Anjo da Morte

– Quem, eu? Eu? Nem sei direito de quem o senhor está falando… Ah, daquele sujeito? Infelizmente, conheci. Foi meu marido sim, ou alguma coisa parecida. Foi, não é mais. Deus levou ele, ou foi o diabo, nem sei. Era mesmo uma peste de homem, pergunte por aí. Não é somente eu que digo isso. Outras mulheres que ele teve também confirmam. E mais gente, uns que trabalharam com ele, fizeram negócios, até mesmo vizinhos. Não tem um que defenda.

O que eu acho é que caí na conversa dele. Eu tinha ficado viúva, três filhos pra cuidar, uma situação danada, tudo difícil. Aí ele me aparece, dando uma de bonzinho. Um saco de farinha aqui, um queijo fresquinho, umas broas que uma tia dele fazia. Nos fins de semana ficava lá no bar com aquela cara de filho que se perdeu da mãe. E eu caí na conversa, ou melhor, naquele jeito pidão de me olhar. Quando vi, me levou em casa e por lá foi ficando. Eu deixei, não devia, mas deixei. Depois mudou, bebia tanto que eu é que levava ele em casa, quase de quatro, caindo pelos cantos. Um dia até vomitou no meu ombro, o desgraçado. Mas eu, sozinha como estava, nem reclamava, queria mesmo era alguém para me esquentar nas noites, que são muito frias por aqui. E, de quebra, trazer leite e pão para os meus filhos, fazer um armazém lá uma vez ou outra. Tanta gente por aí passa por isso, não é mesmo?

Então morreu, é? Ouvi dizer. Nessa época já nem estava mais comigo. Ou melhor, o mais certo seria dizer é que eu já não estava mais com ele. Juntei meus trapos como pude, espalhei os filhos pela casa de parentes e caí na estrada. Machucada do corpo e da alma. Do olho esquerdo nem enxergo mais, perdi a visão nele depois de levar um soco, ou mais de um, sei lá, aquela era minha vida, apanhar, apanhar. E não adiantava gritar, a gente não tinha vizinho nesta época, morava num fim de mundo desgracento. Ele saía para trabalhar, ou dizia que ia fazer isso, voltava bêbado da silva e a primeira coisa que fazia quando chegava em casa era me encher de pancada, com preferência de me acertar na cara, para início de conversa. Aquilo para ele era conversa, a forma dele me fazer carinho, grande filho da mãe! 

Mas eu nem quis ver ele morto. Pra falar a verdade, nem acreditei muito que ele tivesse morrido de verdade. Aquilo era tão bom em enganar os outros que era bem capaz que nem tivesse morrido de verdade. Mas me disseram que foi até enterrado, pode ser.

Vou dizer para o senhor, não sei que coisa fez ou apanhou para morrer. O que eu sei é que pagou pelo muito mal que fez, a mim, aos meus filhos e a outras pessoas. A Eva, minha filha mais nova, o senhor acredita? Um dia ele tirou a roupinha dela e levou para andar até um formigueiro e deixou a menina lá. Tive até que levar no hospital depois, toda empoladinha que ela ficou. O Toninho, que é o mais velho, perguntou pra ele uma vez o que tinha dentro de uma lata velha, abandonada no quintal. E ele – por que você não experimenta para ver se é bom? E era veneno de rato ou formicida, não sei bem. Nossa cachorrinha, a Bustica, um dia saiu para passear com ele e não voltou. Encontraram ela de espinha quebrada, uns dias depois. E o maldito falou que não viu nada, mas era mentira. A Bustiquinha não desgrudava dele um minuto que fosse. Aliás, ela era a única em casa que tinha algum carinho por ele.

Mas o que o senhor quer saber mesmo? Se a morte dele não foi suspeita? Suspeita de quê? Envenenado? Deve ter gente por aí que pode ter feito isso, com gosto, pode acreditar. Mas aquele ali deve ter gastado um caminhão de formicida para bater as botas. Mas o que o senhor quer saber de mim? Não tenho nada com isso não, a gente nem morava junto mais – e já fazia uns seis meses que a gente tinha se separado. Ah, o senhor viu um papel de laudo da polícia? O que tinha lá? Este povo especula demais… Mas acho que um sujeito como aquele merecia era morrer mesmo. Bem morrido – ou matado. Se não fosse eu, podia ser outra pessoa.

