depois do nosso casamento, o que eu mais ouvi foi: – nossa, você é tão diferente do que eu pensava… Não tive a menor dúvida que já haviam feito minha caveira por lá, mesmo sem me conhecer, diga-se de passagem.
Mesmo com tudo isso, com tantas histórias amargas, vou levando minha vida aqui. Acho que meus filhos fazem um grande sacrifício para me garantir isso, mas eles podem fazer assim, estão bem de vida, juntando muito mais recursos do que o Jorge e eu conseguimos acumular. Eu sei muito bem das dificuldades que Clara e Jorge Jr têm nas suas vidas, mas eles, meus filhos, graças a Deus têm bom entendimento entre si. Aliás, eu muito me orgulho da criação que pude dar a eles.
Mas nessa história de criação, não sei não, às vezes penso que talvez não tenha sido realmente uma boa mãe. Logo eu, que nunca levei uma surra de meus pais, batia naqueles meninos com vontade, quando faziam alguma coisa errada (hoje percebo que sempre foram umas besteirinhas). Ou então, pior ainda, os entregava para o Jorge, para que ele os exemplasse, o que ele fazia com violência ainda maior, chegando até mesmo a castigar um só, geralmente o Otávio Augusto, o mais velho, para servir de exemplo aos outros irmãos. Hoje eu acho isso tão absurdo… Não sei como naquele tempo aceitava e achava normal. O Otávio Augusto me disse um dia que meu medo do Jorge era tão grande como o deles, e por isso eu agia assim. Mas isso não pode ser verdade, eu não tinha medo, era apenas um jeito de criar filhos que não se usa mais. Mas se eu pudesse fazer diferente, bem que eu faria…
Ainda não falei do Enius Marcus, meu segundo filho. Ele agora quase não vem me visitar. Também, pudera, está doente, aliás, mais doente do que eu – reconheço. Tem aquela coisa no cérebro, como se chama mesmo? Esqueceu de tudo, coitado. Mas quando vem aqui pega minha mão e não larga mais, acho isso tão bonito. E o jeito que ele me olha, meu Deus! Não fala nada, ou apenas uma palavra ou outra, às vezes não dá para entender. Mas me olha com um olhar tão profundo… Ele sempre foi uma pessoa boa, caladão, mas muito atencioso no seu jeito comigo e com as outras pessoas. Tão bem sucedido como médico…. Por que será Nossa Senhora permite que uma coisa assim aconteça? Por que Deus não age? Ele não é considerado tão misericordioso?
Falando neles, em Deus e Nossa Senhora, se não for pecado pensar assim, acho que deveriam dar uma atenção especial a pessoas como eu, que já viveram bastante, que estão sofrendo, que perderam o interesse nesta vida ociosa, em que se depende dos outros para tudo, até para ir ao banheiro, tomar banho, essas coisas, tenho até vergonha só de pensar. Por que tem que ser assim, sempre me pergunto. A misericórdia de Nossa Senhora não chega a tanto? Antigamente eu talvez achasse que seria pecado pensar assim, mas hoje penso que é natural, um direito da gente. Quando falo isso com os meus filhos, principalmente com o Jorge Jr, eles logo mudam de assunto. Mas não é por isso que deixarei de pensar nessas coisas. Não, definitivamente não! Se eu pudesse trocar minha saúde e permanência na vida em troca da saúde do Enius Marcos eu o faria de bom grado. Pelo menos não daria fé de mais nada.
É preciso levar a sério esse assunto delicado e mal compreendido, aquele, de a gente ter vontade de partir. Eu quero isso! Confesso que já tive medo, mas agora não tenho mais. Que sentido faz levar a vida presa a uma cadeira de rodas, precisando de outras pessoas para me levar ao banheiro, para me trocar a fralda, para me empurrar mesmo que seja por poucos metros? Que horror! Eu já vivi muito – e até vivi bem. Tive aquela doença, cujo nome não me lembro mais, que me paralisou o corpo inteiro, eu com pouco mais de 30 anos, mas depois me recuperei, pude criar meus filhos, viajar, ser uma boa esposa para o Jorge – pelo menos eu acho que fui. Então, pronto! Por que eu preciso ficar arrastando essas correntes, como agora me acontece? Deus e Nossa Senhora da Conceição, por que vocês não vêm me ajudar? Seria querer demais? Convenhamos, direito à vida é uma coisa legal, mas acho que existe uma enorme diferença entre direito e dever de ficar vivo, ou seja, a obrigação de se continuar remando contra a própria vontade. Para mim, é assim que deve ser: cada pessoa determina o sentido que deseja para sua vida e que também tenha o direito de rejeitar quando isso deixar de ser o que desejava. Não é o caso de amar a morte ou forçar que ela venha, mas sim debater sobre isso, com os filhos, com os médicos, com a doutora ditadora, ou melhor, diretora, desta casa. Tinha que ser assim, sem preconceitos, sem ideias mal pensadas, sem medo. Sem que ninguém se sinta no direito de meter sua colher de pau no que é assunto exclusivo de outra pessoa. Morrer, afinal, não seria mais do que uma parte natural da vida de uma pessoa? A morte não deveria ser “vivida” de acordo com nossas vontades e crenças, com a liberdade e a autonomia que a gente deve ter? Na morte quem manda é Deus e o destino, disse um padre que veio rezar missa aqui outro dia. Mas eu discordo, se ela é destino, representa também um direito da pessoa recebê-la com dignidade. Viver a morte! Parece uma ideia meio maluca, mas não é. Que ninguém passe pelo vexame e constrangimento de continuar vivo carregando um sofrimento insuportável. Uma boa morte, é tudo que eu queria que Nossa Senhora da Conceição trouxesse para mim.
Mas eu falava de meus filhos… De qual deles mesmo? Ah, o Otávio Augusto, não falei dele até agora. É o mais velho, mora fora daqui há muitos anos, vem me ver de vez em quando. De todos é o que teve maiores desavenças com o pai – às vezes comigo também – quando eu ficava do lado deste, o que aliás acontecia com frequência. Acho que ele teve dificuldade em compreender isso, eu me via obrigada a ficar do lado do Jorge nas muitas brigas que ele arranjava com o Otávio Augusto, ou vice-versa, nem sei. Mas eu sabia o quanto era difícil para mim suportar o mau humor de meu marido depois que tudo acontecia, muitas vezes colocando a culpa em mim ou em tendências de minha família herdadas pelo nosso filho mais velho. Um dia, quando Otávio Augusto tinha pouco mais de 20 anos, a divergência foi tão séria que eu achei que eles iriam trocar socos na sala de casa. Meu filho então anunciou que não voltaria mais à nossa casa, e assim o fez. Eu me senti culpada, pois a discussão tinha como objeto a minha pessoa, que andava doente e o Jorge achava que o Otávio Augusto, já cursando a faculdade de medicina, tinha obrigação de dar conta daquilo. Meu filho só voltou a nos frequentar a casa quando se casou. A relação dele com o pai nunca voltou a ser a mesma. Uns 20 anos depois, já casado e com mais de 40 anos, uma nova esfrega com o pai, fazendo com que se afastasse de nós por mais de um ano, deixando até mesmo de vir nos visitar no Natal, como habitualmente fazia. Só Deus sabe como eu tentava consertar aquilo, mas tinha que lidar com dois cabeças duras, resistentes a minhas ponderações, seja como mãe ou esposa. Mas não posso me queixar de meu filho mais velho, que sempre me tratou bem e me deu netos maravilhosos. Não me queixo nem mesmo de sua inconstância nos afetos, dos vários casamentos que teve, das diversas mulheres que nos apresentou, cada qual como se fosse a definitiva em sua vida. Em todo caso, para mim Elaine, a primeira, foi e continua sendo a nora número um que tive na vida. Otávio Augusto é como um filho pródigo, não deixa de ser querido. Sei que posso contar com ele, mesmo à distância.
Reclamo hoje do falecido Jorge, me sinto liberada para isso. Meu desejo secreto era de que ele morresse antes de mim, para que eu usufruísse pelo menos alguns meses ou anos de liberdade e tranquilidade, como acabou acontecendo. Confesso que isso hoje já nem faz sentido, pois às vezes me pego sentindo saudades dele, me apiedando da infância horrorosa que ele teve, num ambiente tão rude, de carências inclusive afetivas. Mas passou, como tudo um dia tem que passar. Não posso negar que o Jorge conseguia ser melhor do que o pai dele, de apelido Ieié, a quem, não obstante, ele sempre respeitou e admirou profundamente, coisa que nunca entendi de verdade. Aliás, de um bom pai eu entendia, pois tive o privilégio de ter como tal um homem carinhoso e respeitoso, o Dr. Augusto Davidson de Alvarenga, uma pessoa muito fina, descendente de escoceses, intelectual, formado em faculdade, embora um tanto calado e rodeado das muitas demandas que uma dezena de filhos lhe acarretava, nem todos eles tão santinhos. Quando decidi casar, me casei, ou melhor, quando minha mãe comunicou a ele que eu estava de namorico – eu mesmo não tive coragem para tanto – com aquele moço de fora (coisa que na Tavira daqueles tempos era considerado sinal de perigo), meu pai apenas me olhou com o olhar sério que lhe era peculiar e com sua habitual conversa curta me indagou: tem certeza que isso mesmo que você quer? Eu me lembro ter estremecido com tal pergunta, acho que não tinha pensado naquilo de verdade. Eu queria apenas uma vida diferente, sair daquele horizonte literalmente restrito, que envolvia, além do colégio interno, onde passei alguns anos, a vastidão de irmãos e irmãs a disputar comigo todos os espaços e direitos. O que eu poderia dizer a não ser um tímido e quase inaudível sim?
Ai, estou com tanta bambeza no corpo hoje… A cabeça me dói, a bexiga não se esvazia, o intestino é uma lesma empacada, das pernas nem posso falar, porque já não consigo me levantar dessa cadeira ou da cama faz alguns anos. Eu sou uma pessoa que quase morri duas vezes, acho que tive a sorte de escapar disso, teria sido uma desgraça, eu com tantos filhos pequenos para criar. Um parto complicadíssimo, quando nasceu minha filha mais nova, e poucos anos depois a tal doença que me paralisou da cabeça aos pés. Acho que sou uma guerreira, vencedora, pensando bem. Mas agora as coisas estão ficando difíceis… Por que será que nascer é bem fácil, mas morrer é tão difícil? A ideia da morte é hoje bem tranquila para mim, a realização dela é que é complicada.
