A paciente do leito catorze

– Doutor Belisário, a paciente do leito 14 quer falar com o senhor.

Lá vem Dona Julia de novo, ela adora arranjar tarefas para mim, sempre é isso. Aliás, todo mundo aqui no hospital parece que precisa falar comigo… E nesta enfermaria de desenganados é pior ainda. O que será que essas pessoas esperam de um médico? A capacidade de fazer milagres? A verdade é que para alguém que se mete neste raio de especialidade da oncologia, não poderia ser diferente. A culpa é mesmo minha… Bem que a minha mãe dizia, meu filho essa coisa que você escolheu para trabalhar vai acabar lhe fazendo mal, você devia ser ginecologista, ou quem sabe pediatra. De fato, acho que já está me fazendo mal, muito mal, depois de 10 anos inteiros vendo gente morrer. E sofrer. E o que é pior, pessoas chegando a mim como se eu tivesse um poder mágico de lhes restituir a vida, a saúde, a normalidade. Isso é para os fortes e eu começo a ver que não é, definitivamente, o meu caso. E que diabos, a paciente número 14 tem nome! E se chama Letícia…

Mas o caso dela é especial, para mim, pelo menos. Eu sei disso muito bem e não deixaria de chegar até lá, só não quero dar a impressão de que tenho alguma preocupação diferenciada com Letícia a Dona Júlia, enfermeira chefe e intrigueira-mór, que há pouco me fez tal aviso, quase uma ordem.

Um bom médico deve ser, antes de tudo, um forte. Será que isso é verdade? Para ser sincero, acho até que já fui bem forte. Quando eu era estudante, pelo menos. Tinha aulas de manhã e de tarde e à noite ainda cumpria pena, ou melhor, dava aulas em um cursinho. Meu fim de semana só começava às seis horas da tarde de sábado, depois de dar a última aula no famigerado Curso Darwin. Depois, era tomar um banho (depois de tomar um ônibus…) e então partir para os braços da namorada. Só para os braços, nada mais – e talvez uma ou outra apalpadela aqui e ali – pois a dita cuja ainda vivia em era pré-revolução sexual e estava determinada a se casar virgem. Sem dúvida, era coisa para os fortes, mesmo. 

Era levar essa vida dura ou voltar à dependência de meu pai, sem outra opção, pois para o gosto do velho eu deveria trabalhar em algum banco ou escritório comercial, para dar algum alívio no orçamento da família. Se isso tivesse acontecido, seria atrás de um guichê que eu estaria hoje em dia. Felizmente resisti e passei no vestibular logo na primeira tentativa. Se não, já viu, né, onde eu estaria hoje.

Pensando bem, estaria melhor em algum lugar onde não houvesse tanta gente sofrendo e morrendo assim tão próxima a mim. Pois é, por esses dias ando meio pessimista mesmo ou, pelo menos, bem longe de me sentir uma pessoa forte.

Mas eu falava dos tempos de faculdade. Bons tempos aqueles, em que pelo menos eu era jovem e me achava capaz de enfrentar todas as tempestades. Eu me lembro, por exemplo, de uma criança com uma febre obscura que acompanhei por uns tempos em uma enfermaria de clínica médica que eu sapeava (gíria da época). A menina só definhava, semana após semana, sem que os doutores descobrissem a causa daquilo. Eu, muito menos… Aliás, nunca descobriram, a pobre morreu depois de algum tempo de internação – sem qualquer espécie de diagnóstico, só conjecturas infundadas. A colega que fazia par comigo logo se tomou de dores e de cuidados por aquela criança, chegando a chorar por ela, na vista de todos. Ao perceber suas reações, fiz valer minha alma de futuro médico, forte e durão – desse jeito amolecido você não vencerá na vida.

Mas era tudo engano, penso, aquilo era só uma casca, dura e grossa na aparência, mas por dentro o que havia era pura geleia. Não sei se isso se dava apenas pelas mazelas das outras pessoas ou pela minha própria opção de estar ali naquele local e naquela profissão onde imperam a degeneração e o sofrimento.

Pensando bem, não consigo definir muito bem o sentido das mudanças que experimentei na vida. Por exemplo, no exercício de saber sentir as dores alheias e prover cuidados para os outros, como aquela minha colega de enfermaria, 40 anos atrás. Fico a pensar: será que em algum momento cheguei a tal ponto ou, pelo menos, passei por isso? Não sei dizer.

– Doutor Belisário, falta preencher o atestado de óbito do paciente que faleceu ontem. Ah, minha filha, um dia todo mundo morre. Até eu e você! Deus me livre, eu não falaria isso, longe de mim. Mas confesso que às vezes penso em coisas assim. Vida besta, tão fácil essa coisa de morrer. Tem gente que é tão morredeira… Tia Balbina, por exemplo, com pouco mais de 60 anos, sadia como um coco, foi dormir e não acordou mais.