Sim, ele me procurou várias vezes. Queria voltar a vida de antes. Não deixei. Deu de frequenta a casa de meu pai, onde eu estava morando e por lá ficava tardes inteiras, às vezes. Nas noites mais de uma vez implorou para deixar ele ir para a cama comigo. Meu pai, besta como ele só, achava que eu procedia mal, que afinal de contas ele era meu marido, que eu devia fazer as pazes e voltar com ele. Mas segurei firme. O pior é que ele vinha muitas vezes para passar dias inteiros, trazia presentes para mim e para meu pai, um queijo, um salame do bom, uma caixa de chocolate da cidade.  Nunca comi nada. O que eu queria mesmo era me ver livre daquilo.

O tempo todo eu me lembrava das maldades dele não é possível que tivesse melhorado. Não acreditava. Aquele era ruim de nascença e haveria de morrer pior ainda do que nasceu.

Eu me lembrava das formigas picando a minha Evinha, do Toninho correndo o risco de se envenenar. O que eu queria mesmo era me vingar dele de um jeito assim. Juntar todas as formigas do mundo e botar tudo numa espécie de saco, com ele junto. E até enterrar para ele se haver com elas. E era pouco. Eu não podia juntar tanta formiga assim, mas um veneninho era coisa ao alcance da mão. Onde não tem uma boa lata de formicida Tatu de algum remédio para lagartas da lavoura? Ouvi dizer que até óleo de rícino, dependendo da quantidade, é o bastante para liquidar uma pessoa. Mas para ele eu achei que podia haver coisa melhor… Um remédio para matar ratos que chamavam de chumbinho, nome apropriado, aliás, porque eram umas bolinhas rosadas, tão inofensivas…

Se eu estou me sentindo bem assim, sozinha como estou? Por que o senhor indaga isso? Eu nem lhe conheço direito… Além do mais já está tomando umas liberdades, este braço em cima da minha perna, por exemplo. Chega pra lá um pouco, faz favor…

E foi então que ele deu azar. Eu tinha ida buscar água na bica, a tarde já caía, era quase noite e de repente ele me atacou na beira do caminho. Ele era forte e me dominou, me levou para o meio do mato e fez o que a cabeça dele (uma delas, pelo menos…) pedia. Mas aí se deu mal, eu já tinha um plano armado para ele. Fingi que aceitava – e até gostava. E ele se achou o dono do pedaço, queria vir pra cima de mim todo santo dia. E vinha, às vezes no mato, outras vezes na cama, em qualquer lugar que eu fosse estava o desgraçado a me atazanar. O que ele não sabia é que em cada copinho de pinga, de suco ou de água que eu trazia para ele – e mesmo numa broinha de milho vez ou outra – havia uma ou duas daquelas bolinhas cor de rosa, tão inocentes.

E assim ele foi emagrecendo, sentindo dores fortes na barriga, depois pegou a sangrar. Não podia nem escovar os dentes direito. Um dia bateu a cabeça numa trave da varanda e sangrou quase um litro. Ficou internado no hospital da cidade uns quinze dias e lá não descobriram nada, acho que nem conheciam este tipo de veneno. Aliás, por lá não curam nem uma dorzinha de barriga. Foi aí que ele descansou do mundo e nós, do mundo, descansamos dele.

Arrependida? Pra falar a verdade, não sei se fiquei. Aquilo era um traste. Além do mais ele bebia muito, teve doença de rua, pode ter morrido por outros motivos. Eu posso nem ter sido a causa, as bolinhas eram só para deixar ele mal, modo de vingança minha.

Já pedi para se afastar um pouco, meu senhor, lhe peço mais uma vez. Insisto, por favor! Estou bem assim sozinha, somente com Deus ao meu lado e sem precisar de ninguém por perto, não há vaga pra homem aqui neste meu serviço.