Parei minhas reflexões um pouco porque entrou aqui a companheira de quarto. Acho que em vez de “companheira” ou devia dizer apenas “vizinha”, porque esta pessoa aí não me faz nenhuma companhia, não soma nada na minha vida. Aliás, eu nem sei o nome dela, de onde veio, se tem família, netos, essas coisas. Como é que pode, uma pessoa que dorme em uma cama ao lado da minha, a menos de um metro de distância, continuar sendo tão estranha, apesar de termos mais de um ano – talvez quase dois – de convivência. Convivência? Eu não sei que nome dar a isso. Quando o Jorge ainda estava aqui, dormindo nesta mesma cama, pelo menos estava ali uma pessoa a quem eu conhecia. Quase não conversava com ele e nem concordava com as ideias que ele tinha – mas pelo menos sabia de quem se tratava.
Tenho que admitir que quando estou lá embaixo, nas horas de refeições, por exemplo, quase não encontro assunto para conversar com essa velharia que mora aqui. Ai meu Deus: uma velha igual a tantos outros que estão aqui falando isso, vê se pode. Não sei o que é pior, quando tem gente jovem por perto me sinto igualmente isolada. Assim é a velhice… A gente devia morrer antes de ficar velho. Para quê ficar velho? A vida da gente devia ser assim: nascer, crescer, aproveitar a vida e depois, pronto, se acabou, se morre. Não acho graça nenhuma em ficar caindo pelos cantos, dependendo dos outros para tudo, do jeito que estou. Nossa Senhora ainda há de me ajudar.
Quando falo de gente jovem por perto tenho que abrir uma exceção para minhas netas, toda elas. Quantas são mesmo? Algumas nem moram aqui, tem horas que sinto dificuldade em contar. Uma delas, tão querida, veio me visitar outro dia e eu não a reconheci de imediato, só depois. Que vergonha! Essas meninas são muito preciosas para mim. Não que os rapazes não o sejam também, mas são situações diferentes. Modéstia à parte, se há uma coisa que acho ter feito com muito capricho na vida foi cativar essas meninas. Ensinei elas a costurar, a fazer brigadeiro, bolo de fubá, biscoitinhos. Contei para elas muitas histórias. Fiquei sabendo muitas vezes das disputas entre elas para ver quem ia ficar hospedada na minha casa. Uma delas, que foi a caçula por anos, ficou frustrada quando nasceu outra ainda mais nova. Isso é uma glória para mim! Agora cresceram e algumas já começam a me dar bisnetos. Que maravilha! Coisas assim até nos trazem a obrigação de gostar da vida, como sempre me diz o Jorge Jr. Mas para aproveitar é preciso ter disposição, força, saúde – isso infelizmente quase já não tenho mais.
Disposição, força, saúde? Já tive isso de sobra! Na juventude, infelizmente, não pude me aproveitar disso como deveria, tendo passado uma longa temporada no colégio das freiras, aquelas, metidas a francesas. Mas mesmo assim trago recordações boas, primeiro de ter ficado longe de casa, meio abafada por regulamentos e horários rígidos, mas pelo menos livre da pressão daqueles irmãos e irmãs que nasciam a cada ano em minha casa. Mas finais de semana como aqueles que vivi nos meus 13-14 anos nunca mais experimentei iguais, apesar de estar naquela espécie de prisão, com as tais francesas vigiando a gente 24 horas por dia. Engraçado, justamente quando estive mais longe dos meus, pelo menos daqueles mais chegados a mim, é que pude experimentar a verdadeira de graça de ser realmente parte de uma família, com primos e principalmente tias e tios por perto. Era só em alguns finais de semana que eles apareciam, mas transformaram aqueles sábados, domingos e feriados, quando me buscavam, em acontecimentos totalmente inesquecíveis. Até hoje me lembro e tenho saudades; nunca esqueci, aliás. Meu tio Otto, por exemplo, que tinha um filho da minha idade – um primo muito querido por sinal – pegava a ele e a mim, às vezes com outros sobrinhos e nos colocava em seu carrinho esportivo, que então era denominado de “baratinha” e assim dávamos voltas e mais voltas pelo centro da cidade, com a capota aberta e o vento batendo em nosso rosto, e ainda encerrando aquela maravilha de passeio com sorvetes monumentais. Tio Otto acho que foi o principal ídolo na adolescência, mas não era só ele. Tento me lembrar de outros acontecimentos, igualmente prazerosos na mesma época, sei que eles existiram, mas me escapam da memória. Mas o que me foi mais importante naquela época, sem dúvida, é continuar lembrando de cenas inteiras da ocasião, ainda hoje, quase 90 anos depois. Isso me faz pensar que talvez Jorge Jr e também Monica tenham razão: minha vida até que não foi tão triste assim.
Não posso ser injusta com aqueles irmãos que nasciam quase anualmente em minha casa. Os mais velhos do que eu, todos homens, grande parte das minhas lembranças deles se perdeu. Afinal, eram eles na rua, na escola, nas farras, como rapazes da época e de sempre e eu ajudando minha mãe com os meus irmãos menores e nas demais tarefas de casa. Sempre me dei muito bem como todos, mesmo com os que implicavam comigo, mas tive sempre uma proximidade especial com Haroldo, que era apenas um ano e poco mais velho de que eu. Éramos amigos de verdade. A vida foi injusta com ele, roubando-lhe os movimentos das pernas e a própria voz depois de um derrame, passando 10 anos assim, totalmente dependente dos outros, meio como eu agora, até que a morte veio lhe trazer alívio. Não posso falar nisso sem me lembrar, com muita tristeza, desse castigo verdadeiro que é viver demais, além da conta, principalmente continuar vivo quando a vida já perdeu o sentido e não vale a pena. Mas de toda aquela irmandade não posso me esquecer também de Ceci, a caçula por um bom tempo, que eu ajudei a criar, por assim dizer, mas que na velhice, minha e dela, se transformou em grande amiga, talvez a principal nos dias de hoje. Pena que more tão longe, há anos. Mas nossas conversas atuais, uma vez ao mês pelo menos, nunca duram menos de uma hora inteira. Ela me faz muito bem, me provoca risadas, não canso de pensar nisso e até já falei com ela.
Este negócio de lembrar é o melhor remédio para que acha que está perdendo a memória. Não é que de repente me vêm à cabeça tantas coisas que eu já julgava perdidas? A minha volta a Tavira, por exemplo, depois daqueles anos de Sacré-Coeur. Já não era mais a cidade que eu tinha deixado algum tempo antes, mas sim cenário de enormes mudanças. Aquele mundão de ferro que abundava naquelas montanhas, aquelas ruas calçadas com pedras que enferrujavam depois das chuvas, que pareciam coisa de pouco valor, de repente viraram um tesouro de Ali Babá. Chegou a estrada de ferro e junto com ela a entidade que mudaria a vida da cidade daí em diante, ou seja, a partir do início dos anos 40, a famosa empresa de mineração, ou como todo mundo em Tavira dizia, quase com respeito: a Companhia, assim, com letra maiúscula. Um dia as ruas se encheram de carros, caminhões, ônibus, sempre trazendo gente de fora e mais máquinas e equipamentos também. As pessoas, principalmente os mais jovens, que tinham que sair da cidade para conseguir emprego fora, agora tinham isso de sobra na nossa velha aldeia. E muita gente de fora vinha para lá exatamente porque ali tinha emprego, de sobra, aliás. O Dr. Augusto, meu pai, ficou preocupado, acho que ele percebia que nada seria como antes em nossa terra, mas bom tavirense que era sentiu também que somente aquilo poderia fazer a cidade sair do marasmo que imperou por ali anos a fio.
Pois a Companhia chegou e tudo mudou naquele mundinho, principalmente através das muitas pessoas (e costumes) novos que lá chegaram. Foi nessa leva que chegou uma pessoa especial, um moço de fora, como o descreveu numa crônica o Otávio Augusto, que leva jeito para a escrita e vai no fundo das coisas. Segundo ele:
Naqueles tempos, tudo começava a ser diferente de antes, no país e no mundo. Havia na Europa aquela guerra monumental, que cobrava preço alto em vidas e destruição. Do lado de cá as coisas bem ou mal se moviam. A grande Nação do Norte tinha abandonado seu afastamento dos conflitos, depois dos ataques dos Orientais ao Porto das Pérolas e se lançava, finalmente, à maratona que iria mudar de vez o mundo. Ou, pelo menos, apressar tais mudanças. O País, entre a contingência de ficar recostado a seu berço esplêndido ou entrar de vez naquela peleja que alteraria a ordem até então posta, optou por esta última, não sem antes cobrar seu preço em moeda forte, em cessão de território, em ruptura com o Eixo, na abertura a negócios lícitos e ilícitos em borracha e minério. […] Antes é preciso dizer que já em décadas anteriores à Grande Guerra, o berço esplêndido era sacudido pelo cataclismo da modernidade, com cada vez mais gente nas cidades, a fumaça das indústrias por toda parte, o advento de novas máquinas para tudo. Entre outras aplicações destas últimas, as máquinas de plantar e fazer a terra produzir.
Otávio Augusto me ajuda, na sequência, a lembrar da história daquele moço criado em roças remotas, que teve a chance de ir estudar as novas técnicas da agricultura, fora de sua terra natal, com portas abertas por um conterrâneo mais bem situado, professor e especialista em tal assunto. Se fosse para contemplar um lugar de real vocação agrícola, os grotões de onde nascera e seu cerrado retorcido já seriam o bastante, mas já naquela época o país parecia ser contrário às coisas mais lógicas naturais. E assim o tal moço, completado seu curso agrícola, vai buscar emprego, na grande Companhia, onde precisavam de alguém que tivesse experiência em cultivar hortas, pois mesmo sendo um projeto de mineração tinham interesse na produção de verduras para alimentação dos operários, que eram contratados aos milhares, vindos de todas as partes do país. Quando lhe perguntaram o que ele sabia de tal assunto, o moço mal teve tempo de digerir a pergunta, balbuciou um “sim” intimidado e afobado, saindo dali contratado. Poucos dias depois pegou um trem de ferro, e depois outro e mais uma carona por caminhão, rumo ao desconhecido, acabando por chegar ao lugar onde iria produzir as benfazejas verduras para os almoços e jantas de tantos peões. Ali, em vez dos campos planos de seu lugar natal, o que havia era uma sucessão de morros encavalados, cobertos por uma mata escura, bem diferente do seu cerrado familiar. Além do mais, muito frio, chuva e nevoeiros, que duravam dias e até semanas – tudo muito diferente daquilo a que ele estava acostumado. O moço parece que só não voltou para a casa de sua família porque já não havia nem quarto nem cama para ele, pois enquanto estivera fora nasceram pelo menos mais dois irmãos.
