Fala por mim Luiz Vaz de Camões: Erros meus, má Fortuna, Amor ardente…
Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!
Gênesis
Nasci em Itabira, e pelo menos por um ano vivi nesta cidade. Na infância e na adolescência estive por lá algumas vezes, em férias inesquecíveis, sempre tentando me fazer parte do famoso poema de Drummond, aquele que fala em um “retrato na parede”. Logo vi, porém, que eu não era tão ferreamente triste ou orgulhoso, embora aquelas noites brancas e frias de minhas férias de julho combinassem bem com meus hormônios nascentes e me trouxessem boas sensações, por exemplo, que havia garotas interessantes naquele corredor de footing que corre entre a Praça de Batistinha e o Clube Atlético Itabirano. Com uma tosca câmera “120”, presente de minha tia Darcy, documentei alguns daqueles casarões com a paisagem escavada do ex-Cauê ao fundo e orgulhosamente coloquei a fotografia em meu quarto, com a devida menção ao poema de CDA: “mas como dói”. Mas em verdade nem doía nada, era puro gênero… Belzonte, esta sim, é a minha verdadeira aldeia. E eu a palmilhei por inteiro, do Prado à Lagoinha; do Calafate ao Carlos Prates; da Barroca ao Sion; da Nova Suíça a Serra, passando pela rua Guaicurus e pelo Mercado Central. Ali cresci, brinquei, descobri, sofri, namorei, festei, conheci, além de ter praticado outros verbos, nem todos publicáveis, com os quais se compõe a condição humana. Duas alegrias me vêm, hoje, desta cidade: a de partir e a de ir embora. Mas o que ali vivi foi um gênesis perfeito para ser quem eu sou, como todos os meus defeitos e talvez algumas qualidades. Nada mais, nada menos.
Noviciado
Na década dos sessenta, entrei menino, saí médico. Aluno medíocre e relapso, como num passe de mágica passei no vestibular para medicina da UFMG – e em terceiro lugar. O nome disso não é apenas “sorte”; houve virtude também, devo dizer a meu favor. Este meu “noviciado” me trouxe muito mais que a formação acadêmica. Conheci a mulher com quem vim a me casar alguns anos depois e com a qual dei ao mundo três filhos bacanas, dos quais muito me orgulho. Tentei uma aproximação com a política, mas confesso que consegui apenas uma imersão rasa e desconfortável em tal mundo. Repudiei a ditadura e tudo que cheirasse a ela, tive um irmão preso, fui forçado a respirar gás lacrimogênio, ganhei uma bolsa para os States, fiz muitas amizades, mas poucas delas permaneceram comigo até hoje.
Já na minha formação médica o máximo que consegui foi uma indefinição da qual só me libertei dez anos depois, quando finalmente cheguei à conclusão que meu negócio não era tratar de doentes individuais e deitados, mas sim coletivos e em marcha. Casei quase virgem em 1971, ainda na condição de estudante.
Enfim, fui feliz e infeliz, misturadamente, conforme está em um conto de Tutameia, de Guimarães Rosa.
Vita Activa
Ela aconteceu em três cenários: São Simão, Uberlândia, Brasília. No Rio de Janeiro fui morar por três vezes, mas sempre fiz o caminho de volta. Meu destino, melhor dizendo, minha escolha, era mesmo o vasto Brasil do interior, com o qual eu sonhara desde a infância. E assim fui ter àqueles planaltos centrais e àquelas cidades espraiadas, tão diferentes da Belo Horizonte que havia me abrigado por mais de vinte anos.