A falecida da vez é a Julieta. Pobre moça. Vinte e poucos anos de idade e um carcinoma uterino de todo tamanho. Nunca vi coisa igual. Chegou aqui há uns quinze dias trazida pelo marido, que fez questão de subir com ela até o leito, depois da admissão no Serviço Social. Um casalzinho jovem, ele da mesma idade, um filho recém-nascido, gente pobre, porém cheia de planos. – Ela vai ficar poucos dias, né? Foi o que aquele moço, em seu uniforme da limpeza urbana, perguntou várias vezes para mim e para as meninas da enfermagem, mais para se tranquilizar do que para a própria esposa se sentisse protegida. Oh céus, como responder com sinceridade uma pergunta dessas? Quanto dias demora? Para ir embora ou para morrer? Porque Julieta é um caso sem cura, sem esperança de qualquer espécie. Sem resposta sincera possível. E para nós médicos e enfermeiros – e mais todo mundo por aqui – parece que entre as nossas obrigações está a de mentir. Não aprendi a fazer isso de forma correta até hoje. Na faculdade bem que tentaram me ensinar… Confesso que às vezes apenas fico em silêncio, ou balbucio qualquer coisa que ninguém entende. Aliás, já reparei que o respeito desses pacientes pelos doutores é tão grande que a maioria das vezes nem tentam compreender ou indagar o que significa o balbucio ou o latim que nós falamos, para também nos defendermos – ou para mostrar nossa reticência a qualquer intimidade.

Intimidade? Proximidade? Isso não está no nosso léxico, nem com os pacientes nem com quem trabalha ao nosso lado, de cotovelos quase encostados aos nossos. O que há de fato, apenas uma vez por ano, é aquela falsa festa de amigo oculto (nem amigo e muito menos oculto), em que fingimos ter todo amor pra dar uns para os outros. Puro fingimento, acho que a maioria se detesta. Ainda há poucos dias duas enfermeiras saíram no tapa e no ano passado o Miguel, um pária entre os médicos chegou a cuspir na cara de um colega, todos dois acabaram demitidos, era o mínimo que deveria acontecer.

Mas eu falava da Julieta… Quantas vezes dramas deste tipo chegam até nós. Mas somos fortes ou, pelo menos, é nossa obrigação se mostrar assim e a gente não pode se deixar comover por tais dramas. Esta Julieta, por exemplo, tem um filhinho de seis meses, que ainda mama. A camisola que ela vestia quando chegou tinha a parte da frente molhada de leite não aproveitado. Leite que vai se perder todo, sem apelação, logo que começar a quimioterapia. E o coitado do esposinho perguntando quando é que ela volta para casa… Dá vontade de falar para ele que volte ele mesmo, bem depressa, à procura de uma ama de leite, ou pelo menos de uma boa sogra, comadre ou avó para cuidar do rebento, que ele, em seu uniforme laranja, certamente não terá condições de fazê-lo.

Assim corre a lastimosa existência de todos por aqui. É isso, um dia sim e o outro também. Enquanto isso a vida segue, com poucas alegrias, algumas paixões e muitas tristezas, além das contas a pagar. Na verdade, ninguém liga de verdade para essas células em louca multiplicação, essa subversão da arquitetura dos tecidos, essas drogas que matam indistintamente tanto as partes do corpo sadias como as enlouquecidas e fazem muitas vezes o tratamento ser ainda pior do que doença que se pretende curar.

E agora, além de tudo, alguém vai ter que dar – e não demora muito – a notícia ao pobre gari. Tomara que não seja eu e sim elas, as meninas do Serviço Social, que afinal são treinadas para isso. Que a tarefa fique com elas, não me ensinaram isso na faculdade. Já me pediram coisa assim certa vez, para ir na casa de uma família que tinha perdido três pessoas num acidente e a vovozinha deles precisava ser avisada. Tinham medo que ela própria batesse as botas com a notícia. Não tive como recusar, mas demorei o quanto pude a me mover de onde estava. Foi minha sorte, porque quando cheguei na casa da avozinha, como más notícias sempre se propagam, ela já sabia de tudo e estava consolando a todos com palavras, com um chazinho. Coisa que nenhum médico, mesmo um oncologista como eu, tão especializado em morte, sabe fazer.

Pois é, Belisário: é preciso ser forte e não um sujeito abananado como você… No mínimo, rijo como aquela velhinha de 90 anos. Será que eu chego lá? Acho que não, infelizmente.

– Quer que eu lhe traga um café, Doutor? Esta é a Soninha, estagiária. Acho que estuda fisioterapia, terapia ocupacional ou algo assim. Boazinha que nem ela só, parece ter dó de todo mundo, principalmente desses condenados daqui. Tudo bem, o mundo precisa de gente assim. Se fossem todos feitos no mesmo molde meu, resistente a qualquer afinidade com os semelhantes, tudo estaria perdido. Mas essa aí, não… Se acho que sou banana, minha moleza é feita de aço inoxidável perto do jeitinho dela. E essa história de me oferecer café cada vez que vai à cantina do hospital… Dá vontade de lhe alertar: – olha minha filha, tome tento, você não está aqui pra isso. Vão acabar falando mal de você, esses intrigantes!