O ser humano a tudo se acostuma, e o moço não fugiu a tal regra, principalmente por lhe pingar no bolso, ao final de cada mês, o sagrado dinheirinho do salário, coisa que ele até então desconhecia, pelo menos naquela quantidade. Logo percebeu que naquele ambiente de forasteiros não era muito difícil fazer amizades, sendo aconselhável, além do mais, uma boa camaradagem, para se suportar aquele exílio no meio de muita poeira, frio e trabalho pesado. E foi assim que o tal moço acabou por se aproximar de pessoas da terra, mesmo com certa desconfiança destes pelos recém chagados. Foi morar na casa de família legítima da terra, que agora alugava quartos aos forasteiros, coisa que vinha se tornando banal na rotina daquela cidade pouco acostumada a novidades, mas eis que se via naquilo a oportunidade de faturar algum dinheiro extra. Assim o moço, no meio daquela gente de aparência tão fechada, através dos filhos mais jovens, da idade dele, viu lhe abrirem portas na cidade e com isso as primeiras insinuações de namoro, vistas com certa desconfiança pelas famílias dali, sendo algo novo e tentador para as mocinhas, certamente enfastiadas com o ambiente restrito e repressivo que dominava a cena local. E eu era uma dessas moçoilas, esta é a verdade.
E assim ele foi sendo absorvido pelos hábitos da cidade, que com o passar do tempo, já lhe pareciam familiares, como se os conhecesse desde sempre. Coisa tranquila, por certo, pois eram costumes comuns ao pequeno (e ao mesmo tempo vasto) mundo do País interiorano. Entre tais hábitos comuns certamente estava o footing das noites em finais de semana e a chegada e levas e levas de rapazes propiciada pela Companhia trouxe mais variedade e qualidade a tal atividade, para meu regozijo e das demais moças da terra.
E o Otávio Augusto nem estava presente nesses tempo, mas mesmo assim observa, criteriosamente:
<<Eis que numa dessas jornadas, olhares se cruzaram e o ferro das calçadas não empatou, botou ferrugem ou bloqueou a curiosidade, talvez simpatia, depois amor, a acometer mais de um forasteiro e uma nativa. Nesta ocasião o Moço já estava enturmado e um de seus melhores amigos era H., membro de tradicionalíssima família que representava um dos reservatórios morais e intelectuais da cidade, na qual, em verdade, do ponto de vista material e financeiro, a posse de numerário em dinheiro e bens já estivesse em outras mãos, totalmente estranhas ou estrangeiras. Num daqueles cruzamentos fugidios de olhares, ele resolveu consultar se grande amigo H. sobre quem era a dona daqueles olhos tímidos, mas sem dúvida promissores. A resposta surpreendeu ao Moço: é minha irmã, fique longe dela, não é pra você! E nisso se demonstrava não haver qualquer receptividade.
Acho que o amigo H. ficou em dificuldades, numa saia justa, como se diz hoje. Afinal, companheiros de farra que eram, ele e o moço de fora, é provável que tivessem intimidade suficiente conhecerem trampolinagens recíprocas impublicáveis. Coisa mais ou menos do tipo: este serve para ser meu bom amigo, mas para cunhado são outros quinhentos. Assim, certa etiqueta do mundo rasteiro deles deve ter prevalecido e o Moço decidiu não insistir. Por enquanto, pelo menos. Ou talvez fosse hora de exibir algumas qualidades das quais o amigo H. até então não havia se apercebido. Sair melhor na foto, pensou ele, deveria ser o primeiro passo, o resto se veria depois.
Este H. aí é o meu irmão Haroldo – e através dele eu finalmente entro na história.
Como nada resiste a um pouco de paciência e calma, tudo se acertou em seguida, sem muita conversa, mas com algumas atitudes, como convinha à boa índole daquela gente desconfiada e manhosa, mas de bom coração. O fato é que com algumas intermediações de amigos, talvez até com a participação do próprio Haroldo foi possível encetar o namoro, com todo respeito e sempre de acordo com os costumes. O Doutor Augusto, herdeiro do que havia de mais tradicional na terra, pelo menos antes da mineração começar, não chegou a causar problemas ao pretendente, pois ele não era disso e certamente deve ter estimado haver boas intenções no forasteiro. Mas não deixou de me perguntar se era isso mesmo que eu queria.
Com minha mãe, entretanto, o moço teve menos sorte. Quando já havia se tornado mais íntimo da família, na era do noivado, foi buscá-la na Fazenda de meu pai, em sua camionete de funcionário da Companhia. Um pouco por estar prestando atenção na estrada, mas talvez também por lhe faltar assunto, embargado pela timidez, se distraiu da presença da futura sogra na boleia e quando se deu por achado, simplesmente reparou que ela não estava mais ali e que a porta da direita do veículo abria e fechava no vazio. A pequena roceira que vinha de carona no assento ao lado murmurava, assustada: – seu moço, a patroa caiu lá atrás… Pelo retrovisor pôde enxergar, então, a enrascada em que estava metido. Lá longe, a senhora futura sogra sacudia a poeira e já vinha caminhando, claudicante e contrafeita, em direção ao carro. Se alguma raiva houve, foi só por um momento, acabou logo, tudo não tendo passado de um susto, mas que rendeu boas risadas na família por muitos anos.
E foi desse jeito que aos poucos acabou o desajeitado rapaz muito bem assimilado pela família, pelo Doutor Augusto e pela Senhora Patroa, por Haroldo e meus demais irmãos além de, naturalmente, por mim também. E foi então que, de forma natural, conforme costumes que não se usam mais, interrompi meus estudos (eu mal tinha terminado o Ginásio) e fomos, minha mãe e eu, nesta ordem, cuidar do enxoval.
Na hora de pedir minha mão ao Dr. Augusto, imperou a formalidade da época e quem na verdade representou o moço (que agora já tem nome: Jorge) foi um terceiro, o respeitado Tio Pedrico, amigo de meu pai e conhecido também – além de simpatizante – do cada vez menos forasteiro Jorge. Pouco tempo depois nos casamos na Igreja Matriz da cidade e dentro da marca regulamentar dos nove meses – nunca menos do que isso! – nasceu o Otávio Augusto, este meu filho contador de histórias. Pouco mais de um ano depois nasceu o Enius Marcos, e em intervalos de tempo regulares, de pouco mais de um ano, o Jorge Jr e a Monica. A Clara teve que esperar um pouco mais. Otávio Augusto chegou ao mundo quando ainda estávamos em Tavira, os outros já na capital.
Ah, a Capital! Esta cidade que nos recebeu de volta era tão diferente daquela Tavira e diferente até de si mesma, nos anos que passei por lá com meus pais e irmãos, entre os anos 30 e 40. Talvez a diferença maior estava comigo mesma, agora uma mulher casada, com um filho no colo, o Otávio Augusto e outro na barriga, o Enius Marcos. Bem que o Dr. Augusto me indagou se era isso mesmo o que eu queria. Mas sinceramente, arrependimento: não tive nenhum.
Jorge, por exemplo, tinha agora outro tipo de atividade, ele se associou ao pai e irmãos para negociar com cereais e porcos, vivos. Eles compraram um caminhãozinho Chevrolet, que ele pilotava bravamente pelas malévolas estradas do interior e até fora do estado. Agora pai de família, entretanto, tudo que ele queria era se libertar da condição de funcionário, cumprir a sina do pai e da família como um todo, de serem pessoas autônomas e independentes. E além disso, sonhadoras… Meu sogro não se importava de dar verdadeiras guinadas na vida, muitas delas arriscadas, para cumprir seus sonhos comerciais. E assim foram pulando de negócio em negócio, mudando de fazenda e depois de cidade em cidade. Dos cereais passaram aos porcos e daí a uma empresa de ônibus na Capital. Para mim foi bom, porque o Jorge pelo menos parou de viajar, mas sempre trabalhando muito, às vezes levantando de madrugada para dar início ao movimento do dia e até mesmo pegando no volante daquelas lotações, que era o nome que os ônibus tinham nos anos 50. Esta atividade nos obrigava a mudar de casa com certa frequência, pois foram variadas empresas que eles tiveram, direcionadas a bairros diferentes, e assim a gente tinha que morar próximo ao trajeto de tais linhas. Para falar a verdade penso que isso até era do agrado do Jorge e de seu pai, porque vinha ao encontro ao gosto deles em mudar, mudar sempre, de ocupação, de casa, de bairro… Ainda bem que não se resolveu mudar de mulher – o Jorge, pelo menos.
Foi nesta época que me aconteceram coisas terríveis, por exemplo, a desfeita que me fez o meu sogro, de apelido Ieié, um homem meio bruto. A gente morava em uma casa que estava sendo construída por ele e eu tinha que lavar a roupa das crianças – já eram quatro na ocasião – exposta ao sol e a chuva. Eu só pedi para ele construir um telhadinho em cima do tanque e ele sem me dedicar uma palavra sequer, tratando daquilo apenas com o pedreiro, não permitiu que isso fosse feito. Não ia gastar praticamente nada, os operários estavam lá e o material praticamente todo ali, já comprado e pago. Mas como era sovina e malvado aquele homem. Minha sogra sofreu nas mãos dele, com aquele silêncio cortante e taxativo. Dizem que ele quando mudava de casa, o que fez muitas vezes, somente avisava para ela de sua decisão na véspera do caminhão estacionar na porta. Ainda neste tempo, ele fazia atrasar de propósito a construção dos banheiros da casa e eu tive que usar o banheiro imundo da garagem de ônibus que o mesmo mantinha, de sociedade com o Jorge, no terreno ao lado, com todos aqueles mecânicos e motoristas de olho pregado em mim.
Otávio Augusto, com sua memória privilegiada lembra de coisas que até eu mesmo tinha esquecido, relativas àqueles nossos primeiros anos em Belo Horizonte. Ele começa por suas primeiras lembranças, no velho bairro em que primeiro moramos, passando pelas várias casas que tivemos, lembranças nas quais ele reconhece “talvez incluam partes de uma delas misturada com partes de outras, formando uma espécie de quimera residencial”. Mesmo admitindo ter poucas recordações vivas de tal época, entre os seus um a cinco anos, o danado se lembra até de aviões despejando panfletos de propaganda política impressos com o emblema da foice e do martelo.