Assim me vi médico, professor, gestor público neste período de minha vida, que durou quase duas décadas. Gostei mais dessa última função e nela me aprofundei. Voltei também a ser aluno, com aproximações acadêmicas que, entretanto, não perduraram. Participei da criação de uma família que só me trouxe alegrias, embora deva reconhecer que a recíproca talvez não tenha sido totalmente verdadeira. Conheci a dor e a delícia de deixar de ser apenas um rosto na multidão, ao me transformar em homem público, embora tenha percebido mais adiante que fazer parte de tal coisa pública também não era o meu real desejo. Acho que de fato eu não queria ser ‘coisa’ e muito menos ‘pública’…
Tive colegas, pacientes, subordinados e alunos que creio terem apreciado o meu jeito de ser, minha inquietação, meu afeto com as pessoas, embora sujeito a intempéries. Uma coisa eu sei: não passei em brancas nuvens por onde estive. Isso foi, sem dúvida, o melhor que pude fazer em minha ‘vita activa’. A companheira dos anos de faculdade, sempre comigo até então, tanto física como afetivamente, um dia vi que não me supria em uma suprema carência, a de viver em um mundo de limites mais amplos. Eu que era um peixe grande em um lago pequeno, optei por me transformar apenas em manjuba, em mar largo e perigoso.
Mar aberto
Nos meus anos de Uberlândia, principalmente em minha nova atividade de secretário municipal, gradualmente me veio a certeza de que eu tinha um papel maior a cumprir no cenário da saúde, maior, pelo menos, do que aquele que eu vinha exercendo. A primeira sensação se deu depois de um convite de Nelson Rodrigues dos Santos, a quem eu já conhecia das lidas do ensino médico, para participar de uma reunião de secretários municipais de saúde paulistas, a partir da qual foi criado um colegiado deles. Pouco depois, conversa vai conversa vem com meus colegas mineiros, fizemos o mesmo, em uma reunião em Araxá. Comecei a viajar para reuniões deste tipo muito amiúde, para desgosto de meu prefeito e de minha mulher.
Marco importante: participei da famosíssima Oitava Conferência Nacional de Saúde como delegado por MG, não tanto por meus méritos, mas por manobras do Partidão (ao qual eu nem pertencia…) em Brasília. Em 1987 estava em Londrina, onde foi fundado o colegiado nacional de SMS, fazendo parte da primeira diretoria. Comecei a gostar daquela história, sem conseguir convencer minha mulher das vantagens disso. Difícil mesmo agradar a todos…
Terminando meu mandato em Uberlândia, já separado de minha mulher, fui para o Rio fazer mestrado na Fiocruz; anos depois um doutorado. Entrementes, caí no Ministério da Saúde, onde fiz algumas coisas importantes, ao lado de outras totalmente irrelevantes ou mesmo prosaicas. Nos intervalos estive no Canadá para aprender alguma coisa e, como técnico do, MS visitei todas as capitais do Brasil, muitas cidades no interior também e cheguei até a Inglaterra, em uma missão internacional. Foi assim que o mar se abriu para este Moisés. Não recebi e nem repassei a alguém as Tábuas da Lei, mas acho que o saldo foi bom, pelo menos para mim…
Personae
De quem falo agora? Amigos talvez não seja a palavra mais adequada, banalizada que foi pelo seu uso vulgar nas chamadas “redes sociais”. Amigo, com efeito, é muito mais do que isso, como já dizia meu Rosa, “é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou — amigo — é que a gente seja, mas sem precisar de saber o porquê é que é”.
Assim, as pessoas que aqui trago podem ser até mais do que isso… Assim, por exemplo, há alguns a cuja casa nem cheguei a ser convidado; com outros, minha intimidade foi pequena; mas com quase todos tirei grande prazer de estar junto – embora nem sempre repetidamente – ou de tê-los apenas conhecido e com eles convivido. Tem até gente que talvez nunca se soube objeto de minha admiração. Este último sentimento talvez diga tudo: aqui comparecem pessoas a quem eu admiro ou admirei ao longo da vida. Mas mesmo os que já se foram continuo admirando, indivíduos encantados em que se transformaram.