Sim, contei para pelo menos uma pessoa. Achei que devia contar esta história para o Pastor. E contei, por alto, falei que estive pensando nisso, mas que ele morreu antes. O danado não disse coisa com coisa, e pegou a vir conversar comigo umas coisas estanhas, se eu não estava me sentindo sozinha, etc e tal. Eu de imediato me lembrei que o vidrinho onde eu guardava as bolinhas inda tinha uma boa quantidade delas e que aquele Pastor infeliz era louco pelas broas de milho que eu fazia.

Já lhe pedi. Se afaste de mim um pouco mais, vá se assentar naquela outra cadeira ali em frente. E vamos mudar de assunto: – o senhor aceita um copo d’água? Um cafezinho? Uma broa de milho?

***

2 comentários sobre “Anjo da Morte

  1. Holá Flavito, interessante estarmos sintonizados nesse tema do sofrimento das mulheres, da exploraçao que elas sofrem nas mãos de homens poderosos. Ontem assisti o filme SHE SAID. Versa sobre um caso real da denuncia de 82 mulheres, jovens atrizes e assistentes, que foram coagidas, abusadas, chantageadas e torturadas pelo produtor de Hollywood Harvey Weinstein, na década de 90. A realidade mostra que esses absurdos ocorrem em todo ambiente de trabalho, sobretudo no mundo da moda e na industria cinematografica.

    Realmente, quando vitimas de homens psicopatas, elas se sentiam envergonhadas, impotentes, sem proteçao mesmo dos parentes e amigos proximos. Havia uma certa permissividade por parte dos colegas de trabalho e diretores da instituiçao.

    Acredito que temos muito a fazer para ajudar mulheres, que mesmo autônomas profissionalmente e financeiramente, são agredidas de forma tão vil por homens inescrupulosos. Acho que os homens respeitosos, justos e de bom coração deveriam integrar essa causa de conscientização em defesa das mulheres e de uma sociedade de fato humanizada. O que acontece com as mulheres permeia todas as relações, inclusive com outros homens, crianças, jovens….

    Temos muito a fazer, com certeza!

  2. Aqui vai meu comentário!

    Publicado em 28 de maio de 2025 no blog Vereda Saúde, o conto “Anjo da Morte” apresenta um monólogo pungente de uma mulher que relata sua experiência com um parceiro abusivo, conhecido por sua crueldade e violência.

    A protagonista descreve como, após ficar viúva e com três filhos para criar, foi envolvida pelas falsas gentilezas de um homem que se revelou um agressor implacável. Ela compartilha episódios de violência física e psicológica, incluindo agressões que a deixaram com sequelas permanentes e atos de crueldade contra seus filhos e até mesmo contra o animal de estimação da família.

    A morte do agressor é recebida com alívio pela narradora, que expressa desconfiança sobre as circunstâncias do falecimento, sugerindo que poderia ter sido resultado de envenenamento. No entanto, ela enfatiza que já havia se separado dele há seis meses e que não teve envolvimento com sua morte.

    O “Anjo da Morte” faz referência direta ao agressor da protagonista, que era alguém que, em vez de proteger e cuidar, levava sofrimento, destruição e quase levou à morte — tanto física quanto emocional — da mulher e de seus filhos.
    Ele se comportava como um “anjo” no começo, sedutor, gentil, oferecendo ajuda e apoio. Porém, se revelou na verdade o oposto — alguém que trazia dor, controle, medo e violência, como se fosse a personificação da morte na vida dela.
    O título também pode ser interpretado como uma metáfora da libertação. A morte dele, no final, não é vista com tristeza, mas como o fim de um ciclo de terror. Nesse sentido, a figura do “Anjo da Morte” também representa a quebra do ciclo de violência e o início de uma nova vida para a protagonista.

    O conto destaca a complexidade das relações abusivas e a dificuldade de romper com ciclos de violência, especialmente em contextos de vulnerabilidade social. A autora utiliza a narrativa para dar voz a uma mulher que, apesar de todas as adversidades, encontra força para se libertar e reconstruir sua vida.

    “Anjo da Morte” é um relato impactante que convida à reflexão sobre as dinâmicas do abuso doméstico e a importância de dar voz às vítimas. Através de uma narrativa intensa e realista, o conto ilumina as sombras de uma realidade muitas vezes silenciada.

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