Lá vai ela agora, levando a mulher do sarcoma ósseo ao banheiro. Nossa! Como é bem disposta esta criatura!

Soninha parece que foi com a minha cara. Ainda ontem desceu para lanchar e me trouxe uma maçã. Com o Teixeira, que é o cara mais carrancudo que eu conheço, é toda gentileza, apesar de ele mal olhar para a cara dela. Já percebi que a Dona Júlia, a enfermeira chefe a discrimina visceralmente. Coitada… Mas a verdade é que essa megera não é de agradar ninguém, ela é uma pedra de sal em Gomorra.

Fico com pena da Soninha porque vejo uns e outros por aí tentando se aproveitar dela. O sacripanta do Gomes, o operador do RX, por exemplo, famoso por não poder ver rabo de saia por perto, fica como uma sarna na cola dela. Até eu, no começo, comecei a gostar do chamego que ela transpirava, mas felizmente me contive. Aliás, já foi o tempo que eu me mobilizava com coisas assim, como aconteceu com aquela Célia, por exemplo. 

Nem sei porque fui me lembrar da Célia Maria (ou seria Maria Célia?) a enfermeira recém formada que chegou aqui faz um tempo. Aquela tinha charme de verdade, não do tipo popular e regateiro da Soninha, não. Era muito, como diria, chamativa também, mas de um tipo diferente, atraente, misterioso, sensual, quase perturbador. Falava com a gente quase sussurrando, a voz meio rouca. Suas saias não passavam do meio das coxas, acho que não usava sutiã, sua passagem deixava uma marca de perfume no ar. Mas com tudo isso, quem diria, era uma pedra em termos de afeto. Um dia, ao conversar com ela, segurei em seu braço, apenas para dar ênfase a alguma palavra, o que fez ela retirar minha mão de imediato, com um gesto firme e silencioso. Eu entendi. Aliás, todo mundo aqui entendia – e respeitava aquele jeito hierático, distante. Eu que era noivo da Esmeralda na ocasião, nem por isso deixei de procurar novas oportunidades de aproximação, física ou simbólica. Tudo em vão. Célia Maria era feita de titânio, ou alguma liga parecida.

Uma coisa assim, em tal padrão Célia Maria e Soninha, é que traz luz a esse túnel escuro e sem fundo que é uma enfermaria de oncologia numa espécie de benfeitoria que talvez seja até mais significativa do que a eventual cura ou a alta em boas condições de algum paciente complicado. Mas onde andará essa moça de sonhos? O que sei dela é que um dia se casou, passou num concurso fora daqui, ou algo assim, e sumiu para sempre. Mas deixou uma marca, perfumada ou de imagens, por onde passou, que essa Soninha, inocentemente, anda a ressuscitar, sem tanto charme e mistério como o de Célia Maria, claro. Mas uma mulher por perto é sempre algo de bom, ainda mais jeitosinha (para não falar outra coisa) como essa santinha de agora. Que pernas ela tem, meu Deus!

– Doutor Belisário, a farmácia precisa de uma segunda via de uma receita de medicamento controlado e quer que o senhor assine e carimbe.

Lá vem eles de novo, o pessoal da farmácia. No meu tempo de criança, farmacêuticos lidavam diretamente com medicamentos, aplicavam injeções, até receitavam. Na minha infância tinha um assim, meio primo de meu pai, em quem minha mãe confiava tanto que só levava os filhos ao médico depois de ouvi-lo. Hoje eles só sabem lidar com formulários, relatórios, computadores. Alguns dos meus colegas acham que eles querem competir conosco, os médicos, mas eu penso que deviam se levar mais a sério, sair da mesmice e se valorizar, assumindo papéis mais importantes, por exemplo, supervisionar o uso dos medicamentos nas farmácias, onde os balconistas cometem tantos abusos. E até receitar, por que não?

Pior é a enfermagem. Pelo amor de Deus, como essas moças precisam crescer não só como profissionais, também na autoestima, mas não fazem nada para que isso aconteça, só disputas contra o que elas chamam vagamente de hegemonia médica. Não é o caso de se transformarem em réplicas mal feitas de um desses doutores obtusos, ou de uma Dona Júlia, com suas pencas de chaves na cintura, seu cabelo oxigenado, seus cinquenta e tantos que ela quer fazer passar por trinta e poucos, regulando a vida de todo mundo, sumindo do mapa quando seria realmente necessária. Ela detesta ser apelidada de “dona”, preferindo “enfermeira Julia”, mas seu desejo funciona exatamente ao contrário, dada a simpatia-zero que lhe é peculiar, de modo que para todo mundo aqui – e para desgosto dela – ela é  apenas “Dona Júlia” mesmo. Também ignoro por que essa turma aceita ser chamada de “paramédicos”, apelido horrível, acho que pensam que é “para” (servir) os médicos. Mas não sou eu quem vai ensinar etimologia para elas.