Ali naquele bairro de classe média baixa, sem dúvida, encontramos uma realidade muito próxima às nossas origens interioranas, com aquelas ruas quase desertas de carros, cobertas no intervalo dos paralelepípedos por uma grama rala; muitos lotes vagos, casas modestas; abrigos de uma classe média apenas remediada. No caso de BH, gente que já não cabia nos setores destinados aos “funcionários”, embora afortunados o bastante para não precisarem morar em lugares conhecidos como “Mato da Lenha” ou “Barreiro”, por exemplo
Peto de nós, nesses primeiros tempos, morava também um personagem importante para nós: o Juca, um primo em segundo grau do pai de Jorge, farmacêutico daquele tipo antigo, na verdade um prático de farmácia que ajustou às novas normas do exercício profissional. Ele era dono de uma farmacinha ali no bairro, bem em frente à igreja. Ele foi uma espécie de médico e de protetor para nossa família, temido pelas crianças, por um lado, pelas injeções que lhes aplicava; estimado, por outro, por sempre trazer da farmácia apreciadas “caixinhas”, ou seja, embalagens de remédios e de outros produtos da farmácia, já vazias, com as quais as crianças faziam carros, casas, edifícios. Creio que foram os primeiros brinquedos que eles conheceram de verdade, numa época em que o plástico era raro e caro – e o consumo da classe média bastante limitado.
No Prado, Otávio Augusto ainda se lembra de sua primeira experiência como “motorista”, muito malsucedida, por sinal. Foi assim: Jorge tinha o caminhãozinho com o qual ganhava a vida na ocasião. A rua em que a gente morava tinha uma pequena inclinação e por uma daquelas manias infantis, devidamente assessorado por meu cunhado William, apenas um pouco mais velho do que o Otávio Augusto, mexe daqui, mexe dali, quando se deram conta o veículo tinha ganhado movimento, descendo a rua de marcha à ré. Por sorte, a direção virou, o caminhão fez uma trajetória de meia lua e foi ao encontro a um muro do outro lado, jogado ao chão de imediato. Felizmente as maiores consequências foram essas. Otávio Augusto garoto que era, é claro que foi absolvido.
Pois é, meu filho mais velho me traz boas lembranças de uma etapa da vida trabalhosa, com filhos aparecendo a cada ano praticamente, um marido sempre ocupado fora de casa e um sogro insensível – mas foi tudo, sem dúvida, um tempo muito feliz. Lembrança especial é esta do Juca, nosso farmacêutico e anjo da guarda, com quem o Otávio teve oportunidade de conviver muitos anos depois, já morando em Brasília, para onde o Juca e sua mulher Maria, a famosa Maria do Juca, haviam se mudado desde a fundação da cidade. Tive também a sorte de poder contar com minha família por perto, porque dois ou três anos depois que viemos para BH, meus pais e meus irmãos mais novos também vieram morar nesta cidade. E foi nas duas residências que eles tiveram, uma no bairro do Carmo e outra na Serra, que nossos domingos se tornaram inesquecíveis.
Minhas recordações da Capital passam, necessariamente, pelas casas em que residimos, mas neste quesito tem uma moradia onde não chegamos a residir, mas que tem especial significado na minha vida e na vida de meus filhos, particularmente dos dois mais velhos que ali tiveram vivências muito especiais, guardadas que foram em um baú das melhores e eternas lembranças.
Refiro-me à segunda casa de meus pais, esta comprada pela Dr. Augusto depois da venda de suas propriedades em Tavira e situada em um bairro que não era grande e nem movimentado. Esta casa foi demolida há muitos anos, mas ainda está inteira nos meus sonhos e nem preciso estar dormindo para que ainda ela venha me encantar. A rua era pacata e silenciosa, os poucos carros, trafegando em mão dupla não exigiam cuidados especiais em sua travessia a pé. A cidade terminava logo ali, poucos quarteirões rua acima. Era de fato uma casa especial, dentro de um terreno que ia (e ainda vai) de uma rua a outra, mesmo que a via dos fundos só tenha surgido concretamente muito tempo depois, havendo em seu lugar, na ocasião, um córrego encachoeirado, modesto em seu cotidiano, mas violento e ruidoso quando caiam chuvas no alto da serra que emoldura a cidade. As casas vizinhas tinham, todas elas, grandes quintais, dispostos ao longo da rua principal, à moda daquelas antigas “capitanias hereditárias”.
Otávio Augusto e sua incrível memória conta sobre ela: <<À frente um muro baixo, no máximo um metro de altura, fruto de um tempo que ninguém carecia ser barrado. Sua parte superior faz como um parapeito largo, onde se podia sentar, para apreciar a rua. Um portão nos dá entrada ao pequeno jardim, onde pontificam roseiras mais espinhentas do que propriamente florosas. Chega-se, assim, ao alpendre, que é como, naquele tempo, esta parte se denominava, onde duas cadeiras baixas, quase espreguiçadeiras, de alto espaldar, em madeira pintada de cor creme, com almofadas azuis, dando a quem chega a medida da hospitalidade e da bonomia de tal habitação. As portas e janelas da casa eram encimadas por “bandeiras” arqueadas, com vidros vermelhos e azuis. A porta da esquerda conduz a um quarto sem comunicação com o resto da casa, talvez originalmente um escritório, mas agora conhecido como quarto dos rapazes. A outra porta, à frente, é que se abre para o interior da casa e por ela entraremos. Uma ampla sala logo se descortina, com seu assoalho de madeira, sempre bem encerado, que ecoa ao ser palmilhado. Os móveis são de madeira escura, sóbrios, entre eles um armário de portas envidraçadas, conhecido como “o bar”, repleto de cristais azuis, vermelhos e em bico de jaca. Bebidas mesmo, muito poucas. […] Num lado, abre-se uma segunda sala, prolongamento desta onde estamos, dita “de visitas”. Ali, entre cortinas diáfanas, impõem-se três sofás clássicos e encorpados, revestidos de tecido de cor pérola. A um canto a grande vitrola RCA, em madeira também escura, cujo luxo e solenidade conferem aparência de peça de museu, apesar de ser nova, representando o que havia de mais aprimorado em termos de tecnologia na ocasião. No outro canto um piano Pleyel, vertical, de procedência europeia, negro e solene também, com seu teclado sustentado por volutas sinuosas, barrocas. Ao abrir-se-lhe o tampo, surge um odor capaz de se fixar na memória de alguém por muitas décadas, lembrando madeira e alcatrão, mas principalmente infância.A esta altura a minha memória já foi até ativada. Havia também um corredor, ligado à primeira sala, muito longo, com altas paredes, o forro em lambris pintados na cor creme. Do lado esquerdo perfilam-se os quartos, três ou quatro. O primeiro deles abria-se diretamente para a sala, coisa de uma arquitetura que não ainda separava o que era íntimo do que era social. São os quartos das moças, minhas irmãs mais novas ainda solteiras, naturalmente mais protegidos e mais acessíveis à fiscalização rigorosa de horários, conversas, hábitos, como acontecia naquele tempo antigo. A meio caminho no corredor, de lado oposto aos quartos, abria-se o chamado escritório do Dr. Augusto, pequeno, mas charmoso, do qual se podia sair por uma porta lateral a uma espécie de jardim suspenso. Ali meu pai guardava seus livros e papéis de advogado, uma enciclopédia de muitos volumes, além de muita literatura em capa dura. Tinha também, em uma mesinha baixa, um rádio, daqueles bem antigos, em madeira envernizada e tela de gorgorão, com seu painel verde fosforescente, quando ligado. Ali meu pai, aparentemente contrariando suas maneiras solenes, passava as tardes de domingo escutando simplesmente um bom futebol.
Aqui Otávio Augusto me complementa: Continuemos pelo corredor, que vai ter à sala de refeições, dando também entrada, pela esquerda, para a cozinha. Sala de refeições esta, mais exatamente uma copa, pequena, na verdade, face às dimensões da casa. A mesa ali colocada vem de outro ambiente, maior certamente, e foi colocada com um de seus lados encostado à parede, para facilitar a passagem das pessoas. Do outro lado da mesa o móvel que um dia se chamou buffet, também candidato a um museu olfativo. Seu cheiro de madeira doce, associado a cravo, canela, doces de laranja e de figo, de que a dona da casa é exímia fabricante, também mostra aquela propriedade de se fixar na memória de uma pessoa para sempre, ou, pelo menos, por décadas a fio. […] A cozinha acompanha a escala da casa, pela sua enormidade. Seu teto, à diferença dos outros cômodos, não tem o forro de lambri oleado, mas sim uma treliça de ripas diagonais, em verde claro. Por cima dos espaços losangulares de tal forro denotam-se vestígios de fuligem antiga, a demonstrar a existência pretérita de um fogão de lenha. Mas isso foi bem antes, com certeza, porque agora o que domina o ambiente é um fogão elétrico sólido, respeitável, de marca Gardini, com seis bocas, talvez – um luxo! A cozinha abriga ainda uma comprida pia de mármore, talvez um pouco desgastado pelo uso, com metais amarelos e bojudos. Um armário dos chamados “guarda-comida”, ao lado, não desperta lembranças olfativas muito agradáveis, pelo seu cheiro de polvilho azedo, que lembra também o cocô de gato. Prestem atenção na geladeira Norge, com seus cantos arredondados, que atravessou décadas em funcionamento perfeito. Já com sua brancura meio encardida, ela se assenta, atarracada, sobre um estrado, certamente para compensar sua estatura baixa; Debaixo desta espécie de palanque a gata da casa se aninhava. Para as crianças, o ronronar da gata tinha algo a ver com o funcionamento do motor da geladeira, quem sabe um estranho e mágico caso de mimetismo.
Do lado de fora a casa da rua do Ouro tinha também muitos encantos, com caminhos de pedra rodeados de plantas floridas, as mirabilis, bocas de lobo, hortênsias, aquelas plantas que ninguém conhece mais. Existia ali também um arbusto notável, o pé das camélias, em verde escuro e lustroso, ao longo de todo o ano mostrando as perfumadas e elegantes camélias. Além delas, a ponto de despertar a admiração de quem passava na rua, uma verdadeira touceira de flores de seda, a exibir entre maio e junho sua florada rosa e vermelha. Aquele jardim não deixava suas surpresas só nisso. O caramanchão, por exemplo. À primeira vista parecia que seu assoalho tivesse sido pintado de verde, mas era engano. O que havia, de fato, era um limo verde, aveludado, uma luxúria vegetal. Acima, um forro de pura exuberância, formado pela trepadeira chamada lágrima de Nossa Senhora e ao redor, em disposição confusa, se amontoavam avencas, espadas de São Jorge, costelas de Adão, antúrios, copos de leite e begônias. Ali em volta, o beijo de frade é mais uma floreira a desorganizar o que não carece de ordem. Logo à frente, a parreira, debaixo da qual, por ocasião das festas de fim de ano era possível colher e saborear uvas generosas e sumarentas, em uma vindima suficiente para o consumo da casa e para o agrado natalino aos vizinhos.
