Amores no Grande Sertão

Um homem recebe um visitante para uma longa conversa. Deste último, nada se saberá, exceto que vem da cidade, enquanto o anfitrião, também narrador, mora na roça. Mas se aquele se trata de pessoa letrada, com certeza interessada na longa conversa de que participa como bom ouvinte, pois não proferirá palavra, o anfitrião tem prosa rústica, porém articulada e fluida. Ele começa falando de generalidades, como de uns tiros que o visitante teria ouvido um pouco antes de chegar e aproveita para declarar seu gosto pelas armas, mas só para treinar a pontaria, pelo menos nos últimos tempos, pelo que se depreende. Fala das pessoas que lhe são vizinhas, da simplicidade e do modo tosco destas em relação às coisas do mundo; de um compadre que mora distante e que lhe traz inspiração espiritual, em relação à qual é muito respeitoso; de mulheres que ele paga para rezar para ele. Por que este homem precisaria de tantas orações assim? Já nesse momento o leitor começa a penetrar no universo denso e profundo da longa história que se desenrolará. Aqui e ali, já de início, o narrador coloca em pauta algumas dúvidas que tem, por exemplo, da presença de Deus na vida dos homens e também da contrapartida oferecida aos viventes por ninguém menos que o Diabo. Será que este de verdade existe, indaga repetidamente? Deixa no ar, em certo momento, uma frase que repetirá em vários momentos da conversa, a ser esclarecida só ao final: o diabo, na rua, no meio do redemunho.

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Adoecer e morrer no Grande Sertão

Guimarães Rosa era médico e clinicou por alguns anos, seja como clínico na Polícia Militar ou no interior do estado, em Itaguara, na região central de MG. Ser o escritor afamado é coisa que veio mais tarde, quando já havia abandonado a medicina e se tornado diplomata, por concurso, no Itamaraty. Mas a presença de doenças e doentes em sua obra é constante. Neste presente e despretensioso trabalho pretendo levantar um pouco da visão médica em suas narrativas e personagens, particularmente no Grande Sertão. A presença de gente enferma em sua obra é marcante, com ampla dominância dos portadores de doenças mentais, como é o caso de boa parte dos personagens de suas Primeiras Estórias. Ali estão, por exemplo, o homem que subiu em uma palmeira e se recusou a descer; a menina que tinha visões; o refugiado na terceira margem do rio; o dono do cavalo que bebia cerveja; o escravo que preparava o pouso de discos voadores; para não falar da pungente história do Sorôco, que vai levar sua mãe e sua filha para terrível embarque no trem que tinha um vagão destinado apenas aos condenados ao hospício de Barbacena. Narrativa especialmente saborosa, apesar de dramática – além de detalhada do ponto de vista clínico – é aquela que fala de Turíbio Todo, personagem do conto O Duelo (em Sagarana), o qual, em ímpeto vingativo, bem típico dos Sertões, acaba por matar por engano o irmão de um militar, Cassiano, que lhe cortejava a mulher e que parte para cima dele em busca de vingança. Turíbio era um papudo, ou seja, portador da hipertrofia tireoidiana por carência de iodo, coisa comum no Brasil de décadas atrás. A descrição de tal papo é um primor de observação clínica: …bilobado e pouco móvel – para cima, para baixo, para os lados. E ironiza: não o escandaloso ‘papo de bola, quando anda, pede esmola’, acrescentando:  ninguém nasce papudo ou arranja papo por gosto, recorrendo ao conhecimento vigente na época (década de 30), hoje superado, atribuindo o problema de Turíbio às tentativas que o grande percevejo do mato faz para se tornar um animal doméstico nas cafuas de beira-rio, onde há também cúmplices, camaradas do barbeiro, cinco espécies, mais ou menos, de tatus. E prossegue, falando de tal personagem, neste momento do conto mais importante do que seu próprio portador: … e tão modesto papúsculo, incapaz de tentar o bisturi de um operador, não enfeava seu proprietário; antes o fazia até simpático: forçado a usar colarinho e gravata, às vezes parecia mesmo elegante. O papo de Turíbio Todo volta à cena em outros momentos do conto, agora dominado por uma frenética perseguição ao longo dos sertões de Minas, digna de um filme de Peckinpah. Cassiano, o desafeto do tal papudo, este sim, vai se revelar vítima autêntica do grande percevejo do mato, ao falecer em estado de congestão cardíaca, em pleno périplo de perseguição ao marido ciumento. Mas nem por isso deixa de consumar a vingança pela morte do irmão. Quem quiser saber como e por quê que leia o conto – bom proveito certamente o espera. No mesmo Sagarana, o conto Sarapalha narra a história de dois primos roceiros,  derrotados pela maleita e por um amor frustrado, sobre o qual a verdade se anuncia, por descuido de um deles, durante um acesso de febre, revelando uma traição em família, que desemboca em tragédia.

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Pelos Sertões do Urucuia

A presente viagem foi realizada na segunda quinzena de janeiro último (2025), durando apenas quatro dias. Foram participantes dela este blogueiro que vos fala e meu grande amigo Cristiano Barbosa, misto de geógrafo, agitador cultural e cineasta-documentarista, residente em Uberlândia. A ideia era de realizar, ou começar a fazê-lo, um pequeno documentário sobre a região do rio Urucuia, a qual, como se sabe é também um ‘personagem’ de Grande Sertão: Veredas. Seu possível roteiro buscaria por imagens e possíveis referências de Guimarães Rosa, particularmente os chamados jagunços Catrumanos, gente pobre e valente, proveniente do vale de tal rio, os quais, por hipótese, acabaram desarmados, desempoderados e expulsos pelo ‘progresso’ material, particularmente pela entrada em cena do agronegócio na região. Acabamos mudando o foco após o encontro de um extraordinário personagem, que como se verá a seguir, nos revelou novas e interessantes facetas daqueles sertões. Não abandonamos o tema original relativo aos tais Catrumanos, ele apenas ficou para uma próxima etapa.  Narro agora nosso périplo pelos Sertões do Urucuia, através de pequenas inserções textuais, para não cansar os leitores. Vamos lá?

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Pelas Veredas do Grande-Sertão

Não me considero um especialista em Guimarães Rosa. Pensando bem, não passo de um fã, lembrando a origem verdadeira desta palavra: fanático. Assim, se me faltam fundamentos de crítica literária, me sobra emoção ao falar de sua obra, particularmente de Grande Sertão: Veredas, que para mim é simplesmente O Livro. Admito a minha fixação nesta obra, tendo acabado de lê-la pela sétima vez durante a … Continuar lendo Pelas Veredas do Grande-Sertão