Alguns colegas às vezes me dizem – é claro que de sacanagem – que eu estaria melhor como deputado, ministro, presidente ou até mesmo um ditador, para poder criar e fazer executar todas as regras que eles acham que vivo inventando, para tudo e para todos. Para não parecer complacente comigo, costumo dizer que se cuidem, que eu um dia chego lá, o que é, naturalmente, mentira, pois não tenho a mínima simpatia por mandar em alguém, muito menos em médicos, enfermeiros e outros do mesmo naipe. Acho que não nasci para isso. Mas alguém tem que colocar o dedo nas feridas do mundo – penso que esta é a minha função, sem dúvida autoatribuída, gostem ou não.

Aliás, não ligo para as opiniões desses caras. Não faço questão disso, realmente, já passei dessa etapa em minha vida. Dizem também que sou mal humorado e quanto a isso, não posso contestar. Acho que eles até têm razão, mas é uma prerrogativa minha e pretendo continuar assim.

Essa elite de branco, Deus me livre dessa gente que só sabe reclamar, da direção, da “burocracia”, do Governo, dos conselhos, de qualquer autoridade. Quando algum deles é despedido, suspenso ou de alguma forma recebe punição, independente de isso ser justo ou não, se ouriçam até a raiz dos cabelos. Eis aí uma coisa que nem me passa pela cabeça, ter que comandar uma gente assim. Quando estive na direção – e foi só uma vez que me pegaram para isso – tive que demitir um plantonista terceirizado, um daqueles rebeldes em permanente contenda por causas vazias. Os sindicalistas vieram cobrar a demissão, mas não passaram dos dez minutos de conversa comigo, porque logo viram que eu estava coberto de razão. Para encerrar a conversa naquele dia, a cereja do bolo: – você o demitiu por causa da opção sexual dele? Ora céus, me poupem, como eu poderia saber sabia das inclinações do rapaz? Isso não é da minha conta. 

– Doutor, a paciente do leito 20 parece que vai partir – e não demora…

Judith, a paciente do leito 20: outro de meus dilemas. Ela sofre de um câncer obscuro, de origem provável no peritônio, praticamente intratável, com metástases pra todo lado, até mesmo no couro cabeludo. Sofre intensamente com aquilo e tem total consciência que não há nada mais a fazer. Ela tem mais de 70 anos, é uma professora aposentada, antiga militante sindical e política, muito consciente, talvez em demasia, das coisas da vida – e da morte. Aliás, deseja a todo custo partir dessa vida, chegando a me perguntar se eu não poderia ajudá-la quanto a isso. Esta é uma pergunta que me desarticula, porque, na verdade eu também gostaria de ter, para mim, uma opção dessas, quando e se fosse o meu caso. O fato é que me vejo totalmente impedido pelos regulamentos médicos ou pelas leis do país a praticar qualquer ato desta natureza. Nos últimos dias tenho até evitado visitar a Judith, por não ter o que dizer a ela, coisa que eu fazia antes com maior disposição.

Aqui entre nós, acredito de fato no direito à vida. O que me choca é se confundir tal direito com o dever de alguém permanecer ou ser mantido vivo. Pelo amor de Deus, acho que cada pessoa deve assumir as rédeas nas decisões sobre os cuidados que esteja disposto, ou não, a receber na etapa final de sua vida. Direito de viver é uma coisa obrigação de continuar vivo contra a própria vontade é outra. Acho que devemos ter o direito de desenvolver uma noção de sentido que a vida deve ter, para rejeitá-la quando isso escapar de nossa concepção de bem viver. Quero isso para mim, antes de querer para os outros.

Não. Não penso que seja preciso amar a morte ou desejá-la, embora de vez em quando me dê tal vontade. Mas convenhamos: chega de preconceito e hipocrisia, é preciso enfrentar os fatos que rodeiam a morte, sem ideias pré-concebidas, sem medo, como parte natural da vida. Assim como se vive, um dia se morre, e a morte, afinal, deveria ser “vivida” de acordo com as aspirações e crenças de cada um, respeitando nossa liberdade e autonomia. Para mim, uma boa morte não é apenas destino, mas sim direito humano fundamental, a ser experimentado com dignidade, de forma que ninguém seja constrangido a continuar vivo sendo portador do que considera um grau insuportável de sofrimento. Acho que é bem o caso de Judith, a quem já me afeiçoei, embora nem sempre me sinta encorajado a estar com ela. Isso faz parte da penca das minhas fraquezas.