A generosidade daquele quintal era imensa. A moita de bananeiras que chegava a dar dois cachos era resultado, com certeza, da curiosidade botânica de meu pai. O pé da fruta do conde (ou condessa, como ele a denominava) sombreava quase toda a área do quintal. Ao redor e mais abaixo os abacateiros, mangueiras, laranjeiras diversas, a lima, o limão vinagreiro e demais habitantes do terreiro. Aqui, no final da tarde, as cigarras chegam a ferir nossos ouvidos com sua cantoria destemperada.
Otávio não deixa por menos, lembrando até mesmo da paisagem dos fundos: Paremos agora para apreciar o córrego, que fecha o terreno nos fundos. Se não é tempo de chuvas, ele é assim, manso, apenas murmurando através da pequena queda dágua logo abaixo. Quando, chove, porém, transforma-se em caudal ruidoso e espumante, ca paz de arrastar, com fúria, troncos, moitas inteiras de capim e até mesmo galinhas surpreendidas nos quintais. Uma pequena trança de folhas e gravetos, a certa altura na cerca dos fundos, é a marca de uma enchente nas chuvas passadas. Ele constata que já na sua infância o tal riachinho já parecia um pouco sujo, com vizinhos negligentes a atirar detritos em sua corrente, provocando algum início mau cheiro. E conclui: não é mais possível esconder que o córrego não traz mais apenas a água clara da serra. Ali embaixo, um pequeno vulto rápido, sinistro, quase nos confunde, não fosse a longa cauda. O surgimento de outro ser cinzento, nervoso, olhinhos brilhantes e desconfiados, bigodes perscrutadores, logo confirma nossa lúgubre suspeita. A cidade está crescendo, o córrego já não é o mesmo de poucos anos atrás.
Pois é, tanta mudança… Mudou o córrego, virou rua, já não é possível ouvir seu murmúrio e sentir o frescor úmido de suas margens. Domesticado, ele não extravasa mais. O bairro também mudou, cresceu, se transformou em formigueiro confuso de lojas, prédios de apartamentos, ruas movimentadas e barulhentas. Casas, como esta que ainda chamo de minha, são agora raras e abrigam escritórios e lojas, não mais as famílias de antigamente. Feridas se abriram na serra para dar passagem à cidade voraz e à sede de extrair a alma da natureza. Aquela casa dos sonhos, o que foi feito dela? Foi vendida, demoliram-na. Agora, em seu lugar, o que sobrevive é um prédio de apartamentos, mais um, entre tantos. As pessoas de antes envelheceram, se mudaram, morreram. Quero mais é guardar as imagens da casa, do jardim e do terreiro, assim como num sonho. Um dia, tudo existiu; agora só na lembrança. Ali passamos dias felizes, eu e meus filhos. Eu diria mesmo que foram os mais felizes de todos que que vivi em toda minha vida. Ai, que saudade!
Mas ainda falando de casas e terrenos da minha vida, entre as coisas que ficaram para trás, não posso deixar de falar da Fazenda do Pontal. Ela foi uma herança que Augusto recebeu de seu pai, Antônio de Paula Albuquerque, juntamente com seu irmão mais novo, Carlos , o grande poeta. Meu pai mais tarde comprou a parte do irmão. Alguém já tentou fazer polêmica disso, mas eu sei muito bem – e tenho testemunhas – que foi um negócio bem combinado e bastante satisfatório para as duas partes. A Fazenda do Pontal faz parte daquelas lembranças luminosas que a gente tem da infância. Ficava bem perto do centro da cidade, talvez uns seis km, se tanto, e era comum passarmos férias por lá e também muitos finais de semana. Aquele casarão impressionante foi demolido, mas por assim dizer ressuscitou, embora em local diferente, feito em que teve grande participação meu irmão mais velho, Vinicius, que conseguiu isso com apoio da Companhia, num esforço que durou anos e que teve sucesso graças à tenacidade dele. Meu irmão, aliás, nem pôde assistir o desfecho de tudo isso, porque faleceu antes da reconstrução do casarão numa periferia da cidade. Entre tantas coisas relativas ao Pontal, que ainda estão presentes em minha memória, talvez a mais forte seja a daquela casa imensa e mais do que centenária, com seus cômodos numerosos, seu pé direito monumental, seus móveis solenes e também, sei lá, talvez alguns fantasmas. Minha mãe, por exemplo, dizia ter visto o espectro de uma das madres do colégio onde ela havia estudado na mocidade, vagar por lá. O certo é que tal fazenda era um paraíso, onde havia, além daquela casa impressionante, fruteiras antigas e muito produtivas, roda d’água, currais, cavalariças, anexos diversos, tudo aquilo que uma propriedade rural à moda antiga, era capaz de mostrar. Ali, em outros tempos, dizem que se produziu até vinho. Suas peras d’água ficaram famosas, da mesma forma que suas laranjas de várias qualidades, que meu pai fazia questão de plantar e muito se gabar delas. Um dia, porém, meu pai, sentindo-se incapaz de dar ao Pontal um gerenciamento adequado, decidiu vendê-la – adivinhem para quem? – para a sempre-presente Companhia, que logo demoliu a sede e transformou a área em mais uma triste e perigosa lagoa de rejeitos. Vão-se os anéis, ficam os dedos; foi-se o Pontal, ficamos nós com as nossas lembranças – pelo menos isso…
A Fazenda do Pontal teve, por assim dizer, uma continuação. Com meus pais morando na capital e diante do reforço de caixa trazido pela venda da velha propriedade, meu pai comprou um sítio, que nós chamávamos simplesmente de A Chácara, em município vizinho da Capital, aliás, bem dentro da cidade, que naquela época era uma vila do interior, não a metrópole que se tem hoje. Ali já era um lugar ajeitado, propriedade de uns padres que mantinham nas redondezas um colégio interno ou seminário, fazendo do local um provável local de férias dos alunos. Mas Dr. Augusto não deixou por menos, cuidando das dezenas de jabuticabeiras que lá existiam e plantando mil outras espécies de plantas, geralmente frutíferas e ornamentais. Basta dizer que foi lá que provei, pela primeira vez na vida – e talvez mais gente também – frutas desconhecidas como a lichia, o caqui e as cerejas, além de ter admirado de perto algumas das proezas botânico-cirúrgicas de meu pai, que fazia com que alguns cítricos produzissem duas espécies diferentes de frutos, além de cultivar, como curiosidade, bananeiras capazes de fornecer dois cachos em uma única muda. Foi na chácara, também, que meus filhos passaram momentos muito felizes da infância deles, conforme o sempre inspirado Otávio Augusto descreveu um dia, em um texto que ele poeticamente denominou “Cheiro de Tangerinas.
<<Os dois garotos, pelo menos uma vez por mês, tinham permissão da mãe para acompanhar o avô nas idas ao sitio, em Contagem, que naquele tempo era outra cidade, para a qual, de fato, tinha de se viajar. Depois de um dia de folguedos e travessuras, suportados, a maior parte das vezes com bonomia pelo avô, cumpriam, então, um ritual ansiosamente esperado: a fogueira de despedida, brincadeira vedada quando os garotos estavam sozinhos. A lenha recolhida debaixo das mangueiras, juntamente com o vasculho do pomar, era organizada por eles mesmos como uma pirâmide irregular, no local onde ainda jaziam cinzas de fogueiras anteriores. Varas do bambu fino, que formava vasta moita junto ao açude, já haviam sido trazidas, para serem queimadas e fazerem às vezes de foguetes, pelo estampido que provocavam ao romper com o calor das chamas. O avô lhes ensinara, também, a queimar os ramos de um pequeno arbusto, de folhas carnosas, que produzia estalidos e lançava fagulhas, fazendo grande efeito pirotécnico.
Terminavam assim o dia, à beira do fogo, agasalhados por recomendação da mãe, para evitar o frio pelas costas. O avô tomava suas últimas providências e não raramente tinha de ceder mais uns minutos aos meninos, que desejavam fazer a queima de uma vara recém encontrada ali por perto, que prometia tiros de arromba.
No caminho da volta, extenuados e calados, mas acima de tudo felizes, amontoavam-se no banco da frente do Jeep, cabeceando para lá e para cá, com o balanço do veículo. O avô, a esta altura, deixava-os quietos, sem puxar as tradicionais brincadeiras e adivinhas, parte obrigatória da viagem, pelo menos na vinda, quando estavam descansados os garotos. Deixava, então, os netos entregues ao sono e às recordações do dia.
No ar, impunham-se em estranha mistura, os odores da gasolina, da mexerica enredeira e do limão-cravo, das verduras recém colhidas, da terra fresca aderida às batatas doces e às mandiocas. Mal vedado pela capota de lona do veículo, um friozinho benfazejo fazia sua presença. Lá atrás, o sol se punha entre rosadas nuvens, como se o lençol de capim gordura dos morros tivesse se invertido e cobrisse, agora, o próprio céu.
Para aqueles dois, meu irmão Enius e eu, o cheiro de tangerinas, mostarda e terra fresca, o friozinho das tardes de maio, o sol num dossel colorido, o crepitar de lenha em fogueira, o capim gordura manchando os morros, mesmo passados mais de sessenta anos, ainda trazem magicamente as cores, os cheiros, os sons e os sabores de uma meninice luminosa. Quem teve infância por certo entenderá.>>
Pois é, sempre tivemos grade ligação com a terra, herança de meu pai, mas para meus filhos isso talvez seja algo que também veio da família do Jorge, tradicionalmente ligada a terra, lá no Oeste de Minas Gerais. Não posso me esquecer de nossos encontros de família, do meu lado, pelo menos, em uma fazenda próxima à capital, onde morou meu irmão Norberto com sua família. Íamos muito lá, na infância de meus filhos. Depois, por uma série de razões, não fomos mais. Lembro-me bem de nossa família reunida em torno de fartas mesas, em ambiente de roça, com conversas animadas. No centro de tudo o anfitrião, meu irmão Norberto , figura notável, seja em minha vida, na dos meus filhos e mesmo da família com um todo. Norberto não era o dono, mas sim empregado do Senhor Simões, o real proprietário, homem de dinheiro, que semeava seu capital em atividades diversas, que iam do zebu à construção de estradas e obras públicas. Amigo de JK, isso já diz tudo.