Trago aqui relações novas e antigas. Tios e outros parentes; ex-cunhados; colegas de escola; companheiros de profissão; parceiros de sonhos; ex-alunos, além de gente que a vida me trouxe por outras razões. Trago até mesmo pessoas genéricas ou um tanto abstratas, mas certamente palpáveis para mim, cujo perfil compus livremente, a partir de tipos inesquecíveis com quem eu tenha convivido. Nem sempre seria fácil reconhecê-las, por não terem seus nomes citados explicitamente. Igualmente, deixo em aberto os nomes, embora por outros motivos (que todos compreenderão), de um rol distinto de personagens-mulheres especiais, que trouxeram para minha vida uma marca inapagável, que em uma simples palavra poderia chamar de amor. Anônimas só na aparência; não será difícil identificá-las. “Elas”, de quem falo, foram as que realmente fizeram diferença em minha vida e que por isso mesmo se tornaram objeto de minha gratidão e de minha homenagem, sem deixar de mencionar que talvez lhes devesse um pedido formal de perdão pelos males que talvez tenha lhes causado, por sofreguidão ou imaturidade de minha parte.
E para encerrar tal assunto, falo de meus Filhos – e nem poderia ser diferente.
Torre de vigia
A gente vai ficando velho, mas tem a compensação de ficar mais sábio. Será? Já dizia Cicero em ‘De Senectude’ que os velhos, no teatro da vida, se sentam nas últimas fileiras de um teatro e assim podem apreciar melhor a apresentação que acontece no palco, com a vantagem adicional de se divertirem também com a plateia à sua frente. Ou algo assim. A tal apresentação, admito, às vezes pode trazer enfado, por vulgar e repetitiva. O público, iludido ou confundido pela peça de qualidade muitas vezes duvidosa, não lhe ficaria atrás. Então, sem nenhuma pretensão de adicionar conteúdo de filosofia ao que disse o velho escriba romano, eu diria que o melhor mesmo da velhice é a gente poder contar com certo beneplácito dos circunstantes ao proferir o que nos vem à cabeça, sem maiores restrições ou censura. Mas mesmo isso pode ser perigoso nos dias de hoje, em que ‘homens partidos’ se estraçalham até pela posição das vírgulas nas frases e pelas palavras mal interpretadas de quem se dedica a ter opiniões próprias.
Aqui vai, apesar de tudo, a expressão de algumas liberdades que resolvi tomar, amparado pelos meus mais de setenta anos de idade, em relação a alguns fatos da vida social e política no panorama brasileiro e mundial. Coisas que poderiam ser categorizadas em uma simples frase de minha especial preferência: a unanimidade faz mal à saúde (e ao resto, diga-se de passagem).
É assim que seguem, do alto de uma espécie de Torre de Vigia (obrigado Dylan), algumas opiniões minhas sobre temas tão diversos quanto a política, a sociedade, a saúde, a medicina, a educação, os costumes, as religiões, todos eles constituindo territórios de mudanças profundas nos últimos anos, principalmente na década que vai de 2010 a 2020. Foco especial nos dois últimos anos desta década, quando o nosso país virou de ponta-cabeça, mudando para pior, sem dúvida. Encerro com um tópico sobre Viagens, além de um pequeno epílogo. Por que viagens? É que sempre as considerei como oportunidades de refletir sobre o cotidiano, operação facilitada justamente por se estar afastado do mesmo, seja por comparação com a realidade de ambiente diferente do nosso, seja por permitir um aclaramento de ideias que, quem sabe, a distância da rotina pode trazer. Sendo assim, acho que as viagens cabem bem neste capítulo de fecho.
É claro que me meter em tantos assuntos poderá me trazer a pecha de pretensioso, mas afirmo que, mesmo assim, minha maior verdade é a de saber que nada sei. Faço isso assumindo também o risco em analisar os fatos tão a quente. Ser mais cauteloso, entretanto, poderia implicar que diante do esfriamento de tais acontecimentos, eu próprio venha a lhes fazer companhia, em termos termodinâmicos. Sendo assim, prefiro me antecipar. Mas de toda forma, ‘em cima do muro’ é lugar que não conheço.
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