Se eu fosse religioso, me faria devoto de uma Nossa Senhora da Boa Morte, que dizem ser popular em Portugal. Tudo isso dentro de um pacote que inclui autonomia, autodeterminação, dignidade e, no limite, a tal morte voluntária e assistida. E mais a recusa a tratamentos; o direito aos cuidados paliativos, ao invés das “heroicas” experimentações terapêuticas; as funestas iniciativas que porventura venham apenas a prolongar o processo de morrer; e, finalmente, a morte assistida. Não me pejo em assumir que não desejo isso apenas para Judith ou outros pacientes, embora não possa fazer nada por eles. Insisto que desejo isso para mim também, gostaria até mesmo que meus próprios pais tivessem direito a uma coisa assim, quando faleceram de maneira sofrida, prolongada e indigna no passado.

Ai, minha pobre Judith, espero que você não saiba dessas minhas funestas elucubrações, porque não consigo lhe dar nem a atenção mercenária que você merece. Não posso fazer nada mais do que lhe assistir, de forma passiva e além de tudo covarde. É horrível isso.

 – Doutor Belisário. Doutor Belisário! DOUTOR BELISÁRIO!!! Lá vem o Agripa, que tem esta mania de chamar os colegas de “doutor”. Diz ele é que é para dar o exemplo. Finjo que não ouço, mas ele insiste. Sou obrigado a parar para ouvi-lo. Além do mais vem com essa história de apelido. Ninguém me trata por Beli, só ele, quando não me chama de Rosário. Não sei de onde ele tira tanta intimidade comigo. Aliás, ouvir é a única opção que se tem frente ao Agripa, pois só ele fala. Desta vez quer me lembrar de algo, não sei bem o quê e nem sei aonde ou quando. O que sei muito bem é que o Agripa é uma figura estranha, ou mais do que isso, é um dissimulado, que mal consegue esconder suas tendências fascistóides. Falam por aí que foi demitido até de um emprego nas Forças Armadas, dada sua insistência de atender os pacientes com um revólver sobre a mesa, além de proibir o uso de cadeiras para o cliente se acomodar. Chegou aqui, como todo mundo, aliás, por concurso, o que prova a vacuidade de tal forma de seleção, na qual a pessoa apresenta um currículo, faz uma prova, comprova que foi diplomado etc e tal. Sobre a moral, os antecedentes, sobre o modo de convivência com parceiros profissionais e pacientes, nada, absolutamente nada.

Desta vez o Agripa quer me lembrar que haverá eleições para o sindicato e como ele está apoiando um ilustre Zé Ninguém e quer pedir meu voto. Meu sorriso amarelo para ele, claro, não lhe significa nada. Ou talvez signifique, mas o cara de pau pouco se importa. Como daria muito trabalho explicar por que não votaria em tal sujeito, finjo-me receptivo, embolso os prospectos de propaganda que ele me oferece e sigo em frente. Ou melhor, tento seguir, pois ele me retém incansavelmente, para anunciar um baita churrasco em homenagem a não sei quem e me vender bilhetes de uma rifa em benefício de uma pessoa ou de alguma causa igualmente anódinos para mim.

Agripa é meu colega de turma. Nunca foi um aluno brilhante, mas sua marca mais notável era fofocar, além de namorar (ou tentar fazê-lo) colegas de outras séries mais adiantadas, vangloriando-se ruidosamente disso, como se tal fato valesse alguma coisa. Numa invasão policial da faculdade durante a ditadura militar, apregoou aos quatro ventos que enfrentara uma perseguição momentosa pelos corredores, mas depois se soube que ele foi dos primeiros a se evadir, para se refugiar na casa de sua família, que ficava ali por perto.

O pior de um tipo assim é pretender se fazer passar por uma pessoa voltada para o “social”, para as causas “coletivas”, como parece ser o caso dessa rifa que ele pretende me vender. Mas não é nada disso. Aliás, vejo que a minha turma de faculdade, com muitos pretensos revolucionários e opositores da ditadura, à época, virou um antro de reacionários e conservadores, que encaram a realidade do país de forma debochada e cínica. Certa vez me colocaram em uma daquelas listas de discussão, na qual eu consegui resistir, passivamente, por pouco mais do que quinze dias e ato contínuo caí fora. Quando me cobraram os motivos da desistência meu argumento foi de que ali havia unanimidade demais para o meu gosto eclético. E ficou por isso mesmo. 

E para culminar tão funesto encontro, um tiro de misericórdia: – Beli, tem aqui um abaixo-assinado para livrar a cara do Macedo. Você vai assinar? Eu? Nem morto! Deixei-o falando sozinho e engrolei uma desculpa qualquer, por certo ameaçava chuva e eu tinha pressa em pegar meu carro, que estava distante. Nem carro eu possuo. E ainda tinha um compromisso escadas acima.

– Doutor Belisário falta a prescrição do Leito 14… Mal me recuperei do mau astral instilado pelo Agripa e Dona Júlia, aquela harpia sempre à espreita de uma vítima, me atacou com este recado. Mas desta vez ela se deu mal, pois eu não tinha esquecido tal prescrição e mais do que isso, muito mais, queria e precisava estar ao lado de tal paciente.