Norberto começou ali como simples gerente, adaptando sua formação de técnico agrícola à lida com o gado zebu. Mas logo conquistou a confiança do patrão, que o fez gerenciar suas fazendas de gado no Triângulo Mineiro e norte de São Paulo e também para comandar obras de sua construtora em vários cantos do país. Impressionante a capacidade deste meu irmão. Na época de nossos encontros familiares ele mantinha ali apenas a residência da mulher e dos dez filhos deles, passando a maior parte do tempo nas empreitadas de seu patrão.
Aqueles encontros debaixo dos eucaliptos, em torno da casa em que morava a família de meu irmão, ou então na mansão senhorial que era a sede da fazenda, foram memoráveis. Ali se comia do bom e do melhor, particularmente os quitutes preparados por minha cunhada e amiga , a melhor cozinheira que já conheci. Havia também comidas preparadas por mim e por minhas irmãs, cada uma delas se esmerando em uma determinada especialidade. Norberto, nessas ocasiões, nos brindava com sua boa conversa, habilidade em que ele teve inúmeros antecessores e seguidores na família. A particularidade de repetir vezes incontáveis a mesma história nunca tirava o brilho delas, porque ele sabia como conduzir um caso com enorme maestria, e a gente o ouvia como se fosse a primeira vez.
Personagens também notáveis naqueles encontros familiares eram meus cunhados Breno e Daniel, maridos, respectivamente, de minhas irmãs Carmelita e Clorinda. Aqueles almoços ao ar livre inevitavelmente evoluíam para brincadeiras entre meus filhos e seus rimos, à beira dos açudes da fazenda, nos currais, nos galpões de silagem. Muito namorico de ocasião deve ter acontecido ali, imagino.
Entre tantas alegrias, esta fazenda também nos ofereceu uma tragédia: o afogamento simultâneo de meu irmão José Márcio e de meu sobrinho Lucas, acontecimento que veio a interromper, definitivamente, o circuito das nossas alegrias por lá, mostrando a todos nós, particularmente às crianças e adolescentes, uma face dura da vida, que para nós fora sempre risonha.
Otávio Augusto me contou que teve um duro o golpe ao voltar ao local mais de cinquenta anos depois. A estrada, antes bucólica e florida, havia se transformado apenas em caminho estreito entre favelas, com esgoto correndo nas ruas e lixo atirado por todo lado. Ele me contou que a antiga fazenda ainda estava lá, sobrevivendo em meio ao caos, com os açudes secos e muitas marcas de decadência evidentes. O antigo arraial ainda estava lá, mas não era nada mais do que um anexo do horroroso favelão. É a vida… Falei com o Otávio que ele devia ter ficado quieto em casa, ao invés de se aventurar em tal passeio ao passado como este.
Como já falei, tivemos muitos endereços na grande cidade. Em parte, devido à nova atividade de meu sogro e filhos, as empresas de ônibus, em parte porque Jorge certamente deve ter herdado de seu pai um certo costume de ser, para dizer pouco, inquieto. Assim, nosso roteiro por ali incluiu, pelo que me lembro meia dúzia de bairros diferentes. Sobre um deles, o São Cristóvão, confesso que foi a pior parte, porque era um bairro muito pobre e as casas em que moramos, na rota empresa de ônibus da família, ficava bem ao lado de uma favela e de um conjunto de prédios horrorosos, chamado IAPI, que na época era um lugar bastante mal afamado. Otávio Augusto escreveu em seu livro de memórias que nós moramos na tal da Lagoinha, mas eu discordo. Aquele lugar, ainda hoje eu chamo de São Cristóvão, um nome usado na época, podia ser ruim, mas a tal da Lagoinha, situada num ponto mais central era ainda pior, com suas oficinas mecânicas, suas casas velhas e decadentes, seus ambientes de má fama. Mas o que meus filhos me dizem agora é que morar na tal da Lagoinha virou coisa chique, mas eu cá tenho minhas dúvidas e prefiro continuar afirmando que nossa residência foi, na verdade, no bairro que leva o nome do santo.
Conto agora uma lembrança de tal época de minha vida, reavivada com a ajuda do Otávio Augusto, que parece ter chamado para si o papel de memorialista da família.
Um dia, o inesperado aconteceu em nossa casa, na rua Juazeiro, na Lagoinha, digo, São Cristóvão. Uma família inteira nos chegou, com malas, caixas e até mesmo sacos. O pai ficou pouco por ali, saiu para tomar providências, pois estavam apenas de passagem. A mãe era uma matrona loura e corpulenta, de um tipo físico completamente diferente do nosso, de natureza alemã ou russa, não sei bem. Falavam outra língua, pelo menos entre eles. As crianças, que me chamaram especial atenção; eram três. Um pequetito, talvez nos seus quatro anos, se muito, figurava doença aguda, a inspirar permanentes cuidados da matrona. Encatarradíssimo, febril, choraminguento, tinha um aspecto miserável, em que pesassem seus cabelos louros, quase brancos e as bochechas muito vermelhas. Vestia um pijaminha de flanela bastante puído e sujo, com marcas evidentes da longa viagem que o trouxera até ali. A menina do meio, por alguma razão me marcou pouco, a não ser pelo linguajar incompreensível, que mantinha com a mãe e os dois irmãos. Se falou alguma coisa em português – pode ser que tenha falado – não me recordo mais. Lembro-me apenas que a coitadinha tinha perebas por todo corpo, mas parecia não sofrer e nem mesmo se dar conta disso. Já a filha mais velha, esta sim, era uma figura marcante. Loura, alta, esguia, com os cabelos lhe batendo na cintura, mostrando gestos enérgicos de quem dispunha, na família, do estatuto de uma segunda mãe para os irmãos mais novos. Teria seus quinze anos, talvez. Vestia-se de chita, bem à brasileira, mas com aquele porte e o longo cabelo louro, lembrava uma camponesa europeia, se não uma personagem de contos de fadas. Melhor dizendo, parecia um anjo – e agia como tal, socorrendo e consolando os irmãos mais novos, adoentados.
Era uma família estrangeira, cujo chefe era amigo de meu irmão Ricardo, tinham trabalhado juntos em Tavira, e agora eles, vindos do Norte do estado, rumavam para São Paulo, para tentar uma sorte melhor em outras bandas. Estiveram conosco não mais do que uma parte de manhã e uma tarde, depois seguiram seu destino.
O pai, Jorge, nome provavelmente abrasileirado, havia morado em Tavira por algum tempo, onde conheceu meu pai e outras pessoas da família. Eram imigrantes europeus, judeus, talvez; russos, depois se soube. Seu Jorge era agrônomo de profissão e foi nessa condição que arranjou colocação em Tavira, onde, como se sabe, havia oportunidades diversas, antes que a Companhia tomasse conta de tudo. Aquele homem era muito culto, empreendedor, inquieto, de personalidade marcante, tanto que saiu de nossa terra, foi para o norte, depois para São Paulo, como naquele momento. E talvez não tivesse parado por aí.
Passaram-se uns 10 anos em que não tive qualquer notícia deles, até que um dia… Naquele tempo, tinha uma espécie de concurso de beleza e simpatia (nada de misses de maiô!), ao qual se dava o apelido de glamour girl, que revelou uma moça especialmente glamourosa, loiríssima, muito alta, esbelta, olhos azuis faiscantes, poliglota, intelectualizada, cheia de personalidade. Ao ver aquele anjo na TV logo percebi que era ninguém menos do que a filha de Seu Jorge. Antes de revelar o nome dela, outra lembrança: anos depois, vendo o programa do Chacrinha, lá estava ela de novo: Elke não sei de quê, depois conhecida como Elke Maravilha!
Aqueles anos 60 foram uma década movimentada e conto agora mais duas aventuras de então. O Jorge aos poucos se firmou como empresário de transporte e desfez a sociedade com o pai e irmãos e foi trabalhar sozinho, agora com uma nova linha, ligando um bairro ao centro da cidade. Neste momento, claro, fizemos nova mudança, indo morar agora no bairro aonde o ônibus chegava. Era um apartamento térreo, não mais alugado, mas nosso de verdade, a primeira residência própria que tivemos, e foi ali, nos finais de turno, ou seja, início e final da tarde, que os cobradores (naquele tempo chamados de trocadores) dos ônibus de nossa empresa vinham fazer o acerto de contas, da maneira mais tosca possível: eles traziam a montoeira de fichas de plástico que os passageiros recebiam ao pagar a passagem e depositavam em uma caixa ou cofre, ao lado do motorista, ao saírem. Não havendo as roletas que só apareceram depois (sendo então chamadas de borboletas), as tais fichas tinham que ser contadas para que se conferisse a féria do dia. Pois bem, eu me tornei responsável por tal contabilidade, que envolvia receber as fichas, contá-las, como também receber e conferir o dinheiro correspondente, o que frequentemente trazia a polêmicas (que eu tinha que resolver) por desacordos entre a contagem das fichas e o valor apresentado pelos cobradores. Em tal tarefa eu contava com a ajuda dos filhos mais velhos, que manipulavam aqueles pedacinhos de plástico. Enios Marcus se tornou um exímio empacotador de tais fichas, fazendo, com folhas de jornal, caprichados cilindros de 50 delas, que no dia seguinte eram entregues aos cobradores, repetindo assim a operação.
Era um serviço, por assim dizer, sujo, pelo menos do ponto de vista físico, pois após contar o dinheiro que chegava de sete ou oito daqueles cobradores, minha mão ficava horrorosamente encardida, ainda mais tendo nelas a sujeira de dinheiro vivo, que como se sabe é das coisas mais contaminadas que existem. Depois do expediente tinha que lavá-las por minutos seguidos, para que ficassem realmente limpas. Esta foi a maneira como eu pude ajudar os negócios de meu marido e disso não me arrependo, embora creia que a minha lida direta com a criação dos filhos tenha sido a colaboração mais essencial que pude prestar à família, principalmente considerando a qualidade do resultado disso, coisa de que muito me orgulho.