E assim me pus de volta ao berço, ou melhor, ao leito 14, onde se abrigava Letícia, internada há alguns dias, pela quarta ou quinta vez, agora em fase de recidiva de uma leucemia mieloide. E não estava nada bem, com contagem de células altíssima e alguns sinais de hemorragia pelo corpo, além de provável infecção oculta. E lá estava ela, pálida, prostrada, febril, com a temperatura do corpo se revelando também através daqueles olhos que um dia eu classifiquei como de ressaca e que agora definiria como ardentes.

Mas essa história é bem mais antiga.

Eu a atendi no ambulatório, quase um ano antes, com um diagnóstico quase visível, não só no rosto como nas dimensões do baço, além de outros sinais igualmente significativos. Além da prospecção clínica, admito que aquele olhar me impressionou, aqueles olhos fundos, escuros e cheios de brilho, que denotavam alguma ascendência árabe ou mediterrânea, a me encarar de maneira inescapável. Foi logo me indagando, diante da indicação de internação: – eu vou ficar aqui por muito tempo? E eu: – minha filha, não tenho como lhe dizer isso neste momento, você vai ficar quanto tempo for necessário. E ela: – como assim? Não sou sua filha e lhe peço que defina logo essa questão, pois tenho minha vida lá fora e não posso ficar enclausurada num hospital.

A intervenção providencial e simbolicamente feminina da residente que me acompanhava trouxe os panos quentes necessários para por as coisas no lugar. A atrevida paciente não me pediu desculpas, nem nada, mas pelo menos seus gestos foram de aquiescência às minhas explicações clínicas. Passamos a ter, a partir daí, contatos frequentes, não só durante as duas semanas que ficou internada como após isso, nas muitas consultas de acompanhamento.

Nos primeiros tempos, suas atitudes eram as de um animal acuado, com aqueles olhos fundos faiscando e quase saltando das órbitas. Um dia, mudou o tom, indagando se ela viveria muito e por quanto tempo. Minha resposta foi, como de costume, evasiva, mas ela me encarando firmemente, com aqueles olhos belicosos, disse, com ousadia: – então vamos combinar, você se obrigue a me manter informada, hoje e enquanto eu estiver por aqui. Confesso que meio intimidado e meio querendo me livrar de tanta incisividade, mas ao mesmo tempo percebendo que havia ali uma espécie de proposta de pacto à qual aquiesci, timidamente, ao mesmo tempo me sentindo como se estivesse capturado por alguma armadilha.

Naquele momento me lembrei do episódio Célia Maria, mas logo percebi que o segredo daquele olhar me era ainda mais excruciante, para dizer pouco. Aconteceu, porém, que alternei a fase de me sentir capturado, que durou pouco, pelo seu oposto, a de tentar ser, de fato, o dono da situação. Na próxima oportunidade, diante de uma nova impertinência dela, fui mais incisivo e até ríspido, lembrando a ela que se continuasse a desafiar as regras do hospital e da própria oncologia que talvez fosse melhor procurar outro serviço. Sua resposta foi dura, mais uma vez: – pois eu tenho direitos, sabia, doutor? Esta última palavra foi pronunciada de forma rascante e desafiadora, bem dentro do que eu percebera ser o modo Letícia de existir.

Eu fiquei aguardando sua próxima vinda, para lhe dar uma resposta que me parecia cabível frente a tanta impertinência. Entretanto, ao mesmo tempo, percebia que não seria capaz de assumir tal atitude de maneira tranquila e não culposa. Eu percebia que agora lutava com sentimentos contraditórios, muito contraditórios mesmo, em relação àquela moça. E precisava tratar de sua leucemia, ao mesmo tempo compreender suas bizarrices de paciente e, pior ainda, lutar conta o que me parecia ser uma espécie de captura que ela me fazia. O fato é que ela não veio na data marcada e nem nas semanas seguintes. Pensei que ela tivesse procurado outro serviço, mas como hipótese pouco provável, pois atendimento público na cidade era só ali no hospital onde eu trabalhava e ela, desempregada que estava, não me parecia ter recursos e nem família abonada para bancar um tratamento particular. Para mim, entretanto, havia algo novo no cenário: eu desejava, de fato, revê-la e isso me assustava um pouco. E não era para lhe conferir as taxas de leucócitos ou de hemoglobina, nem para lhe palpar o abdome. Era bem mais do que isso, eu ansiava pela proximidade com aqueles olhos de ressaca, como os de Capitu, ou com aquele corpo digno das pálidas mulheres de Klimt, que eu poderia dizer que já conhecia bem, seja através das regulamentares auscultas cardíacas ou pulmonares ou da palpação abdominal. O problema é que havia agora não só os olhos, mas todo um corpo a me perturbar os sentidos.

Como lidar com coisas assim?