A outra aventura foi a seguinte: em 1957 descobri que estava, mais uma vez, grávida. Eu não esperava por aquilo, embora não tivesse tomado maiores providencias a respeito. Julgava que aqueles quatro filhos, Otávio Augusto, Enius Marcos, Jorge Jr e Monica, me bastavam. Foi uma gravidez mais complicada que as anteriores, não pela minha idade, eu não havia nem chegado aos trinta anos, mas talvez por outros fatores, principalmente a vida trabalhosa que eu levava, seja com os filhos ou com a colaboração nos negócios do Jorge. Mas aquelas complicações não foram nada perto do que viria depois. O parto foi por cesariana e depois dele me apareceu um abscesso na parede abdominal, o que me fez permanecer internada em um grande hospital por várias semanas, não me lembro quantas mais. Foi um horror, porque naquela época não havia ainda grande evolução da medicina, nos antibióticos, por exemplo, e eu realmente passei por maus momentos, com o Jorge e a família achando que eu iria morrer. Mas escapei, por pouco. Por sorte, assim como iria acontecer outra vez, uns pouco anos depois, a rede familiar, formada principalmente por minha mãe e minhas irmãs, se fechou em torno da minha casa e de meus filhos. Ai de mim se não fosse essa família tão próxima e solidária que sempre tive! Não é por acaso que meus filhos tiveram, ao longo da vida, uma relação muito amorosa com esta avó e tias queridas, que aliás se estende até hoje, com os filhos deles igualmente ligados a elas. O melhor de tudo foi que esta minha filha mais nova, Clara, apesar de seu nascimento tumultuado, acabou se transformando numa moça muito bonita, inteligente, que fez um bom casamento, tem filhas lindas e se transformou em meu anjo da guarda na velhice, com a vantagem de representar para mim quase que uma coleguinha, como as mais próximas que tive no Sacré-Coeur de Marie na minha adolescência,
Depois que me recuperei dessa cirurgia, nossa vida foi aos poucos se ajeitando, embora eu não pudesse desconfiar que viriam coisas piores pela frente. A primeira delas foi a morte de meu pai, em 1961, de câncer. Como eu poderia imaginar ou aceitar que um dia ele pudesse morrer, um homem como aquele tão forte e presente, que criou aquela penca de filhos e fez tantas coisas acontecerem na sua e na nossa vida? No caso do Dr. Augusto, o que era um pequeno mal estar se agravou em poucas semanas e a medicina da época pouco pôde fazer para aliviar a devastação que aquele câncer causou. Foi apenas a primeira morte de uma sequência, nos mesmos anos 60, depois dele vieram meu irmão José Márcio e nosso sobrinho Lucas, em um mesmo e estúpido acidente; Dr. Arnoldo, que era muito amigo de meu pai e seu cunhado predileto; vovó Tetê; nosso tio Zeca e boa parte, se não todos, dos meus tios avós maternos e paternos.
Mas o destino ainda me reservava uma rasteira: com um pouco mais de 30 anos fui acometida de uma doença neurológica, a síndrome de Guillain-Barré, que foi subindo, ao longo de poucas semanas, por todos os meus músculos, da cabeça aos pés. Era um quadro pouco conhecido à época, o diagnóstico demorou a ser feito. Otávio Augusto mais uma vez registrou isso em suas memórias, quando fala da visita semanal que me faziam no Hospital da Baleia: Lá no final, além dos morros da Pompéia, depois mesmo do Cemitério da Saudade (triste augúrio), longe o bastante para provocar em nós a sensação de que ela agora vivia em outro mundo”. Ele conta ainda que o que mais lhe impressionava, além de ver a mãe em um hospital, cercada de gente com problemas ainda piores que o dela, era saber que, entre outras torturas, me haviam feito vários exames do “líquido da espinha”. – Para o coração infantil, não podia haver nada pior>> Ao mesmo tempo, repete-se a cena que já era conhecida na família: <<Tudo tem sua compensação: tínhamos agora bem perto de nós algumas pessoas muito queridas. Além de nossas tias e tios, nossa avó , recém viúva , em uma morte que aumentava mais ainda o nosso desalento. Das tias que vieram cuidar de nós, duas iriam se transformar em figuras familiares essenciais, a quem até hoje dedicamos boas lembranças e carinho: Ceci e Angélica.
Mas aqueles meninos sobreviveram… Otávio Augusto ainda se lembra de um fato da época, com um toque de nostalgia e humor: Quando nossa mãe voltou para casa, já parcialmente recuperada, mudamos para um apartamento térreo, para fugir da escadaria de onde até então morávamos. Nos primeiros tempos ela se locomovia em cima de uma cadeira comum, adaptada sobre uma plataforma de madeira, com rodízios de rolamentos – um verdadeiro carrinho de rolimã, com o assento elevado. E assim era ela empurrada alegremente por nós, que até disputávamos a primazia de empurrar e conduzir aquele estranho veículo”. E conclui: <<De uma casa a outra; da mãe ativa que possuíamos até aquela de repente tão dependente; do abandono de uma velha turma de rua ao encontro de um vazio afetivo – uma coisa é certa: a gente se virou e amadureceu meio à força. […] Sorte nossa que a rede familiar cuidou de tudo. Mais uma vez, como havia acontecido no nascimento tumultuado de minha irmã mais nova, a tal rede familiar se abriu e nos abrigou. E eu e meus irmãos tivemos a sorte de não termos apenas um tio legal e camarada, mas uma tropa deles, com especial destaque para as irmãs de minha mãe .
Foi uma época dura aquela, mas enfim, todos sobrevivemos – eu, Jorge e eles, graças a Deus.
Para comemorar fomos todos conhecer o mar, numa viagem a São Paulo, a capital e depois a Santos. Essa viagem teve um momento curioso, quando Jorge ligou para um casal de primos dele que já viviam em São Paulo há muitos anos, para que nos hospedássemos com eles. Não éramos poucos, um casal e mais cinco filhos, embora Clara tenha acabado por ficar com minha mãe em BH. Pois bem, Jorge ligou e depois me contou que após anunciar seu intento, seguiu-se um longo silêncio do lado de lá da linha, que ele interpretou como uma grata surpresa por parte dos anfitriões. Mas no meu entendimento era outra coisa: um grande susto mesmo. E lá fomos para São Paulo, em uma longa viagem que durou do começo da manhã até a noite: eu, Jorge e os quatro filhos, todos acomodados numa Vemaguete. Mas valeu a pena. Além do mar, conhecemos a escada rolante; a novidade até então desconhecida em BH chamada túnel (que as crianças adoraram); uma diversão que então se chamava Cinerama, além de circularmos por aquela cidade imensa, perto da qual a nossa cidade, grande para nós, não passava na verdade de uma rocinha.
Aproveitando o ímpeto viageiro fomos também a Tavira, onde eu não ia há alguns anos. Logo na entrada da cidade uma cena inesquecível: quando olhei para o horizonte situado lá adiante deixei escapar uma frase que entrou para a história, para a nossa história, pelo menos: – gente, cadê aquele pico da montanha? Sim, o monte que dominava boa parte do horizonte em minha terra e que acompanhou minha vida desde sempre tinha desaparecido, deixando um vazio enorme no contorno da cidade, por obra e graça da eterna Companhia.
A década de 60 teve outra característica marcante. Meus filhos entraram nela crianças, Otávio Augusto, o mais velho, com apenas 12 anos, e na virada dos 70 já eram adultos, este aí já quase se formando como médico, Enius Marcos na Faculdade de Medicina, logo seguido pelos demais, em cursos universitários. Aliás, a minha doença nos primeiros anos, que poderia ter sido ainda mais trágica para eles, longe de desviá-los do bom caminho os tornou ainda mais responsáveis e maduros. Tenho realmente a sensação que os mais velhos, pelo menos, nem chegaram a experimentar uma adolescência verdadeira, pulando da infância para a idade adulta em pouco mais de três ou quatro anos.
Anda nesta época, Jorge Jr nos trouxe uma grande preocupação, pela sua participação em movimentos políticos contra a ditadura. Pobre do meu filho, preso e torturado pelos militares, numa agonia que durou vários meses, até ser finalmente absolvido. Mais uma vez ficamos devendo à rede familiar um grande apoio, especialmente a meu irmão mais velho, Vinicius, de quem já me lembrei aqui, que moveu mundos e fundos dentro de suas relações e liderança política para salvar meu filho.
Foi uma década de enormes transformações. Lembro-me especialmente de certo dia em dezembro de 1969 quando eu, tendo acordado como de costume mais cedo, ao escutar o que o rádio anunciava, fui acordar os meninos com a terrível notícia que a partir daquele dia tínhamos a formalização da ditadura no país, com a emissão do AI-5. Não lhes levei tal notícia como militante ou cidadã, mas principalmente como mãe, preocupada com as posições políticas que eles, um após outro, foram assumindo na vida.
Nos anos 70 o rimo das novidades não se arrefeceu. Otávio Augusto virou médico, Enius Marcos lhe seguiu os passos logo depois. Otávio se casou com Elaine, um casamento aparentemente precoce, mas envolvendo dois seres muito maduros e responsáveis, que seguiram carreiras médicas bem sucedidas, na capital e depois no interior, numa cidade que se transformou em uma espécie de segunda sede da família e para ali fomos, a passeio ou para dar uma ajuda com as crianças nas viagens do casal. Jorge, que adorava procurar parentes em toda parte, descobriu até um ramo da família nesta cidade e se tornou até amigo de alguns deles. A sequência dos casamentos prosseguiu, com Enius Marcos, que encontrou esta joia de pessoa que é minha nora Luiza. Depois, Clara e Jesuíno, Monica e Mario, além (de modo mais informal) Jorge Jr e Vanessa. Meu marido Jorge, passando dos 50 anos de idade já não conseguia arranjar trabalho, se transformando assim em desempregado permanente. Otávio Augusto e Elaine, os únicos a emigrar, foram trabalhar primeiro em outro estado e depois no interior e nunca mais voltaram a morar na capital, embora mantivessem a cidade como uma base familiar e afetiva desde então, da mesma forma que os filhos deles. Otávio Augusto, separado de Elaine há muitos anos, depois se mudou para Brasília.
O melhor de tudo, entretanto, ainda estava por acontecer: a chegada sequencial dos meus netos, cuja conta até já perdi. O capítulo dos bisnetos, inaugurado recentemente me é também muito emocionante e se ainda tiver tempo, cuidarei dele.