Tive a sorte de ser ajudado pela sorte, embora em um primeiro momento eu não tivesse certeza disso. Era um fim de tarde, depois do expediente no hospital, e eu fora tomar um café em um shopping próximo ao hospital. De repente, quem vejo passar pelo corredor em frente? Ela mesmo, Letícia, cabelo curto, pelos efeitos da quimioterapia, magérrima, mas muito charmosa em suas roupas descoladas, aqueles jeans com buracos, deixando um pedaço de coxas à mostra, bata indiana branca e esvoaçante. Eu ainda não a tinha visto assim vestida e para mim aquilo tinha uma sedutora beleza. Corri-lhe ao encalço, ainda sem saber como abordá-la, embora, ao meu toque no ombro, ela tenha se virado e sem aparentar maior surpresa, me lascou um beijo na bochecha – pela primeira vez, aliás. Antes que eu perguntasse qualquer coisa, foi se explicando: – pois é, viajei, eu estava tão bem com o tratamento, mas pode ter certeza que eu voltarei, em breve. Como meu café ainda fumegava na mesinha próxima, convidei-a a se assentar comigo, nem que fosse por alguns instantes. – Ora, não se preocupe, tenho tempo de sobra. Exultei, por dentro, cuidando, porém para não dar mostras disso.

Na mesa, preferi não falar de sua ausência, e nem fazer discursos médicos. Quis saber de sua vida. Ela me falou de um curso de artes e de uma formação em tradução simultânea que estava fazendo. Nossas nossas conversas anteriores tinham como foco preferencial as taxas de leucócitos e os indicadores tumorais, de maneira que a inserção de tal temática mais existencial me estimulou. E ela, em certo momento, foi mais além: – posso te dizer uma coisa muito particular? Diante da minha aquiescência: – porque você não me trata como as outras pessoas, como as outras mulheres lá na clínica, por exemplo. Sou uma leucêmica, mas também sou mulher, tenho interesses, preferências, sentimentos. E você, diante de mim, parece um autômato, um robô ou algo assim.

Eu quase desabei da cadeira. Não sabia, realmente o que dizer, ou como me comportar diante daquilo. Ela colocara uma palavra terrível em cena: sentimentos. Como lidar com isso? O que importava para mim era a frase que eu não cansava de repetir, embora soubesse que não seria capaz de levá-la até as últimas consequências, com relação a Letícia, pelo menos: um bom médico deve ser, antes de tudo, um forte. E eu não me sentia forte para mais nada, muito menos para receber uma declaração como aquela, ainda mais eu, que acabara de me ejetar de mais uma relação desastrosa e me recuperava de tremendas dívidas financeiras e, principalmente, morais, derivadas de tal episódio. Caramba! Naquele momento, entretanto, fingi não ter sido tocado e deixei passar.

No dia seguinte me considerei recuperado, decidido a dar um fim àquilo. Reli o juramento de Hipócrates e até a jurisprudência do CRM, mas as interdições que encontrei eram de outra natureza, nenhuma que vedasse a médicos se envolverem daquela forma com pacientes, a não ser que fizessem disso estratégias de opressão ou constrangimento. Letícia parece ter captado meus dilemas e se afastou de mim por uns bons dias, até que voltou ao hospital, agora como paciente, comum, normal. A esta altura, minha disposição exterminadora havia minguado e eu estava disposto a tratar do delicado assunto sem refugá-lo, com calma e, tanto quanto possível, com sabedoria e sensibilidade.

Revi Letícia apenas uns vinte dias depois. Ela já tinha passado pelos residentes, que a encaminharam para os exames regulamentares, cabendo a mim recebê-la no retorno. Chegou de cabelos molhados, a mesma calça jeans rasgada e outra bata esvoaçante, agora em cor vibrante. Estava muito bonita, linda mesmo, apesar de sua magreza e por sorte meus batimentos cardíacos não podiam ser ouvidos fora de meu peito, porque se aceleraram de verdade. A boca me secou e nos primeiros minutos mal consegui balbuciar alguma coisa, mesmo aquele olá como tem passado? regulamentar. Ela tranquila na minha frente, sem aparentar nenhuma das reações fisiológicas que se exorbitavam dentro de mim.

E correram tranquilas as coisas por algumas semanas de seu acompanhamento clínico, até que resolvi romper o silêncio e a convidei para comermos alguma coisa numa lanchonete, após a consulta, o que ela aceitou com uma boa vontade que eu julguei, já sem maior temor, muito positiva.    

Como já era tarde, quase hora de se jantar, pedimos uma pizza, na qual ela mal tocou. Na mesa, ela me olhava o tempo todo de maneira especial, eu diria entre um modo brejeiro e outro, mais incisivo. Aquilo me torturava. Perdido entre Eros e Hipócrates eu não sabia o que fazer, até que ela, mais uma vez, sinalizou: – sabe, estou com muita fome… – Mas como! Você nem tocou nesta pizza que pedimos… E ela: – Poxa, quando é que você vai entender direito as coisas, seu doutorzinho de m., estou com fome é de outra coisa… Fiz cara de interrogação (???), o que fez Letícia reagir de imediato, como se já esperasse aquilo:  – Fome de carinho, de chamego, de ser tratada como mulher… Isso não é lhe diz respeito, por acaso, seu doutor? Aquilo era música, música verdadeira, uma sonata de Bach, para os meus ouvidos.