Dessa época feliz de nossas vidas trago aqui uma outra memória, emprestada por Otávio Augusto, que envolve casas, comidas e um piano, o qual, por incrível que pareça, já fui capaz de “pilotar”. Saboreiem!
Quando visitava a casa de meu irmão, durante algum tempo, cumpria um ritual que sempre me dava grande prazer: enfiar a cabeça na caixa vertical aberta daquele piano Pleyel que nós todos conhecemos e aspirar com sofreguidão o cheiro de madeira velha, tão peculiar, que entrava ano, saía ano, continuava ali guardado. Então me penetravam os sentidos um sem número de aromas e sabores que marcaram minha infância, na casa ancestral de nossos avós maternos, além de outras casas da família. Recordo-me disso, ao iniciar estas linhas, para deixar claro que tenho uma tremenda memória para coisas assim. Dizem que eu tenho uma memória enorme para fatos, não sei bem se é assim, mas das comidas, dos sons e dos cheiros de minha infância, realmente não me esqueço.
Entre outras alegrias, creio que tivemos, meus irmãos e eu, uma infância marcada pelas boas comidas e também por bons rituais em torno delas. Uma de minhas lembranças mais antigas é a da fabricação de goiabada na chácara de meu avô, em uma pequena cozinha anexa, na qual um fogão de lenha foi preparado com um tipo de cavidade em formato de bacia, na qual se encaixava perfeitamente o tacho de cobre adequado ao mister. A pasta espessa, de tom marrom avermelhado, mexida com longas colheres de pau, em inquieta erupção que formava crateras aqui e ali, logo se desmanchando, compunha um espetáculo inesquecível. Às crianças era permitido, apenas, observar de longe, pelo risco de queimaduras. Mas mesmo assim, era muito divertido. E melhor ainda ficava quando, ao final, éramos autorizados a degustar a “rapa”, nos próprios tachos já resfriados. Uma história da época: um dos meus irmãos, o mais novo, ao ser solicitado informar qual o doce que mais o deliciava, não teve dúvida: é a rapa!
Mas goiabada era apenas uma das delícias, entre tantas outras. Sempre gostei muito do doce de laranja em calda, iguaria um tanto amarga e nem sempre apreciada pelas crianças, mas que eu, desde sempre, amava. Aliás, deve ser por isso que aprendi a fazê-lo (acho que até razoavelmente) e até me meti a poetizar sobre o mesmo. Melhor ainda quando o doce de laranja-da-terra era moído e transformado em pasta de se cortar, a laranjada, que anda desaparecida das mesas da família. E neste terreno das frutas, tínhamos do que gabar: doce de banana seja em pasta, em calda queimada, além da tradicional banana frita com canela e açúcar; doce de figo, em calda e em pasta (delícia!); doce de mamão, de espelho, em talhadas, enroladinho, com rapadura, etc. Aliás, do mamão se fazia doce até do miolo branco do tronco do seu pé. E mais, doce de carambola, geleia de jabuticaba (na Chácara tinha apenas uns trinta ou quarenta pés dela), doce de manga. E se espremer a memória ainda vou me lembrar de mais especialidades…
Havia também certo tipo de doce, modesto em sua origem, mas igualmente de eterna e adorável lembrança. Era aquele que resultava do aproveitamento de determinados alimentos, uma espécie de subproduto dos mesmos, mas que apesar disso era saboreado em clima de festa. Lembro-me, especialmente, do doce de leite talhado – vocês se lembram: encaroçadinho, meio ácido, queimado na medida? Uau! E não pode ficar de fora dessa lista a banana em calda, da qual falei acima, uma especialidade de minha mãe, que dava àqueles pedaços de banana caturra, que de outra forma iriam para a lata de lixo, o auxílio luxuoso de uma calda de açúcar moreno-dourada. Tinha também o arroz-doce, mas este, coitado, acabou deixando lembranças menos agradáveis, pelo menos para mim, não sei se para meus irmãos.
A história do arroz-doce é a seguinte: Clara, nossa eterna caçulinha, foi acometida durante seus primeiros anos de vida de dores de barriga atrozes (para ela e para os circunstantes…). Assim, a receita da época – e creio que ainda de hoje, que nos confirmem os pediatras da família – era ministrar aos pequenos doentes alguns litros de água de arroz por dia. E este produto, como sabem, provém do cozimento do arroz, que sobra no processo. Em nossa casa não sobrava pois era transformado em arroz doce. E tome arroz doce. Não tínhamos o privilégio, à época, de sobremesa doce todos os dias (Dona Otávia, não se sinta autoritária e ranzinza, isto é um must dieteticamente correto nos dias de hoje!), mas com o arroz-doce era outra história: podíamos comê-lo à vontade. Só que com pouco tempo, sobrevinha um efeito de overdose e ninguém mais queria saber dele. Mas agora, tantos anos passados, eu daria tudo para comer daquela sobremesa de novo! Portanto, Clara e Tavita, não precisam ter crises de consciência só por causa disso…
E por aí vão minhas memórias gastronômicas… Para ficar no apenas no trivial, evoco aqui as lembranças de rabanadas, ovos nevados, pavês, docinhos de damasco, fatias de amendoim, pudim de pão (injustamente alcunhado de engasga-lobo), amor-em-pedaços, broinhas de milho, casadinhos e outros biscoitinhos diversos, além de tanta coisa mais. E olha que meus quilos a mais e a meu pâncreas de menos me dizem que não convém exagerar nos doces! Mas tem também o capítulo dos salgados – não menos refinado e variado, que vai do simpático maneco-sem-jaleco (as novas gerações nem suspeitam do que seja), passa pela proverbial torrada com pasta de espinafre com queijo e ovo (que depois ganharam o nome de bruschetas), até chegar ao grande momento da sopa de bolinhas de queijo, para não falar das costeletas de porco fritas, da canjiquinha, do creme de milho. Ah, sim, não me esqueci da proverbial queca (cake) de Tavita, apenas deixei-a para ser homenageada no final: divina, maravilhosa, suculenta, olorosa, sofisticada – cabem nela tantos adjetivos quantos são seus ingredientes.
É duro ser diabético nesta família. Ainda bem que a natureza me deu vinte e dois anos para aproveitar tantas comidas condignamente! E eu confesso que não perdi tempo. É bom ter apetite; é bom ter estas comidas ao nosso alcance, inda mais agora com essas Receitas de Otávia Augusta à mão; é bom pertencer a uma família onde estas coisas são cultivadas e apreciadas e já vão passando através das gerações, como bem o atestam outros membros mais do Clã. Parabéns para Dona Tavita parabéns para nós todos! Bom apetite!
E assim entre sabores e dores, amarguras e delícias, o final do século foi chegando. Li uma vez, em algum lugar (ou então ouvi falar, não sei bem) que alguém criou a expressão “fim da história” para este momento da humanidade. Fiquei pensando: será que a minha história também estava sendo finalizada? Tudo indica que não, pois já passaram 25 anos desde a virada do calendário e eu continuo por aqui, cada vez mais fraca, mais sem ideias, mais desorientada – mas continuo. O que mudou, talvez, seja meu desejo de continuar vivendo. Acho realmente que já seria hora de eu descansar, aliás, descansar da vida e minha família descansar da minha presença entre eles. Para que isso aconteça, e que não demore a se realizar, não deixo de rezar para minha santinha querida, Nossa Senhora da Conceição, todo dia.
Na verdade, não tenho dúvidas que minha história não acabou com o final do século. Ainda pude ver muitas coisas boas (outras nem tanto) acontecerem. Por exemplo as realizações profissionais dos meus filhos, por exemplo, com Otávio Augusto e Jorge Jr alcançando sucesso político como secretários de saúde em suas cidades; Enius Marcus e Luiza repetidamente homenageados pelos formandos na Universidade onde são professores; Clara, mesmo tendo deixado sua formação de lado, brilhando como publicitária e depois como empresária ao lado do marido; Monica, que fez carreira brilhante no Judiciário. Hoje vejo, muito feliz também, os filhos deles, meus netos, seguirem por caminho semelhante.
Entre as coisas ruins, a separação de Otávio Augusto e Elaine, e depois a de Jorge Jr e Vanessa. Já sofri muito por isso, mas hoje penso que são coisas normais e previsíveis, fazem parte da vida, desde sempre, de forma diferente de antigamente, quando representava, simplesmente, o final dos tempos. Felizmente evoluímos… As minhas preocupações, entretanto, não terminaram, com a doença de Enius Marcos e, em maior ou menor grau, com as mazelas que a idade vem trazendo a todos os meus filhos, todos já com mais de 70 anos ou chegando lá.
Já ia esquecendo de contar minha grande realização nesta época, que foi a viagem que fiz a Toronto, para encontrar Enius Marcos e família, que viveram lá por uns tempos. Sem saber uma palavra de inglês, muito intimidada e já sofrendo de algumas dificuldades de marcha, fui (e voltei) sozinha, sã e salva. Enfim, deu tudo certo. Penso que essa foi minha grande aventura e me lembro dela até hoje com emoção e com o forte sentimento de ter alcançado algo que julguei que nunca seria capaz.
Pois é, se minha história não acabou, ainda estou aqui. como diz aquele filme ou, pelo menos, minha vida segue. Se pudesse fazer a roda da vida girar ao contrário… Sei que é impossível, mas acho que eu poderia ter sido uma mãe diferente, mais paciente, mais tolerante, do jeito como meus filhos hoje agem com os filhos deles, hoje. Mas isso também me traz realizações, com a sensação de que sou parte dessa verdadeira evolução da qual eles fazem parte e são agentes. Acho que poderia ter sido uma esposa melhor para o Jorge, mas é claro que ele também poderia ter feito melhor a parte dele. Uma coisa, entretanto, é certa e disso me penitencio: creio que na vida minha vida não consegui ser eu mesma e não lutei o suficiente pela minha autonomia e liberdade.
Hoje acho que sonhei com Nossa Senhora. Nem tenho certeza se foi um sonho realmente, pois era tudo tão nítido. Ela não chegou numa nuvem, nem rodeada de anjinhos, mas sim como uma pessoa comum como eu, como qualquer outra. O que a distinguia, de fato, era uma aura, um brilho especial, sei lá, uma coisa assim. Ela falou para mim, de maneira calma e doce: vem comigo, Otávia Augusta, minha Otavita tão querida, você sempre foi uma guerreira, você merece muito. Mas justo nesta hora, acordei. Mas foi um sonho e tanto. Bem que podia ser real.
E assim me despeço. Obrigado a vocês que porventura tenham lido até aqui.
*** FIM ***