Dessa vez joguei fora os pruridos burocráticos e éticos. Fomos para meu apartamento e lá fizemos amor como eu nunca tinha feito antes, com ninguém, deixando em mim a sensação de que em todo o mundo e em toda a história da humanidade não teria havido nada igual. E ainda na cama, combinamos que ela passaria a ser acompanhada pelo Antônio Carlos, meu residente predileto, cabendo a mim apenas seguir seus exames e seu tratamento, de forma remota e ignota.

E deu tudo certo, isso é, enquanto os medicamentos fizeram o efeito esperado, porque aquela forma de leucemia era perigosa e imprevisível. Malgrado meu, passados uns poucos meses, comecei a perceber que ela emagrecia, estava mais indisposta, a palidez aumentava. Tinha picos febris ocasionais, sem que isso afetasse a nossa bendita e amorosa compulsão, celebrada sob a proteção de Eros.

Brincávamos de trocar nossos nomes, eu a chamando de Patrícia, como se estivesse confundindo nomes, ela me tratando como Belicioso, como crítica às minhas posições ideológicas, que ela considerava ácidas demais, sem deixar de lado um trocadilho evidente. E ríamos daquilo como duas crianças, ou dois bêbados. No final dizia que seu nome deveria ser Leuticemia, numa referência mordaz ao seu quadro clínico. Sim, éramos dois embriagados e adoecidos de amor e de tesão.

Certo dia, no encontro habitual do final do expediente, nosso colóquio teve especial sabor sensual, quando percebi que ela ardia de febre verdadeira, de quase 40 graus, como depois pude aferir, com um termômetro. Tentei interromper a transa antes de finalizá-la, mas ela, docemente, mais com um movimento certeiro dos quadris do que com palavras, me induziu a completá-la. E assim o fizemos. Mesmo tendo experimentado com ela tantos momentos de êxtase espiritual ou físico, orgasmos monumentais, verdadeiramente mitológicos, jamais poderia esquecer da sensação totalmente profana, pecaminosa, de visitar suas entranhas imerso e encapsulado naquele túnel ardente. E ainda poder contemplar, finalizado o ato, ela deitada de costas e apoiada em meu ombro, aquela especial curva sinuosa entre a cintura e a bunda, que a consunção trazida pela doença não conseguira aviltar. Feliz do homem que um dia alcança e usufrui de uma visão assim. Dane-se o velho Hipócrates, que talvez me recriminasse.

Culpa? Não tive nenhuma. Nem nessa ocasião e nem nas outras, numerosas e a cada dia mais significativas, embora marcadas pela sensação de que a hora fatal se aproximava.

Com tais recordações na mente, peguei o elevador para ir ao sexto andar, onde fica o apartamento onde ela estava. Ao passar pela porta senti que havia alguém mais naquele cômodo. Eu sabia quem era, os oncologistas sempre estão, ou deveriam estar, acostumados com sua presença indesejada. Ela se denuncia por uma espécie de odor, uma sensação de frio e calafrio que ataca a alma da gente, um vento encanado vindo pelas costas, um mal estar difuso ou coisa assim, difícil de explicar. Letícia, internada no leito 14 fazia duas semanas, chegava de fato ao seu fim. Respirava debilmente, com os olhos semifechados, o corpo febril nem transpirava mais, com a pele opaca e crestada. A camisola hospitalar se pegava de forma crua ao contorno das clavículas, antes graciosas, agora apenas ósseas e protuberantes. A respiração, apesar de ruidosa, mal lhe fazia movimentar o abdome ou o tórax, dando a impressão que iria se interromper a qualquer momento.

– Letícia! Letícia!!! Letícia… Tive que chama-la por diversas vezes para que ela abrisse os olhos, para finalmente me presentear com um leve sorriso, sem palavras audíveis. Fiquei por ali uma hora ou mais, lamentando ter o compromisso de um plantão de emergência, em outro hospital, ao qual não poderia faltar, sob pena de demissão. Prescrevi alguma coisa e saí apressado dali, pois já estava atrasado para o outro compromisso. Mal consegui pensar nela naquela noite infernal de movimentadíssimo plantão, em que me foi impossível fechar os olhos até o sol raiar.

Eu devia ter ficado aquela noite com ela…

Somente no meio da manhã é que pude retornar ao sexto andar e ao leito 14. Logo de cara percebi que Letícia ali já não estava. Quanto à Indesejada, essa também tinha se evadido para baixar em outro lugar. A cama vazia e despida mostrava apenas o colchão revestido do plástico azul hospitalar, à espera de outro candidato à morte certa, fosse imediata ou deixada para depois.

E assim se encerra essa história